Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/11.5GDPTG.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA TESTEMUNHAL
REGRAS DE INQUIRIÇÃO
TESTEMUNHA VÍTIMA DE MENORIDADE
DEPOIMENTO INDIRECTO
EXIBICIONISMO
CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
Data do Acordão: 01/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário:
I - O princípio da investigação visa a procura da verdade prático-jurídica, não sendo indiferente o modo como se processa tal procura, o que, no caso da prova oral, deve levar o juiz a abster-se de sugestionar as testemunhas, prejudicando a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

II - A prova por declarações da vítima menor de idade não deixa, no entanto, de colocar específicos problemas, ao nível da obtenção, da produção, da apreciação e da valoração, o que não pode deixar de repercutir-se no modo como a inquirição é conduzida.

III - A tomada de declarações e a obtenção de depoimento não são procedimentos rígidos e assépticos; o juiz interage com a prova pessoal, procurando conduzir a inquirição do modo que, interactivamente, se lhe for revelando mais conveniente à descoberta da verdade.

IV - E se as circunstâncias do caso, as características da personalidade da concreta testemunha, as do próprio episódio, mais ou menos traumático, evocado no depoimento, implicarem pontualmente a formulação de questões menos rigorosas numa perspectiva formal-ideal-abstracta, de acordo com os cânones da inquirição, a consequência não será a da fatal inutilização das respostas, mas a de uma sua avaliação mais criteriosa.

V - Também as pequenas disparidades encontradas na prova oral, as dissemelhanças pontuais sinalizadas entre depoimentos, não fragilizam necessariamente o valor probatório do testemunho; os testemunhos assim prestados serão mesmo tendencialmente mais verdadeiros, pois mostra a experiência que a concertação e treino de versões “falsas” dará mais facilmente lugar a descrições de factos modelarmente análogas e admiravelmente coincidentes.

VI - O art. 129º do Código de Processo Penal não veda a admissão do depoimento indirecto, estabelece apenas condições para a sua utilizabilidade.

VII - O bem jurídico protegido pelos crimes sexuais (secções I e II do capítulo V do Código Penal) é o da liberdade e autodeterminação sexual da pessoa, tutelando-se ainda, nos casos dos crimes da secção II, o desenvolvimento livre da personalidade do menor na esfera sexual, ou seja, o desenvolvimento sem entraves da sua identidade sexual.

VIII - A realização dos tipos de ilícito dos arts 170º e 171º, nº 3, alínea a) do Código Penal, que descritivamente apenas se distinguem pela idade da vítima, na modalidade de importunação por meio de acto exibicionista exigem a prática de acto exibicionista que cause perturbação.

IX - A exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, erecto ou não, perante vítima menor de 14 anos, a quem se causa deste modo receio, susto, intimidação e perturbação, realiza o tipo do art. 171º, nº 3, alínea a) do Código Penal, pois atinge a liberdade da vítima na vertente da sua autodeterminação sexual e é conduta perturbadora do desenvolvimento livre da sexualidade da menor atingida.

X - Já relativamente a vítima de maior idade (art. 170º do Código Penal), em que não está em causa a tutela do desenvolvimento livre da personalidade sexual mas apenas o da liberdade sexual, exigir-se-á a comprovação de factos complementares, dos quais resulte que o acto exibicionista representou, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de acto sexual que ofendesse a sua liberdade sexual. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1.No Processo Comum Colectivo nº 59/11.5GDPTG do 1º juízo do Tribunal Judicial de Portalegre foi proferido acórdão em que se decidiu absolver A. da prática dum crime de abuso sexual de crianças e condená-lo como autor de 18 (dezoito) crimes de abuso sexual de crianças dos arts. 30º, nº 1 e 171º, nº 3, al. a), por referência ao art. 170º, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão relativamente a um deles e na pena de 9 (nove) meses de prisão relativamente a cada um dos restantes dezassete crimes; e por 2 (dois) crimes de importunação sexual do art. 170º, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, relativamente a cada um deles, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão suspensa na execução com regime de prova e condicionada ao pagamento de € 4.000,00 (quatro mil euros) de indemnização a MC, no prazo de um ano.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, fazendo-o quer na parte relativa à matéria de facto, quer na parte relativa à decisão de direito.

Apresentou, resumidamente, as seguintes conclusões:

- Impugna os factos provados descritos nos pontos 1. a 14. e 21. a 25 da matéria de facto provada no acórdão alegando ter ocorrido erro de julgamento; esse erro derivaria da circunstância do tribunal ter descredibilizado as testemunhas de defesa, valendo-se de critérios genéricos e não tendo procedido do mesmo modo quanto às testemunhas de acusação; não ter concedido o benefício da dúvida ao arguido, ignorando indevidamente as discrepâncias evidenciadas em relatos das testemunhas de acusação; ter conduzido a inquirição das vítimas menores de uma forma sugestiva, condicionando estes depoimentos.

- Impugna a matéria de direito, na parte criminal e na parte civil, fazendo-o na decorrência da procedência do recurso da matéria de facto, mas defendendo ainda que os factos provados não realizariam mesmo assim o tipo de crime da condenação, já que a mera exibição do pénis não consubstanciaria acto de natureza sexual. Também o montante indemnizatório sempre deveria sofrer redução, face à situação económica do arguido.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo pela confirmação integral do acórdão.

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto pronunciou-se no sentido de se louvar na resposta do Ministério Público em 1ª instância, que disse sufragar, mas concluiu depois que “ao recurso deverá ser concedido provimento”.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. No acórdão consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2011, na altura da Primavera, início de Verão, cerca das 16 horas, quando as menores MC e PL se dirigiam da escola para casa, ao passarem em frente à residência do arguido, sita na Rua…, no Crato, o mesmo exibiu-lhes o seu pénis erecto, fora das calças, cuja braguilha estava aberta.

2. A mesma situação referida em 1) ocorreu mais do que uma vez, mas em número não concretamente apurado.

3. Já durante as férias escolares do Verão do ano de 2011, em dia não concretamente apurado, enquanto a menor C se dirigia para as piscinas municipais do Crato, acompanhada pela R, ao passar pela residência do arguido, o mesmo, ao vê-las passar, virou-se na sua direcção e exibiu-lhes o seu pénis fora das calças.

4- No dia 27 de Agosto de 2011 - último dia da Festa do Artesanato do Crato -, durante a noite, enquanto a menor MC estava no festival com a família e amigas, o arguido, numa altura em que aquela estava acompanhada apenas por duas amigas, aproximou-se dela e apalpou-lhe a vagina por cima da roupa que trazia vestida.

5- Em datas não concretamente apuradas, mas no ano lectivo de 2010/2011, e desde Janeiro de 2011 e até ao final do ano lectivo de 2010/2011, por diversas vezes, quando as menores P e D passavam em frente à residência do arguido, o mesmo, que se encontrava à porta da sua residência, abria a braguilha das calças, levantava a camisola e exibia-lhes o seu pénis, que numas ocasiões estava erecto e noutras não.

6- Já após a menor D perfazer os 14 anos de idade, em Maio de 2011, o arguido continuou a exibir-lhe o seu pénis, pelo menos até ao final de Julho de 2011, em datas não concretamente apuradas, mas por mais do que uma vez.

7- Em datas não concretamente apuradas, mas durante o ano lectivo de 2010/2011, de manhã, quando a menor MS passava pela porta do arguido para se dirigir para a escola, este, que se encontrava à porta da sua residência, e com a braguilha das calças aberta, exibia-lhe o seu pénis, sendo que em algumas ocasiões o mesmo se encontrava erecto.

8- Tal ocorreu por mais que uma vez mas em número de vezes não concretamente apurado.

9- Em datas não concretamente apuradas, mas durante o ano lectivo de 2010/2011, quando as menores AB e CM passavam em frente à residência do arguido e este aí se encontrava, normalmente entre as 16 horas e as 16 horas e 45 minutos, este levantava a camisola e exibia-lhes o seu pénis erecto.

10. Tal ocorreu por mais que uma vez mas em número de vezes não concretamente apurado.

11. Em data não concretamente apurada, mas no ano lectivo de 2010/2011, enquanto a menor C esperava pela sua explicadora, que reside na mesma rua do arguido, este, como era habitual, encontrava-se à porta da sua residência, com o pénis fora das calças, exibindo-o à menor. O arguido apenas colocou o pénis para dentro das calças quando deu conta da sua esposa a aproximar-se.

12. Em data não concretamente apurada, mas no Verão de 2011, durante a tarde, quando a menor AS vinha das piscinas do Crato, passando em frente à residência do arguido, este exibiu-lhe o seu pénis erecto e abanou-o.

13. As menores MC, P, M, AS, D, CM viram o pénis erecto do arguido porque este lho exibiu.

14. As menores ficaram assustadas, receosas, intimidadas, perturbadas e constrangidas com as actuações do arguido.

15. A menor MC nasceu a 3 de Julho de 1999, pelo que à data dos factos tinha 11 e 12 anos de idade.

16. A menor P nasceu a 4 de Dezembro de 1999, pelo que à data dos factos tinha 11 anos de idade.

17. A menor M nasceu a 24 de Novembro de 1999, pelo que à data dos factos tinha 10 e 11 anos de idade.

18. A menor AB nasceu a 17 de Julho de 1998, pelo que à data dos factos tinha 13 anos de idade.

19. A menor D nasceu a 9 de Maio de 1997, pelo que até Maio de 2011 tinha 13 anos de idade.

20. A menor CM nasceu a 30 de Agosto de 1998, pelo que à data dos factos tinha 12 anos de idade.

21. O arguido não podia desconhecer a idade das menores MC, P, M, AS, D e CM, atendendo não só a estrutura física das mesmas, mas também ao factos delas frequentarem o 5.º, 6.º e 7.º anos escolares.

22. O arguido, com as condutas supra descritas, sabia que estava a praticar actos de carácter exibicionista perante as menores MC, P, M, A, D e CM, e mesmo assim, quis praticar os actos supra descritos.

23. E sabia o arguido que ao actuar da forma que acima se descreveu, na pessoa das menores, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento das respectivas personalidades em termos de autodeterminação sexual e que actuava contra a vontade de cada uma delas, obrigando-as a ver o seu pénis e a um contacto de natureza sexual que elas não queriam.

24. Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com a intenção concretizada de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as identificadas menores, indiferente às suas idades e às consequências de tal actuação sobre as mesmas.

25. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Da acusação particular e pedido cível deduzido por A.

26- Em data não concretamente apurada, mas sempre posterior à realização da Festa de Artesanato do Crato, começou a circular por diversos locais daquela localidade que A. tinha apalpado a menor MC – filha de MR – naquelas festas e que quando ela e outras menores passavam à porta da residência daquele, o mesmo baixava as calças para mostrar o pénis.

27- A. é conhecido na localidade do Crato, onde habita.

28- O arguido MR contou a JS que o arguido A. tinha apalpado a sua filha MC, nas festas do Crato e que mostrava o pénis às crianças.

29- Na localidade do Crato, nos cafés, as pessoas falam sobre os acontecimentos supra descritos.

30- A mulher do arguido A. é cozinheira na escola EB I do Agrupamento de Escolas do Crato.

