Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
80/13.9PBSTB-A.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: INSTRUÇÃO
FINALIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 03/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
I - Só o escopo de submissão ou não da causa a julgamento determina a existência da instrução, traduzindo um critério finalístico claramente definido pelo Código de Processo Penal no seu artigo 286º, nº 1, ao determinar que a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
II - Se o requerente da instrução se limita a pedir a realização de exames, e não uma apreciação global da decisão do Ministério Público de deduzir acusação, o seu requerimento deve ser indeferido.
Decisão Texto Integral:
Proc. Nº 80/13.9PBSTB-A.E1



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


A - Relatório
Nos autos de Inquérito supra numerados que corre termos no Tribunal de Setúbal o arguido A requereu a abertura da instrução ao abrigo do disposto nos artigos 154º e 159º do Código de Processo Penal, pretendendo a realização de duas perícias.
Tal pretensão foi rejeitada pelo despacho do Mº Juiz de 27-09-2013 que, ao abrigo do nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, rejeitou o requerimento de abertura da instrução por inadmissibilidade legal.
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O arguido interpôs recurso do despacho do Mmº Juiz de Instrução Criminal que indeferiu o seu requerimento para abertura da instrução, com as seguintes conclusões:

1. O arguido, veio atempadamente, perante o tribunal, e o juiz competente, requerer de forma articulada a abertura da “Instrução Contraditória“, nº 1 al. a) do Artº 287º do C.P.P.
2. Por ser de direito e resultar da lei, solicitou apenas dois exames periciais, nos termos do disposto pelo, artº 151 do C.P.P ; a realizar nos termos do disposto pelo nº 1 do Artº 152º, devendo a referida perícia ter sido ordenada nos termos do disposto pelo nº1 do Artº 154º, todos do C.P.P.
3. Cabia nos poderes conferidos ao meritíssimo juiz de Instrução Criminal nos termos do disposto pelo nº 1 do artº 154º do C.P.P, deferir a pretensão do arguido, tendo em consideração o disposto pelo nº 6 do Artº 156º do C.P.P., bem como o disposto pela alínea a) do nº 1 do Artº 269º do C.P.P.
4. Um dos exames periciais requeridos (exame ao ADN do arguido) visa determinar se o arguido é, ou não é, o legitimo proprietário, titular, do esperma abundantemente vertido sobre a suposta vítima.
5. O exame pericial, requerido, serve para absolver o arguido, na fase da Audiência/Julgamento, mas releva igualmente nesta fase processual no sentido da não pronuncia do mesmo.
6. O requerimento de abertura da Instrução apresentado pelo arguido, a solicitar as duas perícias, continha na sua génese as razões de facto e de direito, de discordância relativamente a acusação, Artº287º , nº2 do C.P.P., uma vez que, se tratava de:
“… meios de prova que não tinham sido considerados no inquérito …..”
a) quer pelo meritíssimo Juiz de Instrução,
b) quer pelo Ministério Publico.
Nesse sentido, se pode ler
“…Não deve ser rejeitado o requerimento para abertura da instrução que , embora desajeitado, prolixo e confuso, mencione todos os factos que integram o tipo de crime imputado ao arguido, cabendo ao juiz de instrução ,em eventual despacho de pronuncia , ordenar , sintetizar e clarificar o mesmo. (Acordão do Tribunal da Relação do Porto , 17 de Novembro de 2010 , proferido no processo nº 83/08.5TAMTR.P1 : JTRP000.
7. Pelo crime, (coação sexual) pelo qual veio o arguido pronunciado pelo M.P., é de suprema importância, não se deixar perder os vestígios.
8.1 - A decisão recorrida viola o preceituado nos artigos 286º nº 1, 287º nº 2 e nº 3, do C.P.P.
8.2 O meritíssimo juiz de instrução, na fase do inquérito, não ordenou o exame ao ADN do arguido por forma a comparar com o ADN, encontrado no corpo da vitima, artº 269º nº 1 alinea a) do C.P.P.
8.3 O M.P. na fase de inquérito, também não requereu o referido exame.
8.4 O arguido em sede de instrução contraditória, no prazo legal, e perante o tribunal competente requereu exame pericial ao seu ADN., por forma a comparar com o encontrado na vitima.
8.5 Apesar de o ter feito , viu indeferida esta sua pretensão pelo meritíssimo juiz de instrução .
8.6 Isto porque, o juiz de instrução a coberto de razões estritamente formais, indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido para abertura da instrução contraditória.
Pedido: Para a prova da verdade material, deve, deferir-se a pretensão ao Arguido, procedendo –se á abertura da instrução contraditória , ordenando-se as diligências já requeridas em sede de prova pericial.
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Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Setúbal defendendo a improcedência do recurso com as seguintes conclusões:

