Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
206/14.5GBASL.E1
Relator: ISABEL DUARTE
Descritores: DANOS PATRIMONIAIS
LUCROS CESSANTES
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Data do Acordão: 09/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No que concerne aos chamados “lucros cessantes” e da “perda da capacidade de ganho”, danos patrimoniais, rege, em primeira linha, o princípio da reposição natural expresso no art. 562º do Cód. Civil, normativo no qual se consagra a regra da colocação do lesado na situação anterior à lesão, deixando a indemnização em dinheiro como critério subsidiário a ser “utilizado sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (artigo 566º, n.º 1 do Código Civil).
Os danos indemnizáveis são, de acordo com o disposto no art. 564º do Cód. Civil, todos os prejuízos reais que o lesado sofreu, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de certo bem corpóreo ideal.

Esses prejuízos configurarão um dano patrimonial quando, por incidirem sobre interesses de ordem material ou económica, se reflectem no património do lesado, sendo, porque susceptíveis de avaliação pecuniária, reparáveis, senão directamente mediante a restauração natural ou reconstituição específica da situação anterior à lesão), pelo menos indirectamente, por meio de equivalente ou indemnização pecuniária

A indemnização terá, neste caso, como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida e a situação hipotética que nessa data teria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (cfr. art.566º, n.º 2 do CC).

Á quantificação da indemnização nestes termos devida interessará a noção de dano de cálculo, enquanto reflexo que o dano real, entendido como prejuízo in natura, teve sobre a situação patrimonial do lesado: trata-se, por ex., do dispêndio de uma certa soma em dinheiro para fazer face a uma despesa tornada necessária em razão do dano real

Dentro dos danos patrimoniais, caberão, não apenas os danos emergentes ou perdas patrimoniais - os quais, como se sabe, podem consistir tanto numa diminuição do activo como num aumento do passivo - como os lucros cessantes ou frustrados: os primeiros compreenderão o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, ao passo que os segundos abrangerão a perda de ganhos futuros, em vias de concretização, de natureza eventual ou sem carácter de regularidade, que o lesado não consegue já obter em consequência do acto ilícito. Deverão, em qualquer caso, ser determinados segundo critérios de verosimilhança ou probabilidade, atendendo-se ao que aconteceria segundo o curso normal das coisas e recorrendo à equidade quando se não possa averiguar a sua exactidão.

Deve, também, mencionar os danos futuros, que compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultarem para o lesado (ou resultarão, em termos de experiência comum) em consequência do acto ilícito que foi obrigado a sofrer.

A jurisprudência, quase unanimemente, tem entendido que a incapacidade permanente parcial representa, em si mesma, um dano patrimonial, não podendo reduzir-se à categoria de danos não patrimoniais, pela inerente afectação da capacidade de ganho que implica.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório

1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º 206/14.5GBASL, do Tribunal Judicial Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Portimão - Juiz 3, foi julgado o arguido:

AAFS, solteiro, maior, filho de FJS e de MAAFS, natural de …. - ….., nascido em ….., com última morada conhecida na Rua ……, em …..,

tendo sido proferida decisão, nos termos seguintes:

a) “Condenar o arguido AAFS como autor material de um crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, na pessoa de FM p. e p. pelos arts. 15º b), 148º nºs 1 e 3 do C. Penal, ex-vi art. 144º alíneas a) a c) do C. Penal na pena de 9 (nove) meses de prisão;

b) Suspender a pena única de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano;

c) Condenar o arguido na pena acessória de 7 (sete) meses de proibição de conduzir veículos a motor;

d) Ordenar que o(a) arguido(a) entregue a sua carta de condução na secretaria judicial do Tribunal no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado desta decisão, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência;

e) Advertir o(a) arguido(a) que a condução de veículos motorizados no decurso do período de proibição de conduzir em que foi condenado o(a) fará incorrer na prática de um crime de violação de proibições ou imposições;

f) Condenar o(a) arguido(a) nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s (art. 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa);

g) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por FM parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condenar a demandada SU, S.A. no pagamento ao demandante:

 da quantia de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;

 bem como da quantia de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), a título de indemnização por danos futuros e redução da capacidade de ganho.

h) Às indemnizações fixadas em d) supra acrescerão os juros de mora, contabilizados à taxa legal desde a notificação da demandada para contestar o pedido de indemnização deduzido;

i) Condenar demandante e demandada nas custas do pedido civil, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 16% para o primeiro e 84% para a segunda (art. 446º nºs 1 e 2 do C.P. Civil, ex-vi art. 523º do C.P.Penal).

(…)”

2 - A demandada civil, Seguradoras Unidas, S.A, inconformada, interpôs recurso dessa decisão, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. “O presente recurso versa sobre a matéria de facto e de direito.

2. Relativamente à primeira, atento o erro notório do Tribunal a quo na apreciação da prova, pretende a Recorrente que seja alterada a redacção dos factos provados n.ºs 24, 28 e 32 e que sejam aditados novos factos ao elenco de factos provados (n.ºs 32A, 32B e 32C).

3. De facto, à luz da prova documental produzida e das declarações prestadas em julgamento pelo Demandante relativas à sua situação profissional do demandante no período pós-acidente, resulta evidente que as sequelas resultantes do acidente sub-judice impossibilitam o Recorrido de exercer a sua actividade profissional habitual de marítimo-turístico, mas são compatíveis com o exercício de outras actividades profissionais enquadradas no âmbito da sua formação e preparação técnico-profissional – Cfr. Relatório do exame médico-legal do demandante – com a referência 2018/000835/PM-C- e ainda as Declarações do Assistente/Demandante, FXMAM, prestado no dia 19.03.2019, disponível através do ficheiro áudio com 20190319105836_3878269_2870852, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 00:00:01 horas e o seu termo pelas 00:50.01 – (Acta de Discussão e Julgamento de 19.03.2019, com a referência 112610427).

4. Neste sentido, requer-se a alteração dos factos provados n.ºs 24 e 28.º nos termos aduzidos no ponto XX das Motivações.

5. Por outro lado, ainda no que diz respeito à impugnação da decisão em matéria de facto, a Instância Recorrida errou ao proceder a um diagnóstico incorrecto da situação profissional do demandante pós-acidente (“só conseguiu encontrar trabalho pelo período de 3 meses”), mas também porque omitiu factos relevantíssimos para a sua apreciação.

6. De facto, conforme resulta cristalino das supra-referenciadas declarações do Demandante em julgamento, este confessou o seguinte:

 Após o acidente, mais propriamente durante o ano de 2018, o Demandante conseguiu encontrar trabalho como motorista no sector das “plataformas electrónicas”;

 À data em que foram prestadas as declarações, não se encontrava a trabalhar porque necessitou de suspender a sua actividade nas “plataformas electrónicas” para obter uma certificação entretanto exigida por lei.

 Nessa actividade, exercida enquanto trabalhador independente (“passava recibos verdes”), auferia, em média, entre 1.300,00 a 1.400,00€, quase o dobro do valor recebido antes do acidente.

 Resulta inequívoco que, após a obtenção da referida certificação, perspectivava regressar à actividade de motorista nas “plataformas electrónicas”, uma vez que já tinha essa situação apalavrada com “um indivíduo de Lagos”.

7. Pelo exposto, deve ser alterada a redacção do facto provado n.º 32, bem como devem ser aditados três novos factos (n.ºs 32A, 32B e 33C) relativos à situação económico profissional do Demandante no período pós-acidente, tudo nos termos aduzidos e conforme requerido nos pontos XXVI e XXVII das Motivações.

8. No que diz respeito à decisão em matéria de direito, pretende a Recorrente, em primeiro lugar, contestar e impugnar, com vista à sua ulterior revogação, o segmento decisório referente à indemnização fixada, segundo juízo de equidade (artigos 496.º, n.ºs 1 e 3 e 564.º do Código Civil), a título de danos não patrimoniais (120.000,00€), montante indemnizatório manifestamente injusto, desequilibrado, desproporcional, irrazoável e inadequado não apenas à luz da prova produzida, mas também à luz de outras decisões de Instâncias Superiores que se debruçaram sobre casos análogos.

9. Ora, conforme vem sendo entendimento unânime da jurisprudência, as quantias indemnizatórias fixadas equitativamente pelo Tribunal deverão assentar numa certa uniformidade de critérios, de forma a evitar disparidades flagrantes, por um lado, e de maneira a garantir o cumprimento dos princípios da igualdade, proporcionalidade, razoabilidade e adequação.

10. Uniformidade de critérios a que o Tribunal a quo não atendeu, fixando um montante indemnizatório mais elevado do que o que foi arbitrado por Instâncias Superiores em casos muitíssimo mais graves do que o sub-judice, assim violando de modo flagrante os princípios fundamentais acima enunciados.

11. Ora, na sua fundamentação, o Tribunal a quo optou por nem sequer aludir aos mencionados critérios da proporcionalidade e igualdade, antes preferindo pronunciar-se, por um lado, sobre a necessidade de o montante indemnizatório a arbitrar “ser significativo, e não meramente simbólico ou miserabilista” e, por outro, sobre meras conjecturas relativas à situação económica de lesando e lesante.

12. Ora, salvo o devido respeito, a aludida quantia por que foi condenada a Recorrente a este título revela-se absolutamente desproporcional e sem qualquer tipo de respaldo em decisões de Instâncias Superiores incidentes sobre casos análogos.

13. Aliás, importa sublinhar, em primeiro lugar, que a valoração dos danos não patrimoniais, na jurisprudência do STJ, só tem ultrapassado 100.000,00€ em casos de excepcional gravidade, paraplegia, tetraplegia ou incapacidade permanente de 100%, o que não sucede, in casu. - Cfr. Revista n.º 369/07.6TBRGR.L1.S1 – 6.ª Secção, de 11.12.2012, Salreta Pereira (Relator), João Camilo e Fonseca Ramos.

14. Em segundo lugar, a desproporcionalidade, injustiça e inadequação do montante indemnizatório arbitrado a este título resulta ainda da análise de outros arestos de Tribunais Superiores que se debruçaram sobre casos análogos, a saber:

 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.03.2017, processo n.º 81/14.0T8FAR.E1, Relatora: Albertina Pedroso;

 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.2014, processo n.º 2372/10.0TBPVZ.P1, Relatora: Márcia Portela;

 Acórdão do STJ de 15.02.2007, Revista n.º 302/07 – 7.ª Secção – Salvador da Costa (Relator), Ferreira de Sousa e Armindo Luís;

 Acórdão do STJ de 16-03-2011 – Revista n.º 2113/05.3TBAVR.C1.S1 -2.ª Secção – Serra Baptista (Relator), Álvaro Rodrigues e Fernando Bento.

 Acórdão do STJ de 12-01-2012, Revista n.º 4867/07.3TBSTS.P1.S1 – 7:ª Secção -Lopes de Rego (Relator), Orlando Afonso e Távora Victor.

15. Por outro lado, no que diz respeito à situação económica do lesado, importa não olvidar o alegado no artigo 6.º das presentes conclusões (factos provados n.º 32, 32A, 32B e 33C), donde se infere que a sua situação é bem distinta daquela como o Tribunal a quo a retrata (“vivendo seguramente do auxílio de amigos e familiares.”). Pelo exposto, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se, em consequência, o segmento decisório vertido na alínea g), relativo à indemnização arbitrada ao Demandante a título de danos não patrimoniais (120.000,00€), devendo ser substituído por decisão que condene a Recorrente a pagar ao demandante, àquele título, uma indemnização no valor global de 50.000,00€.