Do pedido de indemnização civil deduzido por MR em representação da sua filha menor MC

31- Ao agir da forma que se deixou descrita, o arguido A. perturbou o desenvolvimento da menor MC, ao nível da sua autodeterminação sexual, tendo a mesma tido necessidade de acompanhamento psicológico em consequência dos factos que presenciou/vivenciou, acompanhamento que ainda se mantém.

32- O comportamento do arguido A. perturbou o equilíbrio social, psíquico e emocional da menor MC.

Dos relatórios sociais

33- A. descende de uma família de parcos recursos económicos e desfavorável condição socioeconómica. Iniciou a escolaridade aos seis anos e o seu percurso escolar terminou com a conclusão da antiga 4ª classe. Para contribuir para a economia familiar iniciou-se laboralmente junto do progenitor, no trabalho agrícola, e aos catorze anos foi aprender o ofício de carpinteiro, momento a partir do qual passou a exercer tal profissão com regularidade e estabilidade, até se reformar por invalidez, o que aconteceu aos cinquenta e seis anos de idade. Em paralelo com esta profissão, teve uma breve experiência empresarial, com a exploração de um café/casa de pasto na localidade de residência, à qual não deu continuidade. Ainda em contexto escolar veio mais tarde, na fase adulta, a concluir o 6º ano de escolaridade em regime pós-laboral.

34- Depois de cumprido o serviço militar obrigatório na Guiné-Bissau, contraiu matrimónio com a actual cônjuge, tendo ambos dois filhos adultos, actualmente com vidas autonomizadas.

35- Iniciou-se precocemente nos consumos ocasionais de bebidas alcoólicas. Não tem ocupação de tempos de livres estruturados ou organizados, jogando habitualmente às cartas com os amigos na Associação de Reformados e executa pontualmente biscates no âmbito da sua formação profissional.

36- A. coabita com a cônjuge na vila do Crato, em habitação própria, que adquiriram através de empréstimo bancário.

37- Em contexto económico a sustentabilidade do agregado é assegurada pela pensão recebida pelo arguido, no montante de € 380,00 € (trezentos e oitenta euros) e pelo vencimento da mulher, no valor de € 630,00 (seiscentos e trinta euros).

38- O agregado tem a despesa mensal fixa de € 356,00 (trezentos e cinquenta e seis euros), concernente à amortização/liquidação de dois empréstimos bancários contraídos para aquisição de habitação.

39- A. goza de imagem positiva no seu meio social e residencial.

40- Embora mantendo sentido crítico relativamente à problemática criminal inerente ao presente processo, reconhecendo o seu desvalor social e suas implicações, tal não se verifica às situações em causa nos presentes autos, que não reconhece.

41- A. manteve um percurso de vida normativo, estruturado, que ainda mantém, denotando competências pessoais e sociais que lhe permitem manter um estilo de vida socialmente ajustado.

42- Estamos perante um arguido que apresenta factores de protecção importantes, nomeadamente condições pessoais, enquadramento e apoio familiar e integração social.

43- MR apresenta um processo de socialização adequado e integrado aos diversos níveis. À data dos factos em discussão integrava o seu próprio agregado familiar, composto por ele, cônjuge e dois filhos menores, todos residentes em casa própria, localizada na vila do Crato.

44- O arguido MR apresenta um percurso profissional regular e estável, trabalhando actualmente como empregado de padaria, no Crato, com funções ao nível da distribuição. É cumpridor, possui qualidades de trabalho e aufere um salário de cerca de € 600,00 (seiscentos euros). Ainda em contexto económico este agregado conta com o salário da cônjuge mulher, que exerce funções de auxiliar de limpeza na Santa Casa da Misericórdia do Crato, mediante a remuneração de cerca de € 500,00 (quinhentos euros) e ainda com rendimentos provenientes de trabalhos indiferenciados que aquele arguido executa aos fins-de-semana.

45- Em termos de encargos mensais, suportam a prestação de € 270,00 (duzentos e setenta euros) referente ao empréstimo bancário contraído para aquisição de habitação e a prestação referente à aquisição de uma viatura automóvel no valor de € 160,00 (cento e sessenta euros).

46- O arguido MR é um indivíduo extrovertido, comunicativo, dinâmico e com interesse na participação em actividades comunitárias, possuindo elevada auto-estima e um bom relacionamento interpessoal e intra-pessoal, bem como uma imagem positiva no meio social.

Dos antecedentes criminais dos arguidos

47- A. foi condenado em 9 de Janeiro de 2009 por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, praticado em 5 de Setembro de 2008, na pena de 65 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses, pena já extinta por cumprimento (condenação proferida no Processo Abreviado Nº ---/08.8GTPTG do 1º Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre).

48- O arguido MR não tem antecedentes criminais.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a impugnação da matéria de facto, o erro de subsunção e a fixação do montante indemnizatório.

(a)-Da impugnação da matéria de facto

O recorrente pretende impugnar a matéria de facto, fazendo-o ao abrigo do disposto no art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal.

Procedeu à indicação de um documento valorado impropriamente pelo tribunal e das passagens em que funda a sua impugnação (por referência à prova gravada). Individualizou os pontos de facto. São, pois, de considerar cumpridas as exigência formais de impugnação da matéria de facto.

Antes de avançar, e como se tem vindo a declarar sem dissensão, o recurso da matéria de facto visa a reparação do erro de facto mas não é um segundo julgamento. Este erro de facto tem de ser correctamente situado nos “pontos de facto” e acompanhado das “concretas provas” que, na visão do recorrente, imponham decisão diversa da tomada na sentença.

Esta exigência de definição/confinamento do objecto do recurso (por referência aos concretos factos e às concretas provas) não significa, na nossa percepção do modelo do recurso, que a Relação esteja impedida de apreciar todas as provas (vide art. 412º nº 6 do Código de Processo Penal) nem que as concretas provas especificadas tenham sido afinal todas as provas produzidas em julgamento.

Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – e sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as vai reapreciar na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não efectua um segundo julgamento. E assim sucede desde logo porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento (este decide sobre a acusação, aquele decide sobre a sentença), mas também porque a segunda instância não se encontra na mesma posição perante as provas – não dispõe de uma imediação total (embora tenha imediação parcial: relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e não interage com a prova pessoal (está impedida de questionar).

Daí que à segunda instância só possa pedir-se um controlo do julgamento, não a repetição do julgamento. Os seus poderes de decisão de facto encontram-se direccionados para a sindicância da sentença de facto, procedendo à análise das concretas provas de acordo o objecto do recurso definido pelo recorrente, não impedindo a lei que as provas se encontrem integralmente transcritas se assim se apresentar como necessário à demonstração do erro de facto.

É dentro do mandato assim definido, restrito à detecção do erro de facto na interpretação do modelo do Código de Processo Penal que perfilhamos, que passa a conhecer-se das razões do presente recurso. Precisão que delineámos por interessar às concretas interrogações “de facto” suscitadas pelo recorrente, deixando fora da margem de apreciação da Relação as interrogações que extravasam os seus poderes de cognição.

Na verdade, ao defender que o tribunal se fez valer de critérios genéricos para descredibilizar as testemunhas de defesa, não tendo procedido de modo idêntico quanto às testemunhas de acusação, o recorrente não pode pretender que a segunda instância julgue agora de novo, mas apenas que reconheça os erros de julgamento, se detectáveis na decisão da primeira instância.

O recorrente impugna os factos provados descritos nos pontos 1. a 14. e 21. a 25 da matéria de facto do acórdão, alegando ter ocorrido erro de julgamento. Esse erro derivaria, em síntese, da circunstância do tribunal ter descredibilizado as testemunhas de defesa valendo-se de critérios genéricos e sem proceder do mesmo modo quanto às testemunhas de acusação; de não ter concedido o benefício da dúvida ao arguido ignorando indevidamente as discrepâncias evidenciadas em relatos das testemunhas de acusação; de ter conduzido a inquirição das vítimas menores de uma forma sugestiva condicionando os depoimentos; de haver valorado erradamente um documento.

Comecemos por ver como se encontra motivada a decisão de facto:

“O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica e conjunta da prova produzida em audiência nos termos que se passam a concretizar.

O arguido A. não prestou quaisquer declarações sobre os factos que lhe são imputados. Porém, os depoimentos das testemunhas MC, P,M, MM, D, AS, CM, H, AM, MA e LH, não nos deixaram quaisquer dúvidas sobre a veracidade dos factos de escritos na acusação pública, sendo que esta nossa convicção foi reforçada por alguma da prova apresentada pela própria defesa do arguido A., nomeadamente, pelo testemunho de AM, professora, mãe de M e presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo do Crato e pelas declarações do arguido MR, que se revelaram credíveis.

Antes de mais, cabe afirmar que as idades de MC, P, M, D, AS e de CM, estão devidamente certificadas nos autos (cfr. respectivos assentos de nascimento, juntos a fls. 160, 348, 350, 346, 352 e 344), assim tendo resultado como provados os factos nºs 15 a 20.
À data dos factos em discussão, as referidas menores e, bem assim, MM, H, AM, MA e LH, também menores de idade, estudavam na Escola EB 1 do Crato, para onde se deslocavam diariamente, a pé (M costumava deslocar-se de bicicleta), e habitualmente em grupo, nomeadamente umas com as outras, e/ou com outras pessoas, variando tais grupos frequentemente ao longo do ano, como explicaram todas em audiência, de forma clara e espontânea, de molde a não deixar qualquer dúvida sobre tal realidade.

Como também explicaram, no percurso para a escola, passavam pela Rua…, no Crato, cujas características descreveram, confirmando que se trata de rua habitualmente com muito movimento, por dar acesso à escola e a outro tipo de serviços situados nas imediações.

Todas as sobreditas testemunhas descreveram de forma totalmente objectiva, espontânea e desinteressada, com recurso a linguagem adequada às respectivas faixas etárias, os comportamentos do arguido A., mantidos junto à sua residência ao longo do período de tempo mencionado na acusação (lograram situar temporalmente esses comportamentos em função dos calendários escolares, facto de que têm conhecimento por força das respectivas condições de estudantes).

Os depoimentos dumas e doutras não foram isentos de algumas discrepâncias – ainda que sobre aspectos não essenciais – facto que não só não permitiu suscitar qualquer dúvida sobre os seus depoimentos, como reforçar a nossa convicção sobre a total veracidade dos mesmos. Efectivamente, tendo em atenção o período de tempo ao longo do qual o arguido A. manteve o comportamento a que infra nos reportaremos, não seria crível que qualquer das sobreditas menores lograsse indicar, com total precisão, todos os comportamentos presenciados, as datas em que ocorreram e, ainda, identificar todas as pessoas na companhia de quem presenciaram cada um de tais comportamentos, sendo certo que como já se afirmou, eram variáveis os grupos que integravam quando se deslocavam para a escola e/ou outro local e, mesmo integrando determinado grupo, não teria cada uma delas de ver o que as outras viam, dada a dinâmica inerente à deslocação em grupo, pela via pública, especialmente se atentarmos no modo como os adolescentes transitam habitualmente em grupo, pelas ruas (falando entre si, uns mais à frente, outros mais atrás, rindo, brincando…).