1 . O presente recurso coloca em crise a decisão proferida pelo Mmo. Juiz a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido.
2. No RAI o arguido não impugna os fatos por que vem acusado. Não pede sequer a sua não pronúncia.
3. Pede a realização de duas diligências de prova: recolha do seu esperma para exame de ADN e comparação com o ADN identificado no esperma recolhido no corpo e vestuário da vítima; e, submissão a exame de oftalmologia.
4. As duas são absolutamente dilatórias.
5. Não foi recolhido esperma no corpo e vestuário da vítima. Não existe qualquer identificação de ADN que permita uma comparação.
6. A leitura dos meios de prova indicados na acusação ou a consulta do processo facilmente permitiriam alcançar tal conclusão.
7. A outra diligência de prova indicada é um exame oftalmológico que o arguido bem pode realizar a suas expensas como aliás já fez, pois juntou aos autos cópias de documentos clínicos que atestam até 2010 a sua acuidade visual.
8. O arguido trabalha na “Boutique (…)” que possui ou explora, sita no Largo da Conceição, no centro desta cidade de Setúbal.
9. Pretende o quê com este exame? Quer-nos convencer que confundiu a vítima com outra mulher desconhecida?
10. O conteúdo do RAI (diligências de prova) nunca permitiria ao Juiz de Instrução sindicar a acusação proferida pelo Ministério Público.
11. Colocando em crise o próprio conceito e finalidade da Instrução tal como vem definido no Código de Processo Penal.
12. Conceito e finalidade acolhidos na douta Decisão recorrida, com a rejeição do requerimento de abertura de instrução, com base no disposto nos art.º 286 e 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso do arguido, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal e, consequentemente, ordenando-se a remessa dos autos a distribuição para Julgamento.

Respondeu a assistente B defendendo a improcedência do recurso, com as seguintes conclusões:

