Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4048/17.8T9PTM.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
CONSENTIMENTO
INQUÉRITO CRIMINAL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Não resultando minimamente evidenciado que a arguida não tivesse consentido na realização da perícia psiquiátrica a que alude o nº 6 do artº 159º do CPP, tendo até, nesse âmbito, assumido uma atitude de cooperação, respondendo a perguntas que lhe foram colocadas pelo Sr. Perito médico psiquiatra, ainda que, a algumas delas e na perspetiva do Sr. Perito de forma evasiva, não tinha a mesma de ser ordenada por despacho do juiz, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 154º do CPP, antes cabendo ao Ministério Público, na fase de inquérito, determinar a realização de tal perícia, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 154º do CPP, o que aconteceu.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1 - RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 4048/17.8T9PTM, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de Portimão – Juiz 4, foi submetida a julgamento a arguida (...), melhor identificada nos autos, acusada da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alíneas a) e b), com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal.
1.2. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão, em 29/04/2020, depositado nessa mesma data, decidindo condenar a arguida pela prática de um crime de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
1.3. Inconformada com o decidido, recorreu a arguida para este Tribunal da Relação, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e sua substituição por outro que decida pela sua absolvição, para tanto, extraindo da motivação do recurso as conclusões que seguidamente se transcrevem:
«-Veio a Arguida condenada na pena de 3 (três) anos de prisão efetiva, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de Burla qualificada, agravada pelo valor, p. e p. pelos artigos 217º, nº 1 e 218º nº 2 a), com referência ao art.º 202º b), todos do Código Penal.
- Entendeu o douto Tribunal a quo, que após prova produzida e discutida a causa, resultou provada a matéria de facto constante nos 67 pontos do douto Acórdão ora em recurso, em que, se sustenta que a Arguida planeou e concretizou um esquema para enganar terceiros, fazendo-os crer que padecia de doença oncológica, e através do erro criado, os levou a actos de disposição patrimonial em seu benefício, causando prejuízo, tudo, de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.
- Para prova da factualidade subjetiva, o douto Tribunal a quo, atendeu, conforme 2º parágrafo, pág. 13 do douto Acórdão, à matéria de facto objetiva, concatenada com as regras da experiência e teor do relatório da perícia psiquiátrica, entendendo assim, desconsiderar, o relatório médico inicial que diagnosticou a Arguida, ora Recorrente com doença do foro psiquiátrico.
- Entende a Arguida ora Recorrente, que a Perícia Psiquiátrica Médico-legal, enquanto perícia sobre características psíquicas sobre pessoas que não hajam prestado consentimento, dependem de Despacho de Juiz competente, o que, in casu, ao ser ordenada pelo Digníssimo Procurador, foi violado o disposto no nº 3 do art.º 154º do Código Processo Penal, constituindo a Perícia método proibido de prova e o relatório, prova nula, não podendo ser utilizada nos autos, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 126º do mesmo diploma já citado, nulidade que expressamente se invoca.
- Para considerar provada a factualidade subjetiva, o douto Tribunal a quo, não se poderia apoiar nas regras de experiência comum, pois estas não se aplicam a debate e avaliação técnica e científica de sintomatologia psiquiátrica rara, nem na Perícia, por constituir método proibido de obtenção de prova, e consequentemente, o seu relatório, como prova nula e proibida, cuja nulidade expressamente se invocou, nem tão pouco, na factualidade objetiva, que sendo isso mesmo, nada concretiza de subjetivo.
6º - Face à impossibilidade de se atingir, por tais vias, o preenchimento subjetivo do tipo, importava subsidiariamente, apreciar favoravelmente a prova restante e existente, in casu, e com especial relevo, o relatório médico inicial a fls. 55 e 56 dos autos, cujo diagnóstico atesta que a Arguida, naquela data, em plena coincidência temporal com os factos objeto do processo, padecia de síndrome de Munchhausen.
7º - Perante a existência de relatório médico, cujo seu teor, provém de juízo técnico qualificado, sobre matéria subtraída a leigo, ainda que sujeita à luz da livre apreciação da prova, impor-se-ia, face a presunção de inocência e in dúbio pro reu, a dúvida sobre os elementos intelectuais e volitivos, cabendo por isso absolver.
8º - A resposta à pergunta “poderia o douto Tribunal “a quo”, face aos elementos carreados para os autos, garantir com a certeza necessária exigida à condenação, que a Arguida, à data dos factos, estava consciente da ilicitude, agindo com culpa na sua conduta?” impunha-se negativa, porquanto, contrariando tal exigência, o douto tribunal a quo errando notoriamente na apreciação da prova e com insuficiência para a decisão da matéria de facto, violou, manifestamente, a presunção de inocência e in dubiu pro reu.
9 - A resposta à pergunta “poderia o douto Tribunal “a quo”, face aos elementos carreados para os autos, garantir com a certeza necessária exigida à condenação, que a Arguida, à data dos factos, não padeceu de síndrome de Munchhausen?” exigia-se também aqui, resposta negativa, porquanto, contrariando tal exigência, o douto tribunal a quo errando notoriamente na apreciação da prova e com insuficiência para a decisão da matéria de facto, violou a presunção de inocência e in dubiu pro reu.
10 - Face à prova carreada nos autos, o segmento decisório quanto à formação da motivação e decisão de facto, vertido no 2º parágrafo da 13ª página do douto Acórdão, deverá, para assim se sanar o erro notório na apreciação da prova, conter a seguinte redação “ Para prova da factualidade subjetiva, o tribunal atendeu à factualidade objetiva dada como provada concatenada com as regras de experiência e com o teor do relatório médico psiquiátrica a fls. 55 e 56 dos autos, de onde resulta que a arguida, padecendo de Síndrome de Munchhausen, agiu por forças compulsivas não domináveis, estando subtraída a sua liberdade de se determinar de acordo com o objetivamente licito, não podendo assim, ser responsável criminalmente por actos cuja culpa não lhe pode ser imputada ou censurada”
11 - Por força da proibição de valoração de prova nula, acrescido da valoração da prova favorável existente a fls. 55 e 56 dos autos, no qual à Arguida ora Recorrente, é diagnosticada com doença do foro Psiquiátrico, o douto Tribunal a quo, não poderia dar por provados, no que à factualidade subjetiva respeita, a matéria de facto dos pontos 4, 5, 6, 7, 21, 23, 30, 34, 40, 42, 43, 44, 47, 48, 51, 55, 56, 57, 61, 63 e 64 do douto Acórdão ora em Recurso.
12 - Cabendo, em consequência, retirar da respectiva matéria de facto, toda factualidade provada que concretiza a culpa e consciência da ilicitude da Arguida ora Recorrente.
13 - Sem prescindir, ainda que se entendesse por legal e atendível, o que só à cautela e hipoteticamente se concede, a Perícia Psiquiátrica Médico-legal foi, conforme 1ª página, último parágrafo do relatório Pericial, “efectuada (numa perspectiva médico-forense, tanto quanto possível)”, ao que acresce, o pedido do Sr. Perito, para realização de perícias complementares, nomeadamente, perícia psicológica e psicopatológica, cujo Digníssimo Magistrado do Ministério Publico, titular do Inquérito, entendeu por desnecessários, nunca vindo a Arguida a os realizar, estando mais uma vez, quartada a possibilidade de resultado favorável à Arguida ora Recorrente.
4 - O douto Tribunal a quo, erradamente, e com prejuízo para a verdade, omitiu dos pontos 47 e 48 da matéria de facto provada, que foi naquela Unidade Hospitalar que, apesar de afastada doença oncológica, a Arguida ora Recorrente foi diagnosticada com doença do foro Psiquiátrico, aliás, conforme prova documental existente nos autos desde sempre, a fls. 55 e 56, devendo em consequência ser alterada, também aí, a redação em conformidade.
15 - Entende a Arguida ora Recorrente, sustentada no disposto do art. 355 nº 1 do CPP, que faltam factos que permitissem concluir como no douto Acórdão ora em Recurso, não bastando as aparências, ou o declarado pelos Ofendidos (…) noutras fase processuais, ao crivo da prova não e pleno contraditório, para dar como provada a factualidade objetiva e subjetiva vertidas nos pontos 12, 13, 14 e 15 do douto Acórdão, assim, por não produzida qualquer prova, em audiência, no sentido de se apurar para que fim, com que intuito, motivados por que razão, (…), procederam a transferências de Dinheiro para a conta da Arguida ora Recorrente, devendo aquela matéria de facto ser considerada não provada.
16 - Apuradas que foram, as quantias entregues pelo casal britânico mencionado em conclusão anterior, aquelas fixaram-se no valor de €14.404,46 (catorze mil, quatrocentos e quatro euros e quarenta e seis cêntimos), o que, por não provado, nos termos do ponto anterior, implicam subtração ao valor de €22.739,46 (vinte e dois mil, setecentos e nove euros e quarenta e seis cêntimos) constante no ponto 60 da Matéria de facto provada no douto Acórdão, devendo assim ser alterado em conformidade a corresponde redação.
17 - Operada a aritmética de subtração, deverá o ponto 60 da matéria de facto provada do douto Acórdão, conter a seguinte redação “Estimando-se num montante global nunca inferior a € 8.335,00 (oito mil, trezentos e trinta e cinco euros), modificação esta, que implicará, salvo melhor entendimento, a alteração da qualificação jurídica, por desgravação do tipo, passando a factualidade objetiva a ser punível nos termos do nº1 do art.º 218º do Código Penal.
18 - Sem prescindir da inocência e absolvição, a medida da pena, depende e relaciona-se com a culpa, que se insiste, ser desconhecida, porém entendendo-se diversamente, nunca a pena da Arguida deveria depender do espirito solidário dos Ofendidos, porquanto, tal qual prova produzida, a Arguida nunca pediu 5, 10 ou 15, pelo que, aferindo-se pela conduta dolosa, a sua quantificação no enriquecimento, permanece desconhecida, o que operada a presunção de inocência e in dúbio pro reu, importaria, a permanência no tipo simples, previsto e punido nos termos do art. 217º nº 1 do Código pena, sendo a moldura penalmente aplicável até 3 anos de prisão ou pena de multa.
19 - Também sem prescindir da inocência, e absolvição, e na eventualidade de uma condenação dir-se-á, desde já, que o quantum da pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada, violando o disposto nos art.ºs 70, 71 e 72 do Código Penal, não obstante de todo o exposto, deverá ser dada primazia sempre e quando assim as circunstâncias o permitam, a pena não privativa da liberdade.
20 - Entende a Arguida, ora Recorrente, que o douto Tribunal a quo, violou o disposto no art. 50º do Código Penal, na medida em que a Arguida preenche todos os requisitos normativos, de forma criteriosa e abundante.
21 - Deveria o douto Tribunal a quo ter entendido pelo juízo de prognose favorável, de acordo com as circunstâncias pessoais da Arguida, anteriores e posteriores aos factos objeto do presente processo, procedendo assim à suspensão da execução da pena em que a Arguida veio condenada.
22 - Devia, pois, e pelo menos em face das dúvidas, mais que razoáveis, ter sido, a Arguida, ora Recorrente, absolvida, e não o tendo sido, violou o douto Tribunal “a quo” o constitucional princípio “in dubio pro reo”, do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da livre apreciação da prova, do artigo 127º do Código de Processo Penal, ao condenar a Recorrente com erro notório na apreciação da prova e sem matéria de facto suficiente, o que, nos termos do disposto nos artigos 410º e 426º do Código de Processo Penal, determina o reenvio do Processo, e violou o disposto nos artigos 40º, 50º, 70º, 71º e 72º do Código Penal, pelo que merece integral provimento o presente Recurso, havendo, assim, que revogar-se o douto Acórdão de Fls, a substituir por outro que absolva a Arguida ora Recorrente, caso se não opte pelo reenvio.
Nestes termos, e nos demais que Vªs Exªs doutamente suprirão, a não haver reenvio do Processo, para repetição do Julgamento, deverá o douto Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva a Arguida ora Recorrente, pelo menos em face das dúvidas razoáveis, e da presunção de inocência de que gozam os Arguidos, com dignidade constitucional, assim merecendo integral provimento o presente Recurso.
Porém Vªs Exªs decidirão como for de JUSTIÇA»
1.4. O recurso foi regularmente admitido.
1.5. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta, pugnando para que seja negado provimento ao recurso e confirmado o acórdão recorrido, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«I - As alegações e conclusões da recorrente assentam apenas na discordância da mesma relativamente à convicção do Tribunal, para dar como provados os factos que vieram a fundamentar a condenação da mesma pelo crime de burla qualificada.
II - Para que a Relação tenha poderes de cognição sobre a matéria de facto, é necessário observar determinadas formalidades, expressamente previstas no artigo 412.º, n.º 3, do C. P. Penal, exigindo-se, concretamente, que o recorrente especifique:
«a) os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as provas que impõem decisão diversa da recorrida; e
c) as provas que devem ser renovadas»
devendo, no caso em apreço, uma vez que a prova foi gravada, as especificações referidas nas alíneas b) e c) fazer-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente às passagens em que se funda a impugnação (vd. nº 4 do mesmo preceito), o que a recorrente não fez.
III - Não constando, das conclusões da motivação do recurso as indicações a que aludem os nºs 3 e 4 do citado artigo 412.º, está o Tribunal ad quem impedido de se pronunciar sobre a matéria de facto, sendo certo que ao contrário do que alega a recorrente, o acórdão proferido nos autos não padece dos vícios estipulados nas als. a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º.
IV- No caso dos autos, importa frisar que a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito não se confunde, como faz a recorrente, com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é uma questão que respeita ao recurso da matéria de facto
V - Do texto do acórdão (por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum) não resulta que se apreciou de forma visivelmente descabida a prova, isto é, que os factos provados que o tribunal dá como tendo acontecido não podiam ter acontecido (ou não podiam ter acontecido do modo como o acórdão diz que aconteceram).
VI - Os argumentos invocados pela recorrente consistem apenas em pretender contrapor a sua convicção perante a prova produzida em audiência, à convicção que sobre a referida prova, e de acordo com as regras de experiência comum, o tribunal a quo adquiriu, o que se torna irrelevante no caso, pois contraria o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127.º do CPP, segundo o qual o tribunal aprecia e valora livremente a prova, de acordo com as regras de experiência comum, e responde segundo a convicção que sobre elas haja alcançado.
VII - A realização de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa sem o seu consentimento e sem que o juiz tenha ordenado a perícia constitui proibição de prova, constitui proibição de prova, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, al. a), do C. P. Penal.
VIII - No caso dos autos, a arguida consentiu na realização da perícia psiquiátrica, pelo que não se verifica qualquer nulidade, designadamente por ter sido o Ministério Público, no decurso do inquérito, a ordenar, nos termos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do C. P. Penal, a realização da mesma, com vista a apurar se a arguida, à data da prática dos factos, era inimputável.
IX - O Perito-médico que realizou a perícia concluiu que a arguida “não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação” e, bem assim, que Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir determinar segundo essa avaliação (…)”.
X - O valor probatório da perícia é fixado pela lei em termos que subtraem o juízo do perito ao princípio da livre apreciação da prova, o que quer dizer que o resultado da perícia não é livremente valorável pelo julgador.
XI - Para prova da factualidade subjectiva, o tribunal atendeu à factualidade objectiva dada como provada, de onde resulta que a arguida, não padecendo de qualquer Síndrome de Münchhausen, não só
XII - As pessoas afectadas com a síndrome de Münchhausen ou síndrome de Münchhausen by proxy (por procuração), provocam ou são vítimas de sofrimento para atrair as atenções, sendo certo que a arguida nunca padeceu da mesma.
XIII - Da factualidade dada como provada, concatenada com as regras da experiência e com o teor da perícia psiquiátrica, resulta que a arguida engendrou um esquema para enganar terceiros, fazendo-os crer que estava com uma doença oncológica, como fez com o propósito de assim, através do erro criado, levá-los a actos de disposição patrimonial em seu beneficio.
XIV - Deste modo, alegada doença oncológica foi o engano engendrado pela arguida para levar terceiros a, empobrecendo-se, efectuarem disposições patrimoniais em seu benefício, querendo e conseguindo locupletar-se, mediante o engano sobre factos que astuciosamente provocou, à custa do património de terceiros.
XV - Estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal).
XVI - A arguida protelou a sua conduta delituosa durante cerca de 2 anos, apenas tendo cessado a mesma por motivos alheios à sua vontade, uma vez que foi desmascarada mediante exames que lhe efetuaram no Hospital São Francisco Xavier, ludibriou um número indeterminado de pessoas, sensibilizadas pela falsa condição de doente oncológica, mãe de três filhos menores, retratada quer no perfil de facebook, quer nas latinhas de recolha de moedas, causando a terceiros um prejuízo superior a 22.000€ (vinte e dois mil euros).
XVII - Em julgamento e perante a evidência da prova pericial de que não padecia à data dos factos de qualquer syndrome, ainda assim procurou fazer crer que estava convencida de que tinha cancro, o que revela bem que não interiorizou o desvalor da sua conduta, não permitindo ao Tribunal concluir por um juízo de prognose favorável quanto ao não cometimento de novos crimes.
XVIII - Considerando as necessidades de prevenção especial e geral, as apuradas circunstâncias do facto, as condições pessoais da arguida e a sua conduta anterior e posterior ao crime, não se mostram reunidos os pressupostos para fazer um juízo de prognose de que a ameaça da pena será suficiente para cumprir essa finalidade.
XIX - A pena de 3 (três) anos de prisão em que a arguida foi condenada, pela prática de um crime de Burla qualificada, p. e pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, com referência ao artigo 202.º, alínea b), do Código Penal, tendo em consideração os factos e a personalidade da arguida, é justa, adequada e proporcional.
XX - Não foi violado qualquer preceito legal, nomeadamente os artigos 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, 72.º, todos do Código Penal, e 127.º do Código de Processo Penal.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela arguida e confirmado inteiramente o douto acórdão recorrido
Contudo V. Ex.as decidirão conforme for de Justiça.»
1.6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente.
1.7. Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, a recorrente ofereceu resposta, a fls. 1044, reiterando que a perícia médico-legal de psiquiatria realizada à arguida é nula, com as consequências daí decorrentes.
1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cf. artigo 428º do C.P.P.).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o objeto do recurso (cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do nº. 2, do artigo 410º do C.P.P., mas apenas quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Acórdão do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelas recorrentes da motivação de recurso apresentada, as questões suscitadas e a decidir são:
- Nulidade da perícia médico-legal de psiquiatria realizada à arguida e proibição de valoração do respetivo relatório, por constituir prova nula (n.º 3 do artigo 126º do CPP);
- Impugnação da matéria de facto dada como não provada no acórdão recorrido, sob os pontos 4, 5, 6, 7, 21, 23, 30, 34, 40, 42, 43, 44, 47, 48, 51, 55, 56, 57, 61, 63 e 64, no referente aos elementos subjetivos, por erro notório na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto para a decisão e sob os pontos 12 a 15 por insuficiência da matéria de facto para a decisão;
- Violação do princípio in dúbio pro reo;
- Erro de subsunção;
- Excessividade da medida da pena;
- Suspensão da execução da pena.

