Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
428/16.4T8STB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
COMERCIANTE
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: O processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, não podendo recorrer a este instituto processual os cônjuges que exercem uma atividade remunerada por conta de outrem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I. Relatório.
1. AA e marido BB vieram recorrer ao processo especial de revitalização, previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I, do CIRE [1], alegando, em síntese, são casados entre si desde 24 de Junho de 1989, a primeira trabalha como assistente técnica e o segundo é Cabo na Guarda Nacional Republicana, auferindo, respetivamente, o vencimento base de €923,00/mês e €1.252,00/mês e estão numa situação económica difícil, com sérias dificuldades em cumprir pontualmente algumas das suas obrigações, o que inviabiliza o acesso ao crédito ou liquidez que lhes permita efetuar o pagamento das suas dívidas.
Foi nomeado o senhor Administrador Judicial Provisório e concluídas as negociações foi homologado judicialmente o plano de revitalização dos devedores, nos termos do art.º 17.º-F nºs 5 e 6 do CIRE.
Inconformado com esta sentença homologatória veio o credor CC interpor o presente recurso e após alegações concluiu:
A. Os Devedores AA e BB – em conjunto com o Credor DD – intentaram um Processo Especial de Revitalização nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º C do CIRE.
B. Nessa sequência, e em cumprimento da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C do CIRE, o Tribunal proferiu despacho de nomeação de Administrador Judicial Provisório.
C. Ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 17.º-D do CIRE, o Credor CC reclamou créditos no valor de €12.819,12 (doze mil oitocentos e dezanove euros e doze cêntimos) dentro do prazo legal.
D. Os créditos da CC foram reconhecidos e devidamente incluídos na lista provisória de créditos elaborada pelo Administrador Judicial Provisório (cf. n.º 3 do artigo 17.º-D do CIRE).
E. O processo em apreço destina-se única e exclusivamente a devedores comerciantes e empresários e não a toda e qualquer pessoa singular.
F. In casu, os Devedores não se enquadram em nenhuma das situações supra citadas.
G. Motivo pelo qual não poderá tal mecanismo do PER prosseguir por ter sido desencadeado por quem não tem legitimidade para tal.
H. Assim, requer-se a V.Exa. a declaração de nulidade de todo o processado nos termos do artigo 193.º do Código do Processo Civil.
E termina pedindo a revogação da decisão e se declare a nulidade de todo o processado nos termos do artigo 193.º do Código do Processo Civil.
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Os devedores contra – alegaram, defendendo a decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado, e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se os devedores, por não exercerem qualquer atividade económica autónoma e por conta própria, podem recorrer ao processo especial de revitalização.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Sendo a matéria de facto a descrita no antecedente relatório, vejamos, pois, qual a solução jurídica adequada à questão colocadasaber se os devedores podem recorrer ao processo especial de revitalização.
Defendem os recorridos que o regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos (cf. artºs 1º, n.º 2, 2º, n.º 1 e artº 17º- A, n.º 1, do CIRE), entendimento diverso é sustentado pelo recorrente.
A questão colocada não é nova.
Com efeito, o ora Relator já teve oportunidade de se pronunciar no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/06/2016, Apelação n.º 1189/16.2T8STS.P1, por si relatado, onde se decidiu: “O processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, como é o caso em que o cônjuge requerente exerce atividade remunerada por conta de outrem” [2].
No sentido de que o processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários, isto é, que não exerçam, elas mesmas e por si, uma atividade económica, nomeadamente quando o requerente exerce atividade remunerada por conta de outrem – cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 12/10/2015 (Isabel São Pedro Soeiro) e de 23/06/2015 (Pedro Martins); de 23/02/2015 (José Eusébio Almeida). Em sentido contrário se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9/7/2015 (Conceição Ferreira), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
E, recentemente, sufragando essa orientação, o Supremo Tribunal de Justiça, citando a doutrina que se pronuncia sobre o tema, sentenciou, no seu Acórdão de 10/12/2015 (Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt: “Neste pressuposto, as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria.
Para além de ser essa a solução compatível com o referido objetivo, anunciado pelo legislador, é também a que se adequa à situação do devedor que não exerça essa atividade económica: sendo-lhe inerente uma "situação patrimonial estática", o PER não poderia visar a manutenção de uma atividade que este não exerce e promover uma recuperação, que não passaria, necessariamente, de simples exoneração do passivo”.
No mesmo sentido o Acórdão do STJ de 5 de Abril de 2016, relator: Manso Rainho, processo nº 979/15.8T8STR.E1.S1 “A lei apenas admite ao processo especial de revitalização o devedor pessoa singular que vise a revitalização de um substrato empresarial de que seja titular, e não já todo e qualquer devedor pessoa singular”.
De realçar ainda o Acórdão do STJ de 12.04.2016, relator: Salreta Pereira, processo nº 531/15.8T8STR.E1.S1: “O PER não se aplica aos devedores, pessoas singulares - que trabalham por conta de outrem”. É que neste aresto é expressamente invocado que a 6ª Secção de Processos do STJ, a quem são distribuídos os processos desta natureza, vem decidindo neste único sentido.