Acresce que nenhuma das sobreditas testemunhas conhecia, à data, o arguido (não sabiam o seu nome e, na sua maioria, só mais tarde vieram a saber que o mesmo era casado com uma funcionária (cozinheira) da escola que frequentavam, facto este que não as inibiu de ser isentas e objectivas nos seus depoimentos, tendo inclusivamente a testemunha M. invocado de forma espontânea a amizade que mantém com a mulher do arguido), tendo, porém, procedido à sua descrição física em audiência de julgamento, assim como à descrição do local em que habitualmente se encontrava e ao modo como se posicionava à porta de sua casa (o arguido reside na casa em questão, considerando os elementos recolhidos aquando da sua identificação e os depoimentos das testemunhas de defesa) aquando dos comportamentos que empreendia.

No que tange a esses comportamentos, MC disse, em síntese, que em data compreendida no período temporal descrito na acusação, da parte da tarde, quando regressava a casa acompanhada de P, o arguido A, encontrando-se de pé, à porta de sua casa, mostrou-lhes o pénis erecto (“para cima” sic); noutra situação, em data que não soube precisar, quando ia para as piscinas com a R (não foi identificada no processo, desconhecendo-se a sua idade, não se podendo afirmar, por isso, que fosse menor, o que motivou que resultasse como não provado o facto descrito em C)), o mesmo arguido mostrou-lhes o pénis, que se encontrava fora das calças.

MC disse que factos como os descritos aconteceram várias vezes, ao longo do período em causa, em número que em concreto não logrou precisar.

P disse, por seu turno, que numa tarde, estando acompanhada da D e outras amigas que não foram identificadas neste processo (“que não estão aqui”, sic), passaram em frente à casa do arguido, momento em que este puxou a camisa que trazia vestida para cima e lhes mostrou o seu pénis que se encontrava erecto (“pénis para cima”). A testemunha confirmou que presenciou vários comportamentos destes – em número que não logrou precisar - e que o arguido por vezes também tinha um jornal à frente do corpo, que levantava, no momento em que passavam pela sua casa.

P não mencionou o episódio relatado por MC, nem aparentou recordar-se do mesmo, mas como dissemos anteriormente, os grupos de miúdas que passavam à porta do arguido variavam frequentemente e não é crível que todas elas se recordem de todos os comportamentos que presenciaram, sedo certo que as declarações de MC não nos mereceram qualquer reserva e/ou dúvida, atenta a espontaneidade subjacente a todo o seu testemunho.

M esclareceu que ia sozinha para a escola, de bicicleta, e que regressava habitualmente acompanhada de amigas, conduzindo então a bicicleta mais devagar. Via habitualmente o arguido, de manhã, à porta de casa, e que quando passava, ele mostrava-lhe “a pilinha de fora”, erecta (“levantada” “para cima”).

Embora não tendo logrado precisar o número de vezes que presenciou o dito comportamento, a testemunha referiu que os mesmos ocorriam com uma frequência quase diária.

MM, actualmente com dezasseis anos, explicou de forma escorreita e espontânea que já conhecia o arguido (por os seus pais também o conhecerem) e que quando andava no 7º ano de escolaridade e passava à sua porta, a caminho da escola, este mostrava-lhe o pénis (em estado “normal”, o que nos permite afirmar que não se encontrava erecto), assim como às suas amigas (que pontualmente integravam o seu grupo, algumas das quais identificou, pelos nomes, em audiência). Disse que presenciou este tipo comportamentos várias vezes e que assim que se apercebia do que o arguido estava a fazer, desviava o olhar.

O testemunho de D primou não só pela clareza de expressão, como pela linguagem não verbal, tendo a testemunha exemplificado com o seu próprio corpo o modo como o arguido lograva mostrar o seu pénis. D. explicou que o arguido envergava habitualmente roupa “casual” - calças de ganga e t-shirt - e que quando via as miúdas à frente da casa, elevava as mãos acima da cabeça, assim provocando a subida da t-shirt, deixando a descoberto o pénis uma vezes erecto, outras não, fora das suas calças.

Esclareceu que o arguido olhava para as raparigas enquanto exibia o seu pénis (facto também mencionado pelas outras menores) e que presenciou estes comportamentos muitas vezes ao longo do período temporal em causa, estando então habitualmente acompanhada de amigas, entre as quais, P e MC.

A. relatou, por seu turno, que presenciou dois comportamentos do arguido: um quando vinha da escola da parte da tarde, sozinha, altura em que o arguido estava à porta da sua casa, com o pénis fora das calças (mencionou inclusivamente que o colocou na mão e o “abanou” para cima e para baixo); o outro, quando regressava das piscinas, com a C, tendo nessa altura visto que o arguido tinha o pénis fora das calças.

Por seu turno, a menor C relatou a factualidade que se deixou descrita em 11, com total clareza e objectividade e mencionou que viu muitas vezes o arguido à porta de casa (quase todas as tardes) e que quando passava, sozinha ou acompanhada, ele levantava a camisa para cima, apercebendo-se, então, que ele tinha a braguilha das calças aberta, sendo visível o seu pénis.

H (hoje com 17 anos), AM (16 anos), MA (16 anos) e LH (16 anos) confirmaram que o arguido A. estava diariamente à porta de casa e que na escola, entre as alunas, eram comentados os seus comportamentos. Como não sabiam o seu nome, chamavam-lhe “o homem”. M. disse que o arguido sorria de forma estranha, quando passavam à frente da sua casa e que o mesmo não lhe inspirava qualquer confiança, razão pela qual evitava olhar para ele – uma das vezes teve a percepção de ter visto “um vulto” na zona da braguilha -, tendo optado por passar a circular do outro lado do passeio. LH também confirmou que as colegas e outras miúdas na escola falavam do comportamento do arguido e que, por isso, quando passava à sua porta e que se apercebia que o mesmo ali se encontrava, optava por não olhar para ele.

A prova apresentada pela defesa não logrou abalar minimamente a nossa convicção quanto à veracidade dos depoimentos que, em síntese, deixámos expostos.

Inexistem dúvidas que a rua onde reside o arguido é bastante movimentada, tratando-se de aspecto salientado espontaneamente por todas as menores já identificadas.

Os registos fotográficos juntos aos autos, nomeadamente, os que foram apresentados pelo arguido A. – cfr. fls. 509-534 – permitem confirmar as declarações das menores, nomeadamente, no que tange ao posicionamento da casa do arguido face à rua, nomeadamente, face ao passeio por onde habitualmente circulavam. Ainda de acordo com as declarações das menores, a configuração da rua e a posição da casa do arguido face à mesma, permitia ao arguido aperceber-se de quem circulava pelo passeio e de quem iria, por isso, passar junto à sua porta, sendo que, para os transeuntes, também era possível aperceberem-se da presença do arguido no exterior, à porta da sua residência, mesmo antes de passarem em frente à casa, facto que aqueles mesmo registos fotográficos evidenciam.

É inequívoco que o arguido só assumia os descritos comportamentos perante miúdas, de menor idade, e os alegados problemas de visão, referenciados a fls. 535 dos autos (cataratas em ambos os olhos, com 10% de diminuição de visão no olho direito e 30% de diminuição de visão no olho esquerdo) não eram susceptíveis de influir na percepção de quem se aproximava da porta da sua residência, nomeadamente, para distinguir se se tratava duma criança ou de um adulto. Acresce que o Crato é uma vila relativamente pequena e o arguido reside ali há muitos anos - como resulta do seu relatório social - conhecendo forçosamente algumas das menores que por ali passavam, a caminho da escola. Por outro lado, e atento o tipo de escola para onde as menores se dirigiam e que o arguido bem conhecia – escola onde é ministrado ensino até ao 9º ano de escolaridade - a maioria dos estudantes tem menos de 15 anos de idade e as menores MC, P, D, M, A e C, ainda hoje apresentam uma estatura física totalmente compatível com o desenvolvimento correspondente às respectivas idades, pelo que o arguido, homem experiente, com filhos, não poderia incorrer em qualquer tipo de erro sobre a idade das menores.

A roupa que o arguido usava habitualmente - camisas ou t-shirt por fora das calças - permitia-lhe, por seu turno, ter a braguilha das calças aberta, e o órgão genital fora das calças, sem que o mesmo fosse visível para os transeuntes e exibi-lo perante quem queria, bastando-lhe para tanto, baixar e levantar a camisa e ou t-shirt.

Sendo ainda inequívoco – apoiados nos depoimentos das menores, bem como nas regras da experiência comum – que o arguido apenas pretendia exibir o seu pénis perante menores de idade, os depoimentos dos adultos inquiridos em audiência, que afirmaram que nunca presenciaram comportamentos como os que estão em discussão, em nada abalam a nossa convicção quanto à veracidade dos depoimentos das menores, sendo crível e perfeitamente normal, aliás, que as vizinhas, as amigas e familiares do arguido (mulher e filhos) nunca se tenha confrontado com comportamentos de idêntica natureza. Também a convicção dessas testemunhas - apoiada na relação de amizade, de boa vizinhança e/ou familiar -, quanto à incapacidade e/ou impossibilidade do arguido A. assumir tal tipo de comportamento não abala, nem pode abalar, minimamente a nossa convicção quanto à veracidade dos factos em discussão, sendo do conhecimento comum que os amigos e sobretudo os familiares dos agentes deste tipo de comportamentos têm não só dificuldade em aceitar a realidade, como sofrem inequivocamente com ela, sendo perfeitamente normal que a neguem, tanto mais que na grande maioria dos casos nada presenciam. Efectivamente, no âmbito da criminalidade em referência, o agente sabe escolher a vítima e as circunstâncias em que pratica os actos criminosos, pelo que a convicção do tribunal, nestes casos, tem de fundar-se, na esmagadora maioria dos casos e, apenas, na análise crítica e conjunta das posições antagónicas apresentadas em audiência, isto é, nas posições sustentadas, respectivamente, pelo pretenso agente e pela(s) vítima(s), ou, nos casos em que o agente não presta declarações – como acontece nos autos - na avaliação crítica e conjugada de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência comum.

No caso, as declarações de CI, PM (filha do arguido), JM (filho do arguido), EM, AM, RM, MJ e MT, em nada abalaram a nossa convicção quanto à veracidade dos factos, posto que se limitaram a referir que nunca viram qualquer dos descritos comportamentos ao arguido e/ou que não acreditam que o mesmo fosse capaz de os levar a cabo. Também o testemunho de RB, mulher do arguido (que se limitou a negar os descritos comportamentos), em nada abalou a nossa convicção, tanto mais que a mesma evidenciou desconhecer em concreto a rotina do seu marido, na medida em que sai de manhã para o trabalho e só regressa à tarde, a casa, optando por almoçar no local de trabalho, pese embora resida a escassos metros do mesmo (é cozinheira na escola a que se vem fazendo referência).

Já em sede de alegações finais, foi colocado em causa o testemunho da menor P, por a mesma ter declarado ter presenciado alguns factos à hora do almoço e não dispor, como declarou, de autorização para sair da escola antes do final do horário escolar, donde resultaria, então, que naquele período, nunca poderia ter passado à frente da casa do arguido. Como é do conhecimento comum, até ao 6º ano de escolaridade, os encarregados de educação podem dar autorização para os alunos saírem a qualquer hora da escola ou então, só autorizarem que os mesmos se ausentem após o final de cada horário lectivo, nada impedindo, assim e obviamente, que findo o horário lectivo da manhã, o aluno saia, nomeadamente para almoçar fora da escola, e regresse, porventura, da parte da tarde, para novo horário lectivo, pelo que a dúvida suscitada pela defesa carece de total sentido e/ou fundamento.

