Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
86/16.6T8BJA-A.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
IMPULSO PROCESSUAL
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - Os autos de incumprimento das responsabilidades parentais não são um processo de partes e o superior interesse da criança é o seu objectivo fundamental.
II – Assim a aplicação do impulso processual nos termos formais do Processo Civil não faz sentido.
Decisão Texto Integral:


Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Os autos em referência foram instaurados a requerimento do Ministério Público. em 04.01.2017, com incidente de incumprimento das responsabilidades parentais por parte da progenitora BB, por referência aos alimentos devidos à sua filha CC, nascida em 07.12.2004, desde o trânsito em julgado da sentença que homologou o acordo de regulação das responsabilidades parentais, datada de 07 de abril de 2016.
Na sequência da promoção do Ministério Público para que se notificasse o "Instituto da Segurança Social, LP. - Núcleo Administrativo e Financeiro" para que informasse se a requerida estaria a auferir algum rendimento, subsídio ou apoio social, a que título e respetivo valor mensal, com o intuito de averiguar da possibilidade dos descontos prosseguirem a cargo de outra entidade patronal (como anteriormente promovera, uma vez que se descobriu a nova entidade patronal da requerida) foi proferida a seguinte decisão (decisão recorrida):
“1. Vistos os autos.
2. Ref." 1371625 - Notifique o progenitor, apenas para conhecimento.
3. A entidade patronal da requerida veio informar os autos de que a progenitora cessou o seu vínculo laboral e que nessa sequência poderão efectuar os descontos no vencimento por conta da pensão de alimentos.
O Ministério Público teve vista nos autos e promoveu que fossem feitas diligências no sentido de apurar se a progenitora se encontra a trabalhar ou a receber qualquer tipo de apoio ou subsidio para efeitos de continuarem a ser feitos os descontos.
Apreciando e decidindo,
O RGPTC considerou os processos tutelares cíveis como de jurisdição voluntária cfr. artigo 12.°, e considerou ainda que lhes são aplicáveis subsidiariam ente as regras do processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores, cfr. artigo 33.°, n." 1, como é o caso das regras do ónus de prova e do impulso processual das partes.
Entendemos assim que não cabe ao tribunal ordenar por sua iniciativa a continuação dos descontos perante a inacção do credor de alimentos, não obstante os poderes oficiosos genericamente conferidos por lei ao Tribunal, a verdade é que o princípio dispositivo, atribui primazia aos ónus de alegação e de impulso processual das partes, nada se impondo ao tribunal, em termos de este se substituir à iniciativa do credor de alimentos, tanto mais que nem se pode afirmar que existe incumprimento no momento presente, nada garantido que a requerida não está a cumprir voluntariamente coma sua obrigação, tanto mais que os descontos cessaram já no mês de Abril, e desde então nada foi requerido pelo progenitor.
Em face do exposto indefere-se o requerido, devendo os autos voltar ao arquivo.
Notifique.”
Inconformado com tal decisão, veio o MP interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
“III 1.ª - O despacho recorrido determinou que os autos retornassem ao arquivo com o argumento básico da inexistência de impulso processual, em violação do princípio do dispositivo.
2.ª - Para além de incorrer em contradição da fundamentação, ao reconhecer que sobre o tribunal recaem "poderes oficiosos" de atuação, mas que o "ónus de alegação e de impulso processual das partes" teria "primazia", a decisão erra, pois, o Ministério Público impulsionou o processo através de uma intervenção justamente denominada "promoção", de 18.10.2018, ao abrigo dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos arts. 17º e 41º, n.º 1 do R.G.P.T.C. e dos arts. 3º, n.º 1, aI. a), n.º 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público.
3.ª - O pagamento dos alimentos vencidos não foi nem alegado nem provado pela devedora e não tem, à luz dos factos, a mínima verosimilhança.
