Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
75/17.3T9ETZ.E1
Relator: ANA BACELAR
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
NULIDADE
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - É essencial, à semelhança do que é exigido para a acusação, publica ou particular, e ademais exigido pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que o requerimento para a abertura da fase processual da instrução contenha uma descrição clara dos factos capazes de acarretar responsabilidade criminal – ou seja, uma descrição competente da factualidade resultante do comportamento de alguém que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que deu origem ao processo.

2 - É assim porque, tal como acontece com a acusação, o requerimento para a abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da atividade desta fase processual.

3 - Tendo presente que a fase processual da instrução tem natureza judicial – e não de atividade investigatória -, destinando-se à comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação, a deficiência de conteúdo do requerimento destinado à sua realização, para além de a inviabilizar, implica a nulidade desse mesmo requerimento – cfr. artigos 283.º, n.º 3, e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora


I. RELATÓRIO
No processo de inquérito n.º 75/17.3T9ETZ da Secção de Estremoz do Departamento de Investigação e Ação Penal de Évora, foi proferido despacho onde se concluiu pelo arquivamento dos autos relativamente a factos constantes de queixa anónima, por se entender não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática, por parte de (...), Presidente da Junta de Freguesia da (…), do crime de participação económica em negócio denunciado, previsto e punido pelo artigo 23.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho.

(...), constituído Assistente nos autos, requereu a abertura da instrução.

E distribuído que foi o processo – ao Juízo de Instrução Criminal de Évora da Comarca de Évora –, por decisão judicial datada de 13 de fevereiro de 2020, foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução.

Inconformado com esta decisão, o Assistente dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. O Assistente e Recorrente foi notificado do douto Despacho de Arquivamento pelo Ministério Público.
2. O Assistente e Recorrente veio apresentar requerimento para Abertura de Instrução, tendo o Tribunal a quo, mal, decidido não o admitir, por inadmissibilidade legal.
3. Não se vislumbra que não estejam preenchidos os pressupostos necessários para admissão do Requerimento apresentado.
4. O Assistente e Recorrente não se insurge apenas contra os argumentos do Ministério Público no seu douto Despacho de Arquivamento.
5. Quer a Jurisprudência quer a doutrina (de que é exemplo o douto acórdão do TRP trazida à colação nas presentes Alegações) vem demonstrar a razão do Assistente no caso concreto.
6. O Requerimento para Abertura de Instrução manifesta e demonstra um objeto bem delimitado.
7. As Alegações do presente Recurso demonstram a existência desse objeto em conformidade com o artigo 287.º, n.º 2, do CPP, e mais que isso contém o Requerimento, em súmula as razões de facto e de direito.
8. Para além disso é indicado o crime objeto de indícios, a saber a prática do crime de participação económica em negócio em conformidade com o artigo 23.º, n.º 1 da Lei 34/87.

Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, determinando-se que seja deferido o Requerimento para a Abertura da Instrução;
Assim se fará, serena, sã e objetiva
Justiça»

O recurso foi admitido.

Respondeu o Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1.º O assistente (...) requereu a abertura da instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia de (...), pela prática de crime de participação económica em negócio, em conformidade com o artigo 23.º, n.º 1, da Lei 34/87.
2.º Por Douto Despacho recorrido datado de 13.02.2020, com a referência 29412160, decidiu o Mmº Juiz de Instrução Criminal, por inadmissibilidade legal, rejeitar o requerimento de abertura de Instrução (RAI) apresentado pelo assistente, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
3.º Analisando a douta decisão recorrida verifica-se que a rejeição do RAI se deveu, no essencial, ao seguinte fundamento: o descrito no requerimento de abertura de instrução não contém a descrição de quaisquer factos do elemento subjetivo do crime referido que justifique a admissão do requerimento de abertura de instrução.
4.º O assistente defende em sede de recurso que cumpriu todos os requisitos legais no RAI, concluindo que descreveu condutas típicas, com todos os elementos co crime em questão.
5.º Todavia, analisado o RAI verifica-se que o assistente omitiu em absoluto o elemento intelectual e volitivo do dolo. Tal significa que os factos descritos não sejam puníveis.
6.º- A referida insuficiência não pode ser reparada atento o disposto nos artigos 287.º, n.ºs 2 e 3, e 303.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, bem como por força da jurisprudência fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2014, DR, 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015, e Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12 de maio de 2005, in DR I Série A de 04.11.2005.
7.º- Pelo exposto, cumpre concluir que o Tribunal a quo efetuou uma correta interpretação dos artigos 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, al. b), e n.ºs 2 e 3, e 303.º, n.ºs 3 e 4, todos do Código de Processo Penal, devendo manter-se a Douta Decisão recorrida.

