Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3906/14.6TBSTB-E.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A não notificação do Réu para a audiência é uma nulidade do processo e não da sentença que, nele, depois, foi proferida, pelo que o meio apropriado para a recorrente reagir contra a irregularidade que acusa cometida era a reclamação perante o tribunal recorrido e não o recurso da sentença, a qual daquela nulidade não conheceu.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3906/14.6TBSTB-E.E1


Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. O Ministério Público, em representação do interdito (…), instaurou contra (…), casado, residente na Av. (…), 22, Volta da (…), Palmela e (…), casado, residente na Av. (…), 79, 7º, em Setúbal, ação especial de prestação de contas.

Alegou, em síntese, que por se haverem suscitado dúvidas, quanto à capacidade do interessado (…), no âmbito do processo de inventário que correu termos com o nº 231/1999, foi-lhe nomeado um curador especial, que os RR foram autorizados a levantar dos autos a quantia de € 5.454,65, àquele pertencente, a título de tornas, para pagamento de dívidas fiscais e não comprovaram o destino que deram à totalidade do dinheiro.

Concluiu pedindo que os RR sejam condenados a prestar contas sobre a utilização da referida quantia de € 5.454,65.

O réu (…) não contestou, nem apresentou contas.

O réu (…) apresentou contestação argumentando, em síntese, que desconhece se os encargos respeitantes ao interdito foram, ou não pagos, pois não mantém contacto com o seu irmão e co-réu (…), tutor do interdito e encarregado de pagar as despesas da responsabilidade deste.

Concluiu pela improcedência da ação no que à sua pessoa diz respeito.

Falecido na pendência da causa, o réu (…), foram habilitados como seus sucessores, para com eles prosseguir a acção, (…), (…) e (…).

2. Produzidas as provas, foi proferida decisão, em cujo dispositivo designadamente se consignou:

“Nos termos e com os fundamentos supra expostos, decido:

a) declarar que os RR. habilitados como sucessores de (…), (…), (…) e (…) procedam à prestação de contas relativamente à gestão da quantia de € 5.454,65, pertencente a (…), que o R. (…) ficou responsável, desde 03.01.2003 a 28.04.2005;

b) determinar que os RR. habilitados apresentem as referidas contas, no prazo de 20 dias (art. 942.º, n.º 5, do CPC), sob pena de não lhe ser permitido contestar as que vierem a ser apresentadas pelo A., devendo observar as formalidades legais previstas no art. 944.º do CPC;

c) absolver o R. (…) do peticionado pelo A.”

3. A ré (…) recorre desta decisão e formula as seguintes conclusões:
“1-A douta sentença do Tribunal, “a quo”, considera que face ao falecimento do R. (…), que são habilitados para lhe suceder na obrigação de prestar contas os seus filhos.

2- O valor a que se reporta a douta sentença de que se recorre, é do montante de € 5.454,65.

3- O R. (…) não foi notificado da audiência.

4- Contudo na acta do dia 22-2-2017, pode-se ler que foi considerado como regularmente notificado.

5- Ora do assento de óbito junto aos autos fica provado que o R. faleceu na data de 2 de Dezembro de 2016, pode-se concluir que, o R. não estava notificado como também era impossível sê-lo.

6- Assim, na realidade toda a prova produzida foi com o Reu já falecido e sem chamamento de sucessíveis.

7- Não foi cumprido o artigo 3º, n.º 3, do CPC.

8- Não podemos deixar de invocar a nulidade consistente na falta de cumprimento do art. 3º do CPC, referindo ter sido privado o Réu e seus sucessíveis de exercer o contraditório.

9- A omissão de vários atos, produz nulidade pois influi no exame ou na decisão da causa, isto é na sua instrução, discussão e julgamento – art. 201º do CPC., nomeadamente por não ter sido dada a oportunidade ao R. (...) para exercer o seu contraditório, nem aos sucessíveis pois: não foi notificado da contestação do R. (…); não foi notificado da data para audiência; não estava regularmente notificado,

10- É um facto que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – art. 3º, n.º 3, do CPC. Proíbe-se, desse modo, aquilo que vulgarmente se designa por decisões-surpresa.