1- Inconformado com o douto despacho recorrido resolveu o Arguido interpor recurso invocando a violação do artº 287º, nº 1, al.a) do CPP.
2- Considera o Arguido que o douto despacho recorrido enferma de erro devendo ser substituído por um outro que declare a abertura de instrução contraditória, ordenando-se as diligências requeridas em sede de prova pericial a fls 177, tudo com as legais consequências.
3- Entende a Assistente que pelas razões apresentadas pelo Exmº Senhor Dr Juiz de Instrução Criminal o douto despacho objecto de recurso deve ser mantido. Pelo que se pugna pela manutenção do mesmo.
4. Assim, e pelas razões apontadas, entendemos que caem por terra os pressupostos em que o recorrente faz assentar as razões da sua discordância articulados nas conclusões da motivação do recurso.
Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pelo Mmº Juiz “a quo” no douto despacho sindicado, julgando-se o recurso interposto pelo recorrente improcedente, como é de Justiça.
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer onde defende a improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no n" 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
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B - Fundamentação:
B.1 - São estes os elementos de facto relevantes e decorrentes do processo:
O arguido A em 02-09-2013 requereu a abertura da instrução “contraditória” ao abrigo do disposto nos artigos 154º e 159º do Código de Processo Penal, pretendendo a realização de duas perícias, uma ao ADN, outra à sua visão.
Tal pretensão foi rejeitada pelo despacho do Mº Juiz de 27-09-2013 que, ao abrigo do nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, rejeitou o requerimento de abertura da instrução por inadmissibilidade legal.
É o seguinte o teor de tal despacho:
«Requerimento de abertura de instrução de fls. 177 e segs:
O requerimento é tempestivo e o tribunal é competente.
Vejamos, porém, se é admissível a instrução, nos moldes em que vem requerida.
Na realidade, o arguido apenas requer a realização de diligências probatórias.
Não impugna os factos por que vem acusado. Nem totalmente, nem parcialmente.
E se os não impugna, não pode o tribunal sobre eles debruçar-se, em obediência ao princípio da vinculação temática.
Não pede sequer, o arguido, a sua não pronúncia – fls. 265, verso.
Importa assim, antes do mais saber se a instrução com este contorno é admissível.
Pois que a não ser, o requerimento de abertura de instrução terá que ser rejeitado – artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal.
Para tanto, teremos que recorrer aos propósitos da instrução tal como os define o legislador – artigo 286º, número 1, do Código de Processo Penal: A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
É no trecho final do preceito que se tem que encontrar a solução.
De facto, o objectivo primordial da instrução é evitar a submissão desnecessária de alguém a julgamento. E se os factos narrados em acusação (analisada como um todo) deduzida pelo Ministério Público não se verificarem nem constituírem qualquer crime, faz todo o sentido admitir a abertura de instrução com vista a não submeter – erradamente – o acusado a julgamento.
A questão tem-se colocado amiúde nas situações em que o arguido apenas propugna uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.
Em acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/11/2005, proc. 1484/05-2, in www.dgsi.pt, foi entendido que a abertura de instrução por parte do arguido que não coloca em causa os factos é admissível desde que o mesmo se proponha a demonstrar a desnecessidade de submissão a julgamento.
No presente caso, a submissão a julgamento não é colocada em causa pelo arguido de forma expressa, como lhe competia.
De acordo com o requerimento de abertura de instrução, a instrução não irá servir para sindicar a decisão do Ministério Público na parte em que se decidiu submeter o arguido a julgamento, tão só para que se… obtenha prova pericial – fls. 177.
No requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido é ónus deste colocar em causa os factos por que vem acusado, ou a sua qualificação jurídica de forma a conduzir à sua não pronúncia, que deve requerer de forma expressa ou pelo menos, concludente.
Entende-se pois, que a instrução no presente caso, por não visar sindicar a decisão do Ministério Público na parte em que opta por submeter o arguido, é legalmente inadmissível, em face do disposto no artigo 286º, número 1, do Código de Processo Penal.
Recentemente aliás, foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação de Évora, em que se perfilha o entendimento de que a abertura de instrução pelo arguido só é admissível caso este almeje a sua não pronúncia total (acórdão de 8/5/2012, proc. número 226/09.1PBEVR.E1, disponível em www.dgsi.pt).
Pelo que se indefere o referido requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3 do mesmo diploma.
Notifique.
Oportunamente, remeta os autos ao tribunal de julgamento.»
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B.2 - Cumpre apreciar e decidir.
O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação.
