Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
188/21.7T8ODM.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: ANOMALIA PSÍQUICA
AUDIÊNCIA DO REQUERIDO
ACTO INÚTIL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – No processo de acompanhamento de maior a audição pessoal e direta do beneficiário constitui um ato processual obrigatório, o qual, por conseguinte, o juiz da causa não pode dispensar, designadamente por considerar que o processo contém já todos os elementos probatórios para uma conscienciosa decisão.
2 – Apenas no caso de estar demonstrado nos autos que o beneficiário está absolutamente impossibilitado de, por qualquer forma, expressar qualquer ato de vontade, poderá ser dispensada a realização daquela audição, por forma a evitar a prática de atos inúteis, os quais a lei proíbe (artigo 130.º do Código de Processo Civil).
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 188/21.7T8ODM.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
O Ministério Público, requerente da ação especial de acompanhamento de maior relativa a (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Odemira, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, o qual, julgando reunidos os elementos de prova em ordem a ser proferida decisão final, declarou ser desnecessária a audição da requerida.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«Nos presentes autos foi junto relatório pericial psiquiátrico relativo à Requerida, (…), sob a Refª 2061840.
Nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil, “o acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas”.
Ao abrigo da citada disposição legal, parece decorrer da lei a obrigatoriedade de audição da requerida antes de ser proferida decisão final quanto ao acompanhamento de maior.
No entanto, importa considerar que os processos de acompanhamento de maior configuram processos de jurisdição voluntária (cfr. o disposto no artigo 891.º, n.º 1 e 986.º e seguintes, todos do Código de Processo Civil), designadamente no que respeita aos poderes do Juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.
Na situação dos presentes autos, é manifesto que a Requerida padece de debilidade mental grave/severa, com deterioração significativa do comportamento, requerendo atenção e/ou tratamento (cfr. relatório pericial psiquiátrico sob a cit. Refª 2061840).
Atenta a concretização e a clareza do exame pericial junto aos autos, conclui-se que estão reunidos os elementos de prova em ordem a ser proferida decisão final e que a audição da Requerida, pese embora configure ato previsto na lei, deverá ser interpretada à luz do regime instituído para os processos de jurisdição voluntária, com agilização dos atos processuais em ordem à boa decisão da causa.
Por conseguinte, reputa-se desnecessária a audição da requerida. Notifique. Após,
Aguarde-se pelo trânsito em julgado do presente Despacho sob a Refª 32152340.»

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. O recurso versa sobre o despacho Ref.ª 32152340, de 25-10-2021, o qual, ao abrigo do disposto nos artigos 891.º, n.º 1, e 986.º e ss., do Código de Processo Civil, dispensou a audição pessoal e direta da requerida.
2. Entendemos que o tribunal não pode dispensar a audição direta e pessoal da beneficiária.
3. Fazendo-o, incorre numa nulidade processual, por violação expressa de uma norma legal – artigos 195.º, n.º 1 e 897.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil e 139.º do Código Civil.
4. A letra da lei é clara ao determinar que o juiz deve proceder “em qualquer caso” e “sempre”, à audição pessoal e direta da beneficiária.
5. Se o legislador quisesse admitir exceções, tê-lo-ia feito.
6. O objetivo desta diligência não é apenas “ouvir” a beneficiária, mas sim averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
7. Tendo, o Mmo. Juiz dispensado, ao contrário da lei, a audição pessoal e direta da beneficiária, entendemos que tal configura uma nulidade processual, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, por violação expressa das normas contidas nos artigos 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 139.º, n.º 1, do Código Civil.
8. A omissão da referida diligência configura uma nulidade processual, nos termos previstos no artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, do Novo C.P.Civil, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa.
9. Devendo o despacho de que ora se recorre ser declarado nulo (e bem assim outros atos porventura praticados subsequentemente que dele dependam absolutamente – nos termos do artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, e n.º 2, do Novo C.P.Civil) e ser substituído por outro que designe data para audição direta e pessoal da beneficiária.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente deve ser declarado nulo o despacho recorrido (e bem assim outros atos porventura praticados subsequentemente que dele dependam absolutamente – nos termos do artigo 195.º, n.º 1, 2.ª parte, e n.º 2, do Novo C. P. Civil), o qual deve ser substituído por outro que designe dia para a audição pessoal e direta pelo tribunal / juiz da requerida / beneficiária».


I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

II.2.
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se podia ser dispensada a audição do(a) beneficiário(a) da medida de acompanhamento de maior.