Estranha, ainda, a defesa do arguido A., que os pais das menores não tenham dado conhecimento da situação à CPCJ do Crato, uma vez que elas falavam sobre o assunto. Ora, como resultou dos testemunhos de todas as menores, elas falavam sobre o comportamento do arguido A., mas entre si, e essencialmente no espaço da escola, tendo a maioria revelado em audiência terem tido receio, medo, de falarem sobre os comportamentos que presenciavam com os respectivos progenitores, comportamento que é normal em jovens desta faixa etária quando estão em causa actos de cariz sexual, como nos revelam as regras da experiência da vida. Efectivamente, crianças desta idade, têm habitualmente vergonha destas situações e vergonha de falarem sobre as mesmas com os pais, para além de medos de diferentes naturezas: medo de não merecerem credibilidade, medo de serem inclusivamente culpabilizadas pela situação, entre outros.

Os testemunhos de MC e de M. sustentam totalmente esta conclusão e realidade.

A MC declarou ter falado com os pais sobre os comportamentos do arguido A., mas que estes, inicialmente, aparentaram não acreditar em si, facto que o seu próprio pai, o arguido M, acabou por confirmar em audiência, tendo inclusivamente declarado que chegou a ralhar com a filha quando a mesma abordava o assunto.

Também a menor M. declarou que não contou nada aos pais por puro medo, que nem sequer logrou precisar e/ou justificar, o que é normal, como se disse, considerando não só a sua idade mas, também, e no caso concreto, a sua evidente timidez e personalidade reservada.

Não obstante o silêncio a que se remetem habitualmente as crianças, quando vítimas de comportamentos como os enunciados, é frequente a assumpção de condutas que constituem autênticos alertas, mas que não são atempadamente compreendidos pelos pais.

No caso, o comportamento de M. constitui exemplo de tal realidade, como resultou inequivocamente do testemunho de sua mãe, AM, professora e presidente da CPCJ do Crato.

Com espontaneidade, clareza, objectividade e total isenção, esta testemunha referiu que durante o período temporal em questão, a filha M começou a pedir-lhe para a acompanhar à escola, para a levar de carro, comportamento que estranhou, por a sua família ter optado, há muito, por deslocações pedonais e/ou de bicicleta pela vila, mas como a filha não justificou a sua atitude, não introduziu qualquer alteração nas suas rotinas diárias, sendo que só posteriormente, quando toda a situação foi despoletada – após a apresentação da queixa por parte do pai da MC – é que a filha lhe contou o que havia presenciado, percebendo, então a sua anterior atitude, perturbando-a, hoje, o facto de não a ter conseguido proteger oportunamente.

Serve o exposto para explicar que o facto dos pais das menores e/ou de serviços como a CPCJ não terem tido conhecimento oportuno dos comportamentos em questão não pode significar, obviamente, que os mesmos não correspondam à verdade.

Todas as menores foram unânimes, também, em referir, que se sentiram envergonhadas e incomodadas com o comportamento do arguido (a maioria nunca tinha visto um pénis de adulto), evidenciando ainda todo o seu comportamento receio perante toda a situação que vivenciaram, convicção esta que surge, reforçada, pelo testemunho de AM, no que tange a M e pelas declarações de MA, no que diz respeito à menor MC.

Apoiados nas regras da experiência comum podemos afirmar, com total segurança e convicção, que o arguido quis levar a cabo os descritos comportamentos, que sabia serem proibidos, atenta a sua natureza e a idade das menores, sendo evidente a sua motivação.

Em face do exposto, resultaram como provados os factos que se deixaram descritos sob os nºs 1 a 3, 5 a 14, 21 a 25 e como não provados os descritos em A) e B), posto que a factualidade aqui referenciada – meramente circunstancial e sem colocar minimamente em causa a essencialidade dos factos - não foi espontaneamente referida pelas testemunhas.

A situação fáctica referenciada em 4) resultou, por seu turno, como provada, com base no testemunho de MC e de P e, também, nas declarações do arguido MR, pai da primeira, que pese embora a sua posição processual depôs com objectividade, merecendo, por isso, a credibilidade do tribunal.

MC revelou maior dificuldade em abordar a factualidade mencionada em 4), tendo a sua expressão facial e corporal mudado a partir do momento em que se pronunciou sobre a situação vivenciada durante as festas do Crato (baixou a cabeça, encolheu os ombros como se se fechasse sobre si própria e as lágrimas começaram a cair repentina e silenciosamente pelo seu rosto), tendo dito por mais duma vez que não queria e/ou não gostava de falar sobre o assunto. Depôs, no entanto, com manifesta espontaneidade, objectividade e isenção, tendo o seu depoimento sido corroborado por P, que a acompanhava à data dos factos.

Estas duas menores, acompanhadas, duma terceira, MA - cujas declarações prestadas em sede de inquérito foram lidas em julgamento a pedido do arguido A., com a concordância dos demais intervenientes processuais – encontravam-se nas festas do Crato, na data mencionada em 4), à noite, a hora não concretamente apurada, como explicaram.

MC disse que a determinada altura viu o arguido a caminhar em sentido oposto, de frente para si, na sua direcção, e que ao passar por si, colocou a mão sobre a sua vagina, apertando-a, continuando o seu percurso. Declarou que teve medo, vontade de chorar (chora, ainda gora, enquanto relata estes acontecimentos) e que procurou logo os pais, chorando tanto, que não conseguiu contar-lhes, de imediato, o sucedido, tendo sido as amigas que o fizeram.

P, cujo depoimento nos mereceu, também, total credibilidade, dada a espontaneidade e isenção evidenciadas ao longo das suas declarações, declarou ter visto o arguido a apalpar a vagina da amiga, ao lado de quem se encontrava, tendo descrito o comportamento imediato desta, confirmando que chorava incessantemente, de tal modo, que quando encontraram os seus pais não lhes conseguiu contar, de imediato, o sucedido, tendo sido ela, P, que lhes relatou o episódio presenciado.

A testemunha MA estava com aquelas duas menores, mas declarou não ter visto o acto levado a cabo pelo arguido e que só depois da amiga ter começado a chorar lhe contaram o que havia sucedido.

Este depoimento em nada abala a credibilidade que nos mereceram as declarações das outras duas testemunhas, nomeadamente as da vítima, MC, sendo perfeitamente credível que de noite, num enquadramento como o das festas do Crato – que reúnem milhares de pessoas no recinto de festas, como é do conhecimento não só deste tribunal como da generalidade das pessoas residentes, pelo menos, nesta zona do Alto Alentejo, dada a publicidade que é feita a este evento, nomeadamente, em diversos meio de comunicação social – e numa situação dinâmica como aquela que nos foi descrita, outra ou outras pessoas que caminhassem junto das menores, não lograssem presenciar um comportamento súbito e inesperado, como o que foi levado a cabo pelo arguido. Um acontecimento não deixa de ser verídico pelo facto de não ser presenciado ou perceptível para todos quantos se encontrem no local da ocorrência, pois esta mera circunstância, de per si, não permite concluir que os olhares de todos quantos ali se encontrem estejam direccionados para o local do acontecimento, no exacto momento em que este efectivamente ocorre.
A psicóloga que vem acompanhando a MC - VC – traçou-nos o perfil psicológico da menor e deu conta dos seus sentimentos face aos factos vivenciados, explicando que ao estabelecer contacto físico com a menor, o arguido invadiu o seu espaço de segurança, fazendo-a temer outros comportamentos mais graves, comparativamente com os que anteriormente havia vivenciado (comportamentos exibicionistas), motivo pelo qual a menor tem, ainda hoje, dificuldade em abordar a questão.

Esclareceu, também, que a MC manifesta nojo, vergonha e medo face ao sucedido e que a clareza e coerência do discurso que vem mantendo nunca a fizeram duvidar da veracidade das situações ora em discussão.

As declarações de VC permitiram reforçar a nossa convicção quanto à veracidade do discurso de MC, tanto mais que o comportamento desta ao longo do seu depoimento em audiência – verbal e não verbal – não nos deixaram qualquer dúvida sobre o acerto das características da sua personalidade e sobre o impacto dos factos na sua vida.

O arguido MR descreveu, por seu turno, o estado em que a sua filha se encontrava quando chegou junto de si, conjuntamente com as amigas, e de como tomou conhecimento sobre o acto praticado pelo arguido (confirmou que a sua filha, que chorava muito, acabou por lhe contar, também, o que lhe tinha sucedido), esclarecendo os procedimentos que posteriormente desencadeou.

A prova apresentada e produzida pela defesa do arguido A. em nada abalou a convicção deste tribunal quanto à veracidade dos factos vivenciados por MC e presenciados por P.

As testemunhas PC (amiga do filho do arguido e que se deslocou ao Crato, a casa deste último, na data em discussão), RM (mulher do arguido), PA (filha do arguido), JM (filho do arguido) e EM (mãe do arguido) disseram que o arguido na data em questão, jantou em casa, com a família e que o jantar começou tarde - em virtude de terem aguardado por PC, que se deslocava para o Crato e se tinha atrasado –. Terminado o jantar, o arguido, a mulher e a sua mãe, EM, ainda estiveram a ver uma tourada na televisão, finda a qual, e como esclareceu RM, o arguido foi às festas na sua companhia, de braço dado consigo – como habitualmente acontece quando passeiam juntos - assim tendo permanecido durante todo o tempo que ali permaneceram.

Pese embora as pequenas discrepâncias registadas entre os referidos depoimentos sobre o dito jantar (PM disse que não jantou em casa dos pais, que nessa noite tinham visitas; a sua avó disse que jantaram todos em casa do seu filho, incluindo a sua neta; JM disse que jantou com os familiares e que só mais tarde é que jantaram os amigos, porque se tinham atrasado), admite-se que os depoimentos das sobreditas testemunhas possam ser verdadeiros e que tal jantar tenha efectivamente ocorrido. No entanto, depois do jantar, com excepção da mulher do arguido e da mãe deste, nenhuma das testemunhas esteve com ele e é certo que o mesmo esteve nas festas do Crato, porque a sua mulher assim o afirmou. No entanto, quanto à circunstância de ter andado sempre de braço dado com o marido, o seu depoimento não foi minimamente convincente, considerando, desde logo, que ao longo das suas declarações a testemunha deixou transparecer a existência dalgum distanciamento entre um e outro, bastando atentar na circunstância do arguido passar os dias sozinho em casa (só habita com a mulher, por os filhos terem as suas vidas autonomizadas, como resulta do relatório social junto aos autos), não usufruindo sequer da companhia da mulher à hora de almoço, por esta optar em permanecer na escola onde trabalha, durante esse período, apesar de tal escola se situar a escassos metros da sua residência.

Por último, quiseram as referidas testemunhas fazer crer ao tribunal que o arguido só se deslocou para as festas do Crato, por volta da meia noite ou já depois dessa hora, facto que, conjugado com as declarações de JC, demonstraria que aquele não poderia ter praticado os factos relatados por MC e P, por estes já se terem verificado.