2.2. Do acórdão recorrido
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor do acórdão recorrido, que se passa a transcrever:
«(…)
2. Fundamentação de Facto
2.1. Factos provados
Produzida a prova e discutida a causa resultou provada, com interesse para a decisão, a seguinte factualidade:
1. A arguida é natural de (…), onde cresceu, conhecendo os costumes e hábitos de quem ali vive.
2. No mês de Março de 2015 iniciou vida em comum com (…), passando a residir com este e com os 03 (três) filhos (de anterior casamento), então com 12, 09 e 05 anos de idade, na Rua das (…), em (…).
3. Poucos meses volvidos, mais precisamente no mês de Outubro de 2015, anunciou aos seus filhos e ao então companheiro que, no Hospital de Faro, lhe haviam diagnosticado cancro no colo do útero, em estado avançado, tendo sido estimado em 01 (um) ano o seu tempo de vida.
4. Apesar de plenamente conhecedora de que não se tinha dirigido ao Hospital de Faro, que não lhe fora diagnosticada qualquer doença do foro oncológico, nem estimado qualquer tempo de vida.
5. Fê-lo, na sequência de plano por si previamente delineado e bem pensado, valendo-se da confiança que aqueles nela depositavam para os enganar, e com o propósito de se aproveitar financeiramente dessa situação.
6. Para que a doença de que dizia padecer gozasse também da necessária credibilidade perante terceiros (incluindo os seus familiares mais próximos), a arguida rapou o seu próprio cabelo (de modo a simular a queda), e passou a ser vista, regularmente, com um tubo de oxigénio no nariz, de modo a realçar o estado avançado da doença.
7. Chegando a auto mutilar-se, de modo a ostentar hematomas e feridas nos braços que depois cobria com pensos, fazendo crer às pessoas com quem convivia que eram provenientes da realização de análises que efetuava, e da colocação de cateteres.
A partir de então:
8. A pretexto de tal doença oncológica, que afirmava ter-se complicado após o surgimento de metástases nos pulmões e nos ossos, a arguida começou a apelar à solidariedade alheia, enfatizando a sua condição de doente terminal e de mãe, bem como a ausência de recursos financeiros para combater a doença, alimentar e educar os filhos.
Para tanto:
9. Estampou, em pequenas latas do tipo mealheiro, o seu rosto acompanhado dos dizeres “VAMOS TODOS DAR AS MÃOS PARA AJUDAR A DANI MÃE GUERREIRA COM 3 FILHOS” e do NIB (…) (bem como do IBAN) da conta bancária de que era titular na Caixa Geral de Depósitos.
10. As quais distribuiu por diversos estabelecimentos comerciais da cidade de Albufeira, onde depois se deslocava para recolher os donativos em dinheiro nelas depositados.
11. Efetuou diversas publicações no “Facebook” – de modo a alcançar um maior número de pessoas – sempre acompanhadas de uma fotografia sua com o cabelo rapado, onde era visível o IBAN da conta que possuía na Caixa Geral de Depósitos, acompanhado dos seguintes dizeres (na língua portuguesa e na língua inglesa):
“VAMOS AJUDAR A DANI / LET’S HELP DANI
MÃE GUERREIRA DE 3 FILHOS / WARRIOR MOM OF 3
SEJA SOLIDÁRIO AJUDE QUEM LUTA PELA VIDA / BE SOLIDARY HELP WHO FIGHTS FOR LIFE”.
12. Foi a visualização de uma dessas publicações que sensibilizou o casal britânico (…), levando a que efetuassem uma publicação no perfil da arguida, a que esta respondeu com um pedido de amizade.
13. Tendo sido numa das conversas que manteve através do “Facebook” com (…) que a arguida lhe contou que, no Hospital de Faro, lhe tinham recusado tratamento devido à doença se encontrar num estado bastante avançado, e que só não tentava a cura no privado por não possuir recursos financeiros.
14. Acreditando no sofrimento da arguida e na possibilidade por esta aventada de conseguir a cura em hospitais privados, (...), no período compreendido entre 08 de Junho de 2016 e 19 de Setembro de 2017, depositou regularmente em conta bancária por aquela titulada com o NIB (…) (previamente indicado) quantias monetárias que oscilaram entre os € 150,00 (cento e cinquenta euros) e os € 1.200,00 (mil e duzentos euros), e que totalizaram o montante de € 14.404,46 (catorze mil, quatrocentos e quatro euros e quarenta e seis cêntimos).
15. Para além das sobreditas quantias monetárias, o casal (…) também comprou à arguida uma ventoinha que entregaram na sua residência.
16. As publicações da arguida no “Facebook” foram igualmente visualizadas por (…), proprietário de um estabelecimento comercial em Albufeira, que, por ter vivenciado um problema familiar semelhante, se comoveu com a história por aquela fantasiada, e na qual acreditou.
17. Não hesitou, pois, em contatar a arguida e dar-lhe conhecimento da intenção de realizar uma “festa solidária” no seu estabelecimento com o propósito de angariar donativos para a ajudar na luta contra o cancro que, em momento algum, duvidou estar a ser efetivamente travada.
18. A sobredita festa teve lugar, no dia 05 de Maio de 2016, e permitiu reunir donativos que ascenderam ao montante global de € 1.600,00 (mil e seiscentos euros), posteriormente entregues, em mão, à arguida.
19. Para além disso, (…) efetuou outras contribuições para a “Causa da …”, a saber:
- no Verão de 2016: contribuiu com a quantia € 100,00 (cem euros) numa festa de angariação de fundos que teve lugar no (…)”;
- no dia 11 de Setembro de 2016: contribuiu com € 20,00 (vinte euros) na compra de “rifas” para sorteio de um capacete;
- em Fevereiro de 2017: obteve um quadro do Cristiano Ronaldo, com o respetivo certificado de autenticidade (e valor não concretamente apurado), que entregou à arguida para leilão.
20. Organizou no seu estabelecimento um segundo evento para nova angariação de fundos, que se traduziu num churrasco com música ao vivo, em que participaram cerca de duzentas pessoas, e que rendeu a quantia monetária de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), posteriormente entregue, em mão, à arguida.
21. Fazendo uso da sua capacidade de convencimento, e com o propósito alcançado de demonstrar aos participantes, quer a sua gratidão, quer o estado avançado da doença oncológica de que padecia, a arguida compareceu nesse evento, acompanhada dos filhos e do companheiro, de cabelo rapado, fazendo uso do tubo de oxigénio e simulando um estado débil.
22. As contribuições obtidas e/ou efetuadas por (…) para a “Causa da …” ascenderam ao montante global de cerca de € 4.000,00 (quatro mil euros).
23. No seu propósito de viver à custa da solidariedade alheia, no final de Outubro de 2015, a arguida contatou ainda (…), na qualidade de presidente da “Associação …”, com sede em Faro.
24. Confidenciando-lhe, nessa ocasião, falando fluentemente e sem hesitações, que tinha trinta anos e três filhos menores, que lhe tinha sido diagnosticado cancro no ovário que, entretanto, se alastrara aos pulmões e ossos, e que necessitava de ajuda da associação.
25. O que só não conseguiu por não ter apresentado junto da Associação qualquer documentação suscetível de confirmar a doença, designadamente relatórios médicos.
26. Todavia, em Janeiro de 2017, a presidente da “Associação …”, motivada por vivência semelhante, acedeu em efetuar uma publicação na página do “Facebook” da Associação com a indicação “Apelo - Algarve”, onde eram pedidos bens de higiene, alimentação e cartões de supermercado para a arguida, tendo sido também aí colocado o IBAN da conta da Associação para depósito de eventuais donativos.
27. Tendo sido, mais tarde, por insistência de vários doadores anónimos, efetuada uma segunda publicação onde constava o IBAN da conta associação (PT …) e também o IBAN da conta titulada pela arguida na Caixa Geral de Depósitos (PT …).
28. Na sequência do mencionado apelo, foram efetuados na conta bancária da Associação vários depósitos que totalizaram à quantia monetária de €335,00 (trezentos e trinta e cinco euros) - posteriormente entregue à arguida mediante transferência bancária realizada no dia 08 de Fevereiro de 2017 - e na conta pessoal da arguida foram efetuados depósitos no valor global de cerca de € 2.000,00 (dois mil euros).
29. No dia 08 de Fevereiro de 2017, a arguida preencheu ainda a “Ficha de inscrição para Apoiados” disponível na “Associação …”, onde fez constar que aos 30 (trinta) anos lhe foi diagnosticado “carcinoma no ovário com metástase pulmonar”, tendo sofrido recidiva “Óssea” e necessitar de “suporte de oxigénio”.
30. Fê-lo bem sabendo que nada do que ali fez constar correspondia à verdade por si conhecida, mas querendo manter a “farsa”, por si meticulosamente pensada e gerida de que padecia de doença oncológica grave, junto de quem lê-se a sobredita ficha, o que conseguiu.
31. Em Setembro de 2017, também (…), sócia-gerente da empresa “…”, com sede em Albufeira, teve conhecimento, através do seu marido, da doença oncológica que a arguida simulava diariamente enfrentar, bem assim das dificuldades com que se deparava para adquirir os livros e material escolar para a sua filha (…).
32. Comovida com a situação, e querendo contribuir para debelar o sofrimento da arguida, decidiu adquirir os livros escolares para a filha desta, o que fez, nisso despendendo um valor superior a € 100,00 (cem euros).
33. Deslocando-se depois à residência da arguida onde fez entrega dos sobreditos livros.
34. Na ocasião, lançando mão da sua grande capacidade de persuasão, aquela apresentou-se com o tubo de oxigénio no nariz e exibindo uma alegada ferida, coberta por um penso, que seria o resultado de uma análise que teria efetuado recentemente.
35. Convencida da luta que a arguida travava e do sofrimento que diariamente enfrentava, (…) efetuou ainda um depósito no valor de € 1.000,00 (mil euros), através de transferência bancária efetuada para o IBAN PT… (que se encontrava estampado nas latas de angariação de fundos espalhadas pelos estabelecimentos comerciais da cidade de Albufeira) referente à conta titulada unicamente pela arguida na Caixa Geral de Depósitos, no dia 04 de Setembro de 2017.
36. Também (…) se comoveu com as dificuldades que a arguida simulava enfrentar na luta contra o cancro, e que lhe foram transmitidas por uma amiga comum, no decurso do mês de Abril de 2016.
37. Convencida da veracidade de tais dificuldades, e aproveitando o facto de pertencer à direção do Moto Clube do …, propôs aos restantes membros da direção a realização de um “Baile Solidário”, na sede do Clube, a fim de angariarem donativos para ajudarem a arguida.
38. A proposta foi aceite e o “Baile Solidário” teve lugar em data não concretamente apurada do Verão de 2016, tendo sido angariada e entregue em mão à arguida, uma quantia monetária de cerca de € 300,00 (trezentos euros).
39. No mês de Fevereiro de 2017, um casal britânico sensibilizado e acreditando igualmente nas dificuldades que a arguida, mãe de três crianças, alegava enfrentar por força da doença oncológica de que dizia padecer, realizando tratamentos duradouros enquanto tentava manter uma vida familiar normal, realizou uma ação de “crowdfunding”2, que permitiu a angariação de fundos no valor de £ 515,00, o que equivale a cerca de € 600,00 (seiscentos euros), posteriormente entregues à arguida.
Mais,
40. Na senda do plano que ardilosamente delineara, no dia 02 de Julho de 2016, a arguida participou e venceu o passatempo promovido pelo Chef (…), no restaurante “…”, em Lisboa, dedicado à nutrição oncológica, a propósito do lançamento de um livro de receitas para doentes oncológicos em tratamento.
41. Ousando realçar, perante os órgãos de comunicação social ali presentes, o facto de uma alimentação adequada poder ajudar a ultrapassar alguns efeitos secundários da quimioterapia (a que sabia nunca ter sido submetida), exemplificando com a falta de apetite e enjoos, e salientando que a alegria com que preparava as receitas do livro era meio caminho andado para um dia mais bem-disposto e positivo.
Para além disso,
42. De forma a conferir autenticidade à “farsa” por si estratégica e meticulosamente concebida e gerida, no período compreendido entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017, a arguida deslocou-se regularmente a Lisboa, a pretexto de estar a receber tratamento na “Fundação Champalimaud”.
43. Bem sabendo que nunca ali recebera qualquer tratamento devido a doença oncológica ou de outro tipo.
44. No entanto, a arguida deslocava-se efetivamente à Fundação, frequentando a Unidade de Tratamento de Oncologia do cancro da mama, onde convivia com os doentes ali seguidos, tirando com eles fotografias que depois divulgava nas redes sociais, designadamente no “Facebook”, de modo a conferir autenticidade aos tratamentos que ali alegava receber.
45. Pese embora nunca tenha sido ali consultada ou contatado, oficialmente, com os técnicos de saúde.
46. Foi, no dia 02 de Outubro de 2017, numa dessas deslocações à “Fundação Champalimaud”, onde o seu comportamento há muito levantava suspeitas, que a arguida foi abordada pela Polícia de Segurança Pública e conduzida ao Hospital São Francisco Xavier.
47. Tendo sido nessa Unidade Hospitalar que a “farsa” da arguida foi desmontada.
48. Com efeito, após ter sido ali submetida a diversos exames, não lhe foi diagnosticado qualquer problema de saúde, fosse ele oncológico ou de outro tipo.
49. Foi a médica que a assistiu que, no dia seguinte, após lhe dar alta, telefonou a (…) (à data, companheiro da arguida), dando-lhe conhecimento que esta se encontrava na sobredita Unidade Hospitalar, não padecia de qualquer doença oncológica, nem era acompanhada na Fundação Champalimaud.
50. A arguida regressou a Albufeira, no dia 04 de Outubro de 2017, data em que o seu companheiro, estupefato e incrédulo com a mentira que aquela o fizera vivenciar nos últimos dois anos, abandonou a residência, divulgando pela cidade o que se passara, desmascarando-a publicamente.
51. Temendo pelas repercussões dos seus atos, dias depois, a arguida abandonou a cidade de Albufeira, deixando os três filhos menores aos cuidados da avó, tendo, no dia 21 de Novembro de 2017, abandonado o território nacional.
52. Sendo certo que, pelo menos no período compreendido entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017, a arguida não teve qualquer emprego estável, ou fonte de rendimentos lícita, vivendo apenas do dinheiro obtido da caridade de terceiros.
53. No dia 07 de Março de 2018 foram efetuadas buscas à residência da mãe da arguida, sita na Rua da (…), tendo sido aí encontrados, mais precisamente no interior de um roupeiro:
a) 06 (seis) latas do tipo mealheiro, com imagens impressas de notas do Banco Central Europeu, sem valor comercial;
b) Um capacete de motociclo da marca “LS2 Helmets”, com a inscrição “…”, com o valor comercial de € 60,00 (sessenta euros);
c) 01 (um) quadro, tipo fotografia, do jogador de futebol Cristiano Ronaldo, autografado e com certificado de autenticidade, de valor comercial não concretamente apurado.
54. No dia 12 de Março de 2019, a arguida foi submetida a “Perícia Psiquiátrica Médico-Legal”, que permitiu preliminarmente concluir, para além do mais, que:
- “(…) não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação”;
- “Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir determinar segundo essa avaliação (…)”;
- “(…) deverá ser considerada como imputável dos factos de que está indiciada”.
55. Ao atuar da forma acima descrita, a arguida fê-lo na sequência de plano por si previamente delineado, bem pensado e gerido, convencendo um elevado número de pessoas, incluindo os seus familiares mais próximos (designadamente o seu companheiro à data, e os seus três filhos menores) de que padecia de doença oncológica muito grave, realizando tratamentos duradouros que implicavam deslocações frequentes à Fundação Champalimaud, em Lisboa, enquanto se debatia por manter uma vida familiar “normal”.
56. Fê-lo, lançando mão da sua grande capacidade de convencimento e persuasão para apelar à generosidade e solidariedade alheia, fornecendo informações concretas acerca da doença contra a qual fingia lutar diariamente, desta falando fluentemente e sem hesitações, enfatizando a sua condição de doente terminal e de mãe, bem como a ausência de recursos financeiros para a combater, e simultaneamente alimentar e educar os seus filhos.
57. Não hesitou em rapar o seu próprio cabelo (mantendo-o assim durante dois anos), de modo a simular a sua queda como efeito dos tratamentos de quimioterapia a que simulava sujeitar-se, nem em se apresentar, regularmente, com um tubo de oxigénio no nariz, visando com isso realçar o estado avançado da doença e as dificuldades respiratórias que daí advinham.
58. Convenceu, assim, erradamente, as pessoas de que o que lhes dizia era verdade, fazendo com que as mesmas lhe entregassem dinheiro, eletrodomésticos e material escolar, acreditando que a ajudavam na “luta contra o cancro”, bem como a manter uma vida minimamente condigna, quer para si quer para os filhos ainda menores de idade.
59. Atuando pela forma e circunstâncias descritas, a arguida obteve avultadas quantias monetárias à custa da generosidade e solidariedade de um número indeterminado de pessoas, de entre as quais se destacaram o casal (…), (…), (…) na qualidade de presidente da “Associação …”, (…), e (…), a quem causou os correspondentes prejuízos patrimoniais.
60. Estimando-se num montante global nunca inferior a € 22.739,46 (vinte e dois mil euros, setecentos e trinta e nove euros, e quarenta e seis cêntimos), os donativos angariados e ilegitimamente integrados pela arguida no seu património (pese embora em valor não concretamente apurado), e que gastou em proveito próprio.
61. O que só conseguiu devido ao estratagema por si astutamente criado e gerido.
62. E que lhe permitiu, durante o período compreendido entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017, obter, ilegitimamente, por essa via, um rendimento regular com o qual provia à sua subsistência e à dos seus filhos.
63. A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, na sequência de plano por si previamente bem pensado e delineado.
64. Plenamente conhecedora da censurabilidade da sua conduta, que sabia proibida e punida por lei.
65. A arguida não tem antecedentes criminais registados.
66. (…) vive com o companheiro desde finais de 2019. A relação parece positiva, de apoio mútuo e atenção. Tem três filhos de um anterior casamento que não vivem consigo, estando os mais velhos à guarda do pai e o mais novo à guarda da avó materna. As relações familiares são descritas como recompensadoras e satisfatórias. Engravidou aos 17 anos e saiu de casa aos 18 anos, contraindo matrimónio. Divorciou-se posteriormente, tendo ficado inicialmente com a guarda dos filhos.
À data dos factos vivia em união de facto com o anterior companheiro, sendo o relacionamento descrito como problemático.
Frequentou a escola na idade própria, tendo completado o 9.º ano e abandonado aos 18 anos, com frequência do 12.º ano.
Trabalhou como empregada de mesa e empregada de limpeza. Entre 2017 e 2018 esteve em Inglaterra, tendo voltado para ver os filhos e sido então impedida de sair do país. Encontra-se actualmente a trabalhar no sector das limpezas, dispondo de contrato, auferindo o salário mínimo.
A situação económica é descrita como adequada à satisfação das necessidades básicas. Está a tirar a carta de condução, no sentido de se valorizar profissionalmente.
Tem frequentado consultas de psiquiatria desde finais de 2017, sendo referida uma sintomatologia depressiva com vários anos de evolução.
O presente processo teve reflexos negativos na vida da arguida, experimentando grandes dificuldades em encontrar trabalho, porque os factos eram conhecidos de todos no local onde vive e tendo-lhe sido retirados os filhos. Pretende após o julgamento ir viver com o companheiro para fora de Albufeira.
67. A arguida está a ser acompanhada medicamente na especialidade de psiquiatria.
2.2 Factos não provados
1. Juntamente com a ventoinha descrita em 15, o casal (…) também comprou à arguida, mediante indicação desta, um frigorífico.
2.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de acordo com as regras da experiência comum e a sua livre convicção, tal como preceitua o artigo 127 º do C.P.P.
A arguida admitiu a globalidade da factualidade objetiva quando às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que actuou, designadamente as verbas recebidas, pese embora quanto às motivações revele um discurso errático, incongruente e com lapsos selectivos, usando com frequência a expressão “hoje sei que fiz”, “hoje sei que não tinha a doença”, procurando fazer crer que à data dos factos estava convicta de que padecia de problema oncológico.
Nesta parte o seu discurso foi frontal e rotundamente contraditado com a perícia média de fls 514 a 516, onde se conclui sem qualquer dúvida ou hesitação que a arguida não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação” e, bem assim, que Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, ilícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir determinar segundo essa avaliação (…)”.
Ora, estas conclusões do relatório pericial permitem afastar um primeiro diagnóstico efectuado pelo Serviço de Urgência do Hospital São Francisco Xavier em Lisboa (cf. fls 55), onde se apontava para um diagnóstico de Síndrome de Munchhausen.
Em sede de audiência não deixaram de se verificar contradições no discurso da arguida, que ora pedia desculpa e chorava, ora dizia que à data dos factos estava convencida de que tinha a doença, sendo certo que apesar de se recordar de ir à fundação Champalimaud e de aí se encontrar com uma enfermeira (indicada por uma amiga da mãe) já revelou lapsos incompreensíveis quanto ao facto de não se recordar se fez tratamentos (sendo incontroverso que não fez qualquer tratamento, como flui da declaração da própria fundação).
A convicção que ficou ao tribunal pelas declarações da arguida é que a mesma, apesar de admitir a factualidade provada objectiva que lhe vinha imputada, procurou, uma vez mais, lançar mão da simulação para tentar fazer crer que à data dos factos sofria de Síndrome de Munchhausen[1], quando tal quando já se encontrava completamente afastado pela perícia a que foi sujeita.
A factualidade objectiva provada, além de confirmada pela arguida e confirmada pela prova documental a que infra se alude, foi ainda corroborada pelas testemunhas (…), à data companheiro da arguida, (…), proprietário da pastelaria (…), e (…), presidente da associação (…).
Com efeito, o então companheiro da arguida de forma genuína, sentida e isenta de contradições relatou ao tribunal a forma como foi sendo convencido pela arguida de que padecia da doença depois desta lhe ter dito que havia sido diagnosticado o cancro no hospital de Faro dando-lhe conhecimento da doença a si e, bem assim, aos 3 filhos da arguida (de relacionamento anterior) que com eles residiam, relatando ainda as idas frequentes a Lisboa onde a arguida dizia que estava a ser tratada na fundação Champalimoud, sempre acreditando na sua versão até ter descoberto que a mesma o andaria a trair com um individuo de Lisboa, vindo depois a ter a confirmação da mentira engendrada pela arguida quando foi contactado pelo hospital São Francisco Xavier em Lisboa.
Igualmente impressivo e prestado de forma comovida foi o depoimento de (…), proprietário da pastelaria (…), relatando casos pessoais e familiares de doença que o levaram a condoer-se com a situação da arguida, que se apresentava com marcara de oxigénio, cabelo rapado e anunciando a sua condição de doente para pedir a colocação de latinhas (contendo o NIB da própria) no seu estabelecimento, sendo certo que a sua mulher já o havia sensibilizado para o caso da arguida.
Ciente de que os proveitos com as latinhas seriam poucos logo se prontificou o organizar eventos mais lucrativos, tendo entregue em mão o dinheiro angariado em mão à arguida, certificando-se do valor entregue mediante contagem pelo próprio, sendo que o depoimento foi de tal forma fluido, circunstanciado e pormenorizado quanto aos eventos e participação da arguida que logrou formar a convicção do Tribunal.
Por fim, o depoimento de (…), presidente da associação (…), ajudou o Tribunal a perceber a área de actuação da associação (ajude de pessoas nos mais diversos domínios), tendo sido na qualidade de presidente da associação que a arguida a contactou, expondo-lhe o seu caso de doente oncológica e pedindo ajuda, cegou a ir a casa da arguida onde esta se apresentava muito frágil, de cabelo rapado, mascara de oxigénio e um discurso que revelava conhecimentos médicos o que credibilizava o mesmo.
Divulgou nas redes socias (facebook) o caso da arguida, tendo angariado 335€ que transferiu para a arguida, sendo que várias pessoas lhe pediram o NIB da conta da arguida, tendo esta confidenciou à testemunha (e admitido em julgamento) que recebera fruto dessas transferências cerca de e 2000€. Fluiu ainda do depoimento desta testemunha que a arguida lhe transmitiu que os seus filhos estavam a passar necessidades, sendo certo que depois de descobrir que tudo era afinal uma farsa confrontou a arguida que lhe pediu perdão.
Por fim, confirmou que apesar de ter pedidos por diversas vezes os registos clínicos da arguida esta sempre foi arranjando desculpas para não os entregar, tendo sido a arguida a assinar e preencher a Ficha de inscrição para Apoiados” disponível na “Associação …”, onde fez constar que aos 30 (trinta) anos lhe foi diagnosticado “carcinoma no ovário com metástase pulmonar”, tendo sofrido recidiva “Óssea” e necessitar de “suporte de oxigénio”, como aliás consta do documento junto aos autos.
Ainda no que concerne à factualidade objectiva as declarações da arguida são corroboradas pela extensa prova documental, traduzida nas notícias divulgadas na comunicação social, de fls.2 a 13; estampagem existente nas latas tipo mealheiro, de fls.17 (artigo 9º); Publicação efetuada no “Facebook”, de fls.19 (artigo 11º); Publicação referente ao passatempo promovido pelo Chef (…), a fls.20 e 21 (artigos 40º e 41º); Publicação “Apelo-Algarve” de fls.25 e 26 (artigo 26º); Fotos de fls.25, 27 e 28 (artigo 6º); Divulgação de ação de crowdfunding de fls.29 e 30 (artigo 39º); Informação prestada pela Fundação Champalimaud a fls.46 (artigos 43º e 45º); Informação prestada pelo “Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E.”, a fls.55 e 56 (artigos 46º a 49º); Informação e extrato bancário de fls.61 a 70 (artigo 14º); Informação do Banco de Portugal de fls.74 e 75 (artigo 9º, 11º, 14º, 35º); Informação da Autoridade Tributária de fls.78 (artigo 52º); Documentação referente à constituição da “Associação …” de fls.84 e ss. (artigo 23º); Declaração de fls.94 (artigo 28º); Ficha de Inscrição para Apoiados de fls.95 e 96 (artigo 29º); Comprovativos de transferências bancárias de fls.97 (artigo 28º) e 103 (artigo 35º); Informação e Extrato bancário de fls.108 a 139 (artigos 59º e 60º); Fotografias do quadro com a imagem de Cristiano Ronaldo, de fls.146 e 147 (artigo 19º); Reportagem fotográfica de fls.150 a 152 (artigos 2º e 53º); Informação prestada pela Administração Central do Sistema de Saúde a fls.188 (artigos 4º), Auto de Busca e Apreensão e Relatório fotográfico anexo, de fls.232 e ss. (artigo 53º); e Documentação bancária de fls.269 e ss. e 358 e ss.;
A nível de prova pericial, atendeu-se ao auto de exame direto e avaliação de objetos de fls.240 (artigo 53º); ao Relatório de fls.471; e, bem assim, ao Relatório Preliminar de Perícia Psiquiátrica Médico-legal de fls.514 e ss. (artigo 54º).
Para prova da factualidade subjectiva, o tribunal atendeu à factualidade objectiva dada como provada concatenada com as regras da experiência e com o teor da perícia psiquiátrica de onde resulta que a arguida, não padecendo de qualquer Síndrome de Münchhausen, não só engendrou um esquema para enganar terceiros, fazendo-os crer que estava com uma doença oncológica, como fez com o propósito de assim, através do erro criado, leva-los a actos de disposição patrimonial em seu beneficio.
Com efeito, não estaríamos perante um processo crime de burla se a arguida apenas se tivesse feito passar por doente oncológica, o que aqui nos trás é precisamente a circunstância da doença ter sido o engano encontrado para levar à disposição patrimonial, sendo conhecido de todos o carácter ilícito e punido criminalmente destas condutas.
A ausência de antecedentes criminais registados da arguida resulta do teor do seu certificado de registo criminal.
Os factos atinentes à sua situação sócio económica resultam do teor doe relatório social junto aos autos, cujo teor não foi infirmado por qualquer meio de prova, sendo certo que pela metido seguido e fontes atendidos logrou formar a convicção do tribunal quanto ao seu teor.
Para dar como provado que a arguida está a ser acompanhada medicamente na especialidade de psiquiatria o tribunal atendeu à informação clinica junta na audiência de julgamento (fls 855).
4. Enquadramento jurídico-penal
4.1. Do crime de Burla
Nos termos do n.º 1 do artigo 217º do Cód. Penal quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, através de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com prisão até três anos ou com pena de multa.
O artigo 218.º, n.º 2, prevê como qualificativas do crime de burla, entre outras:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida; cados em que a pena é a de prisão de dois a oito anos
O critério aferidor do valor consideravelmente elevado está previsto no artigo 202.º, al. b), estabelecendo-se que é a que que exceder as 200 unidades de conta, ou seja €20400 (vinte mil e quatrocentos euros) (200x€102).
Já a circunstância qualificativa do crime de burla prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do CP deve ser entendida como a maneira com que o agente logra obter os proventos indispensáveis à sua vida em comunidade, não sendo absolutamente preciso que se trate de uma ocupação exclusiva ou contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do visado (cf. Ac. TRC de 7.11.2018, proc. 1239/10.6PBCBR.C1).
Como se depreende da inserção sistemática do presente ilícito penal no capítulo II do título IV do Cód. Penal, o bem jurídico tutelado pelo crime de burla é o património do ofendido.
Procedendo-se a uma breve análise do crime de burla pode afirmar-se que estamos perante um crime comum, na medida em que pode ser cometido por qualquer pessoa. De facto, a sua prática não depende da existência de certas qualidades ou relações especiais no agente.
Por outro lado, consubstancia-se num crime de dano, dependendo a sua consumação da efectiva lesão do bem jurídico tutelado. Com efeito, a lei penal pressupõe a existência de um prejuízo patrimonial.
A burla caracteriza-se, de igual forma, como um crime material por acção ou de resultado, na medida em que depende da verificação de um evento que se distinga espácio-temporalmente da própria acção.
Este ilícito traduz-se num crime de forma vinculada, característica que decorre do facto de o prejuízo patrimonial não poder ser causado por qualquer modo, mas apenas pela forma como o legislador descreveu o respectivo processo executivo - ou seja, através da astúcia e do erro ou engano dela resultantes.
O crime de burla requer, além do mais, a participação da própria vítima. Com efeito, é esta, que induzida em erro ou engano, deve praticar os actos que lhe provoquem a si própria ou a terceiros um prejuízo patrimonial.
Tendo em conta o preceituado pelos artigos 217º e 13º, ambos do Cód. Penal, estamos perante um crime necessariamente doloso. Para além deste carácter doloso, o crime de burla exige também a intenção de enriquecimento ilegítimo como elemento subjectivo especial da ilicitude. É este elemento que permite qualificar a burla como um crime de resultado cortado ou parcial, isto é, um crime em que os elementos objectivos e subjectivos do tipo não coincidem na sua respectiva extensão.
Assim, enquanto que ao nível dos elementos objectivos basta a existência de um prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro, já ao nível subjectivo se requer a aludida intenção de enriquecimento ilegítimo.
Em conclusão os elementos integrantes deste tipo legal são: a) a intenção do agente de obtenção de um enriquecimento ilegítimo para si ou para outrem; b) o erro ou engano sobre os factos provocado no ofendido; c) o artifício ou astúcia e; d) a prática pelo ofendido de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízos patrimoniais.
Entre aqueles diversos elementos do crime de burla é necessário que se verifiquem sucessivas relações de causa e efeito.
Assim é necessário que da astúcia resulte o erro ou engano; que do erro ou engano resulte a prática de actos pela vítima; e que da prática de tais actos resulte o prejuízo patrimonial.
No que diz respeito à imputação objectiva do evento à conduta do agente exige-se, portanto, um triplo nexo de causalidade. (cfr. Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla do Cód. Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 324).
O elemento fundamental do crime de burla é constituído pela astúcia sem a qual não se pode falar na prática do tipo penal agora em análise, nem sequer na forma tentada.
Como refere Nélson Hungria a burla supõe “a blandícia vulpiana, o enredo subtil, a aracnídea urdidura, a trapaça, a mistificação, o embuste”. (Comentários ao Código Penal, VII, pág. 165).
Na verdade, o agente pode não conseguir induzir a vítima em erro, a vítima pode não levar a cabo qualquer acto, pode não se verificar nenhum prejuízo patrimonial, mas se a conduta do agente se caracterizar pela astúcia ainda assim estaremos perante uma tentativa punível de burla, atento o disposto pelos artigos 313º, 22º e 23, todos do Cód. Penal.
Com efeito, do que não se pode prescindir é de uma actuação qualificada como astuciosa, sob pena de a conduta do agente ter de ser considerada como criminalmente atípica.
A referida astúcia constitui um elemento objectivo do tipo de burla, pelo que não basta que a atitude interior do agente seja astuciosa, exigindo-se também que de um ponto de vista objectivo a conduta externa do agente revele essa mesma característica.
O âmbito do tipo de burla é, pois, restringido pela necessidade do comportamento astucioso, na medida em que não basta qualquer engano, mas se exige que aquele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente. (cfr. Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial, 1979, págs. 138-139).
Do comportamento astucioso do agente deve resultar a indução da vítima em erro ou engano.
Com efeito, a burla ganha a sua autonomia dentro dos crimes contra o património, em virtude da sua consumação estar dependente da manipulação da inteligência e da exploração da vontade da própria vítima, que assim se conduz à sua autolesão ou de terceiro.
Por erro deve entender-se a falsa representação da realidade concreta, funcionando como vício do consentimento da vítima.
A conduta astuciosa do arguido deve ser a causa adequada do erro ou engano, pressupondo a lei que, perante um juízo de prognose póstuma, se questione se uma pessoa média, no lugar do agente e dotada dos concretos conhecimentos daquele, poderia prever a produção do resultado.
Noutra perspectiva, o erro ou engano não requer uma certeza da vítima quanto à falsa figuração da realidade.
Mesmo que a vítima tenha dúvidas, haverá erro ou engano se ela decidir praticar os actos que produzem o prejuízo patrimonial. (cfr. Sousa e Brito, A Burla do artigo 451º do Cód. Penal, Scientia Iuridica, XXXII, pág. 159).
Enquanto elemento objectivo do tipo de ilícito, exige-se que a vítima pratique determinados actos. A autonomia que deve ser conferida a este elemento resulta do facto de a vítima poder ter sido induzida em erro ou engano sem que chegue a praticar algum facto e de poder praticar um acto de disposição ou de administração sem que se verifique qualquer prejuízo patrimonial.
Para que o crime de burla se concretize é também exigível a verificação de um prejuízo patrimonial. Esta noção deve ser entendida à luz de um conceito jurídico-económico que encara o património como a soma dos valores económicos juridicamente protegidos.
A vítima do crime de burla é a pessoa induzida em erro ou engano, que por natureza só poderá ser uma pessoa singular. De facto, as pessoas colectivas, atenta a dimensão psicológica que o erro ou engano deve possuir, não são susceptíveis de ser induzidas em erro ou engano.
Todavia, é ofendida pelo crime qualquer pessoa, ainda que diversa da induzida em erro ou engano, que sofra o prejuízo patrimonial. Partindo deste pressuposto, a incriminação da burla também protege o património das pessoas colectivas (cfr. Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 330).
A matéria factual provada retrata, sem margem para dúvidas, o cometimento de um crime de burla.
Com efeito, de toda a factualidade provada a resulta que a arguida formou o propósito de obter um lucro indevido para si (quantia monetária), utilizando para tal uma via que lhe estava vedada por lei, ou seja, fazendo crer, num primeiro momento, que padecia de doença oncológica, rapando o cabelo, usando mascara de oxigénio, comparecendo junto de doentes tratados na fundação Champalimaud, deixando latas com o NIB em cafés e fazendo publicações nas redes socias (alargando assim o leque de visados) onde colocava o su NIB para que as pessoas, crentes da sua doença (inexistente) fizessem transferência para o NIB indicado.
Na conduta da arguida é patente o artifício fraudulento utilizado que consistiu na criação da falsa convicção que padecia de cancro, o que sabia não corresponder à verdade, para, dessa forma, obter transferências de dinheiro para a sua conta pessoal, valores a que sabia não ter direito.
Mais se provou que a arguida actuou de forma livre voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pelo que inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, será a mesma condenada pela prática do crime de que vinha acusada, na modalidade de burla qualificada por referência ao valor consideravelmente elevado com que se locupletou, sendo certo que quanto ao facto de fazer da burla modo de vida a factualidade provada não permite chegar a essa conclusão.
Escolha e determinação da medida da pena
O crime de burla qualificado é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos (cf. art. 218.º, n.º 1, al. a), do Código Penal)
Na determinação concreta da pena há que ter em conta o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal, o qual estabelece que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Efectivamente, a medida da pena determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).
A necessidade de protecção de bens jurídicos (prevenção geral) traduz-se “na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida” e decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena consagrado no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
No que concerne às necessidades de prevenção geral, estas assumem particular relevância, não podendo deixar de ser consideradas como bastante acentuadas, seja pela cada vez com maior frequência com que o mesmo ocorre, rompendo e destruindo os laços de solidariedade que surgem relacionados com casos de doença, levando as pessoas a tornar-se mais receosas de ajudar, com receito de que possa tratar-se de um logro, urgindo reforçar a consciência comunitária na confiança da norma violada.
Por forma a aferir das necessidades de prevenção especial, importa trazer à colação o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal que estabelece: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele (...)”, elencando seguidamente, a título meramente exemplificativo, alguns desses factores.
A favor da arguida está o facto de não ter antecedentes criminais.
Porém, contra a arguida está não só a culpa intensa, traduzida no dolo directo com que actuou, com o elevadíssimo grau de ilicitude, traduzido num esquema que abala confiança comunitária nas situações de doença, particularmente o cancro, que pela elevada taxa de mortalidade (em casos terminais como o propalado pela arguida) tem a virtualidade de esbater a defesa dos interlocutores, tanto mais quando a arguida se apresentava de cabelo rapado, usado máscara de oxigeno, difundido a mensagem pelas redes sociais, assim aumentando o potencial lesivo da sua conduta contra o património alheio.
Não é também despicienda a circunstância da arguida se ter deslocado e feito fotografar na fundação Champalimaud, conhecida pela excelência de tratamento e centro de investigação que possui, o que credibiliza ainda mais o seu plano ardiloso, que não se coibiu de manter mesmo perante os que lhe eram mais próximos, como o companheiro e os filhos menores!
Efetivamente, perante o que ficou dito, pese embora a ausência de antecedentes criminais, o modus operando da arguida revela que a as necessidades de prevenção especial mostram-se extremamente acentuadas, tanto mais que a arguida não reconhece o erro, procurando manter que sofria de doença do foro psiquiátrico que a impeliu ao crime, doença/síndrome esse que a prova pericial permitiu afastar, como também se mostram elevadas as exigências de prevenção geral, atendendo ao número de vezes com que estes ilícitos são cometidos, demandando a pena uma expressão que reintroduza na comunidade a confiança da validade da norma violada.
Em face dos factores e das considerações descritas, entende-se ser adequada e suficiente a aplicação ao arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez[2], a pena de 3 anos de prisão.
5.4. Da suspensão da execução da pena de prisão
Estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal que o Tribunal, no exercício de um poder-dever, e não de uma mera faculdade em sentido técnico jurídico, suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal).
Desta forma, importa fazer um juízo de prognose sobre o comportamento futuro da Arguida, suspendendo-se a execução da pena de prisão, caso esse juízo seja favorável no sentido de que o mesmo no futuro não voltará a praticar crimes e de que fica assegurada a protecção dos valores – ou bens jurídicos – que a norma legal violada incrimina.
O critério que preside à escolha desta pena de substituição assenta em finalidades exclusivamente preventivas, com prevalência para as considerações de prevenção especial de socialização relativamente às quais a prevenção geral funciona como limite para a sua actuação.
A finalidade essencial é, assim, a ressocialização do agente na vertente de prevenção da reincidência cujas probabilidades de êxito são aferidas no momento da decisão em função dos indicadores previstos no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.
Em primeiro lugar, a arguida foi condenada numa pena 3 (três) anos de prisão, pelo que o pressuposto formal da suspensão está observado.
A arguida apesar não ter antecedentes criminais, protelou a sua conduta delituosa durante cerca de 2 anos, apenas tendo cessado a mesma por motivos alheios à sua vontade, uma vez que foi desmascarada mediante análise que lhe efetuaram no Hospital São Francisco Xavier em Lisboa, ludibriou um numero indeterminado de pessoas, tocadas pela falsa condição de doente retratada quer no perfil de facebook, quer nas latinhas de recolha de moedas.
Porém, perante as que pessoas que se apuraram, e cotejados os registos bancários, chegamos a um prejuízo de mais de 22.000€ (vinte e dois mil euros).
Mais, mesmo em julgamento e perante a evidência da prova pericial de que não padecia à data dos factos de qualquer síndrome procurou fazer querer que estava convencida de que tinha cancro, o que revela bem que não interiorizou o desvalor da sua conduta não nos permitindo concluir por um juízo de prognose favorável quanto ao não cometimento de novos crimes.
Acresce ainda que do ponto de vista da prevenção geral, a comunidade, pela ampla repercussão que o caso teve, não compreenderia uma suspensão da pena de prisão, sendo que a confiança comunitária na validade da norma violada sairia fortemente abalada.
Nestes termos, a pena de prisão em que a arguida vai condenada não será suspensa na sua execução.
7. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal:
c) Condenar a arguida (...) pela prática de um crime de Burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº1 e 218º, nº2, alíneas a), do Código Penal, com referência ao artigo 202º, alínea b) do mesmo diploma legal, na pena de 3 anos de prisão
(…).»

