Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4466/11.5TBPTM-F.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: VENDA EXECUTIVA
VALOR DO IMÓVEL PENHORADO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A lei não exige que o AE comunique ao executado ter promovido a colocação do bem em leilão nem a sua aprovação.
II. Tendo a Sr.ª AE sido notificada em 17 de Maio que o leilão tinha tido o seu início nesse mesmo dia e qual a data, hora e local do respectivo encerramento, tendo notificado o executado em 20 de Maio e remetendo o link para acompanhamento, tal notificação cumpre o disposto no n.º 12 do artigo 4.º do Despacho Ministerial n.º 12624/2015, mostrando-se ainda observado o prazo geral consagrado no n.º 7 do artigo 720.º do CPC, sem que se vislumbre qualquer violação do dever de diligência latamente consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Lei n.º 154/2005.
III. O artigo 816.º, n.º 2, do CPC, ao permitir a venda do bem por valor inferior ao seu valor de mercado não afronta a CRP, consagrando solução adoptada pelo legislador ordinário dentro da margem de discricionariedade que lhe é reconhecida, em ordem a equilibrar os interesses do exequente e executado, conformando-se com a perda de uma percentagem de até 15% do valor do bem, em ordem a obter uma mais rápida satisfação do crédito do exequente (o que, em última análise, também beneficia o executado, designadamente evitando o avolumar de eventuais juros).
IV. A Lei n.º 13/2006 veio consagrar um mecanismo de protecção da casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (vide artigo 1.º).
V. Tal protecção tem a sua aplicação limitada às execuções tributárias, por não ser de exigir aos particulares que se substituam ao Estado no cumprimento das obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito a uma habitação condigna.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 4466/11.5TBPTM-F.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Execução de Silves – Juiz 2


I. Relatório
Nos autos de acção executiva que lhe é movida pela Caixa Económica Montepio Geral, sendo credor reclamante o ISS – IP, veio o executado (…), mediante requerimento entrado em juízo em 20 de Maio de 2022 (Ref.ª 42320815), arguir a nulidade de acto praticado pela Sr.ª AE, alegando ter verificado com surpresa que o imóvel penhorado se encontrava publicitado na plataforma E-leilões, tendo o leilão tido o seu início no dia 17 de Maio, sem que tivesse sido notificado pela Sr.ª AE de que tinha promovido a venda na aludida plataforma, conforme imposto pelo artigo 837.º, n.º 1, do CPC.
Defendendo estar em causa omissão de acto prescrito na lei com influência na decisão da causa, uma vez que frustrou legítimas expectativas do requerente na conclusão de um negócio extrajudicial que permitiria o ressarcimento integral dos credores, requereu a final que fosse julgada verificada a arguida nulidade, ordenando-se o cancelamento do leilão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Despacho n.º 12624/2015, de 9 de Novembro.

A Sr.ª AE pronunciou-se no sentido de não ter sido cometida qualquer irregularidade posto que, tendo sido notificada pela plataforma e-leilões no dia 17 de Maio de 2022 do início do leilão, encontrava-se em tempo para proceder à notificação das partes. Acrescentou que agendara previamente data com o executado para fotografar o imóvel, após o que promoveu a realização do leilão em conformidade com o que há muito havia sido decidido.
O executado veio ainda contrapor que sempre teria de ser notificado do agendamento do leilão, designadamente das datas de início e termo, com indicação do link para acompanhamento do mesmo.
Tendo os autos prosseguido, encerrado o leilão, proferiu a Sr.ª AE a decisão de 27/6/2022 julgando verificadas as condições para que, logo que se mostrasse depositado o preço e cumpridas as obrigações fiscais, fosse o bem adjudicado à proponente com a oferta mais elevada, no valor de € 410.000,00, superior a 85% do valor base fixado.