Solução que é também defendida por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “ Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Anotado, 2.ª Edição, 2013, pág. 143, apontando para uma interpretação restritiva do sentido literal do texto do art.º 17.º-A, realçando que a “ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário”, e afirmando que “o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários”, louvando-se nas razões aduzidas na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, em que o legislador justifica pretender privilegiar “sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial”, a qual deu origem à Lei n.º 16/2012, de 20 de abril.
Mas, para além desse elemento histórico de interpretação, estes autores avançam com um outro fundamento, acrescentando: “ Acode, também, uma outra razão que não se deve ter por despicienda. É que, embora já num enquadramento insolvencial, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previso e regulado nos art.ºs 251.º e seguintes, por força do qual não se vê particular utilidade em cumular a possibilidade de recurso, por eles, ao processo de revitalização, com o consequente e, cremos, ineficiente consumo de recursos que este processo implica – judiciais e atinentes à administração provisória, de nomeação e envolvimento obrigatórios”.
Pelo mesmo caminho parecem seguir Salazar Casanova e Sequeira Dinis, in “O processo Especial de Revitalização”, Coimbra Editora, pág. 13, ao afirmarem que “O devedor não terá necessariamente de ser uma sociedade comercial. As pessoas singulares e as demais pessoas coletivas e os patrimónios autónomos previstos no artigo 2º, nº 1, do CIRE podem ser objeto de um PER. Todavia, e uma vez que o PER se destina a revitalizar o devedor, e não a liquidar o seu património, apenas podem ser objeto de um PER as pessoas coletivas e patrimónios autónomos que, mesmo não tendo uma finalidade lucrativa, exerçam uma atividade económica[3].
Como é sabido, na sequência da Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012, de 3 de fevereiro, criando, entre outros, o designado programa “Revitalizar”, a Lei 16/2012, de 20 de abril, veio aditar ao Título I do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) o Capítulo II, no qual veio instituir a regulamentação do Processo Especial de Revitalização (PER), o qual “ destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização” – art.º 17.º-A.
Trata-se, como sublinha Catarina Serra, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Vol.II/III, 2012, pág. 716, de “um processo pré-insolvencial, cuja maior vantagem é a possibilidade de o devedor [qualquer devedor] obter um plano de recuperação sem ser declarado insolvente. O maior risco é o de, depois de tudo, o devedor não conseguir evitar a declaração de insolvência.
Para os credores fica, mais uma vez, reservado o papel fundamental: ou consentirem (pelo menos momentaneamente) no sacrifício dos seus direitos para viabilizarem o PER ou então manterem--se irredutíveis, caso em que o plano de recuperação não é aprovado e aquele risco se concretizará”.
Destacando a distinção entre este processo especial e o processo de insolvência, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 140, referem que enquanto este “constitui uma resposta para a superação de uma situação de insolvência já verificada, a que a ordem jurídica pretende pôr cobro, o processo de revitalização dirige-se a evitá-la, assegurando a recuperação do devedor e, nessa medida, a satisfação, também, dos interesses dos seus credores”.
A motivação para introdução deste processo especial foi assumida expressamente na Proposta de Lei n.º 39/XII, apresentada pelo Governo à Assembleia da República, como pretendendo promover a recuperação “ privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial” e que a situação económica obriga a gizar soluções mais eficazes “ no combate ao desaparecimento de agentes económicos”, no sentido que “cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais …”, remetendo para segundo plano a liquidação do seu património, sempre que se mostre viável a respetiva recuperação.
O recurso a este processo especial pode “ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação” - art.º 17.º-A n.º2.
Ora, é justamente pelo teor do texto desta disposição legal, que não distingue, “pode ser utilizado por todo o devedor”, que alguns autores defendem a sua aplicabilidade a pessoas singulares, exerçam ou não atividade empresarial ou comercial.
Mas a verdade é que, tal como se evidencia no mencionado Acórdão do STJ, a interpretação não deve “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (art. 9º, nº 1, do CC), crê-se que (não obstante, para além do próprio nome – PER) a razão de ser da lei, o fim visado pelo legislador e as circunstâncias político-económicas que motivaram a lei (elemento racional ou teleológico) e o elemento histórico (trabalhos preparatórios) concorrem, parece-nos, para que se deva adotar aquele sentido interpretativo”.
Acolhemos, pois, esta orientação, por nos parecer mais consentânea com a ratio legis, sendo que no art.º 249.º e seguintes se prevê regulamentação própria para devedores não empresários, admitindo-se expressamente a possibilidade de marido e mulher se apresentarem à insolvência, ou serem ambos demandados ( seu n.º2), técnica legislativa que não foi seguida no Art.º 17.º-A e seguintes.
Procede, pois, a apelação.
E face à procedência deste argumento, fica prejudicada a questão suscitada pelo recorrente quanto à validade da deliberação que aprovou o PER, ou seja, se o plano devia ou não ter sido homologado judicialmente.
Vencidos no recurso suportarão os recorridos as custas respetivas – art.º 527.º/1 do c. P. C.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
O processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, não podendo recorrer a este instituto processual os cônjuges que exercem uma atividade remunerada por conta de outrem.
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V. Decisão.
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida e determinar o oportuno arquivamento dos autos.
Custas da apelação pelos recorrentes.