2.3. Conhecimento do recurso
2.3.1. Da nulidade da perícia médico-legal de psiquiatria realizada à arguida e da proibição de valoração do respetivo relatório, por constituir prova nula, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 126º do CPP
Sustenta a arguida/recorrente que a perícia médico-legal de psiquiatria a que foi submetida, quando não prestou o seu consentimento para o efeito, tendo tal perícia sido determinada por despacho do Ministério Público e não pelo juiz, como se impunha que o fosse, enferma de nulidade, por violação do disposto no artigo 154º, n.º 3, do CPP, estando-se perante um método proibido de prova e, como tal, o respetivo relatório pericial, consubstancia prova nula, que não pode ser utilizada, de harmonia com o estatuído no n.º 3 do artigo 126º do CPP.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão à arguida/recorrente, tendo esta consentido na realização da perícia psiquiátrica, pelo que não se verifica qualquer nulidade, cabendo ao Ministério Público, no decurso do inquérito, ordenar a respetiva realização, nos termos do disposto no artigo 154º, n.º 1, do CPP.
Apreciando:
Sob a epígrafe “Despacho que ordena a perícia”, dispõe o artigo 154º do CPP:
«1. A perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo a indicação do objeto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição, laboratório ou o nome dos peritos que realizarão a perícia.
2.[3] A autoridade judiciária deve transmitir à instituição, ao laboratório ou aos peritos, consoante os casos, toda a informação relevante à realização da perícia, bem como a sua atualização superveniente, sempre que eventuais alterações processuais modifiquem a pertinência do pedido ou o objeto da perícia (…).
3.[4] Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
(…).»
Das normas acabadas de transcrever decorre que a realização de perícia é determinada por despacho da autoridade judiciária que, consoante a fase processual em que tenha lugar, será o Ministério Público, na fase de inquérito (cfr. al. b), do n.º 2 do artigo 270º, do CPP) e o juiz, na fase de instrução e na fase do julgamento.
Porém, tratando-se de perícia sobre as caraterísticas físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado o seu consentimento, só o juiz pode determinar a sua realização, mesmo na fase de inquérito (cfr. al. a), do n.º 1, do artigo 269º e n.º 3 do artigo 154º, ambos do CPP).
A perícia que ao presente caso importa considerar, é a perícia médico-legal psiquiátrica a que alude o n.º 6 do artigo 159º do CPP, que respeita ao apuramento de estados psíquicos, eventualmente, determinantes da inimputabilidade criminal do arguido.
Tratando-se de perícia psiquiátrica, perante a falta de consentimento da pessoa visada, cabe ao juiz ponderar a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado (cf. n.º 3 do artigo 154º do CPP), constitucionalmente consagrados, nos artigos 25º e 26º da CRP, por um lado, e a prossecução do interesse do Estado de descoberta da verdade material e de realização da justiça penal, por outro lado, à luz do princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP[5].
Na ausência de consentimento da pessoa visada pela perícia psiquiátrica, se esta for realizada, sem que haja sido determinada por despacho do juiz (n.º 3 do artigo 154º do CPP), a prova obtida será nula e não poderá ser utilizada, nos termos do disposto no artigo 126º, n.º 3, do CPP.
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso dos autos:
Colhem-se nos autos os seguintes elementos com relevância para a questão ora em apreciação:
- Por despacho proferido em 08/11/2018, sob a Ref.ª 111187109, o Ministério Público determinou a realização de perícia psiquiátrica à arguida, nos seguintes termos:
«Solicite ao INML de Portimão que, com nota de urgente, designe data e instituição de saúde para a realização de uma perícia psiquiátrica à arguida para esclarecimento das seguintes questões:
- Se a arguida sofre, ou sofria na data da prática dos factos, de alguma anomalia ou perturbação psíquica;
- Se, por causa dessa anomalia ou perturbação, não tem discernimento para avaliar a ilicitude dos factos que lhe são imputados ou de se determinar de acordo com essa avaliação;
- Se apresenta indícios médico-psicológicos sugestivos de perigosidade social;