II.3.
FACTOS
Extrai-se dos autos a seguinte factualidade:
1 – Em 28-03-2021, o Ministério Público intentou ação especial de acompanhamento relativa a (…), por aquela se encontrar totalmente dependente do apoio e assistência de terceiros para a maioria das atividades mais elementares da vida diária em consequência de AVC inquémico estriato-capsular e radiaria direita sofridos em fevereiro de 2021 que deixaram sequelas permanentes e irreversíveis disartia, hemiplegia do membro superior esquerdo e paresia crucial esquerda grau I/V.
2 – Recebida a petição, procedeu-se à afixação de editais e de anúncio com vista à publicitação da ação.
3 – Atenta a impossibilidade de a requerida receber a citação, procedeu-se à sua citação na pessoa do defensor oficioso que lhe foi nomeado.
4 – Foi apresentada contestação pelo defensor nomeado, na qual não foi deduzida oposição ao pedido de acompanhamento.
5 – Na data designada data para a audição da requerida, através de meios de comunicação à distância, foram proferidos despachos com o seguinte teor:
«Em virtude de a beneficiária, (…), se encontrar num estado emocional muito forte, impedindo-a de articular frases de forma conveniente e audível pelo Tribunal, aliado aos problemas técnicos da presente audição, considera-se necessário que a mesma decorra com a presença física da mesma para uma correta averiguação da situação».
«Tendo em consideração a impossibilidade supra referida para realização da audição da beneficiária, entende o Tribunal de acordo com a promoção do Ministério Público que se afigura conveniente antes de uma segunda audição, necessariamente presencial, que se solicite ao I.N.M.L. a elaboração de relatório pericial destinado a apurar da afeção de que sofre a beneficiária, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e tratamento aconselháveis – cfr. artigo 899.º do C.P.C.
(…)».
6 – A requerida foi submetida a exame pericial e o respetivo relatório foi junto aos autos.
7 – Foi requerida, pelo Ministério Público, a designação de data para a audição pessoal da beneficiária.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância o qual, após a junção do relatório pericial relativo à requerida (…), julgou desnecessária a audição daquela para proferir decisão a causa.
Extrai-se da decisão sob recurso o seguinte trecho no qual o juiz justifica a sua posição: «atenta a concretização e a clareza do exame pericial junto aos autos, conclui-se que estão reunidos os elementos de prova em ordem a ser proferida decisão final e que a audição da requerida, pese embora configure ato previsto na lei, deverá ser interpretada à luz do regime instituído para os processos de jurisdição voluntária, com agilização dos atos processuais em ordem à boa decisão da causa. Por conseguinte, reputa-se desnecessária a audição da requerida».
Nas suas alegações de recurso o Ministério Público defende que o tribunal não pode dispensar a audição direta e pessoal da beneficiária e que, ao fazê-lo, incorre numa nulidade processual, por violação expressa de norma legal, o que importa que se declare nulo o despacho recorrido e se substitua o mesmo por outro que designe dia para a audição pessoal e direta da beneficiária.
Vejamos se lhe assiste razão.
Previamente se dirá que no presente recurso está em causa um eventual erro de julgamento em virtude de o juiz a quo ter decidido que não devia ser praticado um ato processual prescrito na lei, concretamente, a audição pessoal e direta da beneficiária de eventual medida de acompanhamento. E não uma nulidade processual. Como referem Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[1] «(…) quando um despacho judicial aprecia a nulidade dum ato processual ou, fora do âmbito da adequação formal do processo, admite a prática dum ato da parte que não podia ter lugar, ordena a prática de um ato inadmissível ou se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo ato prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades para seguir o erro de julgamento, por a infração praticada passar a ser coberta pela decisão, expressa ou implícita, proferida, ficando esgotado, quanto a ela, o poder jurisdicional (artigo 613.º, 1). É o que usa ser traduzido com o aforismo “das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se”».
O que implica que, em caso de procedência do recurso, o despacho recorrido seja revogado (e não declarado nulo, como é requerido pelo apelante).
O processo em causa foi instaurado ao abrigo da vigência Lei n.º 49/2018, de 14-08, a qual criou o regime jurídico do maior acompanhado e concomitantemente eliminou os institutos da interdição e da inabilitação anteriormente previstos no Código Civil.
Nos termos do artigo 138.º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela supra referida lei, o maior que estiver impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no mesmo diploma legal.
