Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7532/19.5T8STB-H.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DESOCUPAÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As diligências de desocupação de imóvel que constitui a casa de morada da família do insolvente com vista à sua efetiva apreensão pelo administrador da insolvência mostram-se suspensas por força das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID 19.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 7532/19.5T8STB-H.E1


Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. (…) veio requerer “a suspensão da prática de venda ou entrega judicial” do imóvel em liquidação nos autos em que foi declarada insolvente.
Alegou ter mais de 60 anos de idade, constituir o imóvel a sua casa de morada da família e não ter outro local para habitar, razões pelas quais a venda do imóvel deverá ser suspensa ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º-A, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29/5.
A credora (…) Activity Company deduziu oposição argumentando, em síntese, que a dívida de que é credora foi reclamada há mais de treze anos em processo executivo que correu contra a requerente, que o processo de insolvência não constitui surpresa para a requerente, uma vez que foi ela quem requereu a insolvência, bem sabendo que a liquidação do seu património constituía um ato típico da insolvência e que a requerente não pode protelar ad aeternum a venda do imóvel com o argumento de constituir ele a sua residência.
Concluiu pelo indeferimento do requerido com a prossecução da venda do imóvel.

2. Seguiu-se despacho a indeferir o requerimento da insolvente em que designadamente se ajuizou:
“(…) Os presentes autos iniciaram-se com a petição de apresentação à insolvência deduzida em 20-11-2020.

Nos termos do disposto no artigo 158.º, n.º 1, do CIRE, transitada a sentença de insolvência e realizada a assembleia de credores, o Sr. A.I. procede com prontidão à venda dos bens.

Ora, nos autos foi dispensada a realização da assembleia de credores e foi apresentado o relatório previsto no artigo 155.º do CIRE em 16-01-2020, o qual foi objeto de despacho em 02-03-2020, que se pronuncia pela apreensão do produto da venda já que qualquer eventual nulidade de venda teria que ser objeto de decisão nos autos de ação executiva onde a mesma ocorreu.

Dispõe o n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio de 2020, que: “Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.”

No caso, foi a própria devedora que requereu que fosse declarada a sua insolvência, pela sua apresentação, não podendo, por isso, deixar de estar ciente de que a mesma acarretaria a venda do imóvel que constitui a casa de morada de família.

Ou seja, desde o momento em que se apresentou à insolvência, em 20-11-2020, que a insolvente era conhecedora de que o imóvel seria objeto de liquidação nestes autos.

Mostram-se decorridos mais de 10 meses, tempo mais que suficiente para que a insolvente encontrasse uma solução para viver, seja um quarto arrendado, ou uma casa arrendada, caso o seu orçamento lhe permita.

Pretender a suspensão das diligências de venda constitui abuso de direito na forma de “venire contra factum próprio”, pois a insolvente requereu a sua própria insolvência que tem implícita a liquidação do património, dado que não deduziu qualquer incidente de plano de pagamentos, e pretende agora ver suspensas tais diligências, alegando ter mais de 60 anos e não dispor de outra solução de alojamento.

Não poderá merecer acolhimento a pretensão da insolvente. A norma em causa visa, em nosso entender, salvaguardar os executados e os insolventes, declarados por via do pedido de terceiro credor e não os insolventes que, por sua livre iniciativa, se apresentaram à insolvência, dado que estes não foram colhidos de surpresa pela possibilidade de ficarem desalojados, como acontece com os executados (cujo processo nunca é sua iniciativa), e com os insolventes declarados a pedido de credor.

Em face do exposto, indefiro à requerida suspensão das diligências de venda e liquidação do ativo nos presentes autos.”


2. A insolvente recorre deste despacho e conclui assim a motivação do recurso:
«I. Nos termos do n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio de 2020, a ora recorrente requereu a suspensão da prática de atos de venda ou entrega judicial do imóvel de que é proprietária e que será objeto de liquidação, alegando em síntese que tem mais de 60 anos; que o imóvel em questão é a sua casa de morada de família; que o despejo a concretizar-se colocará a insolvente a viver na rua, ou seja, em situação de grande fragilidade.

II. Ouvidas as partes, veio o Tribunal “a quo” indeferir a pretensão da ora recorrente, por considerar que o n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio de 2020, não se aplica aos insolventes que, por sua livre iniciativa, se apresentaram à insolvência, pois estes não foram apanhados de surpresa, constituindo a pretensão da requerente um abuso de direito na forma de “venire contra factum proprio”, já que que a insolvência tem implícita a liquidação do património.

III. Tal entendimento viola as regras de interpretação dos artigos 9.º e 11.º do Código Civil.

IV. Já que a norma do n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio de 2020, tal como todo o diploma constituem normas de natureza excecional, procedendo à aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19.

V. Por sua vez, o legislador não distinguiu insolvências promovidas pelos próprios ou por terceiros credores, quando certamente o faria se fosse essa a sua intenção, até porque nos termos do artigo 9.º/3 do Código Civil, «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

VI. São de interpretação estrita as leis que contêm exceção à lei, valendo mais a letra e não o espírito da lei e, por outro lado, limitar o alcance de uma norma excecional com base nas regras gerais seria retirar-lhe toda a sua característica de «ius singulare».

VII. Pelo que o tribunal “a quo” no seu despacho violou igualmente o n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio de 2020.