Notificado, veio o executado impugnar judicialmente a referida decisão em sucessivos requerimentos (Ref.ªs 42800906 e 42804107), requerendo a final que: i. fosse o requerimento admitido; ii. se aguardasse pela pronúncia sobre a invocada nulidade por preterição de formalidades essenciais para o exercício dos seus direitos; iii. se considerasse existir violação de regras processuais civis com projecção ético-deontológica, com cometimento [por banda da Sr.ª AE] de infracção disciplinar típica e configurando ilícito disciplinar; iv. se notificasse, após extracção de certidões dos actos praticados sem a devida notificação e formalidades ao executado, à comissão de disciplina da CAAJ e ao Conselho Superior da OSAE para, querendo, e havendo matéria para o efeito, proceder disciplinarmente; v. se procedesse, cautelarmente, à remoção imediata da AE e anulação dos actos de venda por si praticados em infracção a normas processuais civis e ético-deontológicas e, consequentemente, vi. fosse dada sem efeito a decisão de adjudicação do bem, devendo os autos aguardar a prolação de decisão sobre a nulidade arguida em 20 de maio.

Por despacho proferido em 30 de Julho – decisão recorrida – considerou-se não ter sido cometida qualquer nulidade, desatendendo a respectiva arguição e indeferindo, em consequência, a reclamação da decisão da Sr.ª AE relativa à adjudicação do bem.
Inconformado, interpôs o executado o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“I - Da leitura atenta da Douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo respeitante à nulidade arguida, o Tribunal entende que a notificação a efetuar ao executado em contexto de agendamento de Venda de Bens Penhorados através de Leilão poderá ser concretizada após o início do referido Leilão.
II – O executado reclamou da fixação de um valor inferior ao preço de mercado pela AE, que aludiu ao valor de € 180.125,00 [(em 21/01/2019, Ref.ª PE/295/2011 Doc. L6yDK9KtO1M] quando a lei exige tal valor (de mercado) no artigo 812.º, n.os 1, 2, alínea b), 3, alínea b), 4 a 7, do NCPC, visto que se optou por fixar o valor de € 300.000,00 e não essoutro, de mercado, que seria de € 549.355,80 [= 70% valor mercado a preços de 2021, segundo indicações do Perito = 784.794,00 x 70% = ].
III – O artigo 816.º, n.º 2, do NCPC, ao ter sido aplicado, isto é, o AE, ao ter efectuado a fixação do valor do bem a alienar por 85%, é materialmente inconstitucional.
IV – Tal regra geral decorre diretamente do disposto no artigo 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil. Esta regra geral é pela Jurisprudência como aplicável aos Agentes de Execução [conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 607/13.6TBVNO-A.E1, de 12/04/2018].
V– Ficou demonstrado que a Sr.ª Agente de Execução não cumpriu os deveres que lhe incumbem por força das disposições estatutárias da sua própria Ordem Profissional, mormente o dever previsto no artigo 168.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, ou seja, do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.
VI – Incumbe à Sr.ª Agente de Execução, vide o artigo 720.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«7 - Na falta de disposição especial, o agente de execução realiza as notificações da sua competência no prazo de 5 dias e pratica os demais atos no prazo de 10 dias».
VII – A Sr.ª Agente de Execução teve conhecimento da aprovação do Leilão Eletrónico por ela requerido no dia 21 de Abril de 2022, conforme e-mail automático enviado pela Plataforma “E-Leilões” e que foi junto com a Notificação da Sr.ª Agente de Execução no dia 20 de Maio de 2022, com a Referência n.º N01boDBcqLJ. Ora, a Sr.ª Agente de Execução notificou o principal interessado no desfecho do Leilão, in casu o EXECUTADO, da data de início do mesmo após o mesmo já se ter iniciado. . .
VIII – O artigo 4.º, n.os 4 e 6, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro [o diploma que contém as regras de funcionamento da plataforma de leilão eletrónico, desenvolvida e administrada pela Câmara dos Solicitadores], dispõem que: «(…)
4 - Concluído o preenchimento do formulário e depois de validado pela plataforma é devolvida uma referência multibanco para pagamento da taxa de colocação em leilão, a data e hora provisória para o termo do leilão e local onde vai decorrer o ato de certificação de conclusão do leilão.(…)
6 - Decorrido o prazo de 10 dias, a contar da disponibilização da referência multibanco a que se reporta o n.º 4, sem que se mostre paga a taxa de colocação em leilão, o pedido é cancelado.».
IX – Isto significa que a Sr.ª Agente de Execução tinha pleno conhecimento do período em que iria decorrer o Leilão Eletrónico desde o dia 21 de Abril de 2022 (em que obteve aprovação por parte da Plataforma “E-Leilões”), ou seja mais de 1 (Um) mês antes da data em que efetivamente se iniciaria (17/05/2022).
X – A omissão da Sr.ª Agente de Execução ganha outros contornos quando se evidencia que a Sr.ª Agente de Execução tinha perfeito conhecimento de que o executado se encontrava a negociar extrajudicialmente a venda do imóvel.
XI – No dia 11 de Maio de 2022, ou seja 6 (Seis) dias antes do início do Leilão Eletrónico, o Ilustre Mandatário do executado enviou um e-mail à Sr.ª Agente de Execução solicitando a elaboração da Nota Discriminativa do Processo para que o eventual Contrato de Promessa de Compra e Venda a celebrar previsse um sinal suficiente para liquidar os créditos reclamados e os honorários da Sr.ª Agente de Execução [Doc. 1 – E-mail de 11/05/2022].
XII- Não só a Sr.ª Agente de Execução não o informou de que o Leilão Eletrónico já estava agendado como informou telefonicamente que iria fazer os possíveis para viabilizar o negócio extrajudicial.
XIII – Em conformidade com a informação prestada pela Sr.ª Agente de Execução, o Ilustre Mandatário da Sociedade Compradora solicitou o fornecimento dos elementos do imóvel para elaborar um Contrato de Promessa através de correio eletrónico no dia 13 de Maio de 2022 [Doc. 2 – E-mail de 13/05/2022].
XIV – Toda a factualidade atinente à negociação extrajudicial do imóvel decorreu antes do início do Leilão Eletrónico e com o conhecimento e “aval” da Sr.ª Agente de Execução.
XV –A Sr.ª Agente de Execução bem sabia que não seria possível concretizar a venda extrajudicial do imóvel porque já tinha o Leilão Eletrónico agendado desde o dia 21 de Abril de 2022.
XVI – A senhora Agente de Execução actuou sem olhar, como lhe é imposto, aos interesses do Executado.
XVII – Se o AE tivesse cumprido os seus deveres ético-deontológicos e profissionais, o Executado teria logrado, extra-judicialmente, um efectivo acordo de pagamento, que teria permitido, a todos os Exequentes, a seu contento, o ressarcimento dos seus créditos.
XVIII – Essa falta de colaboração fez com que o Executado fosse prejudicado pela venda concretizada através do Leilão Eletrónico, já que o imóvel foi adjudicado pelo valor de 410.000,00 EUR (Quatrocentos e Dez Mil Euros), ou seja o Executado teve um prejuízo de 120.000,00 EUR (Cento e Vinte Mil Euros).
XIX – O Executado foi gravemente prejudicado, terá que contar com menos 120.000,00 EUR (Cento e Vinte Mil Euros) para lograr encontrar um imóvel para realojar o seu agregado familiar, tudo por culpa única e exclusiva, da Sr.ª Agente de Execução.
XX - Não poderá o Douto Tribunal considerar estarmos apenas perante uma “mera irregularidade” quando a mesma acarreta um prejuízo de 120.000,00 EUR (Cento e Vinte Mil Euros) para o EXECUTADO.
XXI – Deverá considerar-se verificada a nulidade do ato de promoção de venda do imóvel penhorado à ordem dos presentes atos, por preterição das formalidades impostas pelo artigo 168.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, dos artigos 720.º, n.º 7 e 837.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e artigo 4.º, n.os 4 e 6, do Despacho n.º 12624/2015, de 09 de Novembro, determinando a anulação da venda e o cumprimento por parte da Sr.ª Agente de Execução das formalidades preteridas.
XXII – O despacho judicial é NULO e a decisão de ADJUDICAÇÃO DE BEM IMÓVEL, casa de morada da família, a um terceiro adquirente, em contexto de leilão irregular ou indevidamente conduzido, não pode deixar de não produzir quaisquer efeitos jurídicos.
