Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1917/19.4T8EVR-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
LITISCONSÓRCIO
SOLIDARIEDADE
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- Existindo responsabilidade solidária, nos termos do artigo 487.º do Código Civil, qualquer dos lesantes tem legitimidade para contestar a acção por se tratar de um caso de litisconsórcio voluntário.
II- O incidente de intervenção principal é o aplicável à situação em que o demandado pretende fazer intervir na acção o co-responsável.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1917/19.4T8EVR-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…) propôs uma acção contra (…) e (…), Lda. pedindo que a R. fosse condenada reparar todos os danos causados no seu prédio, bem como reparar os móveis danificados; em alternativa à reconstituição natural, pede que a R. seja condenada a pagar-lhe uma indemnização em dinheiro.
Alegou, para tanto, ser proprietária de um prédio confinante com um outro que é da R.. Por causa das obras de reabilitação realizadas neste último, ocorreu uma derrocada que causou diversos danos na casada A., nas paredes, revestimentos e coberturas.
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A R. contestou pedindo o seguinte que se:
Ordene a intervenção principal provocada da sociedade da (…) – Promoção e Construção Imobiliária, Lda., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 317.º do CPC.
(ii) Declare improcedente por não provada a presente ação absolvendo a R. (e a Chamada) do pedido;
(iii) Caso assim não se entenda, e vindo a ora R. a ser condenada em virtude da violação pela Chamada dos deveres que sobre ela recaiam enquanto empreiteira da obra objeto dos presentes autos, condene a Chamada a ressarcir a ora R., por tudo quanto vier por esta a ser prestado à A. em cumprimento da referida condenação.
Alegou, para o que agora interessa, que realizou um contrato de empreitada com (…) – Promoção e Construção Imobiliária, Lda., através do qual deu de empreitada à referida sociedade, em regime de empreitada total, as obras de construção e reabilitação do seu imóvel.
Sendo de solidariedade o regime vigente entre o dono a obra e o empreiteiro, por danos causados a terceiros, tem a sociedade ora identificada, um interesse igual ou paralelo ao da R., pois são ambos sujeitos passivos da relação material controvertida tal como configurada pela A.
O dono da obra, sobre o qual recaia (ainda que com ausência de culpa) a obrigação de indemnizar terceiros por danos emergentes de ações ilícitas ou violação culposa ou omissão dos deveres de cuidado exigíveis imputáveis ao empreiteiro, na execução dos trabalhos, tem, ainda, direito de regresso sobre aquele, pelos custos em que vier a incorrer na eventualidade de vir a ser condenado no pedido deduzido nos presentes autos.
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Por despacho de 24 de Junho de 2020, foi decidido não admitir o incidente de intervenção de terceiros.
Reproduz-se uma parte:
«Dispõe o artigo 316.º do C.P.C. as situações em que pode haver intervenção principal provocada de terceiros para intervir na acção e uma dessas situações ocorre quando “… 3 – O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do Réu quando este:
«a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
«b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor. …”.
«E por sua vez o artigo 317.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, consagra que
«“… 1 – Sendo a prestação exigida a algum dos condevedores solidários, o chamamento pode ter por fim o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação …”.
«No caso dos autos atento alegado pela Ré afigura-se-nos, salvo melhor opinião que esta deveria deduzir a intervenção acessória provocada prevista no artigo 321.º do C.P.C.
«Assim e por não se verificar uma situação passível de intervenção principal provocada não admito o chamamento da sociedade (…) – Promoção e Construção Imobiliária, Lda.».
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Deste despacho recorre a R. invocando a nulidade do mesmo por falta de fundamentação e errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 316.º e 317.º, n.º 1, do CPC.
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O relatório contém os elementos necessários para a decisão.
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A recorrente defende que a decisão se fundamenta no único argumento de que «no caso dos autos atento alegado pela Ré afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que esta deveria deduzir a intervenção acessória provocada prevista no artigo 321.º do CPC», o que não cumpre o dever imposto pelo artigo 154.º do Código de Processo Civil.
Concordamos.
Admirando uma decisão sucinta, a verdade é que a lei exige que se explique o porquê – o que pode ser feito também sucintamente.
Mas o despacho ficou muito aquém.
Ao indicar o incidente que deveria ter sido requerido, não explica porque ao caso não cabe o incidente de intervenção principal, que foi o deduzido pela recorrente. O devido seria, ao invés de dizer apenas que não se verifica uma situação passível de intervenção principal provocada e que o caso é o de intervenção acessória, esclarecer minimamente as razões de tal entendimento. Porque é um caso e não é outro? Citar a lei (incompletamente) e concluir é fácil e qualquer um consegue fazer igual. Só que isto ou nada é a mesma coisa. Tal como o despacho está, apenas oferece conclusões desgarradas de qualquer raciocínio.
Não basta decidir; é necessário explicar a decisão; e isto não está feito.
Assim, o despacho é nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea a), aplicável por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.
A consequência é a sua nulidade, embora com pouca relevância nesta fase, dada a regra da substituição estabelecida no artigo 665.º.