Contudo, Vªs. Exªs. decidirão conforme for de
LEI e JUSTIÇA

Não foi feito uso da faculdade consagrada no n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal.
û
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, revelando aderir à resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, apenas, a questão da admissibilidade da fase processual de instrução.
û
Com interesse para a decisão a proferir, o processo fornece, ainda, os seguintes elementos:
(i) O requerimento para a abertura da instrução, tem o seguinte teor:
«(…)
Vem requerer a abertura da instrução, nos termos e com os fundamentos que se seguem:
1 – (…) apresentou denúncia contra o arguido, quanto à prática do crime de participação económica em negócio.
2 – O aqui identificado Assistente veio a assim se constituir, tendo mesmo prestado depoimento como testemunha (fls. 189 a 191).
3 – O Ministério Público arquivou o inquérito por falta de indícios suficientes quanto ao arguido ser indicado como autor dos factos.
4 – É verdade que o arguido negou alguma vantagem financeira na prática dos factos.
5 – Mas invocou o desconhecimento da impossibilidade legal dos factos que lhe seriam atribuídos.
6 – Todavia veja-se que existem nos autos outros meios de prova contra o arguido.
7 – A fls. 32 no Relatório de Investigação da Polícia Judiciária é reconhecido de parecer haver indícios, e basta tal, mas indo bem mais longe, cita-se: “confirmando os factos denunciados, ou seja, que (…), autarca, decide e contrata a aquisição de material de construção para a autarquia à empresa do seu pai. Alega que se trata da única empresa do género existente na freguesia. Não parece justificação aceitável para o não cumprimento do art. 69.º do CPA, aprovado pelo DL nº 4/2015, de 7 de janeiro”.
8 – Vem o arguido, quando inquirido a fls. 143, afirmar de que o que praticou foi com total desconhecimento.
9 – Ora não se pode aceitar, e muito menos o arquivamento nos termos em que foi concretizado, tanto mais que o arguido havia sido Tesoureiro entre 2005 e 2009 e Presidente da Junta de Freguesia da (…) entre 2013 e 2017, bem como membro da Assembleia da Freguesia da (…) entre 2009 e 2013, sendo por isso autarca experiente.
10 – Logo o desconhecimento não pode aproveitar ao arguido sob pena de o Estado de Direito estar em perigo, e a democracia, na pessoa dos autarcas eleitos, conseguirem afastar quaisquer indícios de ilícitos definidos na norma legal, por invocarem desconhecimento da Lei, ao surgir qualquer denúncia.
11 – Estamos num país da União Europeia e a conclusão do douto Despacho de arquivamento, não pode colher, com fundamentos nos que foram apresentados.
12 – Aliás o arguido não vem dizer, nem fazer prova de que não utilizou a atividade do seu pai como empresário em nome individual, para prestar serviços à Junta de Freguesia de que era Presidente, sem consultar terceiro, e sem cumprir com a norma legal que o impedia de proceder como o fez, sem incorrer no ilícito objeto da denúncia.
13 – É por demais evidente que o arguido não cumpriu com as suas obrigações definidas e delineadas no art. 69.º do CPA, em espacial a sua alínea b), e que se respalda então no crime de participação económica em negócio (artigo 23.º, n.º 1 da Lei 34/87).
14 – Sendo que não é medida de avaliação dos indícios, salvo o devido respeito, o valor total dos montantes pagos a (…)., empresário em nome individual, pai do arguido, ou a percentagem desses valores por comparação com o orçamento da autarquia em causa.
15 – Aliás é claro o ponto de vista do arguido, sem a sua devida avaliação de qualquer proceder ilícito, quando conclui, quando inquirido de fls. 142, e citando: “São valores que no meu entender valores muito irrisórios para a faturação de (...) e até para eu mesmo estar a expor-me a este tipo de situação que é este … ah … se não tivesse total desconhecimento disso”.
16 – Ora não fica claro, nem se extrai com a mesma clareza necessária do douto Despacho de arquivamento, se havia terceiro que contratava, e o, primeiro Tesoureiro, e depois Presidente da Junta de Freguesia, não tinha por isso conhecimento, ou se conclui que não tinha conhecimento da norma legal, e aí não se pode entender o afastamento dos indícios, que a Polícia Judiciária também os destacou conforme já mencionado.
FACTOS
1. O arguido foi Tesoureiro da Junta de Freguesia da (…), concelho de (…), entre 2005 e 2009, e Presidente da mesma Junta de Freguesia entre 2013 e 2017, membro da Assembleia de Freguesia entre 2009 e 2013.
2. O arguido recorreu ao empresário em nome individual (…), para aquisição de material e concretização de obras na área da freguesia, em valores de cerca de € 18 000,00 (dezoito mil euros), sendo metade, ou seja, de € 9 000,00 durante o exercício da sua função de Presidente da Junta de Freguesia.
3. O arguido viu ser apresentada denuncia contra si a este respeito.
4. Entende o Ministério Público estar presente o conteúdo do artigo 277.º, n.º 1 do CPP, ou seja, não ter conseguido obter indícios suficientes da verificação de crime, o que face ao já exposto não se pode aceitar, nem entender.
5. Dos factos descritos resulta claro que existem indícios da prática do crime de participação económica em negócio, em conformidade com oi artigo 23.º, n.º 1 da Lei 34/87.

