Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
32/22.8T8ELV.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
FRESTAS
JANELAS
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - As janelas distinguem-se das frestas não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras se destinam.
II - As frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz, sendo as janelas aberturas mais amplas, através das quais pode projetar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
III - Só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no nº 1 do artigo 1360º do Código Civil: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objeto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objetos.
IV - O Código Civil indica expressamente os requisitos próprios das frestas: localização a, pelo menos, um metro e oitenta de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não terem, numa das suas dimensões, mais de 15 centímetros.
V - Só a estas frestas alude o artigo 1363º, nº 1, do Código Civil - só elas são aberturas de tolerância - não ficando sujeitas à restrição estabelecida para a abertura das janelas, guardando, porém, o vizinho, a possibilidade de levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que as vede.
VI - A par daquelas frestas (frestas regulares), concebe-se a possibilidade de serem abertas frestas com dimensões superiores à indicada, ou situadas a uma altura inferior à referida, a que os autores chamam frestas irregulares.
VII - A abertura de frestas irregulares pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, que, uma vez constituída, permite ao respetivo titular adquirir o direito, que não tinha até então, de manter essas aberturas em condições irregulares.
VIII – Ainda que a situação dos autos fosse a referida em VII – que não é -, o proprietário vizinho não perde o direito de construir junto à linha divisória, mesmo que tape as frestas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artigo 1362º o Código Civil, em cujo campo de aplicação se não incluem as frestas.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA e BB instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC, formulando o seguinte pedido:
«- Reconhecer-se que as aberturas existentes nas traseiras do prédio dos AAs. são janelas e existem há mais de 20 anos.
- Condenar-se a R. a proceder imediatamente à retirada dos tapumes colocados nas janelas do prédio dos AAs. e a abster-se de colocar qualquer material, construção ou outro que impeçam as vistas que as janelas do prédio dos AAs. proporcionam.
- Condenar-se a R. a pagar aos AAs, a título de danos causados pela privação do uso do prédio, o valor de € 10 000,00,
- Mais deve a R. ser condenado ao pagamento aos AAs, a título de danos morais, de quantia nunca inferior a € 5 000,00 (cinco mil euros).
- Mais se requer a condenação da R., em caso de procedência da presente acção, a pagar aos AAs., a quantia diária de €50,00 (cinquenta euros), a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na efectiva retirada dos tapumes da janela ou outro objecto aí colocado, que impeça o fim a que se destinam, a partir da data do trânsito em julgado desta acção.
- Mais deve a R. autorizar os AAs. a passarem pelo seu quintal, duas vezes ao ano, uma no mês de Maio e outra no mês de Outubro, para procederem à limpeza e pintura das traseiras do seu prédio.»
Alegam, em síntese, que adquiriram por compra o prédio sito em Santa Eulália, na Rua ..., com destino a habitação, o qual, desde a sua construção, ocorrida em 1979, tinha três janelas traseiras: uma na cozinha, outra na sala e outra no quarto. A ré, que reside no imóvel contíguo ao prédio adquirido pelos autores, decidiu, no mês de maio do ano passado, colocar tapumes presos às janelas do prédio dos autores, os quais impedem a iluminação natural e ventilação do imóvel, sendo que os mesmos foram colocados pela ré sem conhecimento e autorização dos autores.
Mais alegam que o autor marido requereu junto da Câmara Municipal de Elvas, em 28 de julho de 2021, que fosse feita uma vistoria ao interior do seu prédio, por forma a ser aferido se de facto, as aberturas existentes no seu prédio eram janelas ou frestas, tendo aquela edilidade informado que as aberturas em causa eram de facto janelas e verificou-se que as mesmas já existiam há mais de 20 anos e que se encontram aprovadas pelo município através do processo de obras nº ...8 e autorizadas pelo então dono do logradouro, mas a ré insiste em manter os tapumes colocados junto às referidas janelas.
Contestou a ré, contrapondo que as aberturas existentes no prédio dos autores não podem ser qualificadas como janelas, mas sim como frestas, considerando, por um lado, as suas reduzidas dimensões e, por outro lado, não disporem de um parapeito onde o utilizador comum possa apoiar-se ou debruçar-se.
Conclui pela sua absolvição do pedido e pede a condenação dos autores como litigantes de má-fé, em indemnização a seu favor, no montante de € 10.000,00, bem como no pagamento de uma indemnização no valor de € 5.000,00 a título de danos morais.
Os autores apresentaram réplica, concluindo pela improcedência do pedido da sua condenação como litigantes de má-fé.
Realizada a audiência prévia, as partes transigiram quanto ao último dos pedidos formulados pelos autores, ou seja, o pedido de autorização para passarem pelo prédio da ré, tendo o respetivo acordo sido homologada por sentença transitada em julgado [vd. a respetiva ata].
Foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência:
(i) Absolve-se a Ré CC dos pedidos;
(ii) Condenam-se os Autores AA e BB em custas[1];
(iii) Absolvem-se os Autores do pedido de litigância de má-fé.»
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A)
Era tema de prova, apurar a natureza e função das aberturas em causa.