16. Em segundo lugar, a Recorrente contesta e impugna, com vista à sua ulterior revogação, o segmento decisório relativo à indemnização fixada, também segundo juízos de equidade (artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil), a título de danos patrimoniais (140.000,00€), montante fixado equitativamente pelo Tribunal a quo, razão pela qual, por economia, se dá aqui por reproduzido, o alegado nos artigos 9.º e 10.º das presentes Conclusões.

17. De facto, a referida indemnização, que nas palavras da sentença recorrida tinha em vista evitar uma situação de “cumulação de indemnizações”, foi, ilegitimamente, fixada tendo como referência, não um valor de pensão vitalícia fixado definitivamente em sede de Acidente de Trabalho, mas antes um valor de pensão fixado a título provisório.

18. Não poderia, pois, a Instância Recorrida fixar um montante indemnizatório tendo por referência uma pensão provisoriamente fixada, cujo valor, em última análise, pode até ser alterado em decisão final no processo de AT, fazendo cair por terra o raciocínio e os cálculos levados a cabo nos presentes autos.

19. Neste sentido, deve tal segmento decisório ser revogado.

20. Caso assim não se entenda, o que não se concebe e apenas se considera por cautela e dever de patrocínio, entende a Recorrente que, à luz da prova produzida (factos provados n.ºs. 24, 26, 32, 32A, 32B e 33C – Cfr. ponto C das presentes Motivações), o demandante nada tem a receber a título de perda de capacidade de ganho (364,23€ x 14 = 5.099,22€ x 20 = 101.984,40€).

21. De facto, conforme se demonstrou ter resultado provado (factos provados n.ºs 32, 32A, 32B e 33C), após o acidente, o Demandante conseguiu encontrar trabalho como motorista no sector das “plataformas electrónicas”, tendo suspendido momentaneamente o exercício de tal actividade (período coincidente com as declarações prestadas em Tribunal) para obter uma certificação entretanto exigida por lei.

22. No exercício dessa actividade, que desempenha(va) com trabalhador independente (“passava recibos verdes”), auferia, em média, entre 1.300,00€ a 1.400,00€, quase o dobro do que recebia à data do acidente (750,00€ - Cfr. Facto provado n.º 31).

23. Acresce que, tal como referiu mais de uma vez, obtida a referida certificação, perspectivava regressar ao exercício da aludida actividade, tendo já um acordo verbal com “um indivíduo de Lagos”.

24. Neste sentido, em face da prova produzida, não se verifica qualquer perda da capacidade de ganho por parte do Demandante, razão pela qual nenhuma indemnização deve ser-lhe arbitrada a esse título, devendo, em consequência, ser revogado o segmento decisório ora em análise.

25. Ainda sem prescindir, se, por hipótese meramente académica, vier a ser arbitrada qualquer indemnização à Autora a título de perda da capacidade de ganho, ao montante da mesma, sempre deverão ser deduzidos 20%, em razão da antecipação do pagamento da aludida indemnização, conforme tem sido entendimento de Instâncias Superiores que se pronunciaram sobre casos análogos ao sub-judice.

26. Na verdade, nestes casos, sublinham os Venerandos Desembargadores da Relação de Coimbra, “não tivesse [o Autor] sofrido o acidente e inerentes lesões, teria obtido tais rendimentos futuros, mas só os receberia ao longo da sua vida. Porém, com o pagamento da indemnização haverá uma antecipação desse recebimento, pelo que se justifica realizar um desconto no valor alcançado, sob pena de se gerar em parte um enriquecimento indevido (recebimento antecipado dos valores da remuneração). Afigura-se equitativa a dedução de uma parcela equivalente a 20%” - Cfr. Ac. TRC de 15/2/2011, processo n.º 291/07.6TBLRA.C1, disponível para consulta na base de dados da DGSI.

27. Pelo exposto, se, por hipótese meramente académica, vier a ser arbitrada qualquer indemnização à Autora a título de perda da capacidade de ganho, ao montante da mesma, sempre deverão ser deduzidos 20%, atenta a antecipação do pagamento da referida indemnização.

28. Em terceiro lugar, com o presente recurso, pretende a Recorrente demonstrar o desacerto da decisão do Tribunal a quo relativamente ao segmento decisório contemplado na alínea h) da sentença recorrida, que condenou a Demandada no pagamento de juros de mora sobre os valores das indemnizações fixadas (segundo juízos de equidade) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, contabilizados à taxa legal desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização deduzido, e não, como impõe o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) n.º4/2002, desde a prolação da sentença.

29. Em quarto e último lugar, e em consequência dos anteriores fundamentos de recurso, pretende a Recorrente a revogação do segmento decisório referente ao decaimento fixado em 1.ª Instância, devendo ser substituído por decisão de acordo com o julgado em 2.ª Instância.

Termos em que:

A) Atentos os fundamentos vertidos nos pontos XII a XXI das Motivações e artigos 2.º a 4.º das conclusões, deve ser alterada a redacção dos factos provados n.ºs 24 e 28 nos termos aduzidos no ponto XIX das Motivações.

B) Atentos os fundamentos vertidos nos pontos XII a XIV e XXII a XXVII das Motivações e artigos 5.º a 7.º das conclusões, deve ser alterada a redacção do facto provado n.º 32, bem como devem ser aditados três novos factos (n.ºs 32A, 32B e 33C) relativos à situação económico profissional do Demandante no período pós-acidente, tudo nos termos aduzidos e conforme requerido nos pontos XXV e XXVI das Motivações.

C) Concomitantemente, atentos os fundamentos de facto e de direito explanados, determine:

a. A revogação do segmento decisório vertido na alínea g), relativo à indemnização arbitrada ao Demandante a título de danos não patrimoniais (120.000,00€), devendo ser substituído por decisão que condene a Recorrente a pagar ao demandante, àquele título, uma indemnização no valor global de 50.000,00€.

b. A revogação do segmento decisório vertido na alínea g), relativo à indemnização arbitrada ao Demandante a título de danos futuros e perda da capacidade de ganho (140.000,00€).

Caso assim não se entenda,

i. A revogação do segmento decisório vertido na alínea g), relativo à indemnização arbitrada ao Demandante a título da perda da capacidade de ganho (364,23€ x 14 = 5.099,22€ x 20 = 101.984,40€);

Caso assim não se entenda,

ii. A redução em 20% do montante indemnizatório eventualmente a arbitrar a título da perda da capacidade de ganho, atenta a antecipação do pagamento da referida indemnização;

c. A revogação do segmento decisório vertido na alínea h) da sentença recorrida, substituindo-se por decisão que determine que os juros de mora serão contabilizados à taxa legal desde a prolação da decisão judicial que ponha termo definitivo ao presente processo.

d. A revogação do segmento decisório referente ao decaimento fixado em 1.ª Instância (alínea i)), devendo ser substituído por decisão de acordo com o julgado em 2.ª Instância.”

3 - O recurso foi admitido, após cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., tendo sido apresentada, unicamente, resposta, pelo demandante civil, FXMAM, pois que, o MºPº, arguiu a sua ilegitimidade, ambos nos termos seguintes:

3.1 - OMºPº

“Assim, e atento o teor das conclusões formuladas pela Demandada, constata-se que a mesma apenas recorreu dos valores arbitrados em sede de indeminização cível que havia sido peticionado pelo Demandante FXMAM pelo que, face à falta de legitimidade do Ministério Público atento o disposto nos artigos 3º e 5º do Estatuto do Ministério Público e 76º n.º 3 do Código de Processo Penal, não procederemos à elaboração de resposta a recurso.

3.2 - O demandante civil

A. “Deverá ser mantida na íntegra a douta sentença recorrida, por se tratar de um brilhante arresto, bem elaborado e melhor fundamentado, em conformidade com a Lei e com a prova produzida, analisando corretamente as questões suscitadas, fazendo uma apreciação correta e sagaz da prova produzida e aplicando e interpretando a Lei de forma completa e precisa.

B. Resultaram provados todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que o sinistrado sofreu e irá continuar a sofrer em virtude do acidente.

C. Entende a Demandada que deve ser alterada a redação dos fatos provados nºs 24, 28 e 32 e que devem ser aditados novos fatos ao elenco dos fatos provados.

D. Salvo o devido respeito entendemos que não lhe assiste qualquer razão, porque os fatos provados traduzem efetivamente o que o Tribunal apurou, após uma análise objetiva, imparcial e desinteressada da prova carreada para os autos e produzida em audiência final, não se vislumbrando que tinha tido qualquer perceção errada, sendo que não foram colocados pelo Demandante quaisquer obstáculos, muito menos que o Tribunal não pudesse e soubesse transpor sem dificuldades dada a experiência e sagacidade que demonstrou.

E. Contesta e impugna a Recorrente o segmento decisório no que respeita à indemnização fixada. Também aqui entendemos, com o devido respeito, que não lhe assiste qualquer razão, na medida em que, contrariamente ao alegado, o Tribunal a quo fez uma correta interpretação e aplicação do direito, tendo a indemnização fixada sido justa, proporcional, razoável e adequada tendo em conta as dores, o sofrimento, os desgostos morais, os complexos de ordem estética, a perda da capacidade de ganho, enfim todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que o Demandante sofreu e continuará a sofrer o resto da sua vida, tudo em consequência do acidente de viação.

F. A quantia de 120.000€ fixada a título de danos não patrimoniais, tendo por base a gravidade do dano sofrido, a natureza e grau das lesões, as respetivas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas sofridas e internamentos, o quantum doloris, o período de doença, a situação anterior e posterior em termos de afirmação social, apresentação e auto-estima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspetivas para o futuro, não pode ser entendida, como pretende a Demandada, como desproporcional, injusta e inadequada, porquanto a mesma foi fixada tendo em conta os parâmetros supra referidos e com base na prova existente nos autos e produzida em audiência.

G. De salientar ainda a este propósito que a Jurisprudência acentua cada vez mais a ideia de que tal indemnização deve ser significativa e não meramente simbólica ou miserabilista, na medida em que visa compensar o lesado de modo a contrabalançar o mal sofrido, os danos suportados e a suportar.

H. Insurge-se ainda a Recorrente quanto ao montante fixado a título de indemnização por danos patrimoniais por entender que a mesma foi fixada tendo por base a pensão provisória e o Demandante poderá realizar outras atividades e ter um vencimento superior do que o que tinha à data do acidente.

I. Importa, antes de mais, referir que resultou provado que o Demandante desde o acidente até à data do julgamento apenas conseguiu trabalhar 3 meses, pese embora o mesmo tenho dito que tinha perspetiva de voltar a trabalhar nas plataformas esse trabalho é sazonal, sendo apenas 3 a 4 meses por ano e no entanto tratava-se apenas de uma perspetiva.

J. No entanto, cumpre salientar que, contrariamente ao que defende a Recorrente, a perda da capacidade de ganho deverá ser contemplada na indemnização, mesmo nos casos em que o lesado não exerce qualquer atividade profissional remunerada, pelo que, o Demandante deverá ser indemnizado a este título, na exata medida em que foi fixado pelo Tribunal a quo.

L. O entendimento perfilhado na douta sentença e que vem sendo mantido pelos nossos Tribunais superiores é o de considerar que o lesado em consequência de um acidente, que fica a padecer de determinada incapacidade parcial permanente tem direito a indemnização por danos futuros, desde que os mesmos sejam previsíveis e serão previsíveis os danos certos ou suficientemente prováveis, como é o caso da perda da capacidade produtiva por parte de quem trabalha ou o maior esforço que, devido à lesão e às suas sequelas, terá que passar a desenvolver para obter os mesmos resultados.

M. E que este dano é indemnizável quer acarrete para o lesado uma diminuição efetiva do seu ganho, quer implique um esforço acrescido para manter os mesmos proventos.

