Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
559/14.5T8TMR-A.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I - Com o advento do Novo Código Processo Civil aprovado pela Lei nº41/2013 de 26 de Junho, o legislador enveredou, no artigo 990ºnº4, por prescrever que o pedido de atribuição da casa de morada de família é deduzido por apenso “ se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação”.
II - Se não assim o entendesse, o legislador teria, pura e simplesmente eliminado a referência aos processos findos.
III - Isto é: O legislador do NCPC não só manteve a competência do Tribunal para conhecer dos pedidos de atribuição de casa de morada de família quando o divórcio aí tenha sido decretado (e não apenas quando o processo aí estiver pendente) mas até a alargou ao suprimir o adjectivo “ litigioso” constante do pretérito artigo 1413º nº4 do CPC de 61, passando a abarcar todas as situações em que os processos de divórcio (ou a separação) aí tiverem “ corrido”, neles se passando a contemplar os casos de divórcio por mútuo consentimento em que ocorre dissídio relativamente a uma ou todas as questões elencadas no artº 1775º nº1 do Código Civil, maxime quanto ao destino da casa de morada de família.
IV - E compreende-se bem a razão: a ausência de acordo relativamente a tal questão no divórcio antevia o conflito na atribuição da casa de morada de família entre os cônjuges (ou ex-cônjuges) pelo que não faria o menor sentido impor a obrigatoriedade de ser trilhado o procedimento na conservatória que se prognostica ir culminar na remessa do processo para o Tribunal (Cfr. artº 8º do citado D.L.272/2001).
V - A solução preconizada no artigo 990ºnº4 do NCPC revela-se, portanto, consentânea com o princípio da economia processual.
VI - Ainda que se admita que, no caso de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos e foi decidido na Conservatória do Registo Civil, a natureza incidental do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, consinta que seja na Conservatória que esse pedido seja deduzido, carece de apoio legal, face ao estatuído no nº4 do artº 990º do NCPC, o entendimento de que tendo corrido tal divórcio num Tribunal de Família, tal pedido de alteração deva igualmente ser deduzido naquela repartição pública.
VII - No caso dos autos, tendo o processo de divórcio corrido os seus termos no Tribunal de Família e aí sido homologado por sentença, o conhecimento do pedido de alteração quanto à atribuição de casa de morada de família, não é competência da Conservatória do Registo Civil que não o decretou mas sim do Tribunal de Família onde aquele correu os seus termos.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I-RELATÓRIO

1. AA, Requerente do incidente de atribuição da casa de morada de família, à margem identificado, em que é Requerido BB, mediante o qual pretende que o atinente acordo entre ambos celebrado e homologado por sentença judicial, já transitada, no processo de divórcio apenso, seja alterado de modo a que aquela lhe seja atribuída, interpôs recurso de apelação do despacho que julgou o tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do incidente e que absolveu o Requerido da instância, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:

“ I. De acordo com a ata de tentativa de conciliação dos cônjuges, a casa de morada de família sita em Abrantes, ficou atribuída à Recorrente e ao Recorrido até à partilha;

II. Entendeu a Recorrente que o acordo relativo à casa de morada de família devia (e deve) ser alterado, por alteração das circunstâncias, devendo a casa de morada de família ser atribuída somente à Recorrente – nos termos do disposto no artigo 1793º, nº3 do CC;

III. Pois o Recorrido não só causa mau ambiente, perturbando a Recorrida e os demais habitantes da casa (os filhos do ex-casal e a mãe da Recorrida), como não contribui para as despesas da casa;

IV. E o Recorrido saiu de casa;

V. O requerimento inicial da Recorrente foi apenso à anterior ação de divórcio;

VI. Realizada a tentativa de conciliação entre as partes, foi frustrada qualquer tentativa de entendimento;

VII. O Recorrido apresentou contestação, da qual emana um completo antagonismo nas posições entre as partes;

VIII. Isto é, o conflito tem de ser resolvido pelo tribunal, como o estava a ser até ser proferida a douta sentença recorrida;