B)
Pese embora a sentença recorrida tenha aflorado em sede de fundamentação, a natureza das aberturas, a verdade é que, em sede de factos provados e não provados, a mesma foi totalmente omissa. (veja-se facto provado nº 7 e facto não provado alínea a) e fundamentação da pág. 8).
C)
Assim, porque constituía tema de prova apurar a natureza das aberturas, impunha-se ao Tribunal a sua pronúncia, a qual poderia conduzir a decisão diferente.
D)
Não o tendo feito, é nula a sentença por violação do preceituado no artº 615º nº 1-b) do C.P.C.
A não se decidir desta forma, sempre se dirá:
E)
A sentença recorrida padece de contradição entre fundamentação, factos provados, não provados e decisão,
F)
Em sede de fundamentação, a douta sentença recorrida apresenta contradições, pois, o Tribunal considerou atender à prova que apresentasse razão de ciência, como foi o caso, do Sr. Arquitecto da Câmara Municipal de Elvas (DD), Srs. Técnicos da Câmara (EE, FF, Engº GG e HH), ( vidé pág. 7 da fundamentação),
G)
E na página 8 da fundamentação, essas mesmas testemunhas, (com razão de ciência pelas habilitações académicas e profissionais que possuem), foram incapazes de definir o que é janela ou fresta (Vidé pág 8 da fundamentação).
H)
É pois nítida a contradição existente entre a fundamentação constante do último parágrafo da página 7 com a sua página 8, também, com os argumentos expendidos sob os artºs 21º a 25º da motivação.
I)
E a corroborar tal contradição, veja-se o despacho de indeferimento da requerida inspecção ao local, constante da sessão de audiência de discussão e julgamento de 14 de Setembro de 2022, já após audição da prova supra identificada e que se transcreve: “ Atendendo a que o objecto do pedido está integralmente documentado em imagem, considerando ainda a prova produzida em audiência –que incluiu testemunho dos técnicos que se deslocaram ao local –não se vislumbra qualquer conveniência na realização da inspecção judicial, pelo que se indefere o requerido” (sublinhado nosso).
J)
Ora, como pode a sentença recorrida vir agora concluir que estes técnicos foram incapazes de definir as qualidades que um objecto deve apresentar para ser qualificado como janela em oposição a fresta, se aquando da pronúncia sobre a requerida inspecção ao local, para o seu indeferimento, o Tribunal apoiou-se no seu depoimento?
L)
A contradição da fundamentação no que à prova testemunhal diz respeito, conduziu a contradição entre factos provados e não provados, mormente, o facto não provado constante da alínea a), com o facto provado sob o nº 7.
M)
Com efeito, é a contradição existente na fundamentação que fez o Tribunal incorrer em erro no que à valoração da prova diz respeito e que culminou com o facto não provado sob a alínea a).
N)
Tal contradição, a não existir conduziria a decisão sobre a matéria de facto diferente, mormente na prova do facto constante na alínea a) dos factos não provados.
O)
É pois nula a sentença por violação do preceituado no artº 615º nº 1 –c) do C.P.C.
Ainda por dever de patrocínio se dirá:
P)
É igualmente nula a sentença recorrida por manifesta contradição entre factos provados e factos não provados, senão vejamos:
Q)
Como pode a sentença recorrida dar como não provado o facto constante da alínea g), ou seja, que o desgosto, tristeza e ansiedade que os recorrentes sofrem se deva a comportamento da ré, se resulta provado sob o facto vertido no nº 16, que o desgosto, tristeza e ansiedade dos aqui recorrentes se deve ao facto provado dado sob o nº 15 (verem tapumes), quando utiliza a expressão: “ por esse motivo” e se quem os colocou foi a R. (facto provado nº 12)?
R)
Assim, o facto constante da alínea g) dos factos não provados está em contradição com o facto provado nº 16, por referência aos factos dados como provados sob os nºs 12 e 15, devendo ser alterado para facto provado.
S)
Deve assim também a sentença recorrida ser nula por contradição entre factos provados e não provados, por violação com o artº 615º nº 1 – c) do C.P.C.
A não se julgar assim, ainda se dirá:
T)
Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entendem os recorrentes ter logrado provar que as aberturas em causa tinham a natureza e a função de janelas.
U)
Tal prova resultou, quer do documento nº 15 junto à p.i, quer da prova testemunhal apresentada pelos recorrentes, no caso, os técnicos da CMElvas.
V)
Com efeito, o documento nº 15, onde é referido em suma, que as aberturas existentes, são janelas, não lhe pode ser retirada valia probatória pelo Tribunal, ainda mais com os argumentos expendidos em sede de fundamentação contida na pág. 10 – 2º parágrafo, na medida em que,
X)
Trata-se de um documento emitido por autoridade pública com competência técnica conferida para se pronunciar sobre os assuntos que lhe são apresentados.