Assim, JC veio dizer ao tribunal que quinze minutos antes da meia noite, da data em questão, encontrando-se no recinto das festas do Crato, viu uma miúda – que não sabia quem era – a encaminhar-se na direcção do ora arguido M, muito aflita, a dizer que estava a ser perseguida. Ora, segundo MC e P e também de acordo com as declarações do arguido M, que nos mereceram credibilidade pelos motivos já adiantados, a MC não assumiu qualquer comportamento como o que foi descrito por JC. Acresce que JC não indicou a distância a que se encontrava do arguido M, mas, das suas declarações, resultou que estaria necessariamente algo distanciado daquele, não sendo por isso minimamente credível que num recinto de festas como aquele em que se encontrava, onde o barulho, bem como o som dos espectáculos é constante e elevado (decorria, então, espectáculo de música, como foi referido por algumas testemunhas, nomeadamente, apresentadas pela defesa) conseguisse ouvir algo dito por alguém que não se encontrasse junto a si.

Foi evidente para este tribunal que JC foi trazido a juízo para situar no tempo um determinado facto que permitiria afastar o arguido A. da “cena do crime”, sendo que a tónica de todo o seu depoimento assentou na precisão horária do acontecimento alegadamente presenciado, apresentando como justificação para essa sua excelente memória, a circunstância de ter tido necessidade de se ausentar das festas para ir dar antibiótico a um neto, justificação que, só por si, desacompanhada doutros esclarecimentos e pela sua manifesta fragilidade, nunca poderia sustentar a credibilidade do seu depoimento.

Pelo exposto, não temos dúvidas em afirmar que o episódio narrado por JC não tem correspondência com a realidade, nomeadamente com a apurada nestes autos, e a ter acontecido algo idêntico ao descrito, foram outros, necessariamente, os intervenientes, cabendo recordar que esta testemunha declarou espontaneamente não conhecer, então, a MC.

Deste modo, e concluindo, a fragilidade e inconsistência dos referidos elementos de prova em nada abalaram a convicção deste tribunal quanto à veracidade da situação relatada sob o nº 4 e, consequentemente, sob os pontos nºs 14, 23 a 25, firmada nos depoimentos objectivos, isentos e sólidos de MC, P e do próprio arguido MR.

A convicção do tribunal quanto aos factos descritos em 31 e 32 funda-se, por seu turno, nas declarações da própria menor MC, corroboradas pelo testemunho da psicóloga (VC) que a vem acompanhando em consequência dos factos que foi constrangida a suportar, e pelas declarações de MR, que deu conta do comportamento da sua filha ao longo de todo o período temporal em referência.

No que tange, no entanto, ao aproveitamento escolar daquela menor, não foi possível estabelecer qualquer nexo de causalidade entre os comportamentos em referência e o seu rendimento e sucesso escolar. Por um lado, MC não teve, sequer, falta de aproveitamento escolar no ano lectivo em causa, por outro, as dificuldades de aprendizagem que apresenta – confirmadas pela psicóloga e pelo próprio arguido M – são anteriores a toda esta situação, tendo a MC sofrido inclusivamente uma retenção no 4º ano de escolaridade, facto que hodiernamente acaba por ser uma situação algo excepcional ao nível da avaliação do ensino básico.

Em consequência do exposto, resultou como não provado o facto descrito em AF) e também em AG), sendo que a último facto referenciado nesta alínea não logrou ser confirmado em audiência, nomeadamente, pela psicóloga que acompanha a MC.

Os factos relacionados com condição social e económica e financeira do arguido A. (nºs 33 a 42) fundam-se no relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social, que se encontra nos autos (fls. 571-573).

O conhecimento sobre os seus antecedentes criminais (facto nº 47) advém do certificado de registo criminal de fls. 490-492.

O arguido MR pronunciou-se sobre os factos que lhe são imputados na acusação particular, esclarecendo o contexto em que se confrontou com o arguido A. (surpreendeu-o a perseguir a filha, num jardim da vila do Crato, depois dos acontecimentos ocorridos nas festas de final de Agosto daquela localidade), tendo declarado não se recordar das expressões que em concreto lhe dirigiu.

A. não prestou declarações.

A mulher deste arguido, RM, relatou em audiência o que o marido lhe contou sobre os alegados acontecimentos ocorridos no dia 21 de Setembro de 2011, no jardim do Crato, mas o seu depoimento – indirecto – não logrou ser corroborado por qualquer outro dos meios de prova produzidos em audiência, nomeadamente, pela prova testemunhal apresentada e produzida, posto que nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou os factos em questão. Deste modo, e na ausência de qualquer outra prova, não pode ser conferido valor probatório ao depoimento indirecto de RM (tanto mais que o seu testemunho não se revelou minimamente objectivo, isento e/ou desinteressado), assim tendo resultado como não provados os factos descrito em D) e H), bem como os mencionados em E), F), e G), posto que nenhuma prova foi produzida sobre estes e as declarações de MR, que se mostraram credíveis, porque compatíveis com toda a situação anteriormente vivenciada pela sua filha MC, permitem concluir pela total inverosimilhança da versão dos factos vertida na acusação particular.

O arguido MR confirmou que após as festas do Crato e os acontecimentos ocorridos em 21 de Setembro, data em que apresentou formalmente queixa na GNR (vide Auto de Notícia de fls. 3), o comportamento do arguido foi comentado na vila do Crato, em diversos locais – nas ruas e estabelecimentos comerciais -, tendo ele próprio comentado, pontualmente, a situação concretamente relacionada com a sua filha, quando o abordavam directamente sobre o assunto, o que foi confirmado pela testemunha JS (facto nº 28).

As testemunhas indicadas pela acusação particular confirmaram que o comportamento do arguido A., nomeadamente no que concerne à menor MC, foi comentado na vila do Crato - pese embora nenhuma delas tenha confirmado que a veiculação da notícia tenha sido levada a cabo pelo arguido M –.

Ponderando a natureza dos acontecimentos em questão, a dimensão da vila onde habitam os intervenientes e a circunstância do arguido Moisés ter desencadeado a investigação sobre a conduta de A. determinando, assim, que outras menores começassem a relatar os acontecimentos vivenciados (esta última situação foi confirmada pela testemunha AM), não seria de esperar outra reacção que não aquela que foi relatada pelas testemunhas e pelo próprio arguido M. No entanto, e como resulta de tudo quanto anteriormente se deixou dito, os factos que eram comentados e imputados ao arguido A. são verdadeiros, pelo que as consequências sofridas por este arguido e/ou pela sua família resultam da ocorrência efectiva de tais acontecimentos e não de qualquer comportamento do arguido MR.

Deste modo, resultaram como provados os factos nºs 26, 27 e 30 (estes dois últimos resultam, também do relatório social referente ao arguido A.) e como não provada a factualidade que se deixou descrita sob as alíneas I) a AF), salientando-se, no que tange às alíneas J) e R), que os factos apurados nesta audiência não nos permitem ter como verdadeira a factualidade ali referenciada, pese embora os depoimentos das testemunhas de defesa e a circunstância do arguido estar socialmente inserido, como resulta do seu relatório social.

Por ausência de prova resultou como não provado o facto descrito em AI).

As condições sociais, económicas e financeiras do arguido MR fundam-se no relatório social que lhe diz respeito e que se encontra nos autos (fls. 544-546).

A ausência de antecedentes criminais daquele arguido é atestada pelo seu certificado de registo criminal (fls. 468).

Não foram atendidos factos de índole exclusivamente conclusiva e/ou conceitos de direito”.

Começa por se consignar que o texto do acórdão revela um exame crítico de prova que constitui exemplo de bem motivar. Ali se procede à explicitação do processo lógico-mental de formação da convicção de “provado” e de “não provado” relativamente aos factos considerados como tal. Não revela erros de raciocínio nem soluções de descontinuidade na apreciação das provas e nos resultados atingidos, faz correcto apelo às regras da experiência comum, retira dos vários contributos probatórios conclusões factuais que se apresentam como racionalmente justificadas. De registar no entanto um lapso (pertinentemente sinalizado pelo recorrente) a que se aludirá em momento próprio, mas que, no contexto global das provas, se revelará como inconsequente.

Podemos, pois, adiantar que, do confronto da fundamentação de facto do acórdão com as razões do recurso, sempre dentro da margem de cognição da segunda instância que precisámos, resulta que o recurso da matéria de facto improcederá.

O acórdão responde por antecipação a todas as objecções do recorrente. Como nele se reconhece, a prova dos factos impugnados assentou em grande parte nas declarações das ofendidas, pois elas relataram os factos provados em sentido confirmativo e de um modo que se afigurou ao tribunal como credível pelas razões que explicita.

Esta prova foi ainda corroborada por outra prova complementar (assim, por exemplo, o depoimento dos progenitores das vítimas), e conferiu-se-lhe também sentido na concordância com outros factos conhecidos (assim a avaliação da dimensão do local/povoação da ocorrência dos factos e das relações de vizinhança e proximidade) e com as regras do normal acontecer. É com base nestas regras (da experiência comum) que o tribunal deve julgar, e assim se mostra julgado.

Como desenvolve Paulo de Sousa Mendes em interessante estudo, “na maior parte das vezes o juiz historiador terá de lançar mão de um procedimento indiciário, recorrendo à percepção de meros factos probatórios através dos quais procurará provar o facto principal.

Como se sabe, a prova indiciária é aquela que permite a passagem do facto conhecido ao facto desconhecido. É neste campo que as regras da experiência se tornam necessárias, na medida em que ajudam à realização dessa passagem. Seja como for, a apreensão do facto principal terá, no final, de ser feita de um modo totalizante, pois o juiz historiador nunca pode perder de vista que lhe cabe fazer um juízo objectivo, concreto e atípico acerca do caso decidendo.” (Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002).

O autor discorre sobre a importância das regras da experiência na apreciação da prova, mas chama a atenção para as especificidades e as particularidades da prova, advertindo que estas regras da experiência não se podem transformar em “meras ficções de prova”, o que a verificar-se constituiria, “de forma encapotada”, um regresso ao “sistema da prova legal”.

Insistindo em que “a prova é particularística sempre”, esclarece que “as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida” e que ficam sujeitas à livre apreciação do juiz”.
Ainda nas palavras do autor, as regras da experiência são “argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer, já se sabendo porém que o caso particular pode ficar fora do caso típico”. Daí que o juiz não deva “confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto” e que possa vir a decidir contra as regras da experiência.

No presente caso, e na avaliação do real concreto que se expunha ao tribunal de primeira instância, nada revela que o julgador se devesse ter afastado da explicação do caso fora daquilo que se apresentou como normal acontecer.

E tendo-se mostrado credíveis os depoimentos das vítimas avaliados de per si e no conjunto de todas as provas, não se conhecendo motivo de suspeição destas mesmas testemunhas, não se vê por que razão deveriam ter suscitado a dúvida que o recorrente pretende. Pois essa dúvida não resultaria também, e necessariamente, das aparentes e pontuais discordâncias entre parcelas de depoimentos.

Note-se que nestas discrepâncias não estamos a incluir a alegação de que “as testemunhas AR, MC e L que frequentavam a mesma escola e faziam o mesmo percurso com horários coincidentes nada viram”.

Não se trata aqui de reais discrepâncias. Inexiste divergência efectiva, desde logo porque destes depoimentos não resulta que estas testemunhas tenham sempre acompanhado de perto as menores vítimas, fazendo-o nos dias em que a estas terá sido exibido o pénis do arguido, e em condições de, a assim ter sucedido, terem também que o ter visualizado.