*
Solicite ao Hospital Universitário de Faro o envio de todos os registos clínicos relativos à assistência médica aí, eventualmente, prestada à arguida durante o ano de 2017.
(…).»
- A arguida foi notificada para comparecer no Gabinete Médico-Legal e Forense do Barlavento Algarvio, na data indicada (12/03/2019), a fim de ser submetida a exame médico, do que foi dado conhecimento a familiar próximo da arguida, concretamente à sua mãe (cf. fls. 465, 467, 480 a 483);
- A arguida veio a comparecer naquele Gabinete Médico-Legal, na data designada, tendo sido realizado exame médico-legal de psiquiatria e elaborado relatório preliminar, que consta a fls. 551 a 553 dos autos, tendo o Sr. Perito médico psiquiatra que subscreveu o mesmo relatório solicitado a “Avaliação Psicológica” da examinada, ora recorrente, a qual acabou por não ser efetuada, por o Ministério Público ter considerado que, em face do relatório preliminar da perícia de psiquiatria, onde se concluiu pela imputabilidade da arguida, tendo sido deduzida a acusação, se mostrava desprovido de efeito útil a “Avaliação Psicológica” da arguida (cf. despacho de 08/05/2019, Ref.ª 113119031).
Não resulta minimamente evidenciado que a arguida não tivesse consentido na realização da perícia psiquiátrica, tendo até, nesse âmbito, assumido uma atitude de cooperação, respondendo a perguntas que lhe foram colocadas pelo Sr. Perito médico psiquiatra, ainda que, a algumas delas e na perspetiva do Sr. Perito de forma evasiva, como decorre do relatório de fls. 551 a 553.
Assim sendo, não tendo a arguida manifestado não dar o seu consentimento à realização da perícia psiquiátrica, não tinha a mesma de ser ordenada por despacho do juiz, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 154º do CPP, antes cabendo ao Ministério Público, na fase de inquérito, determinar a realização de tal perícia, de harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 154º do CPP, o que aconteceu.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade da perícia psiquiátrica, por violação do disposto no artigo 154º, n.º 3, do CPP, sendo o respetivo relatório pericial, ainda que se trate de um relatório preliminar, válido e podendo ser utilizado e valorado, como meio de prova, em julgamento.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.