Y)
A prova testemunhal produzida, a qual não teve dúvidas em concluir que as aberturas existentes são janelas, cuja razão de ciência decorrente da formação académica e experiência profissional, o Tribunal muito bem reconheceu,
Z)
A qual se encontra transcrita e gravada conforme melhor resulta da respectiva identificação constante dos artºs 55º a 57º da motivação para a qual se remete, com os depoimentos prestados pelo Sr. arquitecto DD e o técnico, Sr. EE, onde é afirmado tratarem-se de janelas,
AA)
Do depoimento transcrito da gravação melhor identificada sob o artº 58 e 59 da motivação, para a qual se remete, cuja testemunha, o técnico FF,
AB)
E pela testemunha, II, de profissão, técnico projectista, cujo depoimento transcrito da gravação melhor identificada sob o artºs 60 e 61 da motivação, para a qual se remete, fazem ambas as testemunhas prova da natureza das aberturas, considerando-as janelas, e ainda no artº 61º, a testemunha II, apresenta uma distinção entre fresta e janela.
AC)
E por fim, no depoimento transcrito da gravação melhor identificada no artº 62º - 64º da motivação, para a qual se remete, a testemunha GG, engenheiro civil, vir acrescentar que para determinação do conceito de fresta ou janela, há um elemento importante de destrinça – a sua localização-
AD)
Estas, porque se encontram, numa sala, cozinha e quarto, só de janelas se podiam tratar.
AE)
Ora, da conjugação de todos estes elementos de prova, entendem os recorrentes ter logrado provar a natureza e função das aberturas existentes, pelo que,
AF)
Deverá ser aditado ao facto nº 7, o facto dado como não provado sob a alínea a).
AG)
A considerar-se desta forma, consequentemente os factos dados como não provados, terão de ser alterados para factos provados.
AH)
Alterando-se nos termos supra expostos a apreciação da matéria de facto, a douta sentença recorrida teria de ter considerado, contrariamente ao que decidiu, procedente a acção.
AI)
A sentença recorrida, violou assim as normas constantes do artº 615º nº 1, alíneas b) e c) do C.P.C.
Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, revogada a sentença proferida, com todas as consequências legais daí decorrentes.»

A ré contra-alegou, defendendo que a sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade e pugnando pela sua confirmação.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir, atenta a sua precedência lógica, consubstanciam-se em saber:
- se a sentença enferma das nulidades que lhes apontam os autores/recorrentes;
- se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto impugnada pelos recorrentes;
- se na decorrência de eventual alteração da decisão de facto, assiste aos autores o direito a exigir da ré a retirada dos tapumes colocados nas aberturas existentes no seu prédio, o que passa por saber qual a natureza e função de tais aberturas.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública outorgada em 19-04-2021, os proprietários do prédio sito na Rua ..., Freguesia de Santa Eulália, Elvas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Elvas sob o n.º ...20, inscrito na matriz sob o art.º ...70, declararam vender aos autores o referido imóvel e estes declararam comprá-lo, pelo preço de €40.000,00.
2. Para a outorga dessa escritura foi junta a certidão camarária n.º 120/2021 de 06-04-2021, a certificar que o prédio detém o alvará de utilização nº 16 com destino a habitação, passado pela Câmara em 18-04-1978.
3. Com data de 22 de novembro de 2021, foi emitida nova certidão camarária (n.º 438/2021), a qual foi então averbada na escritura pública.
4. Desde a sua construção, ocorrida em 1979, o imóvel apresenta três aberturas traseiras, melhor identificadas nas fotos juntas com a petição inicial e contestação, numeradas como 5 a 13 da petição inicial – interior - e 5 a 15 da contestação – exterior - e que se dão por reproduzidas[2].
5. As aberturas encontram-se uma na cozinha, outra na sala e a última no quarto.
6. Na da sala e do quarto, a altura do parapeito, é de cerca de um metro medido desde o chão e na da cozinha, a altura do parapeito, medido desde o chão, é de mais de um metro.
7. Tais aberturas têm por função exclusiva permitir a entrada de luz e ar.
8. A casa dos autores resultou da transformação de um casão numa moradia.
9. A ré reside no imóvel contíguo ao que foi comprado pelos autores.
10. No mês de maio, a ré colocou tapumes à frente das aberturas do imóvel dos autores.
11. Tais tapumes dificultam a iluminação natural e ventilação do imóvel.
12. A ré colocou tais tapumes sem autorização dos réus, na sequência de uma primeira decisão Camarária que reconhecia tratarem-se de «frestas».
13. Os autores estão aposentados.
14. São naturais de Santa Eulália e a decisão de adquirirem um prédio nessa zona prendeu-se com o facto de poderem regressar à terra natal por largos períodos de tempo, à qual se encontram ligados afectivamente.
15. Quando se deslocam ao imóvel, através das aberturas referidas nos pontos que antecedem, vêem tapumes.
16. Os autores sofrem, por esse motivo, desgosto, tristeza e ansiedade.

E foram dados como não provados os seguintes factos:
a) [por referência ao facto 7 da matéria provada]: que tais aberturas tenham por função proporcionar aos proprietários a possibilidade se debruçarem no parapeito e poderem disfrutar comodamente das vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
b) [por referência ao facto 10 da matéria provada]: que os tapumes estivessem presos às aberturas.
c) [por referência ao facto 11 da matéria provada]: que tais tapumes impeçam a iluminação e ventilação.
d) [por referência ao facto 13 da matéria provada]: que os autores tenham aproximadamente 70 anos de idade.
e) Os autores têm visto o seu desejo de habitarem no prédio por longos períodos durante o ano coartado com o comportamento da ré.