N. Pretende ainda a Recorrente que os juros de mora sobre os montantes indemnizatórios sejam contabilizados apenas após a prolação da sentença, salvo o devido respeito, entendemos que também neste ponto bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar ao pagamento de juros desde a data da notificação para contestar, uma vez que foi nesta data que foi interpelada para efetuar o pagamento da indemnização pelos danos sofridos.

O. Pelo exposto, entendemos que os montantes indemnizatórios se mostram justos, proporcionais, adequados e razoáveis, pelo que, devem ser mantidos nos precisos termos em que foram fixados.

P. Impõe-se, pois a total improcedência do presente recurso e a confirmação da douta sentença recorrida.

Termos em que deverão V. Exas. manter na íntegra a douta sentença recorrida e julgar totalmente improcedente, por não provado, o presente recurso, com o que farão, como é timbre deste Venerando Tribunal, a já costumada JUSTIÇA!”.

4 - Neste Tribunal o Exmo. Sr. Procurador Geral-Adjunto não emitiu parecer, arguindo a sua falta de interesse em agir.

5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, do C.P.P.

6 - Foram colhidos os vistos legais.

7 - Cumpre decidir

II - Fundamentação

2.1 - O teor da decisão, na parte que importa, é o seguinte:

“Da discussão da matéria de facto, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 21.08.2014, cerca das 08:30, o arguido AAFS conduzia o veículo ligeiro de passageiros da marca …, modelo…, de cor …e com a matrícula …, na Estrada Nacional…, na zona da …, em …, no sentido …/….

2. Imediatamente à sua frente, no mesmo sentido de trânsito, circulava PVGV, conduzindo o seu veículo automóvel.

3. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, FJMAM conduzia o motociclo com a matrícula … na hemi-faixa de rodagem contrária, ou seja, no sentido …/… no seu trajecto até ao local de trabalho.

4. Após efectuar uma ultrapassagem entre veículos, FJMAM regressou ao eixo da sua hemi-faixa de rodagem, no sentido …/….

5. O arguido AS após realizar uma curva larga e com boa visibilidade, iniciou a ultrapassagem do veículo que circulava à sua frente, ocupando, para o efeito, a hemi-faixa esquerda, atento o seu sentido de marcha, destinada à circulação de veículos no sentido oposto, ou seja, …/….

6. Vindo a colidir, violentamente, com o motociclo conduzido por FM.

7. O embate entre os dois veículos ocorreu na metade esquerda da faixa de rodagem, considerando o sentido de trânsito …/…, aproximadamente ao Km ….

8. Na tentativa de evitar o embate, FM ainda travou e desviou-se para a sua direita.

9. Na sequência de tal embate o motociclo caiu ao chão e F foi projectado para a direita, atento o seu sentido de marcha.

10. A referida estrada, naquele local, é composta por uma recta, de dois sentidos de trânsito contrários, sinalizada com linha longitudinal descontínua e com boa visibilidade.

11. Existe no local uma sinalização vertical de proibição de exceder a velocidade máxima de 70km/h.

12. Após o embate, o arguido prosseguiu a sua marcha, aproximadamente por 100 metros, só aí realizando uma manobra de inversão de marcha e estacionou o veículo de matrícula … junto do ofendido, que colocara a perna esquerda em cima do raile de protecção no sentido da sua faixa de rodagem, a fim de evitar o sangramento do pé esquerdo, que fora decepado com o descrito abalroamento.

13. Como consequência do acidente, FXMAM sofreu as seguintes lesões:

 Membro superior esquerdo: cicatriz hipertrófica na palma da mão esquerda, ao nível da articulação do punho, com 6 cm de diâmetro;

 Membro inferior direito: cicatriz de ferida contusa na face externa do joelho, com 2 cm de diâmetro;

 Membro inferior esquerdo: cicatriz de ferida contusa na face externa da coxa, com 6 cm de diâmetro. Cicatriz de ferida contusa na face externa do joelho, com 2cm de diâmetro. Cicatriz de ferida contusa na face externa, com 18 por 10 cm de área. Amputação do pé (Syme). Pele do coto com pele fina apergaminhada e facilmente ulcerável.

14. Lesões estas que lhe determinaram, directa e necessariamente, um período de 548 dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional, sendo a data da consolidação das lesões fixável em 19.02.2016.

15. O ofendido apresenta ainda como sequelas anátomo-funcionais relacionáveis com o evento, designadamente a amputação do pé esquerdo, que afectam de maneira grave a possibilidade de utilizar o corpo, não tendo resultado, em concreto, perigo para a sua vida.

16. Padece, ainda, de dificuldade na marcha com necessidade de ortótese, dificuldade e mesmo impossibilidade de realizar tarefas que impliquem posicionamento ortostático prolongado e deslocações rápidas, impossibilidade de corrida e ortostatismo prolongado, dor residual da face palmar da mão esquerda e dificuldade na interacção social.

17. Ao agir da forma descrita, conduzindo pela hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário e executando a manobra descrita em 5., o arguido AAFS violou elementares deveres objectivos de cuidado exigíveis da condução de veículos automóveis, designadamente os de efectivação de ultrapassagem apenas em condições de segurança, nomeadamente certificando-se que poderia iniciar e concluir a manobra sem criar perigo para aqueles que transitassem no mesmo e em sentido contrário ao seu.

18. Revelou, assim, o arguido, uma conduta temerária e desatenta, sem observância das regras estabelecidas no Código da Estrada e com falta de cuidado que o dever geral de previdência aconselha e que podia e devia ter para evitar um resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto.

*

Do pedido de indemnização civil

19. Na medida em que o demandante conduzia o seu ciclomotor no trajecto até ao local de trabalho, os danos sofridos ficaram cobertos, igualmente, pela …. – ….., correndo termos sob o Proc…….., na Instância Central de Trabalho de Lisboa o processo de acidente de trabalho, actualmente com recurso pendente.

20. No âmbito deste seguro de acidentes de trabalho estão a ser liquidados os danos resultantes da assistência médica e medicamentosa prestada ao demandante FM, bem como lhe foi fixada provisoriamente uma indemnização.

21. Na sequência do acidente o demandante foi transportado de urgência para o C.H.U.Algarve, onde lhe foi prestada assistência e onde foi submetido a intervenção cirúrgica para regularização do coto e amputação do pé esquerdo e limpeza cirúrgica das feridas na mão e membros inferiores, com internamento subsequente até 22.10.2014.

22. Ficou com as lesões descritas em 13. a 15. supra.

23. Sofreu um “quantum doloris” correspondente, em termos quantitativos ao grau 5, numa escala de 7 e um dano estético permanente correspondente, em termos quantitativos ao grau 5, numa escala de 7.

24. As lesões sofridas determinaram-lhe um défice funcional permanente fixável em 27 pontos, uma repercussão permanente na actividade profissional impeditiva do exercício da actividade profissional habitual e uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 4, numa escala de 7.

25. Terá de beneficiar, de forma permanente, de ajudas técnicas, como adaptação do domicílio, local de trabalho, veículo e revisões periódicas de ortótese.

26. Iniciou, logo após a saída do hospital, tratamentos de medicina física e reabilitação e um longo e doloroso processo de recuperação.

27. Teve alta médica a 19.02.2016.

28. O arguido ficou com uma incapacidade permanente absoluta para o exercício da sua actividade profissional habitual de marítimo-turística.

29. Está-lhe igualmente vedado o exercício de qualquer actividade que lhe exija esforços, marcha continuada ou permanência de pé por períodos prolongados.

30. Ainda hoje sofre de fortes dores e desconforto, nomeadamente aquando das mudanças de temperatura.

31. À data do acidente, o demandante auferia um vencimento mensal líquido de aproximadamente €750,00, de que se viu privado.

32. Após o acidente e face às limitações físicas de que padece só conseguiu encontrar trabalho pelo período de 3 meses.

33. Desde a data da alta clínica está a receber da ….. – …… uma pensão provisória no valor de € 385,77.

34. O que equivale a um decréscimo de rendimentos de € 364,23.

34-A. (Aditado) Porém, no âmbito dos autos de Acidente de Trabalho, Proc. N.º …, por decisão transitada em julgado, em 30-07-2019 e notificada aos intervenientes processuais, foi a ré MP, MS, C.R.L. condenada a pagar ao sinistrado, FXM:

- A PAV no valor de € 7.523,85, (Sete Mil, Quinhentos e Vinte e Três Euros e Oitenta e Cinco Cêntimos), actualizável e devida desde 19/2/2016, acrescida de juros de mora à taxa legal, sobre aquela quantia, vencidos e vincendos, desde aquela data até integral pagamento;

- um subsídio por elevada incapacidade no montante de € 4.944,34 (Quatro Mil, Novecentos e Quarenta e Quatro Euros e Trinta e Quatro Cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, sobre aquela quantia, vencidos e vincendos, desde 19/2/2016, até integral pagamento;

- o montante de € 330;38, a título de diferenças de indemnização por incapacidades temporárias, acrescido de juros legais desde a data do respectivo vencimento e da quantia de € 94,60 a título de despesas de transportes.

35. O demandante nasceu em …. e à data dos factos tinha 55 anos.

36. Não padecia de qualquer deformidade física ou psíquica, gozava de perfeita saúde e era uma pessoa bastante activa.

37. Era uma pessoa feliz, extrovertida e com alegria de viver.

38. Vivia rodeado de amigos, com os quais convivia com bastante regularidade e em cuja companhia andava de bicicleta e fazia vela, ténis e ski.

39. Andava diariamente de mota.

40. Em resultado do acidente que o vitimou o demandante nunca mais poderá andar de mota, de bicicleta, de vela ou fazer ski ou ténis, o que tudo lhe causa um desgosto profundo.

41. Não pode fazer esforços ou passar períodos prolongados de pé.

42. Está limitado na sua locomoção.

43. Após os factos, o demandante ficou a padecer de um estado depressivo, associado a grande tristeza, ansiedade e revolta, por se ver aos 55 anos de idade com graves limitações físicas e dores intensas.

44. Afastou-se dos amigos, por não os poder acompanhar.

45. A sua vida e rotinas alteraram-se completamente, as sequelas resultantes do acidente de que foi vítima condicionam-no fisicamente, perdendo qualidade de vida.

46. Apesar de tentar ter uma perspectiva positiva, é hoje uma pessoa mais só, assolado pela tristeza, sentindo-se diminuído perante os outros face à sua incapacidade, o que o leva a isolar-se.

47. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ….., em vigor no circunstancialismo temporal referido em 1., a responsabilidade civil emergente de acidente de viação relativa ao veículo automóvel com a matrícula … havia sido transferida para a companhia de seguros SL, S.A..

48. A companhia SL, S.A. foi incorporada, por fusão, na actualmente denominada SU, S.A..

*

Provou-se, ainda, relativamente à situação pessoal do arguido, com relevo para a determinação da sanção:

49. Não regista antecedentes criminais.

*

I. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.

*

II. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:

O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e segundo juízos de normalidade, beneficiando da imediação, dispensando-se a descrição pormenorizada dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra devidamente registada em suporte magnético.

Relativamente à dinâmica do acidente, constante dos factos dados como provados em 1. a 9., e dada a ausência do arguido, atendeu o Tribunal às declarações prestadas pelo assistente FM, bem como ao depoimento da testemunha PV, que revelaram conhecimento directo e pessoal dos mesmos, sendo bastante convincentes e logrando convencer o Tribunal relativamente à versão apresentada.

Apesar das normais faltas de memória face a um evento absolutamente traumático, o assistente reportou-se ao dia, hora e local em que os factos tiveram lugar, ao facto de a EN 125 ser uma via bastante movimentada, nomeadamente àquela hora do dia, ao trajecto que realizava para o trabalho, ao veículo que conduzia e à velocidade que normalmente lhe imprimia.