IX. Porquanto, e com o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a Lei é clara no sentido em que, o regime do acordo relativo à casa de morada de família pode ser alterado e, tendo corrido a ação de divórcio precisamente no mesmo tribunal a quo, a competência para a decisão relativa a tal alteração é do tribunal onde a ação correu termos;

X. Pois tal é o que decorre dos artigos 1793º, nº3 do CC, 990º, nº4 do CPC, 122º da Lei nº 62/2013 e 8º do Decreto-Lei nº 202/2001 de 13 de Outubro;

XI. E, contrariamente ao invocado na douta sentença recorrida, não é necessário o preenchimento, ou não, das exceções previstas no artigo 2º do Decreto-Lei nº 272/2001, de 13 de Outubro, nos casos em que o Sr. Conservador do Registo Civil não é competente, ab initio, para conhecer do litígio – como no presente caso.

XII. Pelo que a Recorrente vai no sentido da jurisprudência invocada, entendendo que o Tribunal a quo continua a ser competente (como o foi até ao proferimento da douta sentença recorrida) para conhecer do presente litígio.

XIII. Sendo que, para a Recorrente, o entendimento diverso, viola o disposto nos artigos 1793º, nº3 do CC, 990º, nº4 do CPC, 122º da Lei nº 62/2013 e 8º do Decreto-Lei nº 202/2001 de 13 de Outubro.

Nestes termos e nos melhores de Direito ao caso aplicáveis, e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento à presente apelação, revogando-se a douta sentença recorrida. Consequentemente, deve o tribunal a quo, ou seja, o J1 da 2ª Secção de Família e Menores com sede em Tomar da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém ser considerado competente para julgar o presente incidente de alteração do acordo da casa de morada de família”.

2. Foram apresentadas contra-alegações pelo Requerido/recorrido, nas quais pugnou pela improcedência do recurso.

3. Cumpriram-se os vistos.

4. OBJECTO DO RECURSO

Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil - a única questão que importa dirimir é se o Tribunal “ a quo” é competente para conhecer do processo em apreço ou, ao invés, se tal competência radica na Conservatória do Registo Civil, como se decidiu.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Os factos a considerar na decisão deste recurso são os que se deixaram exarados no antecedente relatório.

2. Convém, recuperar, todavia, a fundamentação que alicerçou o decidido.

No despacho recorrido se exarou, no que releva, o seguinte : “Tendo em atenção o artigo 5º/1-b) e 2 do DL nº 272/2001 e este artigo 990º do CPC ,importa conjugar normativos legais a fim de se perceber quem tem a competência para julgar esta matéria de atribuição de casa de morada de família e assim, os ex-cônjuges devem requerer esta atribuição no tribunal, caso a acção ainda esteja pendente (seja pedida a título provisório, seja a título definitivo, artigos 931º/7 e /ou 990º, do CPC); na Conservatória do Registo Civil, nos restantes casos.

Isto é, depois de decretado o divórcio e já com decisão devidamente transitada em julgado, seja no caso de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge ou no caso de divórcio por mútuo consentimento, em que houve decisão judicial/sentença ou, houve acordo devidamente homologado por sentença, tudo de acordo com a posição de Tomé d’ Almeida Ramião, Juiz Desembargador, in Divórcio por Mútuo Acordo (DL nº 272/2001), Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 4ª Edição, da Quid Juris, págs., 40 e ss., com o que acordamos em absoluto, o pedido de atribuição de casa de morada de família é pedido junto da Conservatória do Registo Civil.”.

3. Do mérito do recurso

Como se viu, a Requerente pretende a alteração do acordo sobre o destino da casa de morada de família obtido no âmbito do processo de divórcio que correu termos no Tribunal de Família, mercê da oportuna convolação do litigioso que aí havia sido proposto, e que foi objecto de homologação por sentença judicial já transitada.