f) Que, em virtude do comportamento da ré, não consigam debruçar-se no parapeito de qualquer janela e, disfrutando comodamente das vistas que tais aberturas proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo do imóvel;
g) Que a situação descrita no facto 16 se deva ao comportamento da ré;
h) Ao habitarem o imóvel, quer a confeção de alimentação, quer a higiene diária, ficam comprometidas;
i) Os vapores não são libertados para o exterior, o que provoca um ambiente pouco saudável no seu interior e propicia o aparecimento de patologias associadas a danos provocados por humidade de condensação, o que prejudica gravemente a saúde em termos respiratórios;
j) No interior do imóvel, não têm iluminação natural, o que obriga a manterem ligada a luz elétrica todo o dia;
k) Se esta situação dos tapumes existisse à data da compra do imóvel, os autores não teriam adquirido o prédio;
l) Se pretenderem vender o prédio, ninguém o compra pelo preço que os autores pagaram.

Da nulidade da sentença
Começam os recorrentes por dizer, na conclusão D), que a sentença é nula «por violação do preceituado no artº 615º nº 1-b) do C.P.C.»
Isto porque, segundo os recorrentes, constituindo tema da prova apurar a natureza e função das aberturas em causa, e pese embora a sentença recorrida «tenha aflorado em sede de fundamentação, a natureza das aberturas, a verdade é que, em sede de factos provados e não provados, a mesma foi totalmente omissa. (veja-se facto provado nº 7 e facto não provado alínea a) e fundamentação da pág. 8).»
Mas não têm razão os recorrentes.
O art. 615º, nº 1, al. b), do CPC prevê a nulidade da sentença que “[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade prevista na citada al. b), tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente[3].
Constitui também jurisprudência absolutamente dominante que a falta de motivação, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC (anterior artigo 668º), é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, e não a sua motivação deficiente, errada ou incompleta, sendo certo, outrossim, que uma fundamentação, apenas, incompleta ou insuficiente, não afeta o valor legal da sentença ou do acórdão[4].
Ora, como os próprios recorrentes reconhecem, a sentença recorrida pronunciou-se sobre a questão da natureza e funções das aberturas existentes no seu prédio , dando como provado que tais aberturas têm por função exclusiva permitir a entrada de luz e ar [ponto 7], e como não provado que as mesmas tenham por função proporcionar aos proprietários a possibilidade se debruçarem no parapeito e poderem disfrutar comodamente das vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo [alínea a)].
O que não é concebível é que os recorrentes afirmem que a sentença aflorou superficialmente a questão, quando dedica à mesma, na fundamentação da decisão de facto, cinco páginas[5].
Também na fundamentação de direito a sentença faz um enquadramento teórico da questão, citando doutrina e jurisprudência pertinentes, concluindo que em face da matéria de facto assente que as aberturas têm por função exclusiva permitir a entrada de luz e ar, qualificando as mesmas como frestas.
A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito. Uma sentença é nula, por falta de fundamentação de facto, quando a decisão concretamente tomada – e não aquela que as partes entendam que deveria ter sido tomada – não se encontra assente em factos apresentados pela própria decisão, diretamente ou por remissão.
Podem os recorrentes discordar da decisão de facto proferida, o que não podem é, razoavelmente, dizer que está em causa uma nulidade da sentença por falta de fundamentação, de todo inexistente.

Imputam também os recorrentes à sentença a nulidade constante da alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC, por alegada contradição «existente na fundamentação que fez o Tribunal incorrer em erro no que à valoração da prova diz respeito e que culminou com o facto não provado sob a alínea a)», sendo que a não existir tal contradição, a decisão sobre a matéria de facto dessa alínea seria diferente, assim como a alínea g) dos factos não provados.
Dispõe a referida alínea c) do art. 615º do CPC que a sentença é nula quando «[o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Ora, lendo com a devida atenção a sentença, logo se vê, com meridiana clareza, que os fundamentos da sentença estão em perfeita consonância com a decisão, e não ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, sendo a mesma claríssima.
A não consideração de determinado facto como provado não consubstancia, como é bom ver, qualquer contradição com a valoração da provada efetuada, uma vez que não constitui um vício intrínseco da decisão, mas apenas que o juiz terá decidido eventualmente mal. Trata-se, nesse caso, de um error in judicando, em contraposição ao error in procedendo, o que, aliás, será apreciado seguidamente no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Em suma, a sentença recorrida não enferma das nulidades invocadas pelos recorrentes.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental, depoimentos das testemunhas e declarações de parte, registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que os recorrentes cumpriram formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificaram o concreto ponto da matéria de facto que consideram incorretamente julgado, indicaram os elementos probatórios que conduziriam à alteração daquele ponto nos termos por eles propugnado, referiram a decisão que no seu entender deveria sobre ele ter sido proferida e indicaram as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, que transcreveram em parte, pelo que nada obsta ao conhecimento deste na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Sr.ª Juíza a quo no sentido de dar como não provada a factualidade objeto de impugnação.
Infere-se das alegações/conclusões dos recorrentes que estes discordam da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à alínea a) dos factos não provados, defendendo que a matéria em causa, ao invés do decidido, deve ser dada como provada.