11-A douta sentença é nula por violação do Principio do Contraditório art. 3º, n.º 3, CPC.

Sem prescindir,

12- É por isso valorado na sentença ora recorrida e interpretada o requerimento de ambos os RR., como se de uma confissão ou acordo se tratasse; até porque se o mesmo fosse um acordo entre os réus não tinha relevância jurídica e ainda é valorada a “ausência” do R. (…) a prestar declarações quando o mesmo não estava sequer notificado de que deveria prestar declarações “mesmo falecido”.

Pelo exposto deve a decisão do Tribunal “a quo” ser considerada nula, com as consequências legais, dado provimento ao presente recurso, JUSTIÇA.”

Respondeu o Ministério Público, por forma a defender a confirmação da sentença recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir se a sentença é nula por violação do princípio do contraditório.

III. Fundamentação.
1. A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. (…) foi interessado nos autos de inventário que, sob o nº 231/1999, correram termos no ex-2º juízo cível desta comarca.

2. Nestes autos foi-lhe nomeado um curador especial para o representar, pois que surgiram então dúvidas sobre a sua capacidade.

3. Foi-lhe, a final, atribuída a quantia de 2.933.333$40 ou € 14.631,40 a título de tornas.

4. A requerimento dos RR., interessados nesses autos, foram estes autorizados, por despacho datado de 3 de Janeiro de 2003, a levantar a quantia total de € 5.454,65 pertencentes a Sérgio, para pagamento de dívidas fiscais deste.

5. Tendo-lhes sido ordenado que comprovassem nos autos, no prazo de 15 dias, o pagamento de tais dívidas.

6. No âmbito do processo de inventário, em Março de 2003, os RR. requereram a dispensa do R. (…) de quaisquer responsabilidades, nomeadamente nos pagamentos.

7. Tendo, desde então, sido o R. (…) quem assumiu a responsabilidade de tratar de todos os assuntos relacionados com a herança.

8. Decorrido que foi o prazo referido em 5., o R. (…) juntou aos autos comprovativos do pagamento da quantia de € 1.304,01 relativa a imposto sucessório.

9. E ainda outros documentos de despesas que alegou ter realizado no interesse de (…), perfazendo o total de € 1.586,13.

10. Este veio a ser declarado interdito, por sentença datada de proferida no processo nº 1720/09.0TBSTB do ex-3º juízo cível desta comarca, que transitou em julgado.

11. E na qual se fixou a data de 26 de Novembro de 1997 como inicio da sua incapacidade.

12. Tendo-lhe, finalmente, sido nomeado tutor o ora R. (…).

13. O R. (…) não mantém contacto com os irmãos há vários anos, em virtude de desavenças.

2. Direito.

2.1. Se a sentença é nula por violação do princípio do contraditório.

A garantia do contraditório é um princípio estruturante da lei processual civil e constitui uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais.

A necessidade da contradição, enquanto pressuposto incontornável da resolução dos conflitos de interesses colocados pelas partes nos tribunais, impõe ao juiz o dever de “observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (artº 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, doravante CPC) e só “nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (ibidem nº 2).

A sua vertente essencial reside na “proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, juntos dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito”.[1] Ou, na formulação do Ac. T.C. de 4/11/87 [2]: “O conteúdo essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite na audiência nem nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”. Formulação que, aliás, não anda longe do enunciado de Manuel de Andrade[3]: “Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”; nem da proposição de Teixeira de Sousa[4]: O direito do contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.”

A observância do princípio do contraditório não se basta, pois, com a chamada da parte, ou da pessoa a que diz respeito a questão a decidir ao processo e exige que lhe seja dada uma efetiva possibilidade de defesa, ou seja, o real e efetivo poder de influenciar a tomada da decisão que a si respeita.

Por assim ser, a violação do princípio do contraditório, em qualquer das suas dimensões, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa e, como tal, subsume-se à cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do artº 195º, nº 1, do Código de Processo Civil.

Nulidade processual, portanto e não nulidade da sentença.