Confirmando ter ultrapassado alguns veículos em momento anterior, assegurou que circulava na sua hemi-faixa de rodagem aquando do embate, que não conseguiu evitar, apesar de ter tentado desviar-se, referindo que tudo se passou em escassos segundos.

Esclareceu que o veículo conduzido pelo aqui arguido embateu com a parte lateral esquerda na parte lateral esquerda do seu motociclo, altura em que caiu no solo, em plena faixa de rodagem, no sentido de marcha onde circulava. Referiu que se arrastou para perto do rail por forma a colocar a perna numa posição mais elevada, sendo o sangramento abundante, já que o pé foi decepado aquando do embate.

Evidenciou não ter maior recordação dos factos, nomeadamente se estava presente aquando da chegada da GNR, tendo sido assistido pelo INEM no local – depois de uma enfermeira que passou no local lhe ter prestado assistência – e operado nessa mesma data no C.H.U.Algarve.

Relativamente às lesões sofridas, descreveu-as, situando-as ao nível da perna e pulso/mão esquerda.

Adiantou ter ficado internado por um período de 2 meses e 1 dia, apenas tendo alta passado aproximadamente um ano e meio. Durante a baixa frequentou consultas de fisioterapia e hidroterapia, tendo colocado várias próteses, período este em que sofreu bastantes dores, o que ainda hoje sente com as mudanças de temperatura, tendo sido bastante difícil a adaptação à prótese.

Questionado sobre as alterações e as proporções que o acidente assumiu na sua vida, afirmou que tudo mudou, fazendo alusão às rotinas que deixou de poder realizar e às actividades físicas e de lazer que se viu forçado a abandonar – como a prática de ténis, windsurf, ski, squash, vela, corrida e passeios de bicicleta e de mota, que eram recorrentes, deixando de poder fazer quaisquer esforços no dia-a-dia –, aos convívios que deixou de frequentar – refugiando-se em casa e deixando de comparecer a almoços e jantares de amigos – às condicionantes que agora sofre com a utilização de uma prótese – não conseguindo permanecer de pé por períodos prolongados, caminhando devagar e apenas em curtos trajectos, durante muito tempo com o auxilio de canadianas, possuindo um carro adaptado, usando apenas calçado específico e demorando muito tempo a realizar qualquer das tarefas diárias, nomeadamente a sua higiene – e às limitações no exercício da sua actividade profissional – vendo-se impossibilitado de manter a actividade marítimo-turística, com passeios turísticos de barco, visitas a grutas e golfinhos, que com dedicação realizava e apenas tendo conseguido encontrar trabalho por três meses ao longo destes anos.

Emocionalmente demonstrou ter ficado bastante perturbado e desgastado com o sucedido – embora tenha tentado em parte relativiza-lo – considerando que tudo se tratou de uma grande injustiça, que levou bastante tempo a interiorizar. Ainda hoje referiu não ter ultrapassado o que se passou, pensando bastante no assunto e nas alterações que implicou na sus vida.

PV, militar do Destacamento de Trânsito de … e única testemunha presencial dos factos, num depoimento seguríssimo, isento, objectivo e bastante assertivo, descreveu pormenorizadamente o acidente a que assistiu no trajecto até ao local de trabalho, na EN …, no sentido …-…, a seguir ao nó da ….

Fez referência às condições da via, que afirmou tratar-se de um local bastante movimentado e sem grande margem para manobras de ultrapassagem de veículos automóveis àquela hora do dia e que configurava, no seu sentido de marcha, uma recta com boa visibilidade e traço descontínuo, antecedida por uma curva larga à esquerda, também com excelente visibilidade. Revelou ter perfeito conhecimento do local já que é militar do trânsito e realiza aquele percurso diariamente.

Afirmou circular a cerca de 60kms por hora, imediatamente à frente do … conduzido pelo arguido, que o seguia, em fila, desde ….

Em determinado momento apercebe-se que o motociclo conduzido pelo assistente, após ultrapassar dois veículos e retomar a sua faixa de rodagem, ao centro, começa a baloiçar, tentando travar e desviar-se. Estranhando a atitude do motociclo, refere ter olhado para o lado esquerdo, pelo vidro, vendo então o …., mesmo ao seu lado, a ultrapassar o seu veículo e a ocupar a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário. O que afirmou ter sido uma conduta temerária face ao fluxo de trânsito que se fazia sentir e em manifesto desrespeito pelas regras estradais.

De forma categórica disse que o embate se processou ao seu lado, na hemi-faixa de rodagem onde circulava o motociclo, invadida pelo veículo do arguido, provocando a imediata queda do motociclo e do seu condutor.

Pela forma como o acidente se processou, assegurou que nada estava ao alcance do motociclo para evitar o acidente.

Quanto à postura do arguido, mencionou que não parou, prosseguindo a marcha cerca de 100metros, apenas aí decidindo fazer inversão. Em conversa com este ficou surpreendido com a sua postura, já que “ignorou completamente o sucedido” e ainda alegou ser o ofendido o culpado no acidente.

Não falou com o assistente que, entretanto, já estava rodeado por pessoas que, entretanto, pararam e que o assistiam.

Instado, esclareceu não existir no local qualquer mancha de óleo.

Ainda no local contactou de imediato os colegas do Destacamento que sabia encontrarem-se de serviço e que prontamente acorreram ao local. Aguardou a sua chegada, dizendo-lhes que tinha assistido ao sinistro, mas abandonou logo em seguida o local sem lhes reportar a dinâmica do acidente, já que estava com pressa para entrar ao serviço.

SG, militar da GNR, à data dos factos a exercer funções no Sub-Destacamento de Trânsito de …, afirmou ter sido chamado a uma ocorrência na EN …pelo colega PV, que acabara de assistir a um acidente. Aí chegados, aproximadamente ao km … cruzou-se apenas com o colega, que os aguardava para prosseguir marcha para o trabalho, não lhe tendo recolhido depoimento, o que apenas se verificou mais tarde, nesse mesmo dia, já no quartel.

No local, mencionou que o ofendido, que se encontrava em estado de choque e ainda não tinha caído na realidade, não estando em grandes condições para ser inquirido, estava a ser assistido por uma enfermeira num grande ferimento no pé, junto ao rail de protecção.

Transmitiu-lhe apenas que não tinha grande recordação dos factos, e que a ultima coisa que se lembrava era de ultrapassar dois veículos momentos antes.

O motociclo estava caído na faixa de rodagem e havia detritos espalhados por toda a via, nos dois sentidos de trânsito.

No que concerne ao croqui, por si elaborado e que reconheceu “não estar grande coisa”, refere que teve por base as declarações unicamente prestadas pelo arguido, que indicou o local provável de embate.

No local, em face dos vestígios encontrados, refere não ter sido possível apurar o local de embate, não tendo qualquer recordação da existência de uma mancha de óleo na via e que pudesse indicar o local aproximado da queda do motociclo. Aliás, mencionou não ter feito qualquer referência a uma qualquer mancha de óleo no croqui elaborado, sendo que a bola/estrela que aí fez constar é o desenho que utilizam para indicar o ponto provável de embate.

Quanto ao estado da via, na zona da …, mencionou estar a necessitar de obras de requalificação – entretanto realizadas –, estando o pavimento em mau estado de conservação. Confirmou tratar-se de uma zona da EN … bastante movimentada.

No que respeita às lesões sofridas pelo assistente e às consequências que advieram para o mesmo em resultado do acidente de que foi vitima, e que ficaram plasmadas nos arts. 13. a 16., 28. a 30. e 36. a 46. supra, depuseram IM, filha de FM, BS, JC, RN, MM e MV, todos seus amigos e com quem contactava com regularidade e que igualmente o acompanharam no pós-operatório. Todos atestaram, de forma que considerámos isenta e espontânea, o estado psicológico depressivo e a tristeza profunda do assistente após o acidente e durante a sua recuperação, bastante prolongada no tempo, as dificuldades sentidas na adaptação à prótese, as rotinas que alterou, as actividades que deixou de conseguir realizar, a circunstância de se ter deixado de conseguir trabalhar e de se ter tornado uma pessoa mais reservada e que passou a evitar convívios com amigos, bem como as incontornáveis limitações em todas as áreas da sua vida que ficou a padecer, por contraposição à pessoa alegre, disponível, extrovertida, bastante activa e trabalhadora que era antes do sinistro, o que salientaram.

Os depoimentos prestados, consonantes entre si e bastante elucidativos, corroboraram as declarações prestadas pelo assistente em audiência e ainda realçaram outros aspectos que marcaram a total mudança da sua vida e a sua recuperação, em todos os aspectos e que afectaram significativa e negativamente a sua personalidade.

Quanto à condição física do arguido e às sequelas com que ficou a padecer, atendeu, ainda, o Tribunal, ao teor dos seguintes documentos:

 Relatórios Periciais requeridos e elaborados no âmbito destes autos que constituem fls. 18 a 19, 56 a 58, 217, 219;

De salientar que não foram atendidos os relatórios periciais elaborados no âmbito do processo de acidente de trabalho ou pela SU, porquanto não foram realizados no âmbito dos presentes autos e ou se reportam a uma vertente diversa dos danos – como sejam aquelas que têm influência na actividade laboral do demandante – ou foram realizados por uma das partes envolvidas, ou que não nos garante a necessária imparcialidade.

 Elementos clínicos constantes de fls. 28 a 30, 340 a 343 e 345 a 347;

 Cópia do boletim de alta de fls. 136 a 137;

 Relatórios médicos que constituem fls. 128, 134 e 158;

 Atestado médico de fls. 344;

Por ultimo, CV, perito de seguros, não tendo presenciado os factos, reportou- se apenas às averiguações realizadas e às conclusões alcançadas no seu relatório pericial, elaborado a pedido da demandada SU, no sentido de não ter apurado, de forma concludente, a dinâmica do acidente.

São evidentemente conclusões subjectivas, as que alcançou, contratado que foi pela aqui demandada e que, evidentemente, em nada acrescentam ao Tribunal relativamente à forma como se processou o sinistro.

Fez menção ao troço da EN … em que se verificou o acidente e o que pôde constatar relativamente às características da via. Referiu, ainda, o que lhe foi transmitido por cada um dos intervenientes no decurso das averiguações e pela única testemunha ocular e aos danos que verificou em cada um dos veículos envolvidos no sinistro.

Quanto ao teor do auto de notícia, admitiu ter sido apenas elaborado com base nas declarações do arguido.

A prova do facto mencionado em 47. resulta do teor da apólice de seguro junta a fls. 460 a 469, válida à data do acidente, que atesta ter o arguido AS transferido a responsabilidade civil decorrente da circulação do seu veículo automóvel para a SL, actualmente incorporada na SU, LDA.

*

O Tribunal tomou, igualmente, em consideração, o teor do Auto de Denúncia, que constitui fls. 3 a 5, cópia do Auto de Participação de Acidente de Viação que constitui fls. 11 a 14 e respectiva reclamação de fls. 15, relatório fotográfico de fls. 74 a 84, cópia da carta de condução do arguido, de fls. 185, recibos de vencimento de fls. 354 a 356, assento de nascimento que integra fls. 360 e cópia de fotografias que constituem fls. 409 a 414 e 416 a 430.

*

A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do certificado do registo criminal constante de fls. 907.

*

No que concerne à demais factualidade vertida para a contestação ao pedido de indemnização civil, não foram a mesma considerada provada, quer por absoluta ausência de prova, como, precisamente, pela prova de factos contrários.”.

2.2 - O registo magnetofónico da prova permite ao tribunal de recurso, para além de sindicar a matéria de facto (desde que o recorrente o pretenda e dê cumprimento ao disposto no art. 412º ns. 3 e 4, do C.P.P.) apreciar as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º, do mencionado compêndio adjectivo) e fazer a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas. E, dentro destes parâmetros, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.

São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.

Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.

Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas, definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objecto do recurso.

Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.

As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão.

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, a recorrente alega, no caso em análise, como fundamento do mesmo:

- A impugnação de matéria de facto, devendo ser alterada a redacção do facto provado n.º 32, bem como devem ser aditados três novos factos (n.ºs 32A, 32B e 33C) relativos à situação económica profissional do Demandante no período pós-acidente;

- Erro notório na apreciação da prova, devendo a redacção dos factos provados n.ºs 24, 28 e 32 ser alterada e aditados novos factos ao elenco de factos provados (n.ºs 32A, 32B e 32C);

- A indemnização fixada, a título de danos não patrimoniais (120.000,00€) é um montante manifestamente injusto, desequilibrado, desproporcional, irrazoável e inadequado;

- A indemnização fixada, a título de danos patrimoniais (140.000,00€), não se justifica. Porém, se vier a ser arbitrada qualquer indemnização ao demandante a título de perda da capacidade de ganho, ao montante da mesma, sempre deverão ser deduzidos 20%, atenta a antecipação do pagamento da referida indemnização;

- A condenação no pagamento de juros de mora sobre os valores das indemnizações fixadas (segundo juízos de equidade) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, contabilizados à taxa legal desde a sua notificação para contestar o pedido de indemnização deduzido, foi fixada sem atender ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) n.º 4/2002, desde a prolação da sentença;

- A revogação do segmento decisório referente ao decaimento fixado em 1.ª Instância, devendo ser substituído por decisão de acordo com o julgado em 2.ª Instância.

2.4 - Das questões do recurso

2.4.1 - Da pretensão de impugnação da matéria de facto

Nos termos do disposto no artigo 428º, do C.P.P., o Tribunal da Relação, em fase de recurso, pode apreciar da matéria de facto e de direito, nos termos retro apontados.

A recorrente/demandada alega que o Tribunal recorrido julgou incorrectamente factos que fez consignar como "Provados", entendendo que deve ser alterada a redacção do facto provado n.º 32, bem como devem ser aditados três novos factos (n.ºs 32A, 32B e 33C) relativos à situação económica-profissional do Demandante no período pós-acidente.

Portanto, no que respeita ao objecto de recurso sobre a questão de facto, a apreciação da prova, baseada nas regras da experiência comum e na livre convicção feita pelo tribunal de 1ª instância, pode ser censurada por este tribunal, pois existe documentação das declarações prestadas no decurso da audiência de discussão e julgamento.

Contudo, é necessário verificar se a recorrente impugna a matéria de facto e se, fazendo-o, dão cumprimento do disposto no art. 412º n.ºs. 3 e 4, do C.P.P..

O n.º 3, deste preceito legal - 412º, do C.P.P. estabelece que, quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim as provas que impõe decisão diversa da recorrida e as que devem ser renovadas.

O n.º 4, refere que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c), do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2, do ar. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.”.

A lei é exigente relativamente a essa impugnação.

O julgamento efectivo foi realizado no Tribunal da 1ª instância.

Neste Tribunal de recurso o que releva é a apreciação da regularidade do julgamento e não a realização de um efectivo e verdadeiro segundo julgamento. Tanto assim é que a própria lei, no art. 430º, do C.P.P., só permite a renovação da prova quando se verifiquem os vícios do art. 410º n.º 2, do referido compêndio adjectivo, portanto, quando do teor do texto da decisão judicial decorra a verificação de qualquer dos vícios aí apontados, v.g., insuficiência, contradição ou erro.

O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.

E tal exigência é dada, como é referido nos Acs. desta Relação Ns. 2542/01 e 2870/02, pelas seguintes imposições:

Especificação, e não mera referência, dos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, sendo necessário precisar com clareza o ponto que se tem por erroneamente apurado;

especificação das provas, não sendo suficiente a menção genérica de toda a prova e dos depoimentos das testemunhas, etc.;

indicação concreta das provas que impõem decisão diversa;

especificação dos suportes técnicos, da prova documentada, com vista a facilitar a sua localização.

No nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui" salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.". A este propósito salienta o Sr. Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: " Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e, portanto, arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo..."

E adianta, Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, " Meios de Prova", Livraria Almedina, pág. 227/228: "Por outro lado, livre convicção ou apreciação não poderá nunca se confundir com apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A mais importante inovação introduzida pelo Código nesta matéria consiste, precisamente, na consagração de um sistema que obriga a uma correcta fundamentação das decisões que conheçam a final do processo de modo a permitir-se um controlo efectivo da sua motivação".

Acresce que a recorrente/demandada não impugna, na verdadeira asserção da palavra, a matéria de facto, limitando-se a criticar a forma como foi valorada a prova e a percepcioná-la de forma diversa.

O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.

Sobre esta questão, o Prof. Marques da Silva, In “Curso de Direito Processual Penal, vol. II, pág. 126 e 127 refere:" O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente de imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente aplicáveis (v.g. a credibilidade eu se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.".

Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág.322, refere "... livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica... ".

Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e segs... a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração "racional e critica, de acordo com as regras, comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão...; com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim.

Como já referido, a convicção do julgado há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre "uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ".

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes planos.

Em primeiro lugar trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).

Seguidamente, na valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.

Ora, reafirmamos que aos julgadores, no tribunal de recurso, está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, contrariamente ao que ocorre no tribunal da 1ª instância que contacta com uma multiplicidade de factores, relativos a percepção da espontaneidade dos depoimentos da verosimilhança, da seriedade, das hesitações, da linguagem, do tom de voz, do comportamento, das reacções, dos trejeitos, das expressões e, até, dos olhares.

Assim, condicionados pela impossibilidade da captação desses elementos directos, resultantes da imediação da prova, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374º n.º 2, do aludido compêndio adjectivo.

Acresce que, só a especificação de todos os elementos probatórios, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.

E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que o tendo sido ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida. Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.

O problema posto pelo recorrente reconduz-se ao da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o art.º 127°, do CPP.

Reafirma-se que a recorrente ao pretender impugnar a matéria de facto, relativa à situação económica e profissional do Demandante no período pós-acidente, essencialmente, criticou a forma como foi valorada a prova e a percepcioná-la de forma diversa.

O que a lei exige é que se indiquem provas que imponham decisão diversa e não que permitam outra decisão.

E, tal como se refere no Ac. desta Relação de 29/03/2000 – Rec. N.º 180/2000: “Dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise dos textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim, através de contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal “a quo”.

Figueiredo Dias “Direito Processual Penal”, vol. I, 1974, ed.ª de 1974, pág. 204, afirma que existe sempre um determinado cunho pessoal, originando uma convicção pessoal, pois ela é condiciona não só pela actividade puramente cognitiva, mas também por factores inexplicáveis, racionalmente.

Esta doutrina, com a qual concordamos, leva a concluir que os julgadores, no tribunal de recurso, a quem está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, perante duas ou mais versões dos factos, só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.° 374º n.º 2, do citado compêndio adjectivo.

Mesmo estando a prova documentada, não se pode deixar de considerar que os mencionados princípios de imediação e da oralidade facultam e permitem ao julgador percepcionar e apreciar, de modo distinto, de quem, como o tribunal de recurso, apenas contacta com a transcrição dos depoimentos gravados, ou, como acontece no caso em análise, com hipótese de audição do registo magnetofónico.

Só a especificação de todos eles, os indicados pelo tribunal e os que se entende não foram tidos em conta, pode impor decisão diversa.

E as provas que impõem essa diversa decisão são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que o tendo sido ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida. Se a tais provas faltam esses pressupostos, não conduzem a outra decisão.

Outra observação é a da relevância dos pontos da matéria de facto para a decisão. É inócuo impugnar este ou aquele pormenor factual quando eles, mesmo que se verifique um menor rigor de valoração, não alterem, na sua essência, a estruturada e complexa matéria fáctica.

Analisando a sentença recorrida, em pormenor, especialmente no que respeita à valoração da prova que conduziu à responsabilidade civil, por parte da demandada/recorrente, o tribunal a quo explica o motivo que o levou a essa valoração da prova e ao convencimento que fez da globalidade dos elementos probatórios produzidos.

E, procedendo à audição e análise do registo da prova produzida, relativa, essencialmente, às consequências do acidente para o Demandante e à sua situação económica e profissional, no período pós-acidente, verifica-se que é certo, justificado e fundamentado o que consta do ponto “IV- Motivação da decisão de Facto”: “Questionado sobre as alterações e as proporções que o acidente assumiu na sua vida, afirmou que tudo mudou, fazendo alusão às rotinas que deixou de poder realizar e às actividades físicas e de lazer que se viu forçado a abandonar – como a prática de ténis, windsurf, ski, squash, vela, corrida e passeios de bicicleta e de mota, que eram recorrentes, deixando de poder fazer quaisquer esforços no dia-a-dia –, aos convívios que deixou de frequentar – refugiando-se em casa e deixando de comparecer a almoços e jantares de amigos - às condicionantes que agora sofre com a utilização de uma prótese – não conseguindo permanecer de pé por períodos prolongados, caminhando devagar e apenas em curtos trajectos, durante muito tempo com o auxilio de canadianas, possuindo um carro adaptado, usando apenas calçado específico e demorando muito tempo a realizar qualquer das tarefas diárias, nomeadamente a sua higiene - e às limitações no exercício da sua actividade profissional – vendo-se impossibilitado de manter a actividade marítimo-turística, com passeios turísticos de barco, visitas a grutas e golfinhos, que com dedicação realizava e apenas tendo conseguido encontrar trabalho por três meses ao longo destes anos.”

É importante referir que se deu como provado que o Demandante desde o acidente até à data do julgamento apenas conseguiu, efectivamente, trabalhar 3 meses, atentas as suas declarações. Sendo certo que o mesmo afirmou, também, mas apenas e tão só, que tinha a perspectiva de voltar a trabalhar no sector das plataformas electrónicas.

Tinha essa perspectiva, uma mera expectativa ou pretensão, não uma certeza que permita dar como certa ou verificada, pois era uma simples esperança.

As razões aduzidas naquela motivação são as pertinentes e adequadas no caso, conformes com os ditames da lógica e da experiência comum.

Acresce que, a factualidade referente à condição física do demandante e às sequelas com que ficou a padecer, “atendeu, ainda, o Tribunal, ao teor dos seguintes documentos:

 Relatórios Periciais requeridos e elaborados no âmbito destes autos que constituem fls. 18 a 19, 56 a 58, 217, 219;

De salientar que não foram atendidos os relatórios periciais elaborados no âmbito do processo de acidente de trabalho ou pela SU, porquanto não foram realizados no âmbito dos presentes autos e ou se reportam a uma vertente diversa dos danos – como sejam aquelas que têm influência na actividade laboral do demandante – ou foram realizados por uma das partes envolvidas, ou que não nos garante a necessária imparcialidade.

 Elementos clínicos constantes de fls. 28 a 30, 340 a 343 e 345 a 347;

 Cópia do boletim de alta de fls. 136 a 137;

 Relatórios médicos que constituem fls. 128, 134 e 158;

 Atestado médico de fls. 344;”

Portanto, no caso “sub judice” a conjugação e análise crítica de toda a prova aponta no sentido vertido da sentença recorrida.

Não nos podemos esquecer que ao julgador não é permitido formular um juízo de "non liquet" sobre a prova produzida e que só a ele é exigida objectividade, podendo ser, e sendo-o muitas vezes, diferente a perspectiva com que a prova é entendida e avaliada, o que origina, a final, que se possam obter resultados díspares ou pelo menos não coincidentes.