Na referida alínea a) deu-se como não provado, por referência ao ponto 7 dos factos provados, que as aberturas existentes no prédios dos autores em discussão nos autos, «tenham por função proporcionar aos proprietários a possibilidade se debruçarem no parapeito e poderem disfrutar comodamente das vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo».
Para dar como não provado este facto, a sentença recorrida desvalorizou todos os depoimentos testemunhais produzidos por, além do mais, ter sido «evidente ao longo do julgamento que as testemunhas não sabiam dizer qual o fundamento da conclusão que alvitravam», por as mesmas atribuírem «aos objetos uma natureza quando observados de fora e outra quando observados de dentro» e serem «incapazes de definir, objetivamente, as qualidades que um objeto deve apresentar para ser configurado como janela por oposição a fresta».
De igual modo foram desvalorizados os relatórios elaborados a esse propósito pela Câmara Municipal de Elvas, porque «os mesmos apenas apresentam o mérito de demonstrar não só que os técnicos que compõem os quadros da divisão de urbanismo não apresentam o domínio do conhecimento inerente à matéria de facto em discussão (…), como que os procedimentos são levados ao sabor da vontade das partes, designadamente permitindo fazer valer tudo e o seu contrário, inexistindo fundamentos objetivos, sérios, demonstrados através de razões técnicas rigorosas, para a reformulação de opiniões emitidas no seio dos procedimentos em causa. Uma realidade não pode ser uma quando observada de fora e outra quando observada de dentro – ou a primeira avaliação peca por prematura, ou a segunda por irrefletida».
Por outro lado, teve em consideração os seguintes elementos probatórios:
«i) Planta do edifício, junta com a petição inicial e contestação, onde pode observar-se que é distinto o desenho das aberturas na parte anterior e posterior; (…);
(ii) Natureza da solução arquitetónica, visível nas fotografias do exterior: construção de colunas de betão fixas, com aspeto de frestas, limitando de forma definitiva a possibilidade de olhar para o exterior; sendo evidente que, caso estivesse em causa a tutela da «privacidade» do próprio, seria pensada uma solução que permitisse abrir a janela sem limitações e fechá-la sem constrangimentos – v.g. estore;
(iii) Histórico da construção, isto é, o facto de ter derivado de um «destacamento» de um casão num prédio mais abrangente; sendo que, na zona em que são contíguos, a extrema de um confinará com a de outro, impedindo a abertura de vãos ou janelas;
(iv) Informação constante do processo de licenciamento, datada de 11-09-1978, onde se faz constar que «a previsão de frestas nas dependências da zona posterior da habitação não satisfaz o espírito do art. 71.º do RJEU (DL n.º 38382/51, de 07 de Agosto), que obriga à existência permanente de condições de iluminação e ventilação… No entanto, não há outra solução possível na adaptação a moradia da construção existente»; (…)».
Já os recorrentes, por sua vez, entendem que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, lograram provar que as aberturas em causa tinham a natureza e a função de janelas, o que resulta, quer do documento nº 15 junto com a petição inicial, quer da prova testemunhal que apresentaram, no caso os técnicos da Câmara Municipal de Elvas.
Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Quanto ao documento nº 15 junto com a petição inicial, trata-se de uma informação da Câmara Municipal de Elvas, datada de 05.08.2021, na sequência de reclamação[6] apresentada pelo autor para verificação de janelas e não frestas), onde se refere que «em visita ao interior do imóvel das “frestas”, verificou-se pelo lado de dentro que se tratavam de três janelas de iluminação e ventilação».
Anteriormente, em 30.04.2021, a Câmara Municipal de Elvas havia já emitido uma informação[7] onde refere, nomeadamente, que «na sequência de um pedido de vistoria (…) a fiscalização municipal, em deslocação ao local, verificou que não se tratavam de janelas, mas sim de frestas de ventilação do imóvel contíguo».
Ora, tratando-se de documentos emitidos por edilidade camarária, no âmbito das suas competências, o mesmo configura documento autêntico, assim lhe sendo aplicável o estatuído no artigo 371º do Código Civil.
Dispõe o nº 1 deste preceito que «[o]s documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador».
Decorre deste preceito que a força probatória plena dos documentos autênticos abrange unicamente os factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e os dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora, não os meros juízos pessoais do documentador.
Sucede que o referido documento nº 15 - à semelhança, aliás, do doc. nº 4 junto com a contestação - não se limita a referir o que é percecionado pelo documentador ou a atestar factos com base nas perceções do mesmo, exprimindo também uma apreciação pessoal do documentador, que considera tratar-se de janelas as aberturas em causa, pelo que se integra na previsão da parte final do nº 1 do citado artigo 371º, valendo como elemento sujeito à livre apreciação do julgador.
E, sendo assim, não pode deixar de se concordar com o que a propósito se escreveu na sentença recorrida, quando ai se refere que o documento em causa «apenas pode descrever o que foi visto, não fazendo prova quanto a juízos de valor de quem o subscreve – sendo manifesto que os técnicos da Câmara apenas foram capazes de emitir uma opinião, sem fundamentação objectiva, que não tem, evidentemente, a virtualidade de demonstrar seja o que for quanto à natureza das estruturas em causa».