As nulidades da sentença vêm enumeradas no artº 615º, do CPC e esta enumeração não comporta a violação do princípio do contraditório, o que se compreende; envolvendo o princípio do contraditório o direito de audição das partes e representando a sentença um ato do juiz destinado a decidir a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura duma causa (artº 152º do CPC), o exercício daquele direito, por natureza, é-lhe anterior e não concomitante.

Destrinça que os autos bem demonstram, porquanto a Recorrente vem arguir designadamente a omissão da notificação do réu (…) para a audiência (ato anterior à sentença) do passado dia 22/7/2017, designada em data posterior ao seu falecimento.

Os despachos que designam dia para qualquer ato necessitado de comparência de determinadas pessoas ou a que as partes tenham o direito de assistir devem ser oficiosamente notificados pela secretaria (artº 220º, nº 1, do CPC) e havendo-se determinado, em 27/1/2017, a comparência do réu (…), para prestar depoimento de parte na audiência de discussão e julgamento (despacho de fls. 39), a sua notificação impunha-se por duas ordens de razões: necessidade de comparência para prestar depoimento e direito de assistir, enquanto parte, a audiência de discussão e julgamento.

Falecido em 2/12/2016 (fls. 45) demonstra-se que não foi observada a formalidade da sua notificação para a audiência de discussão e julgamento.

Admitindo, por mera necessidade de raciocínio, que a omissão desta formalidade tem a virtualidade de influir no exame da causa estaríamos, como aliás refere a Recorrente, perante uma nulidade (artº 195º, nº 1, do CPC); mas não comportando tal irregularidade a ineptidão da petição inicial, a nulidade da citação, o erro na forma de processo ou a falta de vista ou exame ao Ministério Público o seu conhecimento não é oficioso e carece de reclamação dos interessados (artº 196º, do CPC), reclamação a dirigir ao tribunal perante o qual a irregularidade foi cometida a quem incumbe a sua apreciação, com uma exceção: a nulidade ocorrida em tribunal inferior pode ser arguida em tribunal superior quando o processo suba em recurso antes de expirar o prazo para a arguição (artº 199º, nºs. 1 e 3, do CPC), o que não é manifestamente o caso.

É o sistema há muito sintetizado na afirmação: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

Nem sempre foi assim. Como ensina Alberto dos Reis “(o) artigo 134º do Código de 76 estabelecia um terceiro desvio. As nulidades de que o interessado tivesse conhecimento depois da publicação da sentença ou acórdão final, e que fossem anteriores a essa publicação, só poderiam ser apreciadas por ocasião do recurso interposto da mesma sentença ou acórdão. A razão deste desvio era a seguinte: entendia-se que, sendo as nulidades anteriores à sentença, a procedência delas podia ter como efeito a anulação da sentença e não se considerava admissível que o juiz tivesse o poder de anular a sua própria decisão. O Código atual não consignou este terceiro desvio, porque não aderiu à tese de que ao juiz não é lícito anular a sua própria sentença.

Sistema que se mantém em vigor; ainda que o interessado haja tido conhecimento da nulidade processual depois da publicação da sentença, ou com a notificação desta, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal a que a causa estava afeta no momento em que a nulidade ocorreu só o podendo ser perante o tribunal de recurso quando o processo suba em recurso antes de expirar o prazo para a arguição contando-se então este prazo desde a distribuição do recurso (artº 195º, nº 3, do CPC).

O meio apropriado para a Recorrente reagir contra a irregularidade que acusa cometida era, pois, a reclamação perante o tribunal recorrido e não o recurso da sentença, a qual daquela nulidade não conheceu.

Tendo a ré optado por suscitar a questão da nulidade no recurso, ocorre a preclusão do exercício deste seu direito e, com esta, a improcedência do recurso.

Resta confirmar a decisão recorrida.

2.2. Custas

Vencida no recurso, incumbe à Recorrente pagar as custas (artº 527º, nº 1, do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 8/11/2018
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

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[1] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pág. 164.
[2] BMJ 371, pág. 160.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 379.
[4] Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, págs. 46-47.