A questão abordada no recurso reconduz-se a apurar se o requerimento de abertura de instrução deve ser recebido e ordenadas as provas ali requeridas.
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B.3 – Questão essencial neste recurso é constatar que o arguido recorrente pede a abertura da “instrução contraditória” tendo em vista a realização de perícia nos termos do artigo 154º do Código de Processo Penal.
É um dado doutrinária e jurisprudencialmente aceite que a instrução, como fase prévia a um eventual julgamento, é uma fase preliminar tendo em vista o controle da actuação do Ministério Público e o complementar e eventual reconstituir histórico dos factos (não curamos ora de outras possíveis finalidades da instrução) para apurar da necessidade da sua sujeição a julgamento.
O que é indubitável é a existência de um critério finalístico (“utilitarista” na terminologia da resposta do Ministério Público) claramente definido pelo Código de Processo Penal no seu artigo 286º, nº 1 (sob a epígrafe “Finalidade e âmbito da instrução”) que a instrução, com carácter facultativo, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como bem referido pelo tribunal recorrido, já foi decidido por esta Relação que só o escopo de submissão ou não da causa a julgamento é que determina a existência desta, na sequência do determinado – de forma algo imprecisa e com justificação de existência no direito processual penal anterior – no artigo 32º, n. 4 da Constituição da República Portuguesa.
Aliás, é no direito processual penal anterior que nós vamos encontrar a terminologia utilizada pelo recorrente, a “instrução contraditória”, então prevista no artigo 327º do Código de Processo Penal de 1929.
E “contraditória”, assim chamada e assim caracterizada, porque na sequência – obrigatória ou não, consoante a forma do processo e por quem a requeria/determinava – de uma “instrução preparatória” declaradamente inquisitória, isto é, sem substância contraditória.
E essa “instrução contraditória” consentia aquilo que o recorrente pretende, a simples realização de exames ou seja, a realização da instrução para mera produção de prova.
De facto, o corpo do artigo afirmava que a instrução contraditória se destinava a “esclarecer e completar a prova indiciária da acusação e para realizar as diligências requeridas pelo arguido destinadas a ilidir ou enfraquecer aquela prova e a preparar ou corroborar a defesa”.
Ou seja, era uma instrução complementar e que permitia a sua realização por um mero critério utilitário em sede probatória.
Ora, assumido um modelo de processo penal acusatório com um inquérito “inquisitório” na origem, a contraditoriedade, o exercício do contraditório concentra-se na audiência de julgamento e só se justifica que se concretize na instrução (que também é contraditória em substância, mas não no nome) em casos que se pretendem excepcionais no modelo acusatório: quando for patente que a causa não deve – no caso em apreço, porque noutros será o objetivo contrário – ser submetida a julgamento.
É claro que um modelo acusatório prescinde de instrução e só razões históricas e politicas nacionais centradas na natureza e consequências politicas e sociais do anterior processo penal justificam a existência do número 4 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Que só ele e as eventuais realidades estatísticas permitem que a instrução se mantenha prevista no Código de Processo Penal por ser uma excrescência no modelo acusatório.
Mas isto supõe – e explica - o dito critério finalístico: a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. Ou seja, se o Ministério Público acusa ou arquiva a instrução visa alterar essa posição, via controlo judicial.
Ora, o arguido recorrente não pretende isso, não requer isso, nem pode obter isso. O arguido recorrente só pretende a produção de prova.
No seu requerimento limita-se a pedir a realização de exames, não uma apreciação global da decisão do Ministério Público de deduzir acusação. Mesmo que a instrução se realizasse nada obteria em termos de integral apreciação da acusação.
Acresce que os exames pedidos são inúteis: o exame oftalmológico foi junto e terá o valor de um mero parecer médico, pois que não é uma perícia; o exame ao ADN é inútil se não há vestígios recolhidos que o tornem comparável.
Por fim, nem é possível convidar o requerente a “corrigir” pois que o seu requerimento de abertura da instrução não é passível de correcção, pois que não mais seria do que conceder uma segunda oportunidade, não sujeita a prazo, de requerer de novo a instrução.
O pretendido pelo recorrido teria obviamente deferimento na vigência do Código de Processo Penal de 1929. No Código de Processo Penal vigente a inconsequência do recurso borda a manifesta improcedência.
Ou seja, o recurso é improcedente.
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C - Dispositivo:
Face ao que precede, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora negam provimento ao recurso.
Notifique. Custas pelo arguido com 4 (quatro) UCs de taxa de justiça.

Évora, 11 de Março de 2014
(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz