Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
783/18.1T8TMR.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
PROPRIEDADE HORIZONTAL
PEDIDO
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – No âmbito da ação de divisão de coisa comum, a divisão pode ser efetuada mediante a constituição da propriedade horizontal;
II - A constituição da propriedade horizontal por decisão em ação de divisão de coisa comum exige a apresentação de requerimento, nesse sentido, por qualquer dos consortes, o que impede o tribunal de proceder oficiosamente a tal constituição;
III - Se a constituição da propriedade horizontal não foi requerida perante a 1.ª instância, que sobre tal questão se não pronunciou, e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode ser arguida no recurso de apelação, que visa reapreciar a decisão impugnada e não criar decisões sobre matéria nova. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

J… intentou a presente ação de divisão de coisa comum, com processo especial, contra I…, alegando que ambos são comproprietários do prédio misto que identifica, na proporção de metade cada um, que o imóvel é indivisível em substância e que não pretende permanecer na indivisão; acrescenta que, com o produto obtido, deverá ser abatida a dívida que identifica à Caixa Geral de Depósitos e ressarcido o autor dos valores que pagou à aludida entidade bancária.
O autor pede: a) se julgue procedente a ação e, consequentemente; b) se fixe em ½ a quota de cada um dos comproprietários do prédio; c) se declare a indivisibilidade do imóvel; d) se proceda à respetiva adjudicação ou venda, deduzindo-se o valor em dívida relativo aos créditos à Caixa Geral de Depósitos; e) se condene a ré a pagar ao autor metade de todos os gastos suportados por este, montante que na presente data se cifra em 24.901,95 €, acrescida de metade das prestações vincendas pagas ao Banco, pelo A., até à data da venda ou adjudicação do imóvel, quantia essa que deverá ser deduzida do valor da venda do mesmo e no acto da escritura ser entregue ao A.; f) se reparta, posteriormente, por autor e ré, o remanescente do valor obtido, após o abatimento dos preditos pagamentos; g) com todas as consequências legais.
Citada, a ré contestou, invocando a preterição do litisconsórcio necessário passivo, em virtude de não ter sido demandada a credora Caixa Geral de Depósitos, bem como a incompatibilidade de parte do pedido com a forma de processo adotada, a qual não pode proceder no âmbito da ação de divisão de coisa comum; acrescenta que o autor não alega factos dos quais resulte a indivisibilidade em substância do prédio, não indicando a razão de tal invocação; termina pedindo a improcedência da ação e a absolvição dos pedidos formulados.
Notificado para o efeito, o autor apresentou articulado no qual se pronuncia sobre as exceções invocadas na contestação, sustentando a respetiva improcedência.
Por despacho de 18-12-2018, foi fixado o valor à causa e proferido despacho saneador, no qual se considerou não verificada a invocada ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário, se entendeu que a ação de divisão de coisa comum configura o meio próprio para pôr termo à indivisão do imóvel, se absolveu a ré da instância quanto aos pedidos identificados sob as letras e), f) e g), por inadmissibilidade da respetiva cumulação com o pedido de divisão de coisa comum.
Foi determinada a realização de perícia, tendo por objeto a aferição da divisibilidade do prédio.
Por sentença de 18-06-2019, foi declarada a indivisibilidade em substância do prédio e fixadas as quotas dos comproprietários em ½ para cada um, tendo-se determinado o prosseguimento dos autos com oportuna realização de conferência de interessados.
Inconformada, a ré interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra que declare a divisibilidade do prédio e julgue a ação improcedente, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«A.- Vem o presente recurso interposto da douta decisão que decretou a indivisibilidade do prédio;
B.- Com efeito, o prédio é constituído por dois pisos para habitação e logradouro,
C.- Para que se possa concluir, de um ponto de vista jurídico, pela divisibilidade de uma coisa corpórea torna-se necessário: a) Que não se altere a sua substância; b) Que não haja diminuição do seu valor (detrimento); c) Que não seja prejudicado o uso da coisa,
D.- O que, no caso dos autos, se verifica.
E.- Assim, o prédio a que se refere nos presentes autos é susceptível de ser dividido em duas fracções autónomas através do recurso ao regime da propriedade horizontal.
F.- Porque assim se não decidiu, foi violado o disposto no artigo 209º do Código Civil.
G.- Por todo o exposto, deve ser revogada a douta decisão em recurso, a presente acção ser julgada totalmente improcedente.»
O autor apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido da improcedência da apelação.