4.ª - O despacho impugnado determina um burocrático arquivamento do processo que frustra, à partida, a possibilidade de uma menor obter o mínimo dos mínimos do que lhe é devido para assegurar a satisfação das suas necessidades vitais, numa jurisdição não contenciosa que se deve reger por princípios e critérios inversos dos subjacentes à sua prolação.
5.ª - Por incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 12.º, 17.º e 41.º, n.º 1 do R.G.P.T.C., impõe-se e pretende-se a sua revogação.”
Não há contra-alegações.
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com relevância para a decisão do recurso são os que constam deste relatório e os seguintes:
1 - Os autos em referência foram instaurados a requerimento do Ministério Público, em 04.01.2017, onde suscitou o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais por parte da progenitora BB, por referência aos alimentos devidos à sua filha CC, nascida em 07.12.2004, desde o trânsito em julgado da sentença que homologou o acordo de regulação das responsabilidades parentais, datada de 07 de abril de 2016;
2 - Por sentença de 17.02.2017, foi reconhecido e declarado o incumprimento da requerida relativamente ao pagamento de pensões alimentícias vencidas e não pagas à filha menor até ao mês de fevereiro de 2017, no montante global de € 1.210,20 (mil duzentos e dez euros e vinte cêntimos) e, simultaneamente, determinado o desconto mensal, ao abrigo do disposto no art. 48º do R.G.P.T.C., da quantia de € 100,60 (cem euros e sessenta cêntimos), a título de alimentos víncendos, acrescida d o desconto do montante de € 50,00 (cinquenta euros) no salário mensal e de € 100,00 (cem euros) no subsídio de férias e de natal, até perfazer a dívida no valor global de € € 1.210,20 (mil duzentos e dez euros e vinte cêntimos);
3 - Em março de 20171 a entidade patronal da progenitora/requerida deu conhecimento ao processo de que iria iniciar os descontos no mês seguinte (março de 2017);
4 - Em 09.06.2076, o processo é remetido ao arquivo com "V.C';
5 - Em 05.06.2018, a entidade patronal da progenitora/requerida veio informar o processo de que a mesma deixara de trabalhar por sua conta desde o dia 03.04.2018;
6 - Em 21.06.2018, o Ministério Público promoveu, por um lado, que se notificasse o "Instituto da Segurança Social, LP. - Núcleo Administrativo e Financeiro" para informar se a requerida estaria a auferir algum rendimento, subsídio ou apoio social, a que título e respetivo valor mensal, com o intuito de averiguar da possibilidade dos descontos prosseguirem a cargo de outra entidade patronal. Por outro lado, promoveu a notificação da ex-entidade patronal da requerida para remeter para o processo prova demonstrativa da efetivação de todos os descontos realizados, visando a posterior reformulação do cálculo dos alimentos vencidos (que foram juntos em 24.07.2018);
7 - Em 16.07.2018 apurou-se que a progenitora/requerida estaria a trabalhar por conta de outra entidade patronal (DD - Sociedade Europeia de Restaurantes, Lda.");
8 - Por isso, em 14.09.2018, o Ministério Público promoveu a notificação dessa nova entidade patronal para que informasse qual o valor do salário mensalmente auferido pela progenitora/requerida, se sobre ele incidiam descontos obrigatórios e qual o valor destes, com o envio de cópia do seu último recibo de remuneração;
9 - Em 11.10.2018, a sociedade "DD - Sociedade Europeia de Restaurantes, Lda.' veio informar o processo de que a progenitora/requerida já trabalhava por sua conta desde 12.07.2018;
10 - Em termo de "vista" ordenado pela Mm.ª Juiz, datado de 18.10.2018, o Ministério Público voltou a promover que se notificasse o "Instituto da Segurança Social, LP. - Núcleo Administrativo e Financeiro" para que informasse se a requerida estaria a auferir algum rendimento, subsídio ou apoio social, a que título e respetivo valor mensal, sempre com o intuito de averiguar da possibilidade dos descontos prosseguirem a cargo de outra entidade patronal (como anteriormente promovera e de forma eficaz, uma vez que se descobriu a nova entidade patronal da requerida), e
11 - Pelo despacho recorrido, de 08.11.2018, aquela promoção foi indeferida e ordenado o retorno dos autos ao arquivo.