Ademais, não deixa de causar alguma perplexidade o facto de num curto espaço de pouco mais de três meses, existirem duas informações contraditória, sendo que na primeira se refere que as aberturas em causa são frestas, e na segunda se afirma tratar-se de janelas, ainda que num e noutro caso estejamos perante meros juízos de valor, sendo que aquilo que releva e que permite ao Tribunal concluir num ou noutro sentido, hão de ser os elementos objetivos verificados no local.
Assim, o referido documento nº 15 não tem, por si só, valor probatório suficiente para dar como provada a matéria fáctica constante da alínea a) dos factos não provados.
E será que a prova testemunhal produzida, nomeadamente os depoimentos prestados pelos técnicos da Câmara Municipal de Elvas, permitem, por si só, ou em conjugação com o referido documento, dar como provada aquela factualidade?
Não se pode escamotear que as testemunhas arquiteto DD, o técnico EE, o técnico projetista II e o engenheiro civil GG, foram unânimes em considerar que as aberturas existentes no prédio dos autores, aqui em discussão, eram janelas e não frestas, tendo a última testemunha acrescentado ainda que a localização de tais aberturas é um elemento importante a considerar na distinção entre umas e outras.
A consistência do “testemunho” pericial, onde se podem integrar as referidas testemunhas, que podemos considerar testemunhas com especiais conhecimentos técnicos, e que, mais que conhecedores de factos, foram chamados para os conhecer[8], passa, inevitavelmente, por aquilo que, em teoria da prova, se costuma designar como juízos ou conclusões de facto e, por vezes, opiniões[9].
Tais testemunhas, como aliás a documentação constituída pelas informações camarárias juntas ao processo, acabaram por funcionar pois, fundamentalmente, como “meio de integração da atividade” do juiz, permitindo-lhe a compreensão e o enquadramento técnico dos mecanismos subjacentes aos factos em causa.
As explicações que podem ser dadas a propósito e as opiniões entretanto explicitadas pelas testemunhas inquiridas, formam um todo de prova, na qual, a metodologia, as conclusões, as explicações, são fatores a ter em conta e a passar pelo crivo da convicção, que procura avaliar a significação, a causalidade, a probabilidade estatística, de cada um desses fatores.
Ora, no caso em apreço, a realidade física a considerar está claramente documentada nas fotografias jutas aos autos com os articulados, particularmente as fotografias juntas com a contestação sob os números 5 a 11, as quais evidenciam de forma bem evidente que as aberturas em causa não permitem aos recorrentes debruçar-se no parapeito e disfrutar comodamente das vistas, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
Tal não é possível, dada a existência de colunas de betão armado com aspeto de frestas[10], que limitam «de forma definitiva a possibilidade de olhar para o exterior; sendo evidente que, caso estivesse em causa a tutela da «privacidade» do próprio, seria pensada uma solução que permitisse abrir a janela sem limitações e fechá-la sem constrangimentos – v.g. estore», como bem se observa na sentença recorrida.
Também a planta do prédio dos recorrentes constante da licença para obras junta com a petição inicial como “Doc. 16”, permite observar que é distinto o desenho das aberturas na parte anterior e posterior do prédio, não podendo igualmente deixar de relevar o histórico da construção, ou seja, o facto do prédio em causa ter derivado de um «destacamento» de um casão num prédio mais abrangente, «sendo que, na zona em que são contíguos, a extrema de um confinará com a de outro, impedindo a abertura de vãos ou janelas», como bem se observa na sentença recorrida.
Por último, mas não menos importante, a informação constante do processo de licenciamento, datada de 11.09.1978, onde se faz constar que «a previsão de frestas nas dependências da zona posterior da habitação não satisfaz o espírito do art. 71.º do RJEU (DL n.º 38382/51, de 07 de Agosto), que obriga à existência permanente de condições de iluminação e ventilação… No entanto, não há outra solução possível na adaptação a moradia da construção existente»; (…)» - cfr. doc. 1 junto com a contestação.
Resulta, pois, do exposto que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo ao dar como não provada a matéria constante da alínea a) dos factos não provados, a qual, por isso, fica intocada.

Do conceito legal de janela e de fresta
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à sentença recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito.
Senão vejamos.
É sabido que a lei estabelece regimes diferentes relativamente às janelas, por um lado, e às frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, e ainda às janelas gradadas, por outro, como tudo flui do disposto nos artigos 1360º, nº 1, 1362º, nº 1 e 2, 1363º e 1364º, do Código Civil [CC].
Todavia, não define o que deva entender-se por janela, usando este vocábulo com o sentido que tem na linguagem corrente. Assim, é à doutrina e à jurisprudência que tem cabido esse papel de definir os contornos do conceito de janela, por contraposição ao de fresta.
Com se refere nos acórdãos do STJ de 26.06.2008 e de 15.05.2008[11], «a expressão janela, derivada do latim janua, com o sentido de porta ou entrada, que é o comum, traduz-se numa abertura feita na parede externa das casas, em regra para a entrada de ar e luz no seu interior e para desfrute de vistas. E, no âmbito da variedade das janelas, distinguem-se as externas ou de peito - inseridas acima do solo ou do sobrado, com peitoril ou parapeito, em que se apoiam os braços quando as pessoas nelas se debruçam – e as de sacada - semelhantes a portas de acesso a alpendres ou sacadas».