Portanto, face à mencionada fundamentação da convicção feita pelo tribunal, colocar em causa a matéria de facto por se entende que há errada valoração do conteúdo das declarações do demandante, em pormenores específicos, e demarcar - pela sua própria convicção e dedução, distinta da do tribunal - pressuposições, hipóteses, ilações e conclusões que não serviram de base à fundamentação da convicção do tribunal, ou concorreram para ela, em detrimento de afirmações que foram relevantes para a convicção, por parte do tribunal, da matéria fáctica, não pode ser considerado como impugnação da matéria de facto.

Não vislumbramos, pois, que o tribunal “a quo” tenha errado e procedido a um diagnóstico incorrecto da situação profissional do demandante pós-acidente

Assim, não se modifica tal matéria de facto, nos termos preceituados no art. 431º n.º 1 al. b), do C.P.P., mantendo-se, na íntegra, nomeadamente, os pontos nºs 24, 28, e 32, da matéria de facto dada como provada, sem qualquer dos aditamentos apontados, por desnecessários, atenta a sua suficiência para uma justa decisão de direito.

Improcede, pois, esta pretensão da recorrente.

Porém, é determinante e necessário, para uma decisão legítima e justa, atender, nomeadamente, para efeito de fixação do montante indemnizatório referente aos danos patrimoniais - lucros cessantes e perda da capacidade de ganho - ao que já foi arbitrado, no âmbito dos autos de Acidente de Trabalho, Proc. N.º …, por decisão transitada em julgado, em 30-07-2019, e notificada aos intervenientes processuais, entre eles, a recorrente e o recorrido, conforme consta de certidão junta, aditando-se, à matéria de facto provada, o n.º 34-A, devendo constar do mesmo que naquele processo, a ré MP, MS, C.R.L. foi condenada a pagar ao sinistrado, FXM:

- A PAV no valor de € 7.523,85, (Sete Mil, Quinhentos e Vinte e Três Euros e Oitenta e Cinco Cêntimos), actualizável e devida desde 19/2/2016, acrescida de juros de mora à taxa legal, sobre aquela quantia, vencidos e vincendos, desde aquela data até integral pagamento;

- um subsídio por elevada incapacidade no montante de € 4.944,34 (Quatro Mil, Novecentos e Quarenta e Quatro Euros e Trinta e Quatro Cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, sobre aquela quantia, vencidos e vincendos, desde 19/2/2016, até integral pagamento;

- o montante de € 330;38, a título de diferenças de indemnização por incapacidades temporárias, acrescido de juros legais desde a data do respectivo vencimento e da quantia de € 94,60 a título de despesas de transportes.

2.4.2 - Erro notório na apreciação da prova

O art. 410º n.º 2 al. c) do CPP permite que o recurso tenha por fundamento o erro notório na apreciação da prova, desde que o vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal III/341 - defende que erro na apreciação da prova é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.

Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques - Recursos em Processo Penal/ 4ª edição/74, defendem que o erro na apreciação da prova consiste na falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se deu como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

Os mesmos autores agora no seu Código de Processo Penal anotado/ II/740, defendem que quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro.

É também esta a posição uniforme do STJ que defende que não padece desse vício a decisão que, examinada na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam entre si, segundo um raciocínio lógico e coerente e de acordo com as regras da experiência comum.

Este mesmo tribunal superior também perfilha a tese de que o erro notório tem lugar quando os julgadores deram como verificado algo que é patente não poder ser e cujo erro é logo detectável e percepcionável por um observador comum.

No nosso sistema processual penal, como já referido no ponto anterior, para o qual remetemos, vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127° do CPP, que estatui: “… salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.".

Assim, e como referem Simas Santos e Leal-Henriques na primeira obra citada, jamais poderá incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efectuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no art. 127°, do C.P.P..

Entende, também assim, o Supremo Tribunal de Justiça defendendo que não se verifica erro notório na apreciação da prova se a discordância resulta da forma como o Tribunal teria apreciado a prova produzida.

Face ao que acima foi dito facilmente se concluiu que o alegado pela recorrente não integra o referido vício pois a sentença recorrida não padece de falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si.

Muito pelo contrário, na sentença recorrida é feita uma criteriosa e minuciosa análise da matéria de facto dada como apurada, respeitante à situação profissional do demandante no período pós-acidente, às sequelas resultantes do acidente sub-judice que impossibilitam o Recorrido de exercer a sua actividade profissional habitual de marítimo-turístico, e justificam a fixação dos danos morais e patrimoniais, ocasionados ao mesmo, pela condução temerária e negligente, do arguido, condutor do veículo automóvel com a matrícula …, que, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, havia transferido, a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, para a companhia de seguros SL, S.A. que foi incorporada, por fusão, na demandada, SU, S.A.. tudo devidamente enquadrado e adequado.

Mas revertamos, com mais pormenor, para o caso em análise, a demandada/recorrente, nas suas conclusões n.ºs. 2 a 4, faz alusão a este erro.

Porém, o importante e determinante está consignado nos aludidos pontos da matéria de facto, que é suficiente, para a decisão de direito, nada havendo a corrigir ou aditar.

Não olvidar que o ponto n.º 29, da matéria de facto provada esclarece, também, de modo explicito e conveniente, sem necessidades de outras concretizações, as limitações da sua actividade laboral, afirmando “Está-lhe igualmente vedado o exercício de qualquer actividade que lhe exija esforços, marcha continuada ou permanência de pé por períodos prolongados.”.

Portanto, a matéria de facto ora consignada é bastante e suficiente para a legal, justa e adequada decisão de direito, não se justificando completá-la, por não necessitar de qualquer outro aditamento de factualidade.

Para além do já afirmado, no ponto anterior, para o qual remetemos, dir-se-á que do texto da sentença recorrida, nomeadamente da fundamentação de decisão de facto, é visível que o tribunal “a quo” baseou a sua convicção, relativamente aos danos causados ao demandante civil, essencialmente no que concerne aos factos provados n.ºs 24 e 28, que redigiu de acordo com a prova produzida - testemunhal, pericial e documental - e a factualidade determinante para a decisão.

A recorrente pode discordar da forma como o tribunal, perante os meios de prova produzidos, construiu a sua convicção e determinou a factualidade provada e não provada.

Contudo, como é sabido, no domínio da apreciação das provas rege o princípio segundo o qual estas são apreciadas de harmonia com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (C.P. Penal, artigo 127°, supramencionado), liberdade que não se traduz em arbítrio, mas sim no dever exclusivo de perseguição da verdade material, conformado por um processo de convencimento lógico, coerente e fundamentado, por um dever de ponderação e avaliação caracterizado pela sensatez e responsabilidade.

Mais uma vez, o problema posto pela recorrente se reconduz ao da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido de que trata o art.º 127°.

Como já referido, dispõe esta norma, já retro mencionada, que" Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre apreciação da prova da entidade competente.

No caso em análise a formulação da convicção esteve em consonância com as regras da lógica e da experiência comum e baseou-se em juízos lógicos e objectivos, respeitadores das regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.

A recorrente carece de razão, também, neste segmento do recurso.

2.4.3 - Danos relativos ao pedido de indemnização civil

Os eventuais direitos que o demandante civil, FAM, pretendeu fazer valer nos presentes autos resultam da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana por factos ilícitos dos demandados, cujo regime legal se encontra fixado nos artigos 483º e seguintes, do CC. aplicáveis “ex vi”, do disposto no art.º 129°, do Código Penal que preceitua: "A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.".

"São várias as condicionantes da obrigação de indemnizar imposta ao lesante, tal como pode ser aferido pela simples leitura do preceito citado. Assim" O dever de reparação resultante da responsabilidade por factos ilícitos está directamente conectado com a verificação dos seguintes pressupostos (cf., Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", Vol. I, Almedina. Coimbra, 73 edição, pág. 515 e ss.): existência de um facto voluntário do agente (e não um mero facto natural causador de danos); que esse facto seja ilícito: que haja um nexo de imputação do facto ao agente; que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano; que se verifique um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima (de modo a que se possa afirmar que o dano é resultante da violação).

São, pois, estes os pressupostos que terão de se dar como verificados para que o demandante civil possa fazer valer os seus direitos nos presentes autos.

No caso dos autos reúnem-se todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos - a violação de um direito ou interesse alheio, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano moral, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano não patrimonial, relativamente aos danos dados como provados.

O dever de indemnizar compreende todos os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do dano e do sofrimento da vítima (art.º 563º do C.C.), visando-se, deste modo, e segundo a teoria da diferença, repor o lesado na situação em que se encontraria se não ocorresse o acidente (artº 562º do C.C.).

O mesmo visa repor o lesado na situação em que se encontraria se não ocorressem as ofensas da vítima, nos termos do art. 562º do C.C.

A regra geral em sede de obrigação de indemnizar é a reparação natural (art. 566º, nº 1 do C.C.), contudo, não sendo esta possível, haverá lugar à indemnização em dinheiro. Esta indemnização “tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”. (art. 566º, nº 2 do C.C.).

Nos termos do art. 564º, nº 1 do C.C., a indemnização compreende os danos emergentes (“prejuízo causado”) e os lucros cessantes (“os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Quanto aos primeiros (neles se compreendendo os que as demandantes peticionam a título de danos patrimoniais), o seu cálculo obedece a uma pura operação matemática.

Os mesmos consistem “numa forma de diminuição do património já existente, consubstanciando prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade da assistente/demandante, à data da lesão, os lucros cessantes consistem numa forma de não aumento do património já existente, isto é, os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto, mas a que não tinha direito à data da lesão. Por outro lado, o dano futuro é o prejuízo que o lesado ainda não sofreu no momento temporal que é considerado.”

O que a recorrente/demandada questiona é a falta de verificação de todos os danos estabelecidos e a fixação do seu valor, nomeadamente a totalidade dos danos patrimoniais e dos não patrimoniais, que, de seguida, analisaremos, em pormenor.

Com efeito, o art. 496° manda atender na fixação da indemnização por danos não patrimoniais àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, daqui se extraindo que "o montante da reparação deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios em que se tornam mais necessários o bom senso, o equilíbrio das proporções com que o julgador deve decidir" (Prof. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", pág. 627- 628). Assim, apenas são ressarcíveis os danos não patrimoniais graves, devendo a gravidade medir-se por critérios objectivos.

No âmbito destes danos é extremamente delicada a operação da respectiva quantificação porque estão em causa valores que não têm expressão pecuniária, socorrendo-se a lei aqui, como em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto (a equidade vem sendo definida, desde Aristóteles, como a expressão da justiça no caso concreto), mas fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar.

Por outro lado, a indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio, sendo tão só uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro (Vide Prof. Vaz Serra, Boletim 83, pag. 83).

Como expõe o Prof. Antunes Varela, "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar, de algum modo, mais do que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente" - ob. cit., pág. 568 -.

A propósito do ressarcimento dos danos de ordem moral, sempre se dirá que não há possibilidade de os anular com dinheiro, visto serem insusceptíveis de uma avaliação deste tipo. No entanto, apesar de se concordar que o dinheiro não apaga as dores físicas, tristeza e angústia infligidas pelo arguido, devido à sua condução temerária, no demandante, a prestação pecuniária a cargo da demandada pode contribuir para atenuar e de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado" além de constituir para os lesantes uma sanção adequada.

O Código Civil consagrou a tese da reparabilidade dos danos não patrimoniais, mas, nos termos do art. 496°, n. ° 1 daquele diploma, só são ressarcíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, o que caso concreto se considera. Segundo o n.º 3, deste preceito, naquilo que concerne à indemnização dos danos não patrimoniais, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º, circunstâncias essas que são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que o justifiquem.

Revertendo para o caso concreto, a decisão recorrida fez uma análise adequada, quer da matéria de facto, quer da sua subsunção ao direito, nomeadamente, da matéria de responsabilidade civil - citados arts. 483º e segs. do C.C.-.