VIII. O comportamento da ora recorrente, jamais poderia ser considerada de má-fé, nomeadamente na sua modalidade de venire contra factum proprium, já que tal instituto não é uma panaceia ou um nevoeiro que sirva para quase tudo.

IX. Tal instituto deve ser limitado quando as situações da materialidade subjacente assim o justificam, evitando-se um formalismo que não se pretende e permitindo assim a aplicação de soluções justas no caso em concreto e ao não fazê-lo, esteve mal o Tribunal “a quo”, interpretando erradamente o artigo 334.º do Código Civil e o instituto do abuso de direito em geral.

X. Na situação ora em análise, a insolvente, já depois de requerer a sua declaração de insolvência (em 20/11/2019 e não em 20/11/2020, conforme por lapso é referido na sentença), viu-se, logo cerca de 4 meses depois, perante uma circunstância atípica e imprevisível que foi o contexto de pandemia e que muito a limitou na procura de uma outra casa para habitar e não 10 meses como também erradamente o Tribunal “a quo” considerou.

XI. Nem se compreende qual o investimento feito pelo credor na base da confiança que merecerá ser tutelado, e que é um dos requisitos de aplicação do instituto do venire contra factum proprium.

XII. Nem de que forma uma instituição financeira sofrerá um prejuízo de tal forma sério, que justifique a não suspensão dos atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis, suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, única questão que poderia contrabalançar a pretensão da ora recorrente.

XIII. O tribunal “a quo” interpretou erradamente o n.º 7 do artigo 6.º-A da Lei alterada pelo artigo 2.º da Lei 16/2020, de 29 de maio de 2020, ao limitar a sua aplicação aos insolventes, cujas insolvências não tenham sido por si apresentadas, quando a referida norma é aplicável a todas as insolvências, independentemente de quem tenha apresentado o requerimento inicial de insolvência.

Termos em que se requer que seja dado provimento ao presente recurso e que seja revogada a decisão que indeferiu o requerimento para suspensão da prática de atos de venda ou entrega judicial do imóvel de que é proprietária e que será objeto de liquidação, devendo ser substituída por outra que admita a referida pretensão, pois só assim será, no entendimento da ora recorrente, alcançada a tão almejada Justiça!»

Respondeu a credora (…) Activity Company por forma a defender a confirmação da decisão.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Tendo em conta que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões nele incluídas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), que nos recursos se apreciam questões e não razões ou argumentos, que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido, importa decidir se deve ser suspensa a venda ou a entrega judicial do imóvel que constitui a casa de morada de família da insolvente.


III- Fundamentação
1- Factos

Para além dos factos que resultam do relatório supra, importa ainda considerar que o requerimento da insolvente foi introduzido em juízo no seguimento do requerimento da Exmª Administradora da insolvência dando notícia que “se encontra registada a declaração da insolvência sobre a fração autónoma designada pela letra A, destinada a habitação, correspondente ao r/c direito do prédio urbano sito na Venda (…), lote …, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º (…)”, que “não poderá a insolvente residir ad eternum num local de que não é proprietária” e que “um imóvel devoluto tem, por norma, um valor comercial maior que um imóvel habitado”, terminando por requerer a notificação da autoridade policial com vista à concretização de diligências de desocupação do imóvel.

2. Direito

Segundo o n.º 11 do artigo 6.º-B, aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março pela Lei n.º 4-B/2021, de 1/2, que veio estabelecer um regime suspensão de prazos processuais e procedimentos decorrentes das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID 19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, mostram-se “suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais atos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.

Os atos a realizar nos processos de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, mostram-se suspensos por força das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID 19.

Idêntica suspensão resultava da alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º-A aditado à Lei n.º 1-A/2020 pela Lei n.º 16/2020, de 29/5, vigente à data em que a insolvente requereu a “suspensão da prática de venda ou entrega judicial” do imóvel.

No caso, a requerente foi declarada insolvente e não se suscitam dúvidas que o imóvel para cuja desocupação a Exmª Administradora da insolvência pretende a colaboração da autoridade policial, constitui a sua casa de morada de família.

As diligências de desocupação de imóvel que constitui a casa de morada da família da insolvente com vista à sua efetiva apreensão pelo administrador da insolvência, como é o caso, mostram-se suspensas por força das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID 19, independentemente de qualquer requerimento da insolvente ou de haver sido ela quem requereu a insolvência.

Diferente a venda do imóvel uma vez que quanto a esta a lei vigente não dispõe de previsão similar à lei pregressa segundo a qual “nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes” (n.º 7 do artigo 6.º-A aditado à Lei n.º 1-A/2020 pela Lei n.º 16/2020, de 29/5).

Regime vigente que, a nosso ver, se justifica, uma vez que declarada a insolvência o administrador da insolvência deve diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário (artigo 15.º, n.º 1, do CIRE), ou seja, a venda no procedimento de liquidação supõe que o bem já não está em poder do insolvente, por entregue ao administrador da insolvência e não o inverso, como no caso se verifica.

As diligências de desocupação do imóvel que constitui a casa de morada de família da insolvente mostram-se suspensas por força das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID 19 e, com este alcance, procede o recurso.

3. Custas

Vencida no recurso, incumbe à recorrida (…) Activity Company o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 3, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

(…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida na parte em que supõe a admissibilidade da prossecução dos autos com diligências de desocupação do imóvel.
Custas pela Recorrida.
Évora, 11 de Março de 2021
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho Mário Branco Coelho