Ensina o Prof. Henrique Mesquita[12], que são juridicamente possíveis, relativamente às aberturas qualificáveis como janelas ou frestas, três categorias distintas:
a) Janelas;
b) Frestas que não excedam as dimensões legais e situadas à altura fixada na lei (frestas regulares);
c) Frestas com dimensões superiores às legais ou situadas a uma altura inferior à fixada na lei (frestas irregulares).
No domínio do Código de Seabra, o entendimento prevalecente era o de que devia considerar-se janela a abertura onde coubesse uma cabeça humana. Hoje, este critério não é mais defendido.
Diz-se no acórdão do STJ de 09.03.1993[13], que «[a] abertura, nas frestas, nas seteiras e nos óculos, destina-se a permitir a Inspectio; nas janelas, a permitir a Prospectio».
Como refere Henrique Mesquita[14], «(…) as janelas dispõem de um parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam, olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo». E, conclui depois que «[n]o conceito de janela deverá incluir-se apenas através das quais possa projectar-se a parte superior do corpo humano e em cujo parapeito as pessoas possam apoiar-se ou debruçar-se, para descansar, para conversar com alguém que esteja do lado de fora ou para desfrutar as vistas».
Daqui resulta que o conceito “janela”, para efeitos do mencionado artigo 1360º, nº 1, do CC, se terá de reconduzir a aberturas mais amplas do que as frestas, por forma a permitir não só a entrada de luz e ar, mas também a devassa sobre o prédio vizinho.
Aliás, só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no nº 1 do artigo 1360º do CC: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objeto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o arremesso de objetos[15].

Da qualificação jurídica das aberturas existentes no prédio dos autores
No caso concreto, resulta da matéria de facto assente que as aberturas existentes no prédio dos recorrentes em discussão nos autos, têm por função exclusiva permitir a entrada de luz e ar [ponto 7 dos factos provados].
Não podem tais aberturas qualificar-se como janelas, quer pelas suas dimensões, que pela sua configuração, retratadas nas fotografias a que se aludiu supra. Na verdade, a existência de quatro colunas/barras de betão, não permite que, por elas, possa ser devassado o prédio vizinho alheio, uma vez que não se mostra possível o debruçar sobre este prédio.
Como se assinala em acórdão do STJ de 03.04.1991[16], «[a]s janelas, em sentido jurídico, além de darem ar e luz, permitem o devassamento do prédio vizinho, isto é, nos termos do artº. 1360º nº. 1 do Código Civil, têm de ser tais que “deitem diretamente sobre o prédio vizinho”", por forma a permitirem o seu devassamento ou o debruçar pelo dono da janela». E não é, manifestamente, o caso das aberturas aqui em causa.
A matéria de facto assente não suporta, pois, a conclusão, avançada pelos recorrentes, de que estamos perante janelas.
Significará isto que as questionadas aberturas devam considerar-se frestas?
De acordo com o critério distintivo que, na vigência do Código Civil anterior, resultou da elaboração doutrinal e jurisprudencial, a resposta não poderia deixar de ser afirmativa. Na verdade, por tal critério, ou a abertura permitia a passagem de uma cabeça humana - e estávamos em face de uma janela, sujeita à restrição constante do art. 2325º daquele Código (idêntica à do art. 1360º, nº 1, do Código vigente); ou não permitia essa passagem, e tratar-se-ia de uma fresta, não sujeita a qualquer restrição, e que, por isso, o proprietário vizinho tinha de suportar.
O Código atual, porém, inspirando-se nas razões que justificam a restrição estabelecida no art. 1360º, nº 1, relativamente à abertura de janelas, indicou expressamente os requisitos próprios das frestas: localização a, pelo menos, 1,80 metros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não terem, numa das suas dimensões, mais de 15 centímetros. Só a estas frestas alude aquela norma - só elas são aberturas de tolerância - não ficando sujeitas àquela restrição estabelecida para a abertura das janelas, embora o vizinho guarde a possibilidade de «levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas».
A matéria de facto apurada, relativa às aberturas aqui em apreciação, não se acomoda aos enunciados requisitos, caracterizadores das frestas [cfr. ponto 6 dos factos provados].
Tão pouco permite qualificar tais aberturas como janelas gradadas, com definição no art. 1364º, e também não sujeitas - porque também não é possível, através delas, a devassa do prédio vizinho - à restrição estatuída no art. 1360º, nº 1.
Qual é, então, a qualificação que lhes cabe?
A par daquelas frestas (frestas regulares), concebe-se a possibilidade de serem abertas frestas com dimensões superiores à indicada, ou situadas a uma altura inferior à referida, a que os autores chamam frestas irregulares.
E não podendo ser qualificadas como janelas, nem como frestas regulares, as aberturas em causa só consentem a sua qualificação como frestas irregulares, como se concluiu na sentença da 1ª instância.
Qual o regime a que se acham sujeitas estas aberturas?