Nuclear para a questão suscitada no presente recurso é o disposto no artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil e no artigo 897.º, n.º 2, do Código de Processo Civil: o primeiro dispõe que «o acompanhamento é decidido pelo tribunal após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas» e o segundo que «em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre» (itálicos nossos).
Resulta de tais preceitos normativos que a audição pessoal e direta do beneficiário da medida de acompanhamento é um ato processual obrigatório, o qual, por conseguinte, o juiz da causa não pode dispensar, nomeadamente por considerar que o processo contém já todos os elementos probatórios para uma conscienciosa decisão. Assim também se entendeu no acórdão desta Relação de 10-10-2019, no processo n.º 1110/18.3T8ABF.E1[2], o qual a relatora subscreveu como 1.ª adjunta, e no qual se pode ler o seguinte: «(…) estatuindo o artigo 139.º, n.º 1, do CC, que o acompanhamento é decidido após audição pessoal e direta do beneficiário e determinando o n.º 2 do artigo 897.º do CPC que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, não restam dúvidas de que a audição do beneficiário configura um ato que a lei prescreve, encontrando-se consagrada a respetiva obrigatoriedade».
A obrigatoriedade da audição pessoal e direta do beneficiário é, aliás, proclamada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 110/XIII, na qual é apontada como uma das alterações introduzidas pela reforma «a obrigatoriedade de o juiz contactar pessoalmente com o beneficiário antes de decretar o acompanhamento».
Ademais, a audição direta e pessoal do beneficiário visa averiguar não apenas a situação do mesmo, isto é, da necessidade de acompanhamento, mas também «ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas» (cfr. artigo 898.º, n.º 1, do CPC), “adequabilidade” que passa por aferir a vontade de quem vai ser sujeito a tais medidas, quando este estiver em condições de a expressar, respeitando-se, desta forma, o princípio da primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite possível. Destarte, o contacto direto entre o juiz da causa e o beneficiário da(s) medida(s) de acompanhamento só não deverá ter lugar se se revelar completamente impossível auscultar o beneficiário da medida de acompanhamento, caso em que tal tentativa traduzir-se-ia num ato inútil que a lei processual proíbe (cfr. artigo 130.º do CPC). Como refere o prof. Miguel Teixeira de Sousa[3] «o regime do processo de acompanhamento de maiores comporta igualmente uma prova atípica: a audição pessoal e direta do beneficiário (artigos 897.º, n.º 1 e 898.º). Trata-se de um meio de prova que é obrigatório em qualquer processo de acompanhamento de maiores (artigo 139.º, n.º 1, do CC; artigo 897.º, n.º 2), dado que, por razões facilmente compreensíveis, se pretende assegurar que o juiz tem conhecimento efetivo da real situação em que se encontra o beneficiário. Isto não impede, no entanto, que, se estiver comprovado no processo que essa audição pessoal e direta não é possível (porque, por exemplo, o beneficiário se encontra em coma), o juiz, fazendo uso dos seus poderes de gestão processual (artigo 6.º, n.º 1) e de adequação formal (artigo 547.º), não deva dispensar, por manifesta impossibilidade, a realização dessa mesma audição».
Finalmente dir-se-á que pese embora o artigo 891.º, n.º 1, do CPC disponha que se aplica ao processo de acompanhamento de maior o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita (i) aos poderes do juiz, (ii) ao critério de julgamento e (iii) à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes, o que significa, designadamente, que o juiz não está vinculado a critérios de legalidade estrita, podendo tomar uma decisão que entenda mais conveniente e oportuna para o caso[4], tal não lhe permite preterir atos processuais que lhe são impostos por lei, como o é a audição presencial e direta do beneficiário, a menos que, como assinalámos, tal audição se revele efetivamente impossível.
No caso concreto os autos não indiciam a impossibilidade de audição da requerida. Por conseguinte, aquela deve ser ouvida pelo juiz.
Em face do exposto, há que julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que designe data para a audição pessoal e direta da requerida (…).

Sumário:
(…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão da primeira instância, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para a audição pessoal e direta da requerida (…).
Sem custas na presente instância recursiva.
Notifique.
Évora, 13 de janeiro de 2022
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
José António Moita (1.º Adjunto)
Silva Rato (2.º Adjunto)


__________________________________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, p. 384.
[2] Consultável em www.dgsi.pt.
[3] http//www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
[4] Para além de significar que o juiz não está limitado aos factos alegados pelas partes, podendo, ao invés, conhecer de outros factos que possam relevar para uma adequada apreciação da providência que lhe é solicitada e poder modificar as providências antes decretadas se assim o justificarem circunstâncias supervenientes.