2.3.2. Da impugnação da matéria de facto dada como não provada no acórdão recorrido, sob os pontos 4 a 7, 21, 23, 30, 34, 40, 42 a 44, 47, 48, 51, 55 a 57, 61, 63 e 64, por erro notório na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto para a decisão e sob os pontos 12 a 15 por insuficiência da matéria de facto para a decisão
Sustenta a recorrente que o Tribunal a quo deu como provada a factualidade vertida nos pontos 4 a 7, 21, 23, 30, 34, 40, 42 a 44, 47, 48, 51, 55 a 57, 61, 63 e 64, no que concerne aos elementos subjetivos, com base em presunções, atingidas por meio das conclusões do relatório da Perícia Psiquiátrica realizado pelo INML e que consta da matéria factual dada como provada no ponto 54, descurando o relatório médico anterior, inserto a fls. 55 e 56, que concluiu em sentido contrário.
Defende a arguida/recorrente que estando em causa dois pareceres médicos, divergentes entre si – no primeiro conclui-se padecer a arguida do Síndrome de Münchhausen e no último conclui-se em sentido contrário –, o tribunal teria de escolher e ao fazê-lo, considerando o teor do relatório de fls. 55 e 56, este levaria, no mínimo, a gerar a dúvida intransponível quanto à verificação dos elementos subjetivos.
Neste quadro, entende a recorrente existir erro notório na apreciação da prova, evidenciado no segmento decisório da motivação da decisão de facto, que se passa a transcrever «Para prova da factualidade subjectiva, o tribunal atendeu à factualidade objectiva dada como provada concatenada com as regras da experiência e com o teor da perícia psiquiátrica de onde resulta que a arguida, não padecendo de qualquer Síndrome de Münchhausen, não só engendrou um esquema para enganar terceiros, fazendo-os crer que estava com uma doença oncológica, como fez com o propósito de assim, através do erro criado, leva-los a actos de disposição patrimonial em seu beneficio.».
Na perspetiva da recorrente devia ter sido valorado o relatório médico de fls. 55 e 56 dos autos – de onde resulta padecer a arguida do Síndrome de Münchhausen –, em detrimento do relatório da perícia psiquiátrica que se mostra incompleto e inconclusivo, não tendo sido realizada a avaliação psicológica à arguida cuja necessidade ficou expressa no relatório e foi pelo Sr. Perito comunicada aos autos [avaliação essa cuja teve data designada para a sua realização, a qual foi dada sem efeito pela Ministério Público, em face das conclusões do relatório preliminar da perícia psiquiátrica junta aos autos e em que o Tribunal a quo se baseou para dar como provada a factualidade agora impugnada] e, nesta situação, por que o julgador não podia, neste domínio da psiquiatria, basear-se nas regras da experiência comum, havia que concluir que a arguida «agiu por forças compulvisas não domináveis, estando subtraída a sua liberdade de se determinar de acordo com o objetivamente lícito, não podendo assim, ser responsável criminalmente por actos cuja culpa não lhe pode ser imputada ou censurada» e impondo-se que fosse dada como não provada a factualidade respeitante aos elementos subjetivos vertida nos pontos da matéria de facto impugnados.
Aduz, ainda, a recorrente que a apreciação, por parte do Tribunal a quo, das declarações prestadas pela arguida, na audiência de julgamento, foi condicionada pela perícia realizada, tendo havido uma incorreta valoração dessas declarações, pois deveriam ter sido credibilizadas – designadamente, por se mostrarem compatíveis com o diagnóstico médico de fls. 55 e 56 e resultando da prova testemunhal produzida que a arguida sempre se comportou, genuinamente, como se de uma doente oncológica se tratasse – e, consequentemente, dar-se como não provada a factualidade subjetiva vertida nos pontos da matéria de facto agora impugnados, decidindo-se, a final, perante a dúvida razoável e irremovível, quanto à existência de culpa, pela absolvição da arguida.
Por último, alega a recorrente não ter sido produzida qualquer prova, em audiência de julgamento, quanto à factualidade vertida nos pontos 12 a 15 da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, não tendo as testemunhas (...) e (…) comparecido em julgamento, não podendo ser valoradas os depoimentos que prestaram noutras fases processuais, conforme decorre do disposto no artigo 355º do CPP e nada se sabendo sobre a razão, motivo e/ou circunstâncias em que ocorreram as transferências bancárias que efetuaram para a conta da arguida, devendo ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 12 a 15, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão à arguida/recorrente, não padecendo o acórdão recorrido de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do CPP, designadamente, dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, que são invocados no recurso, e tendo sido feita uma correta apreciação da prova por parte do Tribunal a quo.
Antes de apreciarmos a concreta questão suscitada, importa tecer algumas considerações teóricas, sobre a impugnação da matéria de facto, em sede recursiva.
A impugnação da decisão de facto pode fazer-se por duas vias, sendo uma delas, de âmbito mais restrito, invocando os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP – a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova; e a outra através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.
Caso sejam invocados os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP, tratando-se de vícios que emanam da própria decisão recorrida, por si mesma, ou conjugada com as regras da experiência comum, não é admissível, para fundamentar a existência do vício, o recurso a elementos estranhos à mesma decisão, ainda que resultem do julgamento.
Já na impugnação ampla da matéria de facto, sendo invocado o erro de julgamento por incorreta valoração da provao qual ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado –, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do C.P. Penal.
Neste domínio, um ponto que tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação é o de que para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente permitam ou até sugiram conclusão diversa da ínsita na decisão recorrida; exige-se que concretas provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal ou por declarações, sendo unânime na jurisprudência, o entendimento de que quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
No presente caso, tendo em conta os fundamentos da impugnação da matéria de facto aduzidos pela ora recorrente, importa atentar nos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.
Assim:
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP, ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para fundamentar a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência.
Para invocar este vício, «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada.»[6]
É uma «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito.»[7]
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida. Como se refere no Ac. da RL de 18/07/2013[8], «Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal
O vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar, arbitrária, de todo insustentável, e as regras da experiência comum. Tem de ser um erro patente, evidente, percetível por um qualquer cidadão.
Na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem sido entendido que existirá erro notório na apreciação da prova quando na sentença são dados como provados (ou não provados) factos que são contrários aos resultados da prova pericial (ou seja, ao juízo técnico, científico ou artístico inerente a tal prova) e não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial[9].
É que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 163º do CPP, presume-se subtraído á livre apreciação do julgador, o que traduz uma exceção ao princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP.
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso dos autos:
Relativamente ao invocado erro notório na apreciação da prova:
Está em causa a prova pericial e, concretamente, a perícia psiquiátrica realizada à arguida, ora recorrente, cujo relatório se mostra junto a fls. 551 a 553 e a que o Tribunal a quo atendeu para afastar que a arguida, à data dos factos, sofresse de Síndrome de Münchhausen e sedimentasse a convicção de que a atuação pela mesma desenvolvida e que resultou apurada, o foi num quadro de simulação engendrado pela arguida, em execução de plano delineado, com vista a alcançar o desiderato a que se propôs de convencer/enganar terceiros levando-os a acreditar que padecia de doença do foro oncológico em estado avançado, tendo pouco tempo de vida e a que a ajudassem financeiramente, fazendo disposições patrimoniais, em dinheiro e/ou em bens, por se terem convencido de que a arguida padecia da doença que anunciava.
Defende a recorrente que o Tribunal a quo não podia ter concluído no sentido em que concluiu e que ao invés devia ter considerado que a arguida padecia de Síndrome de Münchhausen e que estava genuinamente convencida de que padecia de doença do foro oncológico, tendo em conta, o teor relatório médico de fls. 55 e 56, que a diagnosticou com aquele Síndrome, as declarações da arguida e toda a prova testemunhal produzida, tendo as testemunhas, incluindo o seu companheiro, confirmado que a arguida sempre se comportou, genuinamente, como se de uma doente oncológica se tratasse.
Que dizer?
Desde logo, importa salientar que a “Nota de Alta”, datada de 03/10/2017, que consta a fls. 55 e 56, elaborada por médico psiquiatra, que observou arguida, no Serviço de Urgência de Psiquiatria do Hospital São Francisco Xavier, Lisboa, onde deu entrada no dia 02/10/2017, conduzida pela PSP – por se encontrar na Fundação Chaupalimaud, alegando ser aí seguida por doença oncológica, tendo-se verificado não ter aí processo clínico nem tendo recebido qualquer tratamento ou cuidados da saúde naquela Fundação, sendo que a arguida se vinha aí deslocando, regularmente, no período compreendido entre outubro de 2015 e outubro de 2017, frequentando a Unidade de Tratamento de Oncologia do cancro da mama, a pretexto de sofrer de doença do foro oncológico e contatando com os utentes que ali se encontravam e com trabalhadores, mas nunca tendo aí recebido qualquer tratamento, tido aí a qualquer consulta ou contato oficial com técnicos de saúde –, não tem por base uma perícia psiquiátrica realizada à arguida, tratando-se de uma “Nota de Alta” onde consta informação sobre o “Estado Clínico do Doente” e se conclui pela “Perturbação Factícia - Síndrome de Munchhausen”.
Consta da aludida “Nota de Alta” que «Á observação do Estado Mental a doente encontra-se vígil, orientada em todos os referenciais, sem alterações cognitivas grosseiras. Pouco colaborante na entrevista, com fácies fechado e chorando durante o decorrer da entrevista, participando pouco. Não se apuram sintomas psicóticos, nomeadamente, alterações do curso, posse, forma ou centeúdo do pensamento, nem da percepção ou da vivência do Eu. Humor triste, afectos ressonantes e congruentes. Sem ideação auto ou hétero-agressiva.
Sem AP psiquiátricos ou médico-cirúrgicos de relevo, para além da HTA[10]. Não se apura outra psicopatologia assinalável, neste momento, para além da insónia inicial (…).
Conclusão:
Perturbação Factícia – Síndrome de Munchausen.
(…). Foi explicado o diagnóstico de Perturbação Factícia – Síndrome de Munchausen à doente e aos seus familiares. Explicou-se também a necessidade de se assegurar acompanhamento psiquiátrico da doente na área da residência e de informarem o Médico Assistente nos Cuidados de Saúde Primários sobre o diagnóstico.
Plano:
- Prescreve-se (…), para tratamento da insónia.
- Tem alta da Psiquiatria de SU, na companhia dos familiares, que a irão levar para o domicílio no Algarve e assegurar a continuidade dos cuidados na área de residência.»
A perícia médico-legal de psiquiatria à arguida, realizada no INML, em 12/03/2019, e cujo respetivo relatório se mostra junto a fls. 551 a 553 dos autos, tratando-se de um relatório preliminar, na medida em que o Sr. Perito Médico Psiquiatra que efetuou o exame e subscreveu o mesmo relatório entendeu haver necessidade de realização de avaliação psicológica à arguida que não veio a ser efetuada, por o Ministério Público ter considerado, que se se mostrava desprovida de efeito útil, em face da conclusão constante do relatório preliminar no sentido da imputabilidade da arguida e na fase em que então estavam os autos, tendo sido encerrado o inquérito, deduzindo o Ministério Público acusação.
Na subsequente fase processual – de julgamento, não tendo sido requeria a instrução –, não foi determinada nem requerida a realização da avaliação psicológica à arguida e a consequente conclusão da perícia de psiquiatria com a elaboração do relatório pericial definitivo.
No referido relatório pericial preliminar o Sr. Perito, Médico Psiquiatra apresentou as seguintes Conclusões:
«1. A examinada é possuidora do diagnóstico de Perturbação da Personalidade Sem Outra Especificação, a que corresponde o código F60.8 da Internacional Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
2. Salvo melhor opinião não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação.
3. Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação. No presente momento, apresenta capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir determinar segundo essa avaliação.
4. Salvo melhor opinião deverá ser considerada como totalmente imputável dos factos de que está indiciada.
5. Deverá ser realizada avaliação Psicológica
No aludido relatório pericial o Sr. Perito refere que «Quanto à eventual e genuína crença de que teria um cancro, tal carece de consistência e substância, não tendo sido, de modo objetivo e pragmático, encetado qualquer procedimento médico
Importa fazer notar que não estamos aqui perante uma situação em que existam perícias divergentes, sendo que nos autos houve uma única perícia psiquiátrica realizada à arguida e cujo respetivo relatório preliminar se mostra inserto a fls. 551 a 553, tendo o Sr. Perito Médico Psiquiatra concluindo, ressalvando melhor opinião, que a examinada, ora arguida, «não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação»
O documento de fls. 55 e 56 é uma “Nota de Alta” do SU de Psiquiatria do Hospital São Francisco Xavier onde a arguida deu entrada, nas circunstâncias já referidas, e foi observada, concluindo o Médico Psiquiatra que a observou, pelo diagnóstico de “Perturbação Factícia – Síndrome de Munchausen”.
O Tribunal a quo consignou, na motivação da decisão de facto exarada no acórdão, que as conclusões do relatório pericial «permitem afastar um primeiro diagnóstico efectuado pelo Serviço de Urgência do Hospital São Francisco Xavier em Lisboa (cf. fls 55), onde se apontava para um diagnóstico de Síndrome de Munchhausen.», explicitando as razões por que não lhe mereceram credibilidade as declarações da arguida, na versão que apresentou de que, à data dos factos, estava convencida de que sofria de cancro, em fase avançada, evidenciado que «Em sede de audiência não deixaram de se verificar contradições no discurso da arguida, que ora pedia desculpa e chorava, ora dizia que à data dos factos estava convencida de que tinha a doença, sendo certo que apesar de se recordar de ir à fundação Champalimaud e de aí se encontrar com uma enfermeira (indicada por uma amiga da mãe) já revelou lapsos incompreensíveis quanto ao facto de não se recordar se fez tratamentos (sendo incontroverso que não fez qualquer tratamento, como flui da declaração da própria fundação).
A convicção que ficou ao tribunal pelas declarações da arguida é que a mesma, apesar de admitir a factualidade provada objectiva que lhe vinha imputada, procurou, uma vez mais, lançar mão da simulação para tentar fazer crer que à data dos factos sofria de Síndrome de Munchhausen[11], quando tal quando já se encontrava completamente afastado pela perícia a que foi sujeita.»
Como é sabido, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre convicção do julgador (cfr. nº 1 do artigo 163º do CPP).
Em caso de perícias divergentes, o tribunal poderá fundar a sua convicção naquela que se lhe apresentar como mais sólida, desde que fundamente essa opção/decisão, para o que relevará a análise «da relação lógico-racional, científica, que se estabelece entre os fundamentos e as conclusões de ambos os relatórios[12].
Ora, como já referimos, no caso dos autos, não estão em causa duas perícias, mas sim uma perícia e uma nota de alta clinica, não existindo qualquer impedimento a que o tribunal pudesse fundar a sua convicção no relatório preliminar da perícia e não acolhesse o resultado do diagnóstico efetuado pelo Médico Psiquiatra que observou a ora arguida/recorrente no SU de Psiquiatria do Hospital São Francisco Xavier, pelas razões que explicitou.
No relatório preliminar da perícia de psiquiatria realizada à arguida, ora recorrente, concluiu o Sr. Perito, ressalvando melhor opinião, que a examinada «não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação» e que «Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação.»
A conclusão do Sr. Perito, Médico Psiquiatra, no sentido de afastar que a arguida apresentasse “Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen)”, não é contraditada por qualquer evidência de sentido contrário, tendo-se em conta o relatório subscrito pela Sr.ª Diretora de Serviço de Psiquiatria 1, do Centro Hospitalar Universitário do Algarve, datado de 01/02/2019, respeitante a uma consulta de Psiquiatria realizada à arguida em 24/10/2017 (na sequência do encaminhamento sugerido pelo Médico Psiquiatra que a observou no SU de Psiquiatra do Hospital São Francisco Xavier, em 02-03/10/2017, nas circunstâncias supra referidas) e que se mostra junto a fls. 471, a declaração/atestado, datado de 08/10/2019, atestando que a arguida «tem seguimento em consultas de Psiquiatria Comunitária desde Outubro de 2017 por sintomatologia angodepressiva com vários anos de evolução» e considerando a sintomatologia que carateriza a Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen e sobretudo a finalidade visada pelos indivíduos que dele padecem, que é a de procurar receber tratamentos médicos e mesmo internamento hospitalar.
A finalidade ou o objetivo que move os indivíduos que padecem do transtorno da Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen é o de procurar receber tratamentos e cuidados médicos, como resulta dos critérios de diagnóstico que constam do DSM – Manual Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, no que se refere a esse Síndrome (a saber: A) produção ou simulação intencional de sintomas e sinais predominantemente físicos; B) o papel de doente é o que motiva o comportamento; C) ausência de incentivos externos para o comportamento (ganho económico, fuga de responsabilidade legal ou melhora de bem-estar físico. Não pode ocorrer exclusivamente durante o curso de outra doença do eixo I, como a esquizofrenia) e da informação vertida nas páginas da internet www.msdmanuals.com e www.mdscape.com que a esse propósito a recorrente referencia na motivação de recurso, finalidade essa que, no caso da arguida/recorrente, não esteve presente, pois que, a mesma nunca procurou receber tratamento médico para o problema oncológico de que afirmava padecer, deslocando-se ao longo de dois anos, semanalmente, à Fundação Champalimaud, contatando com os utentes e com trabalhadores dessa instituição, mas nunca tendo ido aí a qualquer consulta, recebido ou procurado receber qualquer tratamento ou sequer contatado oficialmente com o pessoal médico.
Como se refere no artigo da especialidade, intitulado “Transtorno factício imposto a si mesmo”, da MD Universidade da Califórnia, San Diego[14]:
«O transtorno factício é a falsificação de sintomas físicos ou psicológicos sem um incentivo externo óbvio; a motivação para esse comportamento é assumir o papel de enfermo[15]. Os sintomas podem ser agudos, dramáticos e convincentes. Os pacientes costumam perambular de um médico ou hospital para outro para tratamento. A causa é desconhecida, embora estresse e um transtorno de personalidade grave, com mais frequência, transtorno de personalidade borderline, quase sempre estejam implicados. O diagnóstico é clínico. Não há tratamentos claramente eficazes.
O transtorno factício imposto a si mesmo era anteriormente chamado síndrome de Munchausen, particularmente quando as manifestações eram dramáticas e graves. (…)
Esses pacientes inicialmente e, algumas vezes, cronicamente se tornam responsabilidade de clínicas médicas e cirúrgicas. Apesar disso, o transtorno é um problema mental, é mais complexo que a simples simulação desonesta de sintomas e está associado às graves dificuldades emocionais.
Os pacientes podem ter características de personalidade borderline proeminentes e, em geral, são inteligentes e hábeis. Eles sabem como simular doenças e são sofisticados no que concerne às práticas médicas. Se diferenciam dos simuladores porque, embora suas fraudes e simulações sejam conscientes e volitivas, não há incentivos externos óbvios (p. ex ganho econômico) pelo seus comportamentos. O ganho, além da atenção médica por seu sofrimento, não é claro; suas motivações e a busca por atenção são largamente inconscientes e obscuras.
Pode haver história precoce de abuso emocional e físico. Os pacientes podem também ter vivido uma doença grave na infância ou ter um familiar seriamente enfermo. Os pacientes parecem ter problemas com sua própria identidade, assim como relacionamentos instáveis. A doença forjada pode ser uma maneira de aumentar ou proteger a autoestima, colocando a responsabilidade das falhas na doença, estando associada aos médicos e aos centros médicos de prestígio e/ou parecendo única, heroica ou medicamente reconhecida e sofisticada.
(…)
Diagnóstico
. Avaliação clínica
O diagnóstico do transtorno factício imposto a si mesmo baseia-se em história e exame, juntamente com todos os testes necessários para excluir doenças físicas e demonstração de exagero, falsificação, simulação e/ou indução de sintomas físicos. O comportamento deve ocorrer na ausência de incentivos externos óbvios (p. ex., folga no trabalho, compensação financeira por danos)[18].
(…)
Neste quadro, sendo um dos critérios determinantes para o diagnóstico do Transtorno Factício – Síndrome de Münchhausen, de acordo com o DSM – Manual Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, a ausência de incentivos externos para o comportamento do doente, designadamente, o ganho económico, procurando o individuo tratamentos médicos e resultando demonstrado que a arguida não procurou, ao longo dos dois anos em que desenvolveu a atuação que resultou apurada, deslocando-se, semanalmente, à Fundação Champalimaud e adotando aí os comportamentos descritos, conseguir qualquer tratamento médico para a doença do foro oncológico de que dizia padecer, apelando à solidariedade de terceiros, convencendo-os de que efetivamente padecia de doença dessa natureza, em estado avançado, carecendo de tratamento, no setor privado, visando, dessa forma, obter vantagens económicas, desiderato que logrou alcançar, utilizando tais quantias em proveito próprio para outros fins que não a de tratamentos médicos, a conclusão do Sr. Perito Médico Psiquiatra que procedeu ao exame médico-legal de psiquiatria à arguida e que consta do relatório preliminar no sentido de que a examinada «não apresenta sintomatologia enquadrável em Perturbação Factícia (ou Síndrome de Munchhausen), devendo ser considerado o quadro de simulação», em que o Tribunal a quo se baseou para alicerçar a sua convicção de que a arguida, à data dos factos, não sofria de perturbação factícia – Síndrome de Münchhausen, mostra-se devidamente sustentada, não merecendo qualquer reparo.
Estando afastado que a arguida, ora recorrente, padecesse de Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen e não existindo quaisquer elementos objetivos que resultassem da prova produzida e passíveis de poder levar a que se suscitasse, fundadamente, ao Tribunal a quo, a questão da falta de capacidade da arguida de avaliar a ilicitude da sua conduta e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação (inimputabilidade) ou da diminuição dessa capacidade e afetação da determinação (imputabilidade diminuída), não existia a obrigatoriedade de proceder à avaliação psicológica da arguida, sendo este um meio auxiliar na perícia médico-legal de psiquiatria e considerando a finalidade tida em vista nos autos com a realização desta última, concluindo o Sr. Perito que «Na altura da ocorrência dos eventuais factos, teria capacidade de distinguir o bem/mal, lícito/ilícito, querer/poder, e de se conseguir auto-determinar segundo essa avaliação».
É certo que a realização de avaliação psicológica à arguida, nos termos previstos no artigo 160º do CPP, poderia levar a um mais rigoroso apuramento da estrutura e caraterísticas da sua personalidade e a uma melhor compreensão do seu funcionamento psicológico e do seu grau de socialização, tendo o Sr. Perito que realizou a perícia médico-legal de psiquiatria à arguida concluído que a mesma é possuidora do diagnóstico de Perturbação da Personalidade Sem Outra Especificação, a que corresponde o código F60.8 da ICD-10. Contudo, não existindo o mínimo indício de que essa Perturbação da Personalidade interferisse com a capacidade de avaliação da ilicitude dos factos e de determinação de acordo com essa avaliação, não se impunha ao juiz de julgamento a obrigatoriedade de determinar a realização da avaliação psicológica da arguida e a conclusão da perícia psiquiátrica, com a elaboração do relatório definitivo, o que pressuporia a realização daquela avaliação, conforme decorre do relatório preliminar da perícia a que se vem fazendo referência, inserto a fls. 551 a 553 dos autos.
Destarte, estando afastado, com base na prova pericial e nos termos sobreditos, que a arguida sofresse de Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen e não se suscitando qualquer dúvida, que sempre teria de ser fundamentada, acerca da imputabilidade da arguida, considerando os factos que praticou e que resultaram apurados, tendo a arguida admitido a respetiva prática, para a prova dos elementos subjetivos, que pertencem ao foro intimo do sujeito, designadamente do dolo, na ausência de confissão da arguida, não poderia o Tribunal a quo deixar de socorrer, como se socorreu, das regras da experiência comum e da normalidade da vida, para a partir da análise da conduta assumida pela arguida e do contexto da ação desenvolvida, retirar, por recurso a ilações e inferências, a intenção pela mesma revelada e subjacente à atuação empreendida.
O raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo Tribunal a quo merecendo-nos inteira concordância, sendo que as inferências extraídas em relação à motivação e intenção da arguida subjacente à atuação objetiva que desenvolveu e que resultou apurada, mostram-se consentâneas com as regras da experiência comum e do normal acontecer e conformes aos critérios da lógica racional.
Por todo o exposto e em conformidade, impõe-se concluir pela inexistência de erro notório na apreciação da prova.
E de igual modo inexiste o vício insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Em relação à factualidade provada vertida nos pontos 12 a 15 que é impugnada pela recorrente invocando a insuficiência para a decisão da matéria factual provada - alegando não ter sido produzida qualquer prova quanto a essa factualidade, não tendo as testemunha (...) e Linda Bullock comparecido, na audiência de julgamento e não podendo ser valorados os depoimentos que prestaram noutras fases processuais -, tendo em conta os contornos do apontado vício decisório, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º, que se deixaram definidos supra, reiterando-se que não se confunde com a insuficiência da prova para dar como provado determinados factos – sendo que a acontecer esta última situação estar-se-á perante erro na apreciação/valoração da prova –, forçoso é concluir pela inexistência do invocado vício, com referência a esse segmento do acórdão.
Quanto à alegada ausência de prova, se é facto que as testemunhas (…) não compareceram na audiência de julgamento, não tendo, por isso, prestado depoimento nessa sede, decorre da motivação da decisão de facto que o Tribunal a quo sedimentou a sua convicção no referente à prova em relação aos factos vertidos nos pontos 12 a 15, com base nas declarações da arguida, consignando que «A arguida admitiu a globalidade da factualidade objetiva quanto às circunstâncias de tempo, modo e lugar em que actuou, designadamente as verbas recebidas …» e atendendo, também, para prova dos valores entregues pelo casal (…) à arguida, ao teor dos documentos juntos aos autos, concretamente ao extrato bancário, de fls. 61 a 70 e à informação do Banco de Portugal de fls. 74 e 75.
Aliás, a admissão por parte da arguida da «globalidade dos factos que constam da acusação à exceção do elemento subjetivo» e a subsequente circunscrição do objeto da prova ao elemento subjetivo, tendo em conta as declarações da arguida, ficaram a constar de despacho proferido pelo Tribunal a quo e exarado na ata da audiência de julgamento, tendo o Ministério Público, nessa decorrência, vindo a prescindir de algumas testemunhas arroladas, entre elas a testemunha (...), que prestaria depoimento, através de teleconferência, a partir de Inglaterra (cf. ata com a Ref.ª 116217108, inserta a fls. 859 a 865 dos autos).
Perante a confissão, por parte da arguida, da globalidade da factualidade objetiva, abrangendo, consequentemente, a matéria factual referente a casal (…) e as circunstâncias e razões por que efetuaram as transferências dos montantes em causa é manifesta a ausência de razão da recorrente, ao sustentar a falta de prova para que o Tribunal a quo desse como provada a factualidade vertida nos pontos 12 a 15.
Perante todo o exposto, impõe-se concluir que não só não ficaram por apurar quaisquer factos que o Tribunal a quo devesse apurar, com relevância para a descoberta da verdade material e decisão da causa (cf. artigo 368º do CPP), como perante os factos que foram dados como provados no acórdão recorrido, considerando o respetivo enquadramento jurídico-penal, há que concluir serem aqueles bastantes para a decisão de direito, que foi proferida, em termos de se concluir pelo preenchimento, pela arguida, através da sua conduta, dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, do crime de burla qualificada, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, pelo que inexiste o apontado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Improcede, assim, também este segmento do recurso.