É certo que o Decreto-Lei n.º 272/2001[1], de 13 de Outubro que passou a regular os procedimentos perante o Ministério Público e perante as Conservatórias do Registo Civil prescreve no artigo 5./1, alínea b) e n.º2 o seguinte:

“1- O procedimento regulado na presente secção (secção I - Do procedimento tendente à formação de acordo das partes) aplica-se aos pedidos de: (…)

b) Atribuição da casa de morada de família (…)

2- O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial, ou constituam incidente ou dependência da acção pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil.”.

Como assumido pelo legislador no preâmbulo desse diploma “importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial”, procedendo, por isso, “à transferência de competências para as Conservatórias de Registo Civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares, tais como, a da atribuição da casa de morada da família, na estrita medida em que se verifique ser a vontade das partes conciliável e sendo efectuada a remessa para efeitos de decisão judicial sempre que se constate existir oposição de qualquer interessado”.

À data da publicação deste Decreto-Lei, estava em vigor o Código de Processo Civil de 1961, cujo art.º 1413º prescrevia no nº4 o seguinte: “ Se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou de separação litigiosos, o pedido é deduzido por apenso”. (sublinhado nosso).

Uma norma não existe isoladamente antes coexiste num sistema de preceitos coordenados ou subordinados que é mister harmonizar entre si.

Como é consabido, com a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, foram introduzidas significativas alterações ao regime jurídico do divórcio: o divórcio[2] pode ser por mútuo consentimento ou sem consentimento de um dos cônjuges, tendo sido eliminado o regime do divórcio litigioso [3], baseado na violação culposa dos deveres conjugais (artigos 1773º nº1 e 1781.º do Código Civil).

No primeiro caso, é pedido por comum acordo, por ambos os cônjuges, sem necessidade de indicação da causa do divórcio e no segundo é pedido por um sem consentimento do outro, com base em factos objectivos demonstrativos da ruptura definitiva do casamento ( cfr.o artigo 1781.º ).

Por regra, o divórcio por mútuo consentimento é requerido na conservatória do registo civil (artigo 1773.º, n.º 2 do CC e artigos 12.º, n.º 1, al. b) e 14.º, n.º 1 do citado DL n.º 272/2001) mas quando os cônjuges não alcancem entendimento quanto às questões referidas no artigo 1775.º, n.º 1 do C.C, dentre as quais sobre o destino da casa de morada de família, o mesmo terá de ser requerido no Tribunal.

A lei permite, outrossim, que o regime fixado quanto à atribuição da casa de morada da família, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, possa ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária (artº 1793º nº3 do C.C.).

Por conseguinte, na vigência do Código de Processo Civil de 61 e face ao regime estatuído pelo Decreto-Lei nº. 272/2001, de 13 de Outubro, o pedido de atribuição de casa de morada de família ou a sua alteração deveriam ser requeridos perante o Conservador do Registo Civil sendo-o, porém, perante o Tribunal quando aí estivesse pendente ou tivesse corrido acção de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens litigiosos (nº4 do artº 1413º do CPC).

Na verdade, ainda que o nº2 do artº 5º do D.L. 272/2001 de 13.10 só aluda a “acção pendente” para excluir a competência do conservador do registo civil não tem (nem pode ter) a virtualidade de ser considerada uma norma atributiva de competência (por exclusão de partes) que sendo, aliás, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República teria de ter respaldo na Lei de autorização legislativa nº 82/2001 de 3 de Agosto, o que manifestamente não sucede.

Outrossim, não permite afirmar que entre em colisão com a norma do nº4 do artº 1413º do CPC quando afirma a competência dos Tribunais não só quando pendesse mas também quando tivesse corrido acção de divórcio ou separação litigiosos.

E nesse sentido, tal diploma não introduziu nenhuma alteração no ordenamento jurídico, ou seja não subtraiu à competência dos tribunais a apreciação dos pedidos de atribuição de casa de morada de família nos casos em que também pelos tribunais tivesse corrido a acção de divórcio litigioso.