Évora, 2016/10/06


Tomé Ramião

José Tomé de Carvalho

Mário Coelho





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[1] ) Aprovado pelo art. 1º do DL 53/2004 de 18.02, com sucessivas alterações, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação, também adiante designado abreviadamente por CIRE.
[2] ) No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do tribunal da Relação do Porto, de 5/7/2016 (José Igreja Matos), proc. N.º 4052/15.0T8VNG.P1, no qual o ora relator interveio como adjunto, em cujo sumário se pode ler: I – O Processo Especial de Revitalização não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou que não desenvolvam uma atividade económica por conta própria. II – A opção pela inaplicabilidade do PER resulta também de um esforço de uniformização jurisprudencial tendo em conta as diversas decisões do nosso Supremo Tribunal neste sentido.
[3] ) No mesmo sentido Paulo Olavo Cunha, “Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização da sociedade” in Catarina Serra (Coord.), II Congresso de direito da insolvência, pág. 220/221.
Em sentido contrário, Catarina Serra, in “Revista da Ordem dos Advogados”, Vol.II/III, 2012, pág. 716:”O regime do Per aplica-se a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa coletiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a quaisquer requisitos (cf. art. 1.º, n.º 2, e art. 17.º-a, n.º 1)”; e Luis M. Martins, “Recuperação de Pessoas Singulares”, Vol. I, , 2012, 2.ª Edição, pág. 15, estendendo o Per a “todos os sujeitos previstos no art.º2.º, prevalecendo o critério da autonomia patrimonial, tenham ou não personalidade jurídica”.