Termos em que deverá ser proferido despacho de pronúncia do arguido.
(…)»

(ii) A decisão recorrida tem o seguinte teor:
«A fls. 263, o assistente veio requerer a abertura de instrução contra o despacho de arquivamento do Ministério Público, que consta de fls. 235 a 238 verso.
Nos termos do artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução pode ser requerida pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação, e pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, quanto a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (artigo 287.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal).
Assim, no requerimento de abertura de instrução o assistente terá, desde logo, de descrever os factos concretos por referência ao tipo de ilícito que pretende imputar ao denunciado.
“O requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada (…) o que significa que não sendo uma acusação em sentido processual formal, deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objeto do processo e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena” (Ac. STJ de 25.10.2006, Proc. N.º 06P3526, em www.dgsi.pt)
“Uma conduta humana só poderá punir-se se estiver prevista numa norma penal que descreva claramente a conduta proibida ou ordenada, acompanhada da cominação de uma pena. Está aqui implicado o princípio da legalidade (…) A descrição exigida para a peça acusatória e (…) aos requisitos de abertura de instrução, reporta-se a todos os factos (factos essenciais) de que dependa a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, quer dizer, todos aqueles que constituem os elementos de algum crime” (Ac. TRG, de 14.02.2005, em CJ, 2005, t. 1, p. 299-300).
Como se defendeu no Ac. Relação de Coimbra de 30.03.2009, “Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).”.
Quanto a deficiências do requerimento para a abertura de instrução, «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do Cód. Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido», conforme o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12/05/2005, publicado no DR, I-A, de 04/11/2005.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/03/2017, proc. n.º 533/18.2T9MMN, relatado por Maria Leonor Esteves, entendeu-se, em sumário, que “I – A doutrina fixada pelo STJ no seu AUJ n.º 1/2015 deve ser aplicada ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente. II – Estando em causa crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º 2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjetivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução.”.
Vejamos, então, o articulado apresentado, cientes que de acordo com o art.º 287.º, n.º 2 é aplicável ao requerimento de abertura de instrução o disposto no art.º 283.º, n.º 3 al. b) e c) do Cód. Processo Penal.
Exige-se à acusação e ao requerimento de abertura de instrução do assistente, nos termos do art.º 283.º, n.º3 al. b) do Cód. Processo Penal, “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Nos termos conjugados dos arts.º 9º, 40.º e 71.º todos do Cód. Penal, é pressuposto da aplicação/determinação da sanção criminal a verificação/apuramento do conhecimento e da vontade do agente na prática do ilícito e a culpa do agente do crime, a sua posição de contrariedade em relação ao direito, nos factos alegadamente praticados.
Analisando o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que no mesmo insurge-se contra os argumentos do Ministério Público que levaram ao despacho de arquivamento e os cinco factos elencados não reproduzem todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo criminal visado com o requerimento de abertura de instrução.
No requerimento de abertura de instrução não é feita a descrição factual com vista a satisfazer os requisitos apontados – elemento volitivo do dolo (a vontade de praticar todos os elementos relevantes do tipo criminal) e a culpa dolosa (a atuação forma livre, deliberada e consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei).
Esta conclusão não significa que não existam, mas apenas que não foram descritos pelo assistente.
O requerimento é de todo omisso quanto à descrição de factos que legitimem a aplicação de uma pena ao denunciado.
A este respeito veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 42/13.6TAPMS.C1, datado de 18-03-2015, Relator FERNANDO CHAVES, com o seguinte sumário:
“I - O juiz de instrução está substancial e formalmente limitado, na pronúncia, aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação por parte do Ministério Público.
II - No caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público, o requerimento do assistente para a abertura de instrução é que define e limita o respetivo processo, o seu objeto, constituindo, substancialmente uma acusação alternativa.
III - Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial do requerimento, estando ferido da nulidade cominada no artigo 309.º
IV - Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
V - A exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efetiva do acesso ao direito e aos tribunais.”
Tendo assente a jurisprudência uniformizada do Acórdão nº 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR-Iª-Série-A, de 04/11/2005, inexistem os factos necessários a subsumir para efeitos de apuramento da culpa do agente e é o requerimento legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento.
Não é, assim, admissível a comprovação judicial do despacho de arquivamento proferido nos autos.
Termos em que, por inadmissibilidade legal, rejeito o requerimento de abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
(…)»
û
Conhecendo.
O processo penal estabelece um conjunto de regras e de procedimentos que visam a aplicação do direito penal, sendo este considerado como o complexo de normas jurídicas que, em cada momento histórico, enuncia, de forma geral e abstrata, os factos ou comportamentos humanos suscetíveis de pôr em causa os valores ou interesses jurídicos tidos por essenciais numa comunidade, e estabelece as sanções que lhes correspondem.
O processo penal comporta diversas fases – a do inquérito, a da instrução e a do julgamento.
Interessa-nos a fase da instrução, a fase intermédia entre o inquérito e o julgamento.
Que tem carácter facultativo e compete a um Juiz de Instrução, visando a comprovação judicial da decisão [do Ministério Público] de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigos 286.º, n.º 1 e n.º 2, e 288.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, o assistente tem a possibilidade de requerer a instrução em crimes de natureza pública ou semipública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Nos termos do n.º 2 do preceito legal acabado de mencionar, o requerimento de abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º
Este artigo 283.º reporta-se à acusação formulada pelo Ministério Público.
E do seu n.º 3 consta, na parte que importa, que
«A acusação contém, sob pena de nulidade:
(...)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.
(...)»