E compreende-se bem a razão: a própria litigiosidade no divórcio antevia o conflito na atribuição da casa de morada de família entre os cônjuges (ou ex-cônjuges) pelo que não faria o menor sentido impor a obrigatoriedade de ser trilhado o procedimento na conservatória que se prognosticava ir culminar na remessa do processo para o Tribunal (Cfr. artº 8º do citado D.L.272/2001).

A solução preconizada no artº 1413º nº4 do CPC revelava-se, portanto, consentânea com o princípio da economia processual.

Com o advento do Novo Código Processo Civil aprovado pela Lei nº41/2013 de 26 de Junho, o legislador enveredou, no artigo 990ºnº4, por prescrever que o pedido de atribuição da casa de morada de família é deduzido por apenso “ se estiver pendente ou tiver corrido acção de divórcio ou separação”.

Isto é: O legislador do NCPC não só manteve a competência do Tribunal para conhecer dos pedidos de atribuição de casa de morada de família quando o divórcio aí tenha sido decretado (e não apenas quando o processo aí estiver pendente) mas até a alargou ao suprimir o adjectivo “ litigioso” passando a abarcar todas as situações em que os processos de divórcio (ou a separação) aí tiverem “ corrido”, neles se passando a contemplar os casos de divórcio por mútuo consentimento em que ocorre dissídio relativamente a uma ou todas as questões elencadas no artº 1775º nº1 do Código Civil [4](maxime quanto ao destino da casa de morada de família).

Aliás, não raro nessa situação é que o único acordo de ambos os cônjuges se circunscreva à dissolução do seu casamento por divórcio, ocorrendo sério litígio quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais, à atribuição da casa de morada de família e à fixação de alimentos ao cônjuge que entende deles carecer ou à determinação e relacionação dos bens comuns.

Portanto, as razões que apontámos e que outrora justificavam a opção do legislador pela referência ao divórcio ou separação litigiosos no nº4 do artº 1413º continuam a fazer todo o sentido ainda que extensivas a estes divórcios por “mútuo consentimento “.

Em suma: O NCPC não só conservou, como alargou, a competência do Tribunal de Família para preparar e julgar pedidos de atribuição ou de alteração da casa de morada de família quando aí tiver “corrido acção de divórcio ou separação” ainda que não litigiosos.

Se não assim o entendesse, o legislador teria, pura e simplesmente eliminado a referência aos processos findos.

4. Ainda que se admita que, no caso de divórcio por mútuo consentimento, que correu termos e foi decidido na Conservatória do Registo Civil, a natureza incidental do pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, consinta que seja na Conservatória que esse pedido seja deduzido, carece de apoio legal, face ao estatuído no nº4 do artº 990º do NCPC, o entendimento de que tendo corrido tal divórcio num Tribunal de Família, tal pedido de alteração deva igualmente ser deduzido naquela repartição pública.

5. No caso dos autos, tendo o processo de divórcio corrido os seus termos no Tribunal de Família e aí sido homologado por sentença, o conhecimento do pedido de alteração quanto à atribuição de casa de morada de família, não é competência da Conservatória do Registo Civil que não o decretou mas sim do Tribunal de Família onde aquele correu os seus termos.

A decisão proferida não pode, em consequência, subsistir.

III- DECISÃO

Face ao exposto acorda-se em conceder provimento ao recurso e, por consequência, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento do incidente.

Custas pelo apelado.
Évora, 20-10-2016
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
Bernardo Domingos
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[1] Que já foi objecto de três alterações, a última das quais pelo D.L. nº 122/2013 de 26 de Agosto.
[2] Assim como a separação judicial de pessoas e bens.
[3] Apesar da subsecção III inserida na secção I dedicada ao Divórcio manter a nomenclatura “ Divórcio Litigioso”.
[4] Porque, como vimos, quando há acordo total sobre tais questões, o processo de divórcio por mútuo consentimento é obrigatoriamente instaurado na conservatória.