2.3.3. Da violação do princípio in dúbio pro reo
Sustenta a arguida/recorrente que, em face do diagnóstico de que padecia de Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen, efetuado por médico psiquiatra do SU de Psiquiatria do Hospital São Francisco Xavier e que consta de fls. 55 e 56 e na ausência de juízo técnico válido, legitimo e legal, que por subtraído à livre apreciação do julgador, goze de maior força probatória do que aquele diagnóstico médico, sempre este último teria de vingar, ainda que o fosse, por dúvida razoável, que por força do principio in dúbio pro reo, teria de ser resolvida em sentido favorável à arguida e, não tendo decidido nesse sentido, o Tribunal a quo violou o enunciado princípio.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente.
Apreciando:
O princípio in dúbio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
E vem sendo entendimento jurisprudencial pacificamente aceite, que o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dúbio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[19] ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, for levado a considerar que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria suscitar-se no espirito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
No caso vertente, lido o acórdão recorrido e, designadamente, a motivação da decisão de facto nele exarada, é inequívoco que dela não resulta que o julgador se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre os factos que deu como provados e, especificamente, em relação ao facto de a arguida não apresentar, à data dos factos, Perturbação Factícia – Síndrome de Münchhausen, explicitando o Tribunal a quo as razões que sustentam a convicção alicerçada nesse sentido, tendo por base o relatório preliminar da perícia médico-legal de psiquiatria realizada à arguida e que consta a fls. 551 e 553, que levaram a afastar o diagnóstico inicial que havia sido efetuado no SU de Psiquiatria do Hospital de São Francisco Xavier e reportado a fls. 55 e 56, não tendo o Tribunal a quo se confrontado com qualquer dúvida nesse aspeto e, nessa medida, não tendo campo de aplicação o principio do in dúbio pro reo.
E atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, designadamente à prova pericial, fica afastada a possibilidade de a prova produzida e concretamente o diagnóstico que consta da “Nota da Alta” de fls. 55 e 56, determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável à arguida/recorrente.
Nesta conformidade, impõe-se concluir não existir violação, por parte do Tribunal a quo, do princípio in dúbio pro reo.