Escreveu-se a este propósito no citado acórdão do STJ de 26.02.2004:
«Questiona-se, actualmente, se a abertura de frestas em desconformidade com a lei, pode, uma vez decorrido o lapso temporal necessário à usucapião, fazer nascer algum direito que os proprietários vizinhos tenham de respeitar (designadamente se a essas frestas irregulares é aplicável o regime relativo às janelas abertas em contravenção do estabelecido no artº. 1360º/1) ou se, ao invés, estes podem, a todo o tempo, exigir a modificação dessas frestas e a sua colocação em conformidade com o regime legal, ou levantar construção que as tape, impedindo que o ar e a luz continuem a entrar por elas.
De acordo com aquela que entendemos ser a melhor doutrina, a abertura de frestas sem as características indicadas no artº. 1363º/2 pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial. Como refere o Prof. Henrique Mesquita (…), o proprietário que abra frestas irregulares excede o âmbito dos poderes contidos no seu direito de propriedade e sujeita o proprietário vizinho a um encargo que não lhe pode ser imposto unilateralmente. A este assiste, por isso, o direito de exigir que as frestas sejam modificadas, de modo a afeiçoá-las às medidas ou à altura referidas na lei. Se o não fizer - se não reagir contra o abuso cometido - a situação possessória daí resultante importará a constituição de uma servidão predial, uma vez decorrido o prazo da usucapião; e, constituída esta, cessa aquele direito, do proprietário vizinho, de exigir a modificação das frestas e sua harmonização com a lei, enquanto o dono do prédio dominante adquire o direito, que não tinha até então, de manter essas aberturas em condições irregulares.
Mas só isso. Ou seja: o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, mesmo que tape as frestas, “porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de metro e meio, medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no artº. 1362º, em cujo campo de aplicação se não incluem as frestas”.
Vale isto dizer que “o proprietário que abre frestas em desconformidade com a lei fica, após o decurso do prazo da usucapião, exactamente na mesma situação jurídica que resulta da abertura de frestas regulares: o vizinho não pode reagir contra a violação cometida, exigindo que as frestas sejam tapadas ou modificadas; mas mantém o direito de, a todo o tempo, construir no seu prédio, ainda que vede ou inutilize tais aberturas”.»
Decorre do exposto que, só podendo, como vimos, ser qualificadas como frestas irregulares, as aberturas em causa não impedem a ré - mesmo que se achasse constituída por usucapião a servidão predial acima aludida, o que não é o caso, pois tal não foi sequer alegado como causa de pedir da ação - de construir junto à linha divisória, ainda que as tape ou inutilize. O mesmo é dizer que não se demonstra a existência de qualquer servidão de vistas, a que alude o art. 1362º, nº 1, do CC, nem ocorre, consequentemente, a limitação estabelecida no nº 2 do mesmo preceito.
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencidos no recurso, suportarão os autores/recorrentes as respetivas custas – artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Évora, 2 de março de 2023
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

__________________________________________________
[1] Sem prejuízo da responsabilidade tributária fixada quanto ao pedido relativamente ao qual as partes transigiram, cf. parágrafos antecedentes.
[2] Pelos autores nunca foi feita uma descrição dos elementos característicos das referidas aberturas, optando-se assim por dar como reproduzidas as fotografias, por serem as únicas susceptíveis de garantir o transporte fiel da versão vertida na petição inicial – versão essa que, nesta parte, não foi não impugnada pela ré, que não contestou a existência ou localização das mesmas, apenas a sua qualificação funcional.
[3] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, em anotação ao art. 668º do CPC revogado.
[4] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 04.05.2010, proc. 2990/06.0TBACB.C1.S1.
[5] Da página 7 à página 12.
[6] Documento nº 14 junto com a petição inicial.
[7] Documento nº 4 junto com a contestação.
[8] Cfr. Francesco Carnelutti, La Prueba Civil, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1982, p. 244; cfr., com interesse, o art. 370.4, 1ª parte, da Ley de Enjuiciamento Civil espanhola [Lei 1/2000, de 7 de enero], que prevê expressamente a figura da testemunha-perito, de forma que, “quando a testemunha possua conhecimentos científicos, técnicos, artísticos ou práticos sobre a matéria a que se refiram os factos do interrogatório, o Juiz admitirá as manifestações que em virtude desses conhecimentos agregue a testemunha às suas respostas sobre os factos” – Juan-Luis Gómez Colomer, La prueba testifical en la Ley de Enjuiciamento Civil de 2000: sus principales novedades respecto a la legislación anterior, in La Prueba, Cuadernos de Derecho Judicial, Consejo General del Poder Judicial, Madrid, 2000, pp. 252-253.
[9] Sobre peritos e testemunhas, vd., com interesse, Francesco Carnelutti, ob. cit., pp. 82 a 89, 126 a 130 e 244.
[10] Ainda que não se tenha apurado a respetiva dimensão, a testemunha II disse ser possível meter a cabeça entre tais colunas.
[11] Processos 08B1716 e 08B1368, in www.dgsi.pt.
[12] In RLJ, nº 128, p. 149, em anotação ao acórdão do STJ de 03.04.1991.
[13] Proc. 0067961, cujo sumário está disponível in www.dgsi.pt.
[14] Ibidem, pp. 151-152.
[15] Cfr., inter alia, os acórdãos do STJ de 26.02.2004, proc. 03B3498, e de 01.04.2008, proc. 07A3114, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[16] BMJ 406/644.