Todavia, a interpretação destas matérias não coincide, na sua totalidade, com a da recorrente.

2.4.3.1 - Valor do montante fixado à indemnização por danos não patrimoniais.

No caso dos autos, como já afirmado, reúnem-se todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos - a violação de um direito ou interesse alheio, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao agente, o dano moral, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano não patrimonial.

No âmbito destes danos é extremamente delicada a operação da respectiva quantificação porque estão em causa valores que não têm expressão pecuniária, socorrendo-se a lei aqui, como em outros casos em que há manifesta dificuldade de quantificação abstracta das obrigações, da equidade, entregando aos tribunais a solução do caso concreto (a equidade vem sendo definida, desde Aristóteles, como a expressão da justiça no caso concreto), mas fixando os critérios dentro dos quais a equidade vai operar.

Por outro lado, a indemnização por danos não patrimoniais não é uma indemnização no sentido próprio, sendo tão só uma satisfação ou compensação do dano sofrido, que não é verdadeiramente avaliável em dinheiro (Vide Prof. Vaz Serra, Boletim 83, pág. 83).

Estes danos - tradicionalmente designados de danos morais - resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem-estar físico e psíquico, a liberdade, a honra, a reputação), verificando-se quando são causados sofrimentos físicos ou morais, perdas de consideração social, inibições ou complexos de ordem psicológica, vexames, etc., em consequência de uma lesão de direitos, máxime, de personalidade (ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 85 e 86, edição de 1976).

No que respeita aos danos não patrimoniais, importa, pois, verificar se a sua quantificação é adequada e ajustada.

E, como se disse, esta quantificação é deixada pela lei ao bom senso do julgador, mas dentro dos critérios legais. Por outro lado, impõe-se ao julgador a ponderação dos parâmetros de facto legais de forma actualizante e com respeito pelos valores e direitos fundamentais da pessoa humana, em ordem que o ofendido seja devidamente compensado, valorando-lhe equitativamente os danos morais sofridos.

Ou seja, para que a indemnização por danos não patrimoniais responda actual ao comando do art. 496° citado e constitua uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, sem esquecer, no entanto, o nível de vida médio do nosso país e á situação financeira da demandada/seguradora.

Revertendo para o caso concreto, resultou provado que, em consequência do acidente de viação motivado por culpa exclusiva do arguido, AS, o demandante, FAM, “…sofreu, na sequência do acidente, para além das dores intensas, cicatriz hipertrófica na palma da mão esquerda, ao nível da articulação do punho, com 6 cm de diâmetro, cicatriz de ferida contusa na face externa do joelho, com 2 cm de diâmetro, cicatriz de ferida contusa na face externa da coxa, com 6 cm de diâmetro, Cicatriz de ferida contusa na face externa do joelho, com 2cm de diâmetro, Cicatriz de ferida contusa na face externa, com 18 por 10 cm de área, e amputação do pé, que ficou decepado imediatamente após o embate. Tais lesões que afectam de maneira grave a possibilidade de utilizar o corpo determinaram o seu internamento durante cerca de 2 meses, a sujeição a intervenção cirúrgica, a tratamentos de fisioterapia, à redução da sua mobilidade – passando a deslocar-se apenas com o auxílio de canadianas - e à colocação de várias próteses, cuja habituação foi bastante penosa para o demandante.

Os tratamentos e intervenção cirúrgica a que se submeteu foram-lhe particularmente dolorosos e incomodativos.

Evidencia, de forma permanente dificuldades na locomoção, marcha e períodos em que se mantém de pé, não consegue realizar esforços, deixou de conseguir praticar actividade física e ficou a padecer de perturbações do foro emocional, com depressão e isolamento.

Sofreu um período de 548 dias de doença, com afectação para o trabalho geral e profissional e uma incapacidade permanente geral de 27%. Sofreu um “quantum doloris” correspondente, em termos quantitativos ao grau 5, numa escala de 7 e um dano estético permanente correspondente, em termos quantitativos ao grau 5, numa escala de 7.

O acidente objecto dos autos afectou psicologicamente o demandante – que ficou a padecer de um quadro depressivo, de grande tristeza e de uma elevada frustração, de falta de capacidade para exteriorizar os seus sentimentos, de um grande isolamento e inibição – as suas relações interpessoais e as suas actividades do dia-a-dia, nomeadamente desportivas, de lazer e de convívio habituais até à data assinalada, o que muito a entristeceu e revoltou.

Era, antes, uma pessoa saudável, activa, feliz, extrovertida e com alegria de viver, características da sua personalidade que sofreram grandes e negativas alterações.

As lesões sofridas condicionaram e continuam a condicionar fisicamente o demandante, que deixou de poder correr, andar de mota ou bicicleta, de praticar vela, ski ou ténis e de realizar caminhadas e exercícios físicos, como o fazia anteriormente, situação que o entristece bastante, vendo-se obrigado a recorrer, de forma permanente, a ajudas técnicas, como adaptação do domicílio, local de trabalho, veículo e revisões periódicas de ortótese.

Ainda hoje sofre de fortes dores e desconforto, nomeadamente aquando das mudanças de temperatura.

É portador de uma incapacidade que, embora parcial, é permanente e que, como tal, o acompanhará o resto da sua vida. Com ela dores, défices funcionais e perturbações emocionais.

Deixou de poder andar de mota, de bicicleta, fazer caminhadas e passar longos períodos de pé, o que muito afecta a sua mobilidade e o prazer que sentia em tais actividades.

É, bem assim, ressarcível o dano estético sofrido. Neste âmbito, importa relevar que para além das significativas cicatrizes que apresenta, o demandante viu o pé esquerdo amputado, o que o desfeia séria e objectivamente e, naturalmente, afecta severamente a sua auto-estima, o que tem repercussão na imagem que tem de si mesma e perante terceiros e explica a fuga aos convívios sociais e o isolamento a que se votou.

Apurou-se que o demandante deixou de poder trabalhar e actualmente apenas aufere uma pensão provisória no montante de aproximadamente € 300,00, vivendo seguramente do auxilio de amigos e familiares.”.

É indubitável que já ninguém retira, ao demandante, a situação dolorosa e angustiante, pela qual passou e perdura e lhe deixou sequelas dolorosas, permanentes e traumáticas e que já ficaram descritas; assim como ninguém poderá, em rigor, compensar as dores, angustia e desgosto que sofreu e das limitações funcionais e inestéticas que lhe advieram.

Mas pode e deve atenuar-lhe tudo isso, sendo de ponderar que nestes danos interfere em especial a natureza e intensidade do sofrimento causado, a sensibilidade do lesado e a duração da dor.

Na realidade, embora sejam insusceptíveis de avaliação pecuniária bastante para contrapor às dores, sofrimentos angústias e limitações funcionais, torna-se premente encontrar uma situação que, se não anule, pelo menos atenue ou minore, de modo significativo tais danos.

Não olvidando, na integração desse dano não patriomonial, quer o dano estético (para além das proeminentes cicatrizes, o demandante viu o pé esquerdo amputado, o que o desfeia séria e objectivamente e, naturalmente, afecta severamente a sua auto-estima, o que tem repercussão na imagem que tem de si mesma e perante terceiros e explica a fuga aos convívios sociais e o isolamento a que se votou), quer o prejuízo de distracção ou afirmação pessoal (o demandante - pessoa com 55 anos, saudável e bastante activa - deixou de praticar vários tipos de desporto, actividades desportivas que efectuava, com regularidade à data do acidente, sendo compreensível a grande tristeza sentida por deixar de praticar tais modalidades desportivas, não podendo andar de mota, de bicicleta, fazer caminhadas e passar longos períodos de pé, o que muito afecta a sua mobilidade e o prazer que sentia em tais actividades, até ao final da sua vida).

Vejamos, todavia, ao pormenor, a dimensão desses danos, para concluir se o montante fixado - 120.000.00€ - é exagerado e excessivo.

Ora, de acordo com os citados preceitos - arts. 494.°, 496º e 566º, n.º 3, do CC - na fixação do quantum indemnizatório o juiz deverá fazer uso de critérios de equidade, tomando em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e a do lesado, bem como as demais circunstâncias concretas relevantes.

No caso sub judice, deve atender-se a todo esse circunstancialismo, nomeadamente, para além do já mencionado, à culpa exclusiva, na causa do sinistro, por parte do arguido, às condições económicas do demandante e demandada (Seguradoras Unidas que como é referido na sentença recorrida, “é uma companhia de seguros de renome a nível nacional, com relevância no meio comercial e com recursos económicos próprios avultados”) e todas às demais circunstâncias aludidas.

Atento o exposto, o montante fixado seria, na perspectiva do demandante, necessário, porém, atendendo a todos esses considerandos e circunstâncias, às adequações de todos os intervenientes processuais e aos juízos de equidade, para ressarcimento de todos estes danos não patrimoniais, é justo e mais proporcional e adequado, estabelecer o seu montante em 100.000.00€, que fixamos, em substituição do fixado na sentença recorrida

Neste segmento, tem provimento, parcial, a pretensão da recorrente.

2.4.3.2 - No que concerne aos chamados “lucros cessantes” e da “perda da capacidade de ganho”, danos patrimoniais, rege, em primeira linha, o princípio da reposição natural expresso no art. 562º do Cód. Civil, normativo no qual se consagra a regra da colocação do lesado na situação anterior à lesão, deixando a indemnização em dinheiro como critério subsidiário a ser “utilizado sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (artigo 566º, n.º 1 do Código Civil).

Os danos indemnizáveis são, de acordo com o disposto no art. 564º do Cód. Civil, todos os prejuízos reais que o lesado sofreu, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de certo bem corpóreo ideal.

Esses prejuízos configurarão um dano patrimonial quando, por incidirem sobre interesses de ordem material ou económica, se reflectem no património do lesado, sendo, porque susceptíveis de avaliação pecuniária, reparáveis, senão directamente mediante a restauração natural ou reconstituição específica da situação anterior à lesão), pelo menos indirectamente, por meio de equivalente ou indemnização pecuniária

A indemnização terá, neste caso, como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida e a situação hipotética que nessa data teria se não tivesse ocorrido o facto gerador do dano (cfr. art.566º, n.º 2 do CC).

Á quantificação da indemnização nestes termos devida interessará a noção de dano de cálculo, enquanto reflexo que o dano real, entendido como prejuízo in natura, teve sobre a situação patrimonial do lesado: trata-se, por ex., do dispêndio de uma certa soma em dinheiro para fazer face a uma despesa tornada necessária em razão do dano real

Dentro dos danos patrimoniais, caberão, não apenas os danos emergentes ou perdas patrimoniais - os quais, como se sabe, podem consistir tanto numa diminuição do activo como num aumento do passivo - como os lucros cessantes ou frustrados: os primeiros compreenderão o prejuízo causado nos bens ou nos direitos já existentes na titularidade do lesado à data da lesão, ao passo que os segundos abrangerão a perda de ganhos futuros, em vias de concretização, de natureza eventual ou sem carácter de regularidade, que o lesado não consegue já obter em consequência do acto ilícito. Deverão, em qualquer caso, ser determinados segundo critérios de verosimilhança ou probabilidade, atendendo-se ao que aconteceria segundo o curso normal das coisas e recorrendo à equidade quando se não possa averiguar a sua exactidão.

Deve, também, mencionar os danos futuros, que compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultarem para o lesado (ou resultarão, em termos de experiência comum) em consequência do acto ilícito que foi obrigado a sofrer.