*
Mantém-se, assim, inalterada a matéria de facto fixada na 1ª instância.

2.3.4. Do erro de subsunção
No pressuposto de que seria alterada a matéria de facto, nos termos que a recorrente pretendia que o fossem, designadamente, dando-se como não provada a entrega pelo casal (…) da quantia de €14.404,36, no contexto e com a finalidade que foram dados por assentes, implicando a subtração de tal valor ao montante global referido no ponto 60., que este passasse a ser de €8.335,00, estaria afastada a circunstância qualificativa do valor consideravelmente elevado, prevista na al. a) do n.º 2 do artigo 218º, por referência à al. b) do artigo 202º, ambos do CP.
Sustenta, por outro lado, a arguida/recorrente que mesmo que se considere que pretendia obter quantias através do apelo à doença oncológica, não tendo sido feita prova da intenção ou vontade de obter determinado valor, em conformidade com o princípio da presunção da inocência e por que indeterminado o quantitativo patrimonial intencionalmente pretendido obter, devia a arguida ser condenada pela prática do crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1, do CP.
Apreciando:
Conforme supra se decidiu mantém-se inalterada a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, designadamente, em relação aos concretos pontos que são aqui convocados pela recorrente.
Importa fazer notar que, no respeitante ao quantitativo patrimonial pretendido obter pela arguida/recorrente, através da sua descrita conduta, não tinha qualquer limitação de valor e concluindo-se pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento da arguida desde o início até ao final, necessariamente a arguida previu e quis obter das pessoas a cuja generosidade e solidariedade apelou, as quantias monetárias que as mesmas se dispusessem a entregar-lhe e, nesse circunstancialismo, necessariamente, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, sendo intenção da arguida obter o máximo de montantes que conseguisse, o elemento intelectual e volitivo do dolo, encontra-se preenchido também no referente à circunstância qualificativa do valor consideravelmente elevado.
Assim, mantendo-se inalterada a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido e dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas tecidas acerca do crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, dúvidas não existem de que a arguida/recorrente o preencheu, nos seus elementos típicos objetivos e subjetivos, não existindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que, a arguida/recorrente, não pode deixar de ser punida pelo referenciado crime efetivamente cometido.
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.