2 – Objecto do recurso.
Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:
Saber quais os poderes de impulso processual do MP nos autos de incumprimento da RPP (prestação mensal de alimentos).

3 - Análise do recurso.
Não podemos concordar de forma alguma com o despacho recorrido, que indeferiu a diligência que o Ministério Público promoveu para apurar se a progenitora/requerida estaria a auferir algum rendimento, subsídio ou apoio social que permitisse a prossecução dos descontos, nos termos previstos no art.º 48.º do R.G.P.T.C. e, simultaneamente, determinou o retorno do processo ao arquivo, com o argumento básico da inexistência de impulso processual, em violação do princípio do dispositivo.
Afigura-se-nos correcto o entendimento defendido no recurso relativo à obrigação de intervenção do MP ao abrigo dos poderes-deveres que lhe são conferidos pelos artigos 17.º e 41.º, n.º 1 do R.G.P.T.C. e dos artigos 3.º, n.º 1, al. a) e 5.º n.º 1, al. c) do Estatuto do Ministério Público.
Os presentes autos não são um processo de partes e o superior interesse da criança é o seu objectivo fundamental (A nossa Lei Fundamental é expressa, no seu artigo 36.º, ao estabelecer o dever paternal de alimentos; os artigos 1877.º do CC, Convenções internacionais (cfr. Protocolo n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 5.º); Igualmente na Convenção Sobre os Direitos da Criança, feita em Nova Iorque em 20 de novembro de 1989, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/1990, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro, se consignou caber “primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança” (artigo 27º); no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Uniformizador de Jurisprudência) de 19-03-2015 – proc. 52/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A, “A obrigação ou dever de alimentos estabelecido a favor dos filhos menores assume contornos particulares face à natureza dos direitos envolvidos, que encontram suporte no artigo 36.º n.º 5 da Constituição, normativo que impõe aos pais o dever de educação e manutenção dos filhos).
Esta prestação alimentícia é integrante de um dever privilegiado que, segundo Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., pág. 169, constitui um caso nítido de deveres reversos dos direitos correspondentes, de direitos deveres ou de poderes-deveres com dupla natureza, em que se elevou um dever elementar de ordem social e jurídico a dever-direito fundamental.
“O superior interesse da criança está claramente afirmado e prevalece sobre qualquer outro em matérias que respeitem à sua segurança, saúde, educação e sustento, comprimindo, se necessário, o próprio direito dos pais à sobrevivência condigna. Aos pais compete partilhar com os filhos o pouco que possam ter e colocar-se em posição de angariar os meios necessários e indispensáveis ao sustento do filho menor.” in “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, Vol. I, 4.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, págs. 565-566.
Estamos num processo de jurisdição voluntária que não está vinculado a critérios de legalidade estrita, devendo o juiz adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, admitindo apenas as provas consideradas necessárias – artigo 986.º e 987.º do Código de Processo Civil.
Cabe ao MP, no cumprimento da defesa do interesse da criança, ao abrigo do artigo 17.º do R.G.P.T.C.:
Iniciativa processual
1 - Salvo disposição expressa e sem prejuízo do disposto nos artigos 52.º e 58.º, a iniciativa processual cabe ao Ministério Público, à criança com idade superior a 12 anos, aos ascendentes, aos irmãos e ao representante legal da criança.
2 - Compete especialmente ao Ministério Público instruir e decidir os processos de averiguação oficiosa, representar as crianças em juízo, intentando ações em seu nome, requerendo ações de regulação e a defesa dos seus direitos e usando de quaisquer meios judiciais necessários à defesa dos seus direitos e superior interesse, sem prejuízo das demais funções que estão atribuídas por lei.
3 - O Ministério Público está presente em todas as diligências e atos processuais presididos pelo juiz.
E nos termos do artigo 41.º
Incumprimento
(SECÇÃO I - Regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas)
1 - Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos…»
O artigo invocado na decisão (artigo 33.º Direito subsidiário 1 - Nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.
2 - Salvo disposição expressa, são correspondentemente aplicáveis, com as devidas adaptações aos processos tutelares cíveis, as disposições dos artigos 88.º a 90.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, alterada pelas Leis n.os 31/2003, de 22 de agosto, e 142/2015, de 8 de setembro), não infirma minimamente o supra exposto, pois, no contexto referido, a aplicação do impulso processual nos termos formais do Processo Civil não faz sentido.
Também não se vislumbra o sentido do despacho recorrido ao "ónus da prova" que nada tem a ver com esta fase processual, nem a referência à possível inexistência de incumprimento que “parece” presumir-se.
Tanto basta para a procedência do recurso.

Sumário:
I - O autos de incumprimento das responsabilidades parentais não são um processo de partes e o superior interesse da criança é o seu objectivo fundamental.
II – Assim a aplicação do impulso processual nos termos formais do Processo Civil não faz sentido.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a decisão e, deferindo a promoção, ordenando-se a notificação do "Instituto da Segurança Social, LP. - Núcleo Administrativo e Financeiro" para que informe se a requerida está a auferir algum rendimento, subsídio ou apoio social, a que título e respetivo valor mensal, com o intuito de averiguar da possibilidade dos descontos prosseguirem a cargo de outra entidade patronal.
Sem custas.

Évora, 14.02.2019
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite
Cristina Dá Mesquita