Face às conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar a questão da divisibilidade do bem imóvel comum através da constituição da propriedade horizontal por decisão judicial.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto
Em 1.ª instância foram considerados provados os factos seguintes:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º 1708/19160502 – freguesia de Santa Maria dos Olivais o seguinte prédio: misto, situado em Vale Donas, com área total de 7.360m2, sendo coberta 186m2, inscrito na matriz urbana sob o art. 3763 e na matriz rústica sob o art. 138.º-H, da União de Freguesias de São João Batista e Santa Maria dos Olivais, composto por cada de habitação de r/chão e primeiro andar e terra de cultura arvense e hortejo, que confronta do norte e nascente com Carolina Maria e outro, sul caminho e poente José Joaquim Miguel e outros;
2. Sobre o prédio mencionado em 1, pela apresentação n.º 3610, de 22 de maio de 2009, foi inscrita a aquisição, por partilha subsequente a divórcio, a favor do Autor J…, na proporção de ½, sendo sujeito passivo a ora Ré, I…;
3. Autor e Ré foram casados um com o outro, casamento esse que foi dissolvido por divórcio, subsequente ao qual correu termos no 3.º Juízo do Tribunal de Tomar o Processo de Inventário/Partilha de bens em casos especiais n.º 1299/06.4TBTMR-C, no âmbito do qual, após acordo dos interessados, o prédio referido em 1.º foi adjudicado na proporção de metade para cada um;
4. Tendo sido realizada perícia, nos termos do art. 927.º n.º 1, o Sr. Perito juntou aos autos o relatório de fls. 143 a 149, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Pretende o autor, com a presente ação, pôr termo à indivisão do prédio misto a que alude o ponto 1 de 2.1. – sito em Vale Donas, inscrito na matriz urbana sob o artigo 3763 e na matriz rústica sob o artigo 138.º-H da União de Freguesias de São João Batista e Santa Maria dos Olivais, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o n.º 1708/19160502 –, o qual considera indivisível, requerendo se proceda à respetiva adjudicação ou venda.
A decisão recorrida declarou a indivisibilidade em substância do prédio e fixou as quotas dos respetivos comproprietários, autor e ré, em ½ cada um, tendo determinado o prosseguimento dos autos com a oportuna realização de conferência de interessados.
Discordando de tal decisão, sustenta a ré apelante que nada obsta à divisão em substância do prédio comum, alegando que o mesmo é constituído por dois pisos para habitação e logradouro, sendo suscetível de ser dividido em duas frações autónomas através do recurso ao regime da propriedade horizontal, pedindo se revogue a decisão recorrida e se julgue improcedente a ação.
Vejamos se lhe assiste razão.
O artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, confere ao comproprietário o direito a pôr termo à indivisão de coisa comum, dispondo que “nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.
Não vem posta em causa na apelação a situação de compropriedade do bem imóvel em causa, do qual são titulares autor e ré, pelo que, não se encontrando assente a existência de qualquer cláusula de indivisão, assiste ao autor, atenta a sua qualidade de comproprietário do bem e a vontade, que manifestou na petição inicial, de não permanecer na indivisão, o direito a pôr termo à indivisão da coisa comum.
Na petição inicial, o autor sustentou a indivisibilidade do prédio comum e requereu se procedesse à respetiva adjudicação ou venda; a ré, por seu turno, na contestação apresentada, deduziu oposição à indivisibilidade do prédio, não sustentando, porém, a respetiva divisibilidade, nem requerendo a constituição da propriedade horizontal, antes de pronunciando no sentido da improcedência da ação.
Consiste a divisibilidade, nas palavras de Luís Filipe Pires de Sousa (Acções especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 31), na possibilidade de fracionamento da coisa sem que as partes daí provenientes percam a essência da coisa dividida, diminuam o seu valor ou vejam alterada a sua função económico-social.
É certo que, no âmbito da ação de divisão de coisa comum, a divisão pode ser efetuada mediante a constituição da propriedade horizontal, conforme decorre do disposto no artigo 1417.º, n.º 1, do Código Civil, ao incluir nas formas de constituição da propriedade horizontal a decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum.
Porém, a constituição da propriedade horizontal por decisão em ação de divisão de coisa comum exige a apresentação de requerimento, nesse sentido, por qualquer dos consortes, conforme dispõe o n.º 2 do citado artigo 1417.º, o que impede o tribunal de proceder oficiosamente a tal constituição [cf. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2010 (relator: Sousa Leite), proferido na revista n.º 1147/06.5TBVVD.G1.S1 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), e de 15-11-2012 (relator: Abrantes Geraldes), proferido na revista n.º 261/09.0TBCHV.P1.S1 - 2.ª Secção (publicado em www.dgsi.pt)].
No caso presente, não foi requerida por qualquer das partes a constituição da propriedade horizontal, conforme decorre da análise da petição inicial e da contestação apresentadas, pelo que tal questão não foi apreciada pela 1.ª instância. Só em sede de apelação invocou a ré a divisibilidade do prédio através da constituição da propriedade horizontal, a qual, porém, não requerera anteriormente, nem requereu nas alegações de recurso, as quais termina peticionando a improcedência da ação de divisão de coisa comum.
Acresce que a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial sempre dependerá, além de requerimento de qualquer das partes, da verificação dos requisitos exigidos pelo artigo 1415.º daquele código, conforme expressamente dispõe o n.º 2 do citado artigo 1417.º, questão que igualmente não foi submetida à apreciação da 1.ª instância, que dela não tomou conhecimento.
Se a constituição da propriedade horizontal não foi requerida perante a 1.ª instância, que sobre tal questão se não pronunciou, e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não pode ser arguida no recurso de apelação, que visa reapreciar a decisão impugnada e não criar decisões sobre matéria nova.
Como tal, atenta a novidade da indicada questão, a qual não é de conhecimento oficioso, não será a mesma apreciada.
Sempre se dirá, porém, que, não tendo sido requerida por qualquer dos consortes, a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial se encontra vedada ao tribunal, nos termos supra expostos.
Improcede, assim, a apelação.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 16-01-2020
Ana Margarida Leite (relatora)
Cristina Dá Mesquita
José António Moita