XXIII – Não somente o valor base fixado, como a modalidade da venda não foram aceites ou tidas como as adequadas pelo executado, de tal modo que nunca poderia ser o bem vendido pelo valor de 85% do seu real valor, nem muito menos podia ser vendido abaixo do preço de mercado, sem intervenção do juiz ou executado, a assentir em tal lesiva e expropriativa solução.
XIV – Por força dos artigos 195.º, e 839.º, n.º 1, alínea c), e 3, do NCPC, deve a venda e a adjudicação levadas a cabo por leilão electrónico, mediante fixação de valor de base do imóvel, casa de morada da família, abaixo do preço de mercado, serem consideradas INVÁLIDAS, considerando-se a venda sem efeito.
XXV – Afirmando a CRP 1976 o valor da dignidade da pessoa humana e a protecção da família, os artigos 3.º e 4.º, da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, tenham vindo proteger, da execução coerciva tributária, a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal), artigo 219.º, n.º 5, 231.º, n.º 5, 244.º, do CPPT, e artigo 49.º, da LGT, tenha vindo criar uma impenhorabilidade absoluta da casa de morada de família”.
Conclui requerendo:
“I. A admissão do presente recurso de apelação com efeito suspensivo, por estar em causa a venda forçada de um imóvel que é a casa de morada de família, correspondente à titularidade de um direito fundamental de natureza análoga aos DLG´S que goza de regime específico – artigos 17.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 62.º, n.º 1, da CRP de 1976.
II. Considerar verificada a nulidade do ato de promoção de venda do imóvel penhorado à ordem dos presentes autos, por preterição das formalidades impostas pelo artigo 168.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, dos artigos 720.º, n.º 7 e 837.º, n.º 1 do CPC, e artigo 4.º, n.ºs 4 e 6 do despacho n.º 12624/2015, de 9 de Novembro, determinando a anulação da venda e o cumprimento por parte da Sr.ª AE das formalidades preteridas, por tal omissão ter causado sério prejuízo ao executado, nos termos do disposto no artigo 157.º, n.º 6, do CPC.
III. Dever a instância sustar-se ou suspender-se face à possibilidade privilegiada de resolução alternativa do litígio, a contento de todas as partes.
IV. Decretar-se o reembolso das despesas de aquisição e demais emolumentos da compradora.
v. Requer-se, sem prejuízo das comunicações legalmente impostas à comissão de disciplina da CAAJ, a remoção e substituição da agente de execução”.
Não foram apresentadas contra alegações.
*
Questões Prévias:
Do efeito atribuído ao recurso
O recorrente requereu que ao recurso fosse atribuído efeito suspensivo, com fundamento no facto de estar em causa “a venda forçada” de um imóvel que é a casa de morada de família”, correspondente à titularidade de um direito fundamental.
No despacho de recebimento do recurso foi-lhe atribuído o efeito meramente devolutivo, ainda que sem pronúncia expressa sobre o requerido.
Atendendo a que a decisão “que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes, salvo na situação prevista no n.º 3 do art.º 306.º” (vide n.º 5 do art.º 641.º do CPC, cabe apreciar o requerido.
Em matéria de recursos no âmbito das acções executivas vigora o regime dos artigos 852.º e seguintes, sendo aplicáveis, consoante consagrado naquele primeiro preceito, as disposições reguladoras do processo declarativo e o disposto nos artigos subsequentes.
Nos termos do n.º 2 do art.º 853.º, cabe apelação autónoma da decisão que se pronuncie sobre a anulação da venda (cfr. al. c), cabendo-lhe o efeito meramente devolutivo, conforme prevê expressamente o n.º 4 do preceito.
Por outro lado, vistas as disposições relativas ao processo declarativo, verifica-se que a situação dos autos não cabe na previsão da alínea b) do n.º 3 do art.º 647.º, sendo antes aplicável o n.º 1 do preceito, que consagra como regime regra o efeito meramente devolutivo.
Verifica-se assim que inexiste disposição que permita a atribuição do efeito suspensivo à decisão que se pronuncie, como é o caso dos autos, sobre a requerida anulação da venda, ainda quando esteja em causa o imóvel que é a morada da família, efeito que só poderia ser obtido mediante a prestação de caução (cfr. artigo 647.º, n.º 4), que não foi requerida.