Também relativamente ao episódio ocorrido nas festas do Crato, o acórdão é exaustivo e explícito na justificação das conclusões de facto. Mais uma vez a alegação de que o argumento da “dinâmica da festa” utilizado no acórdão para retirar utilidade a depoimentos de sinal contrário ao da vítima (como o da testemunha JC) deveria ter também contaminado o depoimento desta, não procede. Pois mais uma vez a arguição dispendida é geral e abstracta, sem contextualização no caso concreto, particularização a que o tribunal, este sim, procedeu, cumprindo a recomendação de Stelle de que “a prova é particularística sempre”.

E sobre outras eventuais disparidades decorrentes da prova oral, lembrar-se-á apenas que as pontuais dissemelhanças sinalizadas não só não têm a virtualidade pretendida pelo recorrente (de fragilização da versão da acusação, de criação da dúvida e de alteração da matéria de facto no sentido da absolvição), como dão força à versão da acusação.

Na verdade, essas pequenas disparidades são aquelas que acontecem naturalmente na multiplicidade de depoimentos. Os testemunhos prestados desta forma serão até tendencialmente mais verdadeiros pois mostra a experiência que a concertação e treino de versões “falsas” dará mais facilmente lugar a descrições de factos modelarmente análogas e admiravelmente homogéneas.

Não se mostra atendível que as declarações das vítimas, no presente contexto e no conjunto de todas as provas corroborantes produzidas e examinadas, não possam constituir prova bastante dos factos provados, tudo de acordo com o explanado na motivação do acórdão que o recorrente não questionou de modo eficaz.

O tribunal de julgamento percebeu, enfrentou e tratou tais disparidades. Assim, recorde-se, por exemplo: “Os depoimentos dumas e doutras não foram isentos de algumas discrepâncias – ainda que sobre aspectos não essenciais – facto que não só não permitiu suscitar qualquer dúvida sobre os seus depoimentos, como reforçar a nossa convicção sobre a total veracidade dos mesmos.

Efectivamente, tendo em atenção o período de tempo ao longo do qual o arguido A. manteve o comportamento a que infra nos reportaremos, não seria crível que qualquer das sobreditas menores lograsse indicar, com total precisão, todos os comportamentos presenciados, as datas em que ocorreram e, ainda, identificar todas as pessoas na companhia de quem presenciaram cada um de tais comportamentos, sendo certo que como já se afirmou, eram variáveis os grupos que integravam quando se deslocavam para a escola e/ou outro local e, mesmo integrando determinado grupo, não teria cada uma delas de ver o que as outras viam, dada a dinâmica inerente à deslocação em grupo, pela via pública, especialmente se atentarmos no modo como os adolescentes transitam habitualmente em grupo, pelas ruas (falando entre si, uns mais à frente, outros mais atrás, rindo, brincando…).”

Também relativamente ao facto provado em 14. - “As menores ficaram assustadas, receosas, intimidadas, perturbadas e constrangidas com as actuações do arguido” – não vale o argumento de que a senhora juíza presidente sugestionou as depoentes e condicionou as respostas “tendo-se todas elas limitado a anuir à pergunta que insistentemente lhes era colocada “isso incomodava-te?”.

O princípio da investigação compreende a procura da verdade (da verdade prático-jurídica). Não sendo indiferente o modo como se procura essa verdade, o tribunal deve abstrair-se de condutas que possam condicionar ou fazer perigar a prova.

No que respeita à produção de prova testemunhal, visa-se a obtenção de um depoimento livre, espontâneo e verdadeiro. Para tanto, ensinam as regras da psicologia do testemunho, a testemunha deve ser protegida de qualquer pressão, ameaça, ou intimidação – externa ou interna – e não pode ser sugestionada nem condicionada nas suas respostas. Daí decorrer também da lei que à testemunha não podem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas (art. 138º, nº2 do Código de Processo Penal), beneficiando mesmo de regras legais de protecção (art. 139º do Código de Processo Penal).

Sendo-se magistrado ou advogado por profissão mas testemunha por acidente, no momento do depoimento, prestado em local estranho mediante procedimento solene que não domina, a pessoa-testemunha encontra-se compreensivelmente em situação de tensão. No caso, as concretas declarantes acrescentavam ainda a dupla condição de vítimas e de vítimas de menor idade. Não se tratava, pois, aqui, da audição de testemunhas comuns, no sentido de testemunhas-padrão.

A prova por declarações da vítima menor de idade coloca específicos problemas ao nível da obtenção, da produção, da apreciação e da valoração (vide, entre outros, Ana Sacau, A Prova por Declarações da Vítima Menor de Idade, Rev.do CEJ, nº 15, pp. 317-327).

Tendo em conta que se trataria da evocação de um episódio traumático – trauma que, no entanto, surgirá mais atenuado no momento do julgamento dado o tempo decorrido e a maior maturidade entretanto atingida pelas declarantes –, aceita-se que as perguntas formuladas pela senhora juíza presidente, no presente contexto e no preciso modo como o foram, não expressam violação das regras de obtenção de prova, especificamente do art. 138º, nº 2 do Código de Processo Penal.

A tomada de declarações e a obtenção de depoimento não é um procedimento rígido, formal e asséptico. O juiz interage com a prova pessoal, devendo conduzir a inquirição do modo que, interactivamente, se lhe for revelando mais conveniente à descoberta da verdade. E se as circunstâncias do caso, especificamente as características da personalidade da concreta testemunha, por um lado, e do próprio episódio evocado no depoimento, pelo outro, conduzirem à formulação de questões menos rigorosas numa perspectiva ideal-abstracta de acordo com os cânones da inquirição, a consequência não será a da forçosa inutilização da resposta, mas a de uma avaliação mais criteriosa.

O exame crítico da prova não revela que o tribunal tenha descurado estas regras ou princípios. A prova do facto impugnado assentou não só no que o tribunal ouviu em resposta às perguntas alegadamente sugestivas, mas também no que viu e percepcionou directamente (veja-se, por exemplo, as passagens seguintes da motivação: “MC revelou maior dificuldade em abordar a factualidade mencionada em 4), tendo a sua expressão facial e corporal mudado a partir do momento em que se pronunciou sobre a situação vivenciada durante as festas do Crato (baixou a cabeça, encolheu os ombros como se se fechasse sobre si própria e as lágrimas começaram a cair repentina e silenciosamente pelo seu rosto), tendo dito por mais duma vez que não queria e/ou não gostava de falar sobre o assunto. Depôs, no entanto, com manifesta espontaneidade, objectividade e isenção, tendo o seu depoimento sido corroborado por P, que a acompanhava à data dos factos. (…) Declarou que teve medo, vontade de chorar (chora, ainda agora, enquanto relata estes acontecimentos) e que procurou logo os pais, chorando tanto, que não conseguiu contar-lhes, de imediato, o sucedido, tendo sido as amigas que o fizeram”).

Não se trata aqui, e agora, de sobreavaliar uma “mística da imediação”, assente em pretensos poderes de adivinhação que o juiz seguramente não possui (sobre as valências da imediação se pronunciou a relatora em “Os Poderes de Cognição das Relações em Matéria de Facto”, Rev. Terra de Lei, nº 3, 2013, também disponível em www.cej.mj.pt), mas tão só de testar a validade da certificação que o tribunal de julgamento apresenta quanto à formação da sua convicção, convicção em que entra necessariamente aquilo que o tribunal viu directamente.

Cumpre tratar agora o argumento de que o tribunal incorreu em engano na leitura de uma das provas (o documento especificada). Este erro de percepção, denunciado no recurso, ocorre efectivamente. No entanto, não chega a afectar as conclusões a que o tribunal chegou.

Referimo-nos ao ponto de facto “conhecimento da idade das vítimas por parte do arguido” e à prova documental junta a fls 535.

Este documento consubstancia uma declaração médica da qual resulta que, à data dos factos (e antes de ter sido sujeito a uma operação às cataratas entretanto realizada), o arguido dispunha de 10% de visão no olho direito e de 30% de visão no olho esquerdo. O que é bem diverso de ter apenas “10% de diminuição de visão no olho direito e 30% de diminuição de visão no olho esquerdo”, como se escreveu no acórdão.

Deste erro de apreensão da prova resultaria que o tribunal procedeu a uma avaliação probatória pressupondo erradamente que o arguido tinha mais e melhor visão do que aquela de que efectivamente dispunha. Trata-se de um erro de apreensão da prova abstractamente valioso, é certo, mas que, em concreto e no caso presente, se apresenta como inconsequente.

Na verdade, não se tratava aqui da avaliação das capacidades de percepção de um agente do crime que tenha visualizado uma vítima, isoladamente, por escassos momentos e por uma só vez, num outro lugar da terra. Nesse contexto hipotético, uma acentuada falta de visão de um outro também hipotético agente ter-se-ia mostrado relevante.

Mas a situação de vida objecto do processo apresenta contornos bem diversos. O arguido co-habita com uma funcionária da escola frequentada pelas menores e para onde estas se deslocavam diariamente.

Passavam repetidamente pela rua do arguido e eram visualizadas também amiúde por ele. O estabelecimento de educação em causa ministra o ensino até ao 9º ano de escolaridade, sendo logicamente frequentado por crianças com uma idade compatível, o que este arguido não podia deixar de saber. As menores em causa frequentavam os 5º, 6º e 7º anos de escolaridade e tinham 11, 12 e 13 anos à data dos factos.

Neste preciso contexto, perde interesse a sinalização do lapso detectado no exame do documento especificado, mantendo-se avalizada a argumentação desenvolvida no acórdão, bem como as conclusões de facto “conhecimento da idade das vítimas” – “É inequívoco que o arguido só assumia os descritos comportamentos perante miúdas, de menor idade, e os alegados problemas de visão, referenciados a fls. 535 dos autos (cataratas em ambos os olhos, com 10% de diminuição de visão no olho direito e 30% de diminuição de visão no olho esquerdo) não eram susceptíveis de influir na percepção de quem se aproximava da porta da sua residência, nomeadamente, para distinguir se se tratava duma criança ou de um adulto. Acresce que o Crato é uma vila relativamente pequena e o arguido reside ali há muitos anos - como resulta do seu relatório social - conhecendo forçosamente algumas das menores que por ali passavam, a caminho da escola. Por outro lado, e atento o tipo de escola para onde as menores se dirigiam e que o arguido bem conhecia – escola onde é ministrado ensino até ao 9º ano de escolaridade - a maioria dos estudantes tem menos de 15 anos de idade e as menores MC, P, D, M, A e C, ainda hoje apresentam uma estatura física totalmente compatível com o desenvolvimento correspondente às respectivas idades, pelo que o arguido, homem experiente, com filhos, não poderia incorrer em qualquer tipo de erro sobre a idade das menores.

Também demasiado frágil se apresentaria o argumento (mais uma vez geral, abstracto e descontextualizado) de que se deveria “atender ao desenvolvimento precoce que nos dias de hoje se verifica nas menores”, quando o tribunal revela ter atentado expressamente nestas menores: “MC, P, D, M, A e C, ainda hoje apresentam uma estatura física totalmente compatível com o desenvolvimento correspondente às respectivas idades”.