“O cálculo da frustração do ganho deverá conduzir a um capital que considere a produção de um rendimento durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequado ao que auferiria se não fora a lesão correspondente ao grau de incapacidade e adequado a repor a perda sofrida. Isto implica que se entre em linha de conta com a idade ao tempo do acidente, prazo de vida activa previsível, rendimentos auferidos, ao longo desta, encargos, grau de incapacidade, além de outros elementos, eventualmente atendíveis. O recurso a tabelas para cálculo de dano, (…) tabelas financeiras, juros passivos da banca comercial, é sempre aleatório. Acima delas, há que respeitar as regras indemnizatórias fixadas no Código Civil, designadamente a de que a indemnização em dinheiro tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida e a que teria, nessa data, se não existissem danos. Não sendo possível averiguar o valor exacto dos danos deve-se recorrer à equidade” (Ac. do STJ, 8/6/1993: CJ/STJ, 1993, 2º-138).

A jurisprudência, quase unanimemente, tem entendido que a incapacidade permanente parcial representa, em si mesma, um dano patrimonial, não podendo reduzir-se à categoria de danos não patrimoniais, pela inerente afectação da capacidade de ganho que implica.

A título exemplificativo, veja-se o Ac. do STJ de 28-02-2008, na revista n.º 4596/07 — 2.ª Secção que adianta: “Mesmo que não haja retracção salarial, a IPP dá lugar a indemnização por danos patrimoniais, pois o dano físico determinante da incapacidade exige do lesado um esforço suplementar, físico e psíquico, para obter o mesmo resultado de trabalho.”

Não olvidamos a publicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, que explica no seu preâmbulo, que “uma das alterações de maior impacte será a adopção do princípio de que só há lugar à indemnização por dano patrimonial futuro quando a situação incapacitante do lesado o impede de prosseguir a sua actividade profissional habitual (o que ocorre no caso “sub judice”, pois está incapacitado de a desenvolver).

É fundamentado e certo que, como se refere na sentença recorrida: “Na fixação da indemnização por perda de ganhos futuros atender-se-á, entre outros critérios, à idade do lesado, à esperança de vida, ao período de vida activa, ao tipo de profissão exercida ou que o lesado pretendia abarcar ao longo da sua vida e a respectiva remuneração, a evolução dos salários, a evolução da taxa de inflação e as possibilidades de subida na carreira. Relativamente à perda da capacidade de ganho apurou-se que o demandante FM ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial de 27%.

Exercia a actividade profissional de marítimo-turística e auferia, à data dos factos, um rendimento aproximado de € 750,00 mensais.

Na sequência do acidente deixou de conseguir exercer a sua actividade profissional e qualquer outra que exija esforços físicos ou períodos prolongados de pé. À excepção de um período de 3 meses não mais logrou encontrar trabalho e obter rendimentos próprios.”

Todavia, na sequência do aditado facto n.º 34-A, verifica-se que ao sinistrado foi já fixada uma PAV no valor de € 7.523,85, (Sete Mil, Quinhentos e Vinte e Três Euros e Oitenta e Cinco Cêntimos), actualizável e devida desde 19/2/2016, acrescida de juros de mora à taxa legal.

O que equivale a dizer que tem uma diminuição da capacidade de ganho mensal na ordem dos € 212,58 (7.523,85:14 = 537.42) (750,00 – 537,42 = 212,58).

E voltamos a afirmar que é fundamentado o que é referido na sentença recorrida: “Como atrás ficou dito, haverá, contudo, de considerar, para além da repercutibilidade das lesões do Demandante, no exercício das tarefas laborais, a respectiva incapacidade para a generalidade das profissões, a incapacidade genérica para utilizar o respectivo corpo enquanto prestador de trabalho e produtor de rendimento e a possibilidade da sua utilização em termos correspondentemente deficientes ou penosos, atendendo a que as deficiências funcionais de que ficou a padecer…

A incapacidade permanente parcial que padece constitui uma situação de dano patrimonial futuro, na medida em que se consubstancia numa diminuição das suas condições físicas, resistências e capacidades de esforços e se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais, em geral, e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade da execução das diversas tarefas que normalmente se lhes depararão no futuro. Assim, independentemente da perda efectiva de rendimentos está em causa a perda da integridade psicossomática plena, que persistirá por todo o restante percurso de vida do Demandante e que tem, só por si, expressão patrimonial.

Não poderá esquecer-se o que é realçado no muito recente Ac. do STJ, de 09.01.2018 que “a condição deficiente do demandante e das consequências que em termos de empregabilidade, lhe estão associadas. O lesado que fica impedido de exercer a sua profissão habitual está em posição de desvantagem em relação a outros que não o fiquem. Acresce que, a taxa de desemprego do cidadão deficiente é especialmente elevada, porquanto os empregadores partem do pressuposto da sua inadaptação ao desempenho profissional.”

Nessa medida, o défice funcional do demandante, de 27% não dirá tudo em termos de prejuízo real, tendo de ser conjugado com a repercussão da deficiência no mundo real em termos de acesso a fontes de rendimento e de privação de futuras oportunidades profissionais, bem como o esforço acrescido que terá de desenvolver para o exercício de quaisquer tarefas profissionais.

Fixando-se, actualmente, um período médio de vida de 78 anos, e considerando já o valor da pensão provisória que lhe foi arbitrada, por forma a não existir cumulação de indemnizações, temos que o demandante irá deixar de auferir” € 2.976,12 anuais, o que equivale a dizer que dos 58 aos 78 anos verá reduzido o seu rendimento em € 59.522,40.

“De realçar que o valor de € 750,00 se aproxima hoje do rendimento mínimo mensal e se nos afigura perfeitamente adequado quer à actividade que o demandante desenvolvia, como a qualquer outra actividade profissional que venha a empreender no futuro.

Sem esquecer a dificuldade em encontrar um montante indemnizatório que, previsivelmente, corresponda adequadamente e de forma justa à compensação dos efeitos das sequelas que virá a sofrer no futuro, importará ter, ainda, em consideração que FM nasceu em ……… tendo à data do acidente 55 anos de idade; o período de tratamento do demandante prolongou-se por 548 dias, com as limitações e sequelas que se deixaram expostas nos factos provados; à data do acidente era uma pessoa saudável, activa e praticava desporto com regularidade.

Uma nota para destacar que o Tribunal está apenas vinculado ao valor total do pedido de indemnização civil formulado e não às parcelas concretamente peticionadas a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.”

Em face de todo o circunstancialismo e factualidade expostos, atendendo, designadamente, à idade do demandante civil à data do sinistro, à dimensão, extensão e importância das incapacidades advindas do sinistro para o qual não contribuiu, ao conjecturável período da sua vida activa – até aos 70 anos – e à previsibilidade média de vida – que se prolonga até aos 78 anos –, deduzindo os valores já fixados no âmbito dos autos de Acidente de Trabalho, entendemos, atendendo à reflexão e ponderação geral, que é apropriado e equitativo estabelecer, a título de indemnização por danos futuros e redução da capacidade de ganho, uma indemnização no montante de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), que se fixa em substituição do montante fixado pelo tribunal “a quo”.

2.4.3.3 - Convém, antes de entrar directamente na nova questão suscitada pela recorrente, fazer uma breve alusão à problemática da actualização da indemnização e dos juros de mora, pois a sua importância é determinante para o cálculo dos montantes indemnizatórios.

No âmbito das obrigações pecuniárias vigora o chamado princípio nominalista, expresso no art.º 550º do C. Civil: “O cumprimento de obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no país à data em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tenha salvo estipulação em contrário”.

Relativamente ao momento da constituição em mora deverá atender-se ao preceituado no art. 805º n.º 3, do C.C. que preceitua: “(…) tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde à citação (…)”.

Portanto, são devidos juros moratórios legais desde a citação, mesmo quanto à indemnização fixada para os danos não patrimoniais.

O segundo refere: “(…) II - Os juros de mora não constituem uma forma de actualização de prestações devidas nem têm essa função, mas, declarada e expressamente, a de indemnização pela falta do devedor em cumprir a obrigação em devido tempo, sendo devidos sobre a totalidade da indemnização (por danos patrimoniais e não patrimoniais) a contar da citação.

O terceiro adianta: “V - A regra do n.º 3, do art. 805º, do C.C. vale tanto para os danos patrimoniais como para os não patrimoniais”.

A jurisprudência mostrava-se, contudo, dividida.

Para uniformização da jurisprudência foi proferido, o Ac. do STJ, N.º 4/2002, de 27 de Junho, referindo: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2, do art. 566º, do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805º n.º 3 (interpretado restritamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação.”

Porém, as explanações jurídicas e os entendimentos jurídicos supra desenvolvidos não se mostram prejudicados pelo teor deste último acórdão, porquanto, só nos casos em que os montantes indemnizatórios fixados tiverem sido objecto de cálculo actualizado é que o vencimento dos juros de mora ocorre, apenas, a partir da citação. Esse cálculo actualizado não foi feito na presente decisão.

Portanto, os juros de mora vencem-se a partir da citação, nos termos da regra do n.º 3, do art. 805º, do C.C. que é imposta, tanto para os danos patrimoniais, como para os não patrimoniais.

Neste mesmo sentido:

O Ac. do STJ, de 13-01-2005, proferido no Proc. n.º 04B3378, com o seguinte sumário: “Na interpretação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº4/2002, de 9/5 tem vindo a ser entendido no Supremo que:

- Embora não seja exigível, para se concluir ter havido a actualização indemnizatória nos termos do artigo 566, nº2 do Código Civil, que disso se faça expressa menção na decisão, deve, no entanto, transparecer do seu teor que a actualização teve lugar, designadamente com a referência aos respectivos critérios utilizados (taxa de inflação, correcção monetária, decurso do tempo desde a propositura da acção);

- se a actualização não transparecer do teor da decisão, os juros moratórios deverão ser contabilizados desde a citação sem que se distinga, para tal efeito, entre danos não patrimoniais e as demais diversas categorias de danos indemnizáveis em dinheiro e susceptíveis, portanto, de cálculo actualizado nos termos do n.º 2 do artigo 566 do CC.”;

O Ac. do STJ, de 22-01-2004 - Revista n.º 3704/03 - 2.ª Secção - Bettencourt de Faria (Relator), Moitinho de Almeida e Ferreira de Almeida, no seu sumário, refere: “Se na sentença nada se disser sobre a actualização da quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais, tem de se entender que essa quantia corresponde ao valor dos danos no momento da sua ocorrência. Isto de acordo com a regra de que não existem presunções de fundamentação. “

Neste segmento do recurso, falece razão à recorrente.

2.4.3.4 - Por último dir-se-á que as custas do presente recurso, interposto pela demandada civil e cujo objecto respeita à matéria do pedido de indemnização civil, obedecerá, como veremos, às regras estabelecidas nos arts. 529º e ss. do CPC (art.º 447.º e ss. do CPC 1961), aplicáveis “ex vi”, do preceituado no art. 523º, do CPP, e nos arts. 3º, 6º, 11º, 12º n.º 2, 16º e 26º, do RCP (Regulamento das Custas Processuais).

III - Decisão

Em face do exposto, acordam em declara parcialmente procedente o recurso interposto, nos termos seguintes:

Condenar a demandada/recorrente, Seguradoras Unidas, S.A. no pagamento ao demandante:

- Da quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;

- Da quantia de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), a título de indemnização por danos futuros e redução da capacidade de ganho, revogando, nesta parte e relativamente a estes danos específicos requeridos no pedido de indemnização civil, os montantes fixados na sentença recorrida.

Mantém-se no mais o decidido na sentença recorrida.

As custas respeitantes ao presente recurso, referente à decisão do pedido de indemnização civil, serão pagas pela demandada e pelo demandante civis, na proporção do decaimento, conforme preceituam as normas legais expressas no ponto anterior.

(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 22/09/2020

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(Maria Isabel Duarte de Melo Gomes)

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(José Maria Simão)