De regresso ao artigo 287.º do Código de Processo Penal, importa, ainda, o disposto no seu n.º 3, de onde resulta que o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos, tão só, a hipótese de inadmissibilidade legal da instrução.
Trata-se de conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência[[2]] – e de que deriva a inutilidade da instrução.
Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:
i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];
ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,
iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;
iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP);
vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

E aqui chegados, interessa-nos agora a situação de o requerimento para a abertura da instrução não respeitar o disposto no n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal – por não configurar uma verdadeira acusação.

Antecipamos, desde já, que a decisão recorrida não merece qualquer reparo.
Constitui decisão que revela respeito pela lei vigente na questão que tratou e que se encontra devidamente fundamentada.

Correndo embora o risco da inutilidade – por repetição do que já consta da decisão recorrida –, acentuamos que através da instrução, e em regra, o arguido pretenderá afastar a acusação e o assistente levar a julgamento o arguido, por factos que o Ministério Público não considerou.
É, por isso mesmo, essencial e ademais exigido pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, que o requerimento para a abertura da fase processual da instrução contenha uma descrição clara dos factos capazes de acarretar responsabilidade criminal – ou seja, uma descrição competente da factualidade resultante do comportamento de alguém que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que deu origem ao processo.
À semelhança do que é exigido para a acusação, pública ou particular.
Porque, tal como acontece com a acusação, o requerimento para a abertura da instrução tem em vista delimitar o thema probandum da atividade desta fase processual.
É, aliás, essa a perspetiva que se destaca no artigo 303.º do Código de Processo Penal, ao regular as situações da alteração dos factos descritos nesse requerimento, sendo que uma alteração substancial desses factos não pode ser tomada em consideração para o efeito de pronúncia no processo, sob pena de nulidade – cfr. artigo 309.º do mesmo diploma legal.
E tendo presente que a fase processual da instrução tem natureza judicial – e não de atividade investigatória -, destinando-se à comprovação da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação, a deficiência de conteúdo do requerimento destinado à sua realização, para além de a inviabilizar, implica a nulidade desse mesmo requerimento – cfr. artigos 283.º, n.º 3, e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Diz o Recorrente que o requerimento para a abertura da instrução que apresentou satisfaz todos os requisitos impostos por lei.
Mas não, não satisfaz.
A simples leitura desse requerimento evidencia, face à previsão do artigo 23.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, que nele não se encontram descritos factos bastantes para integrarem os elementos objetivos do crime de participação económica em negócio. E que o requerimento para a abertura da instrução é absolutamente omisso relativamente aos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de crime que se pretende imputar ao Arguido.

Tenha-se presente que os elementos objetivos do crime, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a ação, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos. E que os elementos subjetivos do crime traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.

Na acusação de um crime doloso – como é o de participação económica em negócio – há-de constar, necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu de forma livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e consciente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo).
E estes aspetos são objeto de prova, para a sua demonstração.

Restará lembrar – como também se fez na decisão recorrida – ser jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio [publicado no Diário da República - I Série A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005] que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Por fim, impõe-se deixar expresso que por não terem sido cumpridas as exigências impostas por lei, bem andou o Senhor Juiz ao rejeitar o requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo Assistente (...)
Decisão que se deixa, agora, confirmada.
Improcedendo o recurso.


III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
û
Évora, 2020 novembro 10
(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)


______________________________________________
(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz)


______________________________________________
(Renato Amorim Damas Barroso)




__________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005.