Por último, consigna-se que são despropositadas as referências feitas na motivação a uma suposta utilização indevida de testemunhos de ouvir dizer (na visão do recorrente, utilizado para “reforçar a fundamentação na imputação dos crimes ao arguido”), pois o depoimento indirecto – no sentido de narração de um facto que não se presenciou e cujo relato se recebeu de terceiro – não constitui prova proibida a se.

De acordo com a disciplina do art. 129º do Código de Processo Penal, o depoimento indirecto é viabilizável dentro de determinadas condições. Pressupõe o cumprimento de regras e procedimentos, sob pena de não poder servir como meio de prova.

Dito de outro modo, o Código de Processo Penal não veda a admissão e valoração do depoimento indirecto, estabelece apenas condições para a sua utilizabilidade (assim, Carlos Adérito Teixeira, Depoimento indirecto e arguido, Rev. Cej., 2, p. 130).

Não decorre do exame crítico da prova – nem, note-se, o recorrente o especifica, concretizando –, em que pontos ou momentos o tribunal terá julgado em infracção ao disposto no art. 129º do Código de Processo Penal. Ou seja, não se detectam no acórdão quaisquer resultados probatórios (factos considerados como assentes) provenientes de depoimento indirecto relativamente ao qual não tenha sido chamada a ser ouvida a testemunha-fonte.

Por todo o exposto, do confronto das razões do recurso com a motivação da matéria de facto do acórdão, resulta que não se detecta desconformidade entre o que terá sido dito em julgamento e aquilo que o tribunal diz ter ouvido; que as provas valoradas não são proibidas nem foram produzidas fora das regras procedimentais respectivas; que o tribunal justificou racionalmente e logicamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios; que a provas de sinal contrário foi atribuído valor positivo ou negativo de um modo sempre racionalmente justificado de acordo com regras de lógica e de experiência comum. Dito de outro modo, não se evidencia que nenhuma circunstância que apontasse em sentido contrário ao decidido se tenha demonstrado em julgamento na intensidade mínima de dever ter suscitado dúvida razoável sobre os factos provados.

Factos esses que, refira-se para concluir, resultaram de uma ampla discussão em contraditório, tendo por base uma acusação suficientemente concretizada que o permitiu, encontrando-se os factos imputados amplamente situados no lugar e razoavelmente balizados no espaço e no tempo, de modo a viabilizar, assegurando-o, um pleno exercício dos direitos de defesa. Não ocorreu, pois, a propalada violação de preceito constitucional nem, acrescente-se, do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

(b) Do erro de subsunção

O arguido pugna pela absolvição, fazendo-o, em grande parte, na decorrência do recurso da matéria de facto (como sucede, por exemplo, no que respeita ao pretenso desconhecimento da idade das vítimas).

A improcedência daquele compromete a procedência, também aqui.

Acrescenta, contudo, que os factos provados também não integrariam os dois tipos de crime, pois “a exibição do pénis, só por si, não consubstancia qualquer acto de natureza sexual” e “não ficou demonstrada a hipótese de que se seguisse o perigo da prática de um acto sexual que ofendesse a liberdade de autodeterminação sexual das menores” nem que “tal conduta prejudique gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade”.

O arguido circunscreveu a problematização do enquadramento jurídico-penal dos factos, em recurso, à questão do preenchimento dos tipos de crime da condenação, pelo que cumpre sindicar a decisão de direito apenas na parte impugnada.

Os tipos de crime da condenação foram o de abuso sexual de criança previsto no art. 171º, nº 3, al. a) e o de importunação sexual previsto no art. 170º, do Código Penal.

O art. 171º, nº 3, alínea a) pune quem “importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no art. 170º”. E o art. 170º pune “quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”.

Como se vê, a incidência objectiva dos dois tipos é a mesma, residindo a única especificidade na “idade da vítima” (assim, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2012, p. 836). O que não significa, no entanto, que a prática de factos idênticos realize então necessariamente um e o outro tipo de crime, dependendo apenas da diferente idade da vítima, como se verá.

Não estando já a problemática da idade da vítima em discussão no recurso – pois da improcedência da impugnação da matéria de facto resultou a fixação dos factos que realizam o elemento típico “menor de 14 anos”, quer na componente objectiva, quer subjectiva (esta, desdobrada nas vertentes do “saber” e “querer” os factos objectivos, já que de um tipo doloso se trata) – a controvérsia reduz-se agora ao preenchimento dos elementos “importunação de outra pessoa praticando perante ela acto de carácter exibicionista” e “constrangimento a contacto de natureza sexual”.

Antes de avançar, consigna-se que a esta segunda modalidade - do “constrangimento a contacto de natureza sexual” - se reportam apenas os factos ocorridos nas festas do Crato, relativamente aos quais não houve impugnação de direito (apenas de facto), e que não suscitam particular discussão. Pelo que nos concentraremos, essencialmente, na “importunação de outra pessoa” através de “acto de carácter exibicionista”

O bem jurídico protegido pelos crimes sexuais (Código Penal, capítulo V, secções I e II) é o da liberdade e autodeterminação sexual da pessoa (toda a pessoa, independentemente da idade), ligando-se estes bens jurídicos, nos casos dos crimes da secção II, ainda ao desenvolvimento livre da personalidade do menor na esfera sexual (assim, Figueiredo Dias, loc. cit., p. 711).

No caso de vítimas de menor idade o bem jurídico assume assim uma natureza complexa, protegendo-se “o desenvolvimento sem entraves da identidade sexual do menor” (v. Figueiredo Dias, loc. cit. p. 712),
A realização do tipo (dos dois tipos de ilícito) na modalidade que mais interessa aqui, exige a prática de acto exibicionista que cause importunação, ou seja, acto exibicionista que perturbe outra pessoa (menor de 14 anos, no caso do art. 171º, nº 3 alínea a)) na sua esfera sexual.

Esta exigência de “perturbação”, no caso do art. 171º, nº 3 alínea a), ou seja, relativamente a vítimas de menor idade, pode parecer incoerente na disciplina do Código, de afirmação da “função de protecção penal da criança e do adolescente” (Figueiredo Dias, loc. cit. p. 712), pois o legislador pressupõe sempre que o menor de 14 anos é desprovido de capacidade para se autodeterminar sexualmente (no sentido da incoerência se pronuncia Carmo Dias, em Notas substantivas sobre os crimes sexuais com vítimas menores de idade, Rev. do Cej, 15, p. 230).

Cremos, no entanto, que esta exigência acaba por fortalecer a justificação da incriminação no caso do tipo do art. 171º, nº 3 alínea a) – justificação que já poderia claudicar no caso do art. 170º –, no sentido de se descortinar aqui, por esta via, um atentado ao livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.

Exige-se sempre (nos arts. 170º e 171º, nº 3-alínea a) do Código Penal), que o acto exibicionista cause perturbação. Não tendo existido essa perturbação, os tipos não se realizam – como sucederá, no exemplo de Carmo Dias, quando “o acto exibicionista não perturbou o menor de 14 anos que era pessoa experiente, informada e com um grau de desenvolvimento mental superior” (loc. cit.).

“Acto exibicionista” será um acto ou gesto, relacionado com o sexo, ocorrido perante a vítima.

A “importunação” implica perturbação da vítima na sua esfera sexual.

Comentando o art. 170º do Código Penal, Anabela Rodrigues defende que se trata de um crime de perigo concreto, já que “não é o acto em si que é passível de punição”, mas “o perigo que representa de constituir uma agressão à liberdade sexual da pessoa perante a qual é praticado” (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 2012, p. 818).

A autora pronuncia-se abertamente no sentido de dever ficar fora do tipo tudo aquilo que seja uma mera expressão de uma “imoralidade intrínseca” do agente, e de dever ser “definitivamente afastado qualquer entendimento que persista em ver na incriminação da prática de actos exibicionistas a protecção da moralidade ou do pudor de outrem”.

Conclui que “não é o acto em si que é passível de punição – por ter, como tem, na maioria dos casos um significado atentatório desses valores –, mas o perigo que representa de constituir uma agressão à (uma violação da) liberdade sexual da pessoa perante a qual é praticado” (loc.cit).

Carmo Dias manifesta-se no sentido da desnecessidade da incriminação da conduta relativa à prática de actos de carácter exibicionista quando a vítima é pessoa adulta, mas conclui, porém, que “o que se diz na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 98/X é que o dito crime de importunação sexual é criado “para garantir a defesa plena da liberdade sexual” e “que abrange, para além do exibicionismo, o constrangimento a contactos de natureza sexual que não constituam actos sexuais de relevo” (em Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Rev. Cej nº 8 especial, p. 236/7),

A opção legislativa foi pois a de punir a exibição de acto de natureza sexual que perturbe a vítima, protegendo “de forma mais distante” a liberdade sexual, mas protegendo-a ainda, “uma vez que o que está verdadeiramente em causa é a liberdade pessoal de acção ou omissão” (Carmo Dias, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Rev. Cej nº 8 especial, p. 236/7).

No entanto, a interpretação do tipo à luz do critério do bem jurídico, e a sua configuração como um crime de perigo concreto (para a liberdade sexual da pessoa) – “o que resulta do tipo, ao exigir que o agente “importune” a vítima com o seu acto” (Anabela Rodrigues, loc. cit) – obriga a que, para a sua realização, se exija uma determinada realidade que inclua “que o acto exibicionista represente para a pessoa-vítima um perigo de que se lhe siga a prática de uma acto sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual por forma a constituir crime”. Pois, como conclui ainda Anabela Rodrigues “só assim se pode dizer que é a liberdade sexual da pessoa visada com o acto exibicionista, já quando esta liberdade está em perigo, que a incriminação visa proteger”

Diz-se no acórdão sub judice que “emerge da factualidade apurada nos autos que ao longo do período temporal supra assinalado e nas circunstâncias concretamente referidas em 1 a 3, 5 e 7 a 12, o arguido exibiu o seu pénis – algumas das vezes em erecção – perante MC, P, M, A, D e CM, à data todas menores de catorze anos. Numa dessas circunstâncias – facto nº 12 – para além de exibir o seu pénis perante a menor A, o arguido, agarrando aquele seu órgão, abanou-o perante ela. No dia 27 de Agosto de 2011, durante a noite, no recinto das festas do Crato, o arguido aproximou-se da menor MC e apalpou-lhe a vagina (zona do corpo com inquestionável significado sexual) por cima da roupa que trazia vestida.”

Provou-se também que “em consequência das descritas condutas, as menores ficaram assustadas, receosas, intimidadas e perturbadas”.

Por tudo o que se disse, é de concluir que a exibição do pénis e/ou o seu manuseamento, erecto ou não, nas circunstâncias descritas nos factos provados consubstancia “acto relacionado com o sexo”. O apalpar de vagina por cima da roupa consubstancia “contacto de natureza sexual”.

É igualmente de concluir que a prática destes actos perante vítimas menores de 14 anos, a quem, por via deles, se causou efectivo receio, susto, intimidação e perturbação (como se provou), consubstancia, no primeiro grupo de casos, uma “importunação” e, no segundo, um “constrangimento a”. Pois a conduta do arguido, nas situações enquadráveis no tipo do art. 171º, nº 3, alínea a) do Código Penal, atingiu a liberdade das vítimas na vertente da sua autodeterminação sexual, já que tal conduta é de considerar em concreto como perturbadora do desenvolvimento livre da sexualidade das menores atingidas.