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Quanto ao mérito do recurso, a recorrente defende que ela e a chamada, encontram-se em manifesta situação de litisconsórcio voluntário passivo, porquanto a chamada, podendo o pedido principal ter sido deduzido contra ela e a recorrente, ou apenas contra ela, goza de legitimidade passiva nos presentes autos – na medida em que a recorrente goza de direito de regresso sobre a chamada, ao abrigo do disposto no artigo 497.º, n.º 2, do Código Civil.
Não é aplicável aos presentes autos o disposto no artigo 321.º do Cód. Proc. Civil, na medida em que a intervenção acessória a ali prevista visa permitir ao réu chamar à ação um terceiro sobre o qual tenha um eventual direito de regresso, mas apenas quando esse terceiro não possua legitimidade enquanto parte principal.
Cita, em abono da sua tese, o ac. da Relação de Lisboa, de 24 de Abril de 2019.
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A questões são as seguintes: existe solidariedade na obrigação de indemnizar? Podia a A. demandar logo o dono da obra e o empreiteiro? Se sim, o incidente é o da intervenção principal; se não, é o da intervenção acessória.
A jurisprudência é clara no sentido de que tal solidariedade existe num caso como o dos autos. O ac. do STJ, de 10 de Janeiro de 2006, é expresso em afirmar a seguinte doutrina:
«a) A expressão "seu autor" a que se refere o n.º 2 do artigo 1348.º do CC significa o proprietário do prédio em que as obras foram feitas; e o dever de indemnizar consagrado neste preceito representa um caso excepcional de responsabilidade civil extracontratual, resultante do exercício de uma actividade lícita, em que se prescinde da culpa;
«b) O empreiteiro (ou subempreiteiro) que praticou culposamente acções ilícitas ou omitiu os cuidados exigíveis na execução dos trabalhos (nomeadamente, escavações), torna-se responsável perante terceiros pelo ressarcimento dos danos causados; trata-se de responsabilidade fundada na culpa – artigo 483.º do CC;
«c) Ainda que tenha agido com diligência na escolha e instruções de trabalhadores ou de subempreiteiros, o empreiteiro deve ser responsabilizado, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC, pela actuação culposa de uns e ou de outros;
«d) A responsabilidade do proprietário/dono da obra é solidária com a do empreiteiro/subempreiteiro – artigo 497.º, n.º 1, do CC».
Sendo solidária a responsabilidade do dono da obra e o empreiteiro, aplica-se o regime do artigo 512.º do Código Civil: qualquer dos devedores responde pela prestação integral (com liberação dos demais) e o credor pode exigir a totalidade da prestação a qualquer dos devedores (ficando o seu crédito satisfeito) – (cfr., por todos, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 1986, p. 707).
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A lei processual espelha este regime no artigo 311.º, ao remeter para o artigo 32.º (litisconsórcio voluntário) um dos requisitos da intervenção principal. De acordo com este último preceito, se a «relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a acção respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados». Embora seja duvidosa a bondade da solução sistemática deste artigo (no capítulo da legitimidade; cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Cód. Proc. Civil, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 75), o certo é que nele se reflecte o regime da solidariedade das obrigações no sentido de que a A. podia demandar logo a R. e a agora chamada.
Sendo este o caso, temos que não tem aqui lugar o incidente de intervenção acessória pois que esta exige que o terceiro «careça de legitimidade para intervir como parte principal». Como escrevem os referidos autores, «[e]xcluídos estão assim, inequivocamente, os casos previstos no artigo 311.º» (ob. cit., p. 630). Como consta do sumário do ac. da Relação de Coimbra, de 21 de Maio de 2019, na «intervenção principal, o terceiro é chamado a ocupar na lide a posição de parte principal, ou seja a mesma posição da parte principal primitiva a que se associa, fazendo valer um direito próprio (artigo 312.º do CPC), podendo apresentar articulados próprios (artigo 314.º do CPC) e sendo a final condenado ou absolvido na sequência da apreciação da relação jurídica de que é titular efetuada na sentença, a qual forma quanto a ele caso julgado, resolvendo em definitivo o litígio em cuja discussão (artigo 320.º do CPC). Por sua vez, na intervenção acessória o terceiro é chamado a assumir na lide uma posição com estatuto de assistente (artigo 323.º, n.º 1, do CPC) e por isso a sua intervenção circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento (artigo 321.º, n.º 2, do CPC) e a sentença final não aprecia a acção de regresso mas constitui caso julgado às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, com as limitações do artigo 323.º, n.º 3, do CPC)».
Por último, e citando o ac. da Relação de Lisboa indicado pela recorrente, «sendo os Chamantes – donos da obra – e os Chamandos – empreiteiros – solidariamente responsáveis pelos danos causados no prédio vizinho, justifica-se a intervenção destes através do incidente de intervenção principal provocada, mesmo nas situações em que esteja apenas em causa o exercício do direito de regresso, pois, por disporem de legitimidade passiva, poderiam ter sido directamente demandados pelos donos do prédio contíguo danificado pelas obras».
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso em função do que se revoga o despacho recorrido e admite-se o incidente de intervenção principal da sociedade (…) – Promoção e Construção Imobiliária, Lda..
Sem custas por não ter havido oposição.
Évora, 11 de Fevereiro de 2021
Paulo Amaral
Rosa Barroso
Francisco Matos

Sumário: (…)