2.3.5. Da excessividade da medida concreta da pena
Sustenta a arguida/recorrente pena de prisão que lhe foi aplicada em 1ª instância, fixada em 3 (três) anos de prisão, é manifestamente exagerada, violando o disposto nos artigos 70º, 71º e 72º, do Código Penal.
O Ministério Público pugna pela manutenção da pena.
Vejamos:
No que concerne às finalidades das penas dispõe o artigo 40º, do C.P., que a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente (n.º 1) e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).
E estatui o n.º 1 do artigo 70º, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
A função primordial da pena consiste, assim, na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva e tem sempre, como limite a culpa do agente.
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se construirá a medida da pena-
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[20] sendo tal principio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do C.P.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.
Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
E de harmonia com o disposto no artigo 71º, nº 2, do C.P., na determinação concreta da pena o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, modo de execução deste, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando esta deva ser censurada através da aplicação da pena.
A moldura penal abstrata aplicável ao crime de burla qualificada, perpetrado pela arguida/recorrente, é a de 2 a 8 anos de prisão (cf. n.º 2 do artigo 218º do CP).
No acórdão recorrido, o Tribunal a quo fundamentou da seguinte forma a determinação da medida concreta da pena aplicada à arguida, ora recorrente:
«(…)
No que concerne às necessidades de prevenção geral, estas assumem particular relevância, não podendo deixar de ser consideradas como bastante acentuadas, seja pela cada vez com maior frequência com que o mesmo ocorre, rompendo e destruindo os laços de solidariedade que surgem relacionados com casos de doença, levando as pessoas a tornar-se mais receosas de ajudar, com receito de que possa tratar-se de um logro, urgindo reforçar a consciência comunitária na confiança da norma violada.
Por forma a aferir das necessidades de prevenção especial, importa trazer à colação o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal que estabelece: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele (...)”, elencando seguidamente, a título meramente exemplificativo, alguns desses factores.
A favor da arguida está o facto de não ter antecedentes criminais.
Porém, contra a arguida está não só a culpa intensa, traduzida no dolo directo com que actuou, com o elevadíssimo grau de ilicitude, traduzido num esquema que abala confiança comunitária nas situações de doença, particularmente o cancro, que pela elevada taxa de mortalidade (em casos terminais como o propalado pela arguida) tem a virtualidade de esbater a defesa dos interlocutores, tanto mais quando a arguida se apresentava de cabelo rapado, usado máscara de oxigeno, difundido a mensagem pelas redes sociais, assim aumentando o potencial lesivo da sua conduta contra o património alheio.
Não é também despicienda a circunstância da arguida se ter deslocado e feito fotografar na fundação Champalimaud, conhecida pela excelência de tratamento e centro de investigação que possui, o que credibiliza ainda mais o seu plano ardiloso, que não se coibiu de manter mesmo perante os que lhe eram mais próximos, como o companheiro e os filhos menores!
Efetivamente, perante o que ficou dito, pese embora a ausência de antecedentes criminais, o modus operando da arguida revela que a as necessidades de prevenção especial mostram-se extremamente acentuadas, tanto mais que a arguida não reconhece o erro, procurando manter que sofria de doença do foro psiquiátrico que a impeliu ao crime, doença/síndrome esse que a prova pericial permitiu afastar, como também se mostram elevadas as exigências de prevenção geral, atendendo ao número de vezes com que estes ilícitos são cometidos, demandando a pena uma expressão que reintroduza na comunidade a confiança da validade da norma violada.
Em face dos factores e das considerações descritas, entende-se ser adequada e suficiente a (…) pena de 3 anos de prisão.»
Não podemos deixar de concordar com o entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que a ilicitude dos factos é muitíssimo elevada, designadamente, atento o modo de execução dos mesmos que resultou apurado e de que o seu grau de culpa é elevado, tendo a arguida atuado com dolo direto, intenso, atento o período temporal ao longo do qual desenvolveu a sua atuação, que se prolongou por dois anos.
As exigências de prevenção geral, são prementes, pelas razões explicitadas pelo Tribunal a quo, dada a frequência com que são praticadas condutas semelhantes àquela que a arguida/recorrente adotou, explorando os laços de solidariedade que surgem de apoio e ajudar a pessoas com doenças graves, designadamente, do foro oncológico, contribuído tal tipo de condutas para a fragilização e quebra desses laços, levando a que as pessoas hesitem em ajudar e a que não o façam, por representarem que a situação apresentada por quem apela à solidariedade possa não ter correspondência com a realidade e tratar-se de um estratagema falseado para conseguir angariar vantagens económicas, o que demanda a imperiosa necessidade de reforço da validade da norma jurídica violada e de restabelecer a confiança da comunidade nessa validade, reclamando, por isso, grande firmeza da parte das instâncias formais de controlo, no sentido de se reprimir este tipo de criminalidade que aporta profunda erosão dos valores sociais, em especial da generosidade e solidariedade, que se mostram cruciais em situações de tragédia, de carência, de fragilidade, ao mais diversos níveis, que ocorrem na vida em sociedade.
As exigências de prevenção especial, revelam-se, em nosso entender, medianamente acentuadas, tendo em conta que, pese embora a arguida/recorrente não registe antecedentes, sofrendo de perturbação de personalidade não especificada e resultando evidenciado, perante os factos praticados, o egocentrismo da arguida e falta de empatia para com o Outro, a ponto de não se sensibilizar, sequer, com o sofrimento dos seus filhos, menores, a quem convenceu que sofria de cancro, em estado avançado, não exteriorizando a arguida qualquer atitude de que resulte ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta, não se mostra arredado o risco de poder voltar a delinquir, podendo contribuir para que tal não venha a ocorrer, o acompanhamento que vem tendo em psiquiatria, que iniciou, posteriormente, ao cometimento dos factos, apresentado sintomatologia ango-depressiva.
Milita a favor da arguida a circunstância de não ter antecedentes criminais.
Sopesando todos estes fatores e sem deixar de atender às condições de vida da arguida que resultaram apuradas, tendo-se separado do companheiro com quem vivia à data dos factos e refazendo a vida com um novo companheiro, tendo ocupação laboral, entendemos que a pena de 3 (três) anos de prisão fixada pelo Tribunal a quo, se mostra justa, equilibrada e proporcional à culpa da arguida/recorrente, revelada nos factos e adequada a assegurar as exigências de prevenção que se fazem sentir, não merecendo qualquer reparo.
Improcede, assim, também este fundamento do recurso.

2.3.6. Da suspensão da execução da pena
Pugna a arguida/recorrente para que seja suspensa, na sua execução, a pena de prisão em que é condenada nos presentes autos.
Para tanto, alega que é primária, que se mostram decorridos quase três anos sobre a data dos factos, tendo, desde então, mantido um comportamento exemplar, encontra-se empregada, está a ser acompanhada e medicada, por Médico Psiquiatra, vivendo com um novo companheiro e mantendo contatos constantes com os filhos, apresentando inserção profissional, familiar e social, sendo, por isso, de concluir que a ameaça da pena bastará para que conduza o seu comportamento futuro em conformidade com o direito, abstendo-se da prática de crimes e assegurando as finalidades da punição.
O Ministério Público pronuncia-se pela manutenção da condenação da arguida em pena de prisão efetiva, por entender não estarem reunidos os pressupostos para que seja determinada a suspensão da execução da pena.
Vejamos:
Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal que: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos[21].
O juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido terá de assentar numa expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.
Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime[22].
«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.»[23]
E como se faz notar no Acórdão do STJ de 18/06/2015[24] «importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se, pois, de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (…)»
Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada[25].
Como elucidativamente se escreve no referenciado Acórdão do STJ de 18/06/2015:
«A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.
(…)
De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.
Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. (…)»
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso vertente:
O Tribunal a quo fundamentou a não suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida, do seguinte modo:
«(…)
A arguida apesar não ter antecedentes criminais, protelou a sua conduta delituosa durante cerca de 2 anos, apenas tendo cessado a mesma por motivos alheios à sua vontade, uma vez que foi desmascarada mediante análise que lhe efetuaram no Hospital São Francisco Xavier em Lisboa, ludibriou um numero indeterminado de pessoas, tocadas pela falsa condição de doente retratada quer no perfil de facebook, quer nas latinhas de recolha de moedas.
Porém, perante as que pessoas que se apuraram, e cotejados os registos bancários, chegamos a um prejuízo de mais de 22.000€ (vinte e dois mil euros).
Mais, mesmo em julgamento e perante a evidência da prova pericial de que não padecia à data dos factos de qualquer síndrome procurou fazer querer que estava convencida de que tinha cancro, o que revela bem que não interiorizou o desvalor da sua conduta não nos permitindo concluir por um juízo de prognose favorável quanto ao não cometimento de novos crimes.
Acresce ainda que do ponto de vista da prevenção geral, a comunidade, pela ampla repercussão que o caso teve, não compreenderia uma suspensão da pena de prisão, sendo que a confiança comunitária na validade da norma violada sairia fortemente abalada.
Nestes termos, a pena de prisão em que a arguida vai condenada não será suspensa na sua execução.»
Que dizer?
A arguida, ora recorrente, tendo atualmente 35 anos de idade, não regista antecedentes criminais, organizou a sua vida com um novo companheiro e desde finais de 2017 que vem sendo acompanhada em psiquiatria, tem trabalho remunerado, tendo experimentado grandes dificuldades em conseguir trabalho, em virtude dos factos que estão em causa nos autos serem do conhecimento de todos na zona onde vive e tendo-lhe sido retirados à arguida os três filhos, menores, sendo entregues, dois deles aos cuidados do pai e um da avó materna, admitindo-se que estes fatores e a reprovação social que a atuação da arguida mereceu na comunidade, até pela repercussão e ampla divulgação nos meios de comunicação social que o caso teve, possam ter levado a arguida a refletir sobre a censurabilidade do seu comportamento, o que poderá contribuir para que não volte a delinquir.
Ainda que se reconheça tratar-se de uma situação limite, sobretudo tendo em conta as prementes exigências de prevenção geral que, no caso se fazem sentir, impondo a necessidade de reafirmação da validade da norma jurídica que foi persistentemente violada pela arguida, através da sua conduta e o reforço da confiança da comunidade nessa validade, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação à arguida/recorrente, em termos de poder fundamentar a suspensão da execução de pena.
Assim, por que se considera que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão serão suficientes para afastar a arguida da prática de futuros crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção que se fazem sentir, permitindo a escolha de tal pena de substituição garantir limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico, da tutela da confiança da comunidade na validade da norma violada, tendo em conta que a arguida ficará sujeita a regime de prova e ao cumprimento das obrigações e deveres inerentes, bem como a suspensão ficará subordinada ao cumprimento do dever de entrega pela arguida, ao Instituto Português de Oncologia, da quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), nos termos que infra se decidirão, o que exigirá esforço e responsabilidade da parte da arguida e que, caso esta não venha a corresponder positivamente e se se frustrarem as finalidades visadas atingir, designadamente, a sua ressocialização, em liberdade, haverá lugar à execução da pena de prisão em que é condenada.
A arguida/recorrente não poderá deixar de ficar ciente que sendo a primeira, poderá esta ser também a derradeira oportunidade que lhe será concedida de continuar em liberdade, caso venha a reiterar a prática de crimes.
Determina-se, assim, a suspensão da execução da pena de 3 (três) anos de prisão aplicada à arguida/recorrente, por igual período de tempo, nos termos previstos no artigo 50º, n.ºs 1 e 5, do CP, sendo o n.º 5 na redação da Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, vigente à data dos factos.
Por se julgar conveniente e adequado a assegurar as exigências de prevenção e de reprovação do crime, decide-se:
- Subordinar a suspensão da execução da pena ao cumprimento de um dever imposto à arguida, nos termos previstos nos artigos 50º, n.º 2 e 51º, n.º 1, al. b), ambos do CP, qual seja, o de entregar ao Instituto Português de Oncologia, a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) – levando-se em linha de conta na fixação deste valor as condições económicas da arguida que decorrem da factualidade provada a esse respeito, revelando-se as mesmas modestas –, devendo a arguida efetuar, anualmente, a entrega de €500,00 (quinhentos euros) – €500,00 x 3 anos = €1.500,00 – e juntar aos autos documentos comprovativos dessas entregas;
- Determinar que a suspensão da execução da pena seja acompanhada de regime de prova, nos termos previstos nos artigos 50º, n.º 2 e 53º e 54º, n.ºs 1 e 3, todos do C.P., assente num plano de reinserção social, a ser executado com a vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, ficando a arguida/recorrente obrigada a responder às convocatórias do técnico de reinserção social, a fornecer a este as informações referidas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 54º do CP, bem como a obter autorização do tribunal para se deslocar ao estrangeiro (al. d) do n.º 3 do artigo 54º) – sendo que a arguida se ausentou para Inglaterra posteriormente à ocorrência dos factos, tendo voltado a Portugal para ver os filhos e sido depois impedida de sair do nosso País –, bem como a colaborar ativamente na execução do respetivo plano de reinserção social.
O recurso é, pois, parcialmente procedente.

3 DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida (...) e, em consequência:

a) Mantendo-se a condenação da arguida na pena de 3 (três) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217º, n.º 1 e 218º, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b), todos do Código Penal, decide-se revogar o acórdão recorrido, na parte em que se decidiu pela efetividade do cumprimento de tal pena de prisão e, em substituição, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida, pelo período de 3 (três) anos.
b) A suspensão da execução da pena é subordinada ao cumprimento do dever de entrega pela arguida, ao Instituto Português de Oncologia, da quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), devendo a arguida efetuar, anualmente, a entrega de €500,00 (quinhentos euros) e juntar aos autos documentos comprovativos dessas entregas;
c) A suspensão da execução da pena é acompanhada de regime de prova, nos termos previstos nos artigos 50º, n.º 2 e 53º e 54º, n.ºs 1 e 3, todos do CP, assente num plano de reinserção social, a ser executado com a vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, ficando a arguida/recorrente obrigada a responder às convocatórias do técnico de reinserção social, a fornecer a este as informações referidas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 54º do CP, bem como a obter autorização do tribunal para se deslocar ao estrangeiro (al. d) do n.º 3 do artigo 54º), bem como a colaborar ativamente na execução do respetivo plano de reinserção social.
d) No mais, confirmar o acórdão recorrido.

Sem tributação, em face da procedência parcial do recurso (cfr. artigo 513º, n.º 1, do CPP, à contrario sensu).

Notifique.

Évora, 10 de novembro de 2020
Fátima Bernardes
Renato Barroso

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[1] A Síndrome de Münchhausen é uma doença psiquiátrica em que o paciente, de forma compulsiva, deliberada e contínua, causa, provoca ou simula sintomas de doenças, sem que haja uma vantagem óbvia para tal atitude que não seja a de obter cuidados médicos e de enfermagem (inhttps://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_M%C3%BCnchhausen)
[2] Verifica-se que este excerto do acórdão acabado de transcrever, “a aplicação ao arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez”, não diz respeito ao caso em análise, pelo que, deve considerar-se como não escrito.
[3] Redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro.
[4] Correspondendo ao n.º 2 na redação anterior tendo sido aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
[5] Princípio este que, como vem sendo reiteradamente decidido pelo TC, comporta um sentido amplo, que se desdobra nos subprincípios da adequação (a medida deve revelar-se adequada a prosseguir o fim visado, também tutelado constitucionalmente) e da exigibilidade (exige-se essa medida, por não ser possível utilizar medidas menos restritivas) e, um sentido estrito, da proibição do excesso (as medidas não podem ser excessivas e desproporcionais ao fim visado).
[6] Cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, págs. 339 in fine e 340 e Ac. da RL de 20/11/2018, proc. 208/16.7PTFUN.L1-5, acessível dm www.dgs.pt.
[7] Cons. Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 2007, pág. 69.
[8] Proferido no proc. 1/05.2JFLSB.L1-3, acessível em www.dgs.pt.
[9] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. da RE de 03/06/2014, proc. 1861/10.0TAPTM.E1, Ac. da RL de 04/07/2019, proc. 324/17.8PASNT.L1-9, Ac. da RG de 27/06/2005, proc. 895/05-1 849/12.1JACBR.C1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[10] Hipertensão Arterial.
[11] A Síndrome de Münchhausen é uma doença psiquiátrica em que o paciente, de forma compulsiva, deliberada e contínua, causa, provoca ou simula sintomas de doenças, sem que haja uma vantagem óbvia para tal atitude que não seja a de obter cuidados médicos e de enfermagem (in https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_M%C3%BCnchhausen)
[12] Cfr., entre outros, Ac. da RE de 05/06/2007, proc. n.º 648/07-1 e Ac. da RL de 22/11/2017, proc. n.º 579/12.4JAFUN.L1-3, acessíveis in www.dgsi.pt.
[13] Nosso sublinhado.
[14] Acessível em https://www.msdmanuals.com/pt-pt/ profissional/transtornos-psiquiatricos …,
[15] Nosso sublinhado.
[16] Idem.
[17] Idem.
[18] Idem.
[19] Cfr. entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, acessíveis no endereço www.dgsi.pt.
[20] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215.
[21] Cfr. Cons. Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, Almedina, 14ª edição, pág. 191 e Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, in As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1993, pág. 341.
[22] Cfr. Ac. do STJ de 23/11/2011, proferido no proc. n.º 127/09.3PEFUN.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[23] Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 343.
[24] Proferido no proc. 270/09.9GBVVD.S1, acessível em www.dgsi.pt e citando o Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 344.
[25] Cfr. Prof. Fig. Dias, in ob. cit., pág. 334