Será, pois, de confirmar a decisão condenatória, na parte em que se pronuncia pela realização do(s) crime(s) previstos no art. 171º, nº3, alínea a) do Código Penal.

Já assim não sucede relativamente ao(s) crime(s) do art. 170º do Código Penal (estes, na modalidade da “importunação”).

Justificou-se, nesta parte, a condenação no acórdão: “Como decorre da matéria factual apurada em audiência de julgamento, já depois da menor D ter completado 14 anos de idade, em Maio de 2011, o arguido e até ao final de Julho de 2011, em datas não apuradas, mas por mais de uma vez (logo, pelo menos, duas vezes) e nas mesmas circunstâncias atrás referenciadas, continuou a exibir-lhe o seu órgão genital masculino, com o intuito, consciência e vontade acima mencionadas. Nestes termos, ponderando tudo quanto anteriormente se deixou dito a propósito daquele tipo legal de crime e face à factualidade apurada nos autos, incorreu o arguido na prática de dois crimes de importunação sexual, tal como vem acusado.”

Esta não é, porém, a conclusão de direito a retirar dos factos provados.

Nos casos de vítima “maior”, em que já não está em causa a tutela de um desenvolvimento livre da personalidade sexual (mas apenas da liberdade sexual), o tipo sempre exigiria a prova de factos complementares, dos quais tivesse resultado que o acto exibicionista teria representado, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de acto sexual que ofendesse a sua liberdade sexual. Só assim se poderia considerar ter sido atingido o bem jurídico protegido por este tipo de crime, o da liberdade sexual, tipo que já não protege o desenvolvimento livre da personalidade sexual de menor de 14 anos.

O que não sucedeu.

E tendo sido esta a única questão suscitada no recurso da decisão de direito em matéria penal, o enquadramento jurídico dos factos é de considerar como confirmado, e no modo como se encontra decidido no acórdão, na parte relativa aos crimes do art. 171, nº 3, alínea a) do Código Penal.

Será já de revogar na parte relativa aos crimes do art. 170º do Código Penal, impondo-se aí a absolvição.

(c) Da reformulação oficiosa do cúmulo jurídico de penas

Embora a questão da pena não tenha sido incluída (pelo recorrente) no objecto do seu recurso, a supressão de dois dos crimes da condenação importará a reformulação oficiosa do cúmulo jurídico das penas parcelares, sendo estas, no entanto, de aceitar como definitivamente fixadas.

O arguido foi condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na execução com regime de prova e condicionada ao pagamento de € 4.000,00 (quatro mil euros) de indemnização, no prazo de um ano.

Esta pena englobou uma parcelar de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão e dezassete parcelares de 9 (nove) meses de prisão, pelos 18 (dezoito) crimes de abuso sexual de criança art. 171º, nº 3, al. a), e duas parcelares de 5 (cinco) meses de prisão por 2 (dois) crimes de importunação sexual do art. 170º, do Código Penal.

Encontra-se justificada no acórdão, e ao que ora interessa, do modo seguinte: “… A pena única há-de ser encontrada entre o limite mínimo de 1 ano e 4 meses de prisão e o limite máximo de 14 anos e 11 meses de prisão. (…) Ponderando na globalidade o período de tempo ao longo do qual o arguido A. manteve a sua conduta (reveladora duma possível tendência criminosa); a forma de comissão – essencialmente homogénea –; a identidade do bem jurídico sistematicamente violado; a ausência de conhecimento sobre comportamentos de idêntica natureza, anteriores aos factos em discussão; a sua integração familiar e social; e não esquecendo as exigências de prevenção que se fazem sentir, procede-se à unificação das penas, condenando-se o arguido na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, que se reputa justa e adequada à gravidade dos factos globalmente considerados, ponderados os critérios que devem presidir à fixação da pena única que se deixaram indicados.”

A moldura penal do cúmulo sofre agora uma redução no seu máximo em apenas dez meses.

Da diminuta expressão numérica desta redução, na moldura abstracta ora (re)definida, não resultará, no entanto, a confirmação da pena única, já que se considera que esta se apresenta excessiva, na apreciação global dos factos em conjunto com a personalidade do arguido.

Como dá nota Figueiredo Dias, “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280).

Ainda segundo o autor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).

Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam o cúmulo de penas. E como lembra Cavaleiro de Ferreira, o cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como nunca o foi por nenhum dos códigos penais precedentes (Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156).

O condenado tem direito à pena única, resultante da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que concorram efectivamente ou realmente entre si. No sistema consagrado no art. 77º do Código Penal – sistema de pena conjunta obtida através de cúmulo jurídico – a pena única determinar-se-á dentro de uma moldura penal de cúmulo, casuisticamente encontrada após fixação das penas parcelares integrantes de uma certa adição jurídica.

Na fixação da pena única, aditiva das penas correspondentes aos crimes concorrentes, o tribunal procede à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº1 do Código Penal), o que exige uma especial fundamentação (também desta pena) na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2005, p. 291).

Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização) (loc. cit.).

No caso sub judice, o arguido, conta já 64 anos de idade e não tem passado judiciário que assuma aqui especial valor agravante (sofreu uma condenação em multa e proibição de conduzir, por crime de condução em estado de embriagues, pena extinta pelo cumprimento). Os crimes em concurso ocorreram em idênticas circunstâncias de tempo, modo e lugar, apresentando-se fenomenologicamente conexionados. E são precisamente os motivos que o tribunal ponderou como (adequadamente) elegíveis para a determinação da pena única – ou seja, “o período de tempo ao longo do qual o arguido A. manteve a sua conduta; a forma de comissão essencialmente homogénea; a identidade do bem jurídico sistematicamente violado; a ausência de conhecimento sobre comportamentos de idêntica natureza, anteriores aos factos em discussão; a sua integração familiar e social - que apontam também para uma pena situada abaixo da inicialmente fixada.

Considera-se, por tudo, que a pena única se deve fixar em três anos de prisão, mantendo-se inalterada na parte restante (quanto à suspensão, ao regime de prova e demais condicionamentos), que não foi objecto de recurso, dispensando por isso ulterior fundamentação.

(d) Da redução do montante indemnizatório

O recorrente foi condenado no pagamento de € 4.000,00 (quatro mil euros) de indemnização a MC. Impugna o acórdão também nesta parte, pretendendo a revogação da condenação cível, fazendo-o essencialmente na decorrência da procedência do recurso da matéria de facto. Do decaimento neste resultaria a confirmação do acórdão em matéria cível.

Adita, no entanto, a pretensão subsidiária de redução do montante indemnizatório para 1.000,00 €, atenta a sua situação económica de debilidade.

O valor total do pedido deduzido pela demandante era de 25.000,00 €.

No acórdão, a condenação cível mostra-se justificada, na parte que releva aqui, do modo seguinte:

“De acordo com o nº. 1, do art. 496º, do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, e nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º, isto é, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Deverá ter-se ainda presente que a indemnização cível deve traduzir um juízo de censura, que acresce à censura penal, e que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista.

Os danos não patrimoniais sofridos pela MC merecem inquestionavelmente a tutela do direito.

Ponderando na globalidade as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, a gravidade dos danos (mediana), a culpa do arguido (muito elevada), as suas condições de cariz económico, social e financeiro (modesta) e considerando que a indemnização por danos não patrimoniais há-de compensar efectivamente o lesado dos danos sofridos, afigura-se-nos adequada a fixação da indemnização destinada a ressarcir os sobreditos danos, no valor de € 4.000,00 (quatro mil euros).

No que tange ao valor reclamado a título de indemnização por danos patrimoniais, o demandante não fez prova dos factos alegados, termos em que cabe julgar improcedente por não provado o pedido cível na parte concernente ao ressarcimento de tal tipo de danos.

Na sequência do que anteriormente se deixou decidido e mostrando-se fixado o montante da indemnização, a suspensão da execução da pena de cinco anos de prisão a que o arguido A. foi condenado, fica suspensa por idêntico período de tempo, sujeita a regime de prova e subordinada ao dever do arguido pagar, no prazo dum ano (prazo razoável de cumprimento considerando a situação económica e financeira do condenado), a sobredita indemnização de € 4.000,00 (quatro mil euros) a MC, representada pelo seu pai MR.”

Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil, estando neste momento apenas em causa o montante arbitrado. Neste, e de acordo com a motivação do recurso (o recorrente nem sequer trouxe a questão às conclusões), cumpre aferir tão só se a situação económica do recorrente lhe pode servir de suporte. É neste ponto que centra a impugnação e não são oficiosamente detectáveis erros evidentes no processo de decisão da matéria cível.

De acordo com a disciplina dos arts. 496º, nº 4 e 494º do Código Civil, a situação económica do demandado não pode ser deixada fora do processo de ponderação.

Ficou provado que o recorrente trabalha como empregado de padaria auferindo um salário de cerca de € 600,00 (seiscentos euros). Executa trabalho indiferenciado remunerado aos fins-de-semana. A cônjuge exerce funções de auxiliar de limpeza mediante a remuneração de cerca de € 500,00 (quinhentos euros). Suportam em conjunto a prestação de € 270,00 (duzentos e setenta euros) mensais referente ao empréstimo bancário contraído para aquisição de habitação e a prestação referente à aquisição de uma viatura automóvel no valor de € 160,00 (cento e sessenta euros).

Para pagamento, foi concedido ao arguido o prazo de um ano, já que a execução da pena de prisão lhe foi suspensa na condição de pagar nesse prazo a indemnização arbitrada.

O arguido não recorreu da pena, estando neste momento apenas em causa o montante da indemnização na vertente da sua compatibilização com a situação económica do condenado.

No entanto, não pode ignorar-se que a indemnização, na expressão do seu valor, se apresenta ainda fixada como condicionante da suspensão da prisão, intercepcionando-se com esta.

Não pode também deixar de se notar que o arguido se reporta em recurso ao montante da indemnização por referência ao prazo de pagamento de um ano.

Lateralmente, relembra-se que a substituição da pena de prisão por prisão suspensa na execução na condição de pagamento de indemnização, não só concretiza os princípios da intervenção mínima do direito penal e da restrição máxima das sanções criminais como contribui para a reinserção social do condenado e facilita a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime. Mas para que realize tal desiderato, deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária condicionante da suspensão, na quantidade e no tempo determinados na sentença. O dever tem de ser fixado de modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado.

Regressando à matéria estritamente cível, a situação económica do arguido, que não pode ser arredada do processo de decisão, como se disse, e ela não justifica, em concreto, a quantia arbitrada no acórdão. Procede-se pois à redução do valor da indemnização para € 2.500,00, valor que, também à luz do referente jurisprudencial, se mostra ainda adequado. No acórdão do STJ de 02.03.2011, chamou-se precisamente a atenção para a necessidade de ponderação do que se tem vindo a decidir em casos anteriores, não sendo conveniente “alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos” e havendo que “não perder de vista a realidade económica e social do país”.

4. Face ao exposto, acordam as juízas da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, e, em consequência,

- Absolver o arguido de dois crimes de importunação sexual do art. 170º, do Código Penal;

- Reduzir a pena única para 3 (três) anos de prisão;

- Reduzir o valor da indemnização arbitrada para € 2.500,00;

- Manter, em tudo o mais, o acórdão.

Custas cíveis na proporção do vencimento.

Évora, 07.01.2014

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

[1] - Sumariado pela relatora