Atento o exposto, uma vez que os apelantes não ofereceram caução, é de manter o efeito atribuído ao recurso.
*
Delimitação do objecto do recurso
Verifica-se ainda que o apelante veio requerer a este Tribunal de recurso, para além do mais que irá ser objecto de apreciação, que se decretasse: i. a sustação da execução “face à possibilidade privilegiada de resolução alternativa do litígio, a contento de todas as partes”; ii. “sem prejuízo das comunicações legalmente impostas à comissão de disciplina da CAAJ”, a remoção e substituição da agente de execução”.
Todavia, conforme é sabido, os recursos visam apenas a reapreciação das questões que, tendo sido oportunamente suscitadas, foram objeto de apreciação no âmbito da decisão recorrida, mas já não a apreciação de questões novas, salvo as de conhecimento oficioso (constitui jurisprudência constante, como se vê do acórdão do STJ de 8/1/2019, processo 26688/15.0T8LSB.L1.S2, em www.dgsi.pt, que se cita a título meramente exemplificativo).
No caso vertente, pese embora o ora recorrente, nos requerimentos sobre os quais recaiu o despacho recorrido, tenha já invocado a violação pela Sr.ª AE nomeada nos autos dos seus deveres estatutários, requerendo a final a sua remoção, a verdade é que a Sr.ª Juíza titular do processo não se pronunciou – ao menos expressamente – sobre tais pretensões, sem que tenha sido arguida a nulidade da decisão por omissão de pronúncia. Daqui decorre que a apreciação dessas mesmas pretensões por banda deste Tribunal, não estando em causa questões de conhecimento oficioso, implicaria o conhecimento de questões novas, o que lhe está vedado, pelo que se têm as mesmas por excluídas do objecto do recurso[1].
Quanto à (só agora) requerida sustação da execução com fundamento na possibilidade de uma “resolução alternativa do litígio”, trata-se em absoluto de uma questão nova e, nessa medida, igualmente excluída dos poderes de cognição deste Tribunal, pelo que dela não se conhecerá.
*
Delimitado o objecto do recurso, remanescem como questões a decidir:
i. determinar se se verificou omissão de acto imposto por lei susceptível de conduzir à anulação da venda nos termos das disposições conjugadas dos artigos 839.º, n.º 1, al. c) e 195.º do CPC;
ii. indagar da conformidade constitucional da venda da casa de morada de família e da fixação do valor a anunciar pela venda em montante inferior ao seu valor de mercado, conforme permite o n.º 2 do artigo 816.º do CPC.
*
II. Fundamentação
Dos autos decorre a seguinte factualidade com relevância para a decisão:
1. Encontra-se penhorado nos autos o prédio urbano destinado a habitação sito em (…), lote 41, Rua da (…), Mexilhoeira Grande, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do registo Predial de Portimão sob o n.º (…).
2. Na sequência de avaliação ao imóvel e que fixou o seu valor de mercado em € 475.000,00, foi pela Sr.ª AE apresentado requerimento (Documento: ywJZOGNsM0p Referência interna do processo: PE/295/2011 ywJZOGNsM0p Modelo: 297/1.01) em 06-11-2021, requerendo autorização para colocar o imóvel à venda no site do e-leilão electrónico pelo valor base da avaliação.
3. Apreciando o pedido formulado pela Sr.ª AE foi proferido em 2/12 despacho com o seguinte conteúdo:
“Em face do valor do imóvel apurado através da realização de avaliação por perito, a venda deverá prosseguir com referência a esse mesmo valor, de mercado, actualizado, que é de € 475.000,00.
(…)
Nestes termos, verificando-se uma expressiva discrepância relativamente ao valor anteriormente indicado para venda, a não verificação dos motivos que fundavam tal circunstância e o valor de mercado agora apurado, muito mais elevado, o valor base do imóvel a alienar deve ser fixado em € 475.000,00 (quatrocentos e setenta e cinco mil euros).”
4. O despacho referido no ponto anterior foi notificado aos interessados, incluindo o executado.
5. Em 22 de Fevereiro, com o conhecimento do executado, ocorreu diligência de recolha de fotos no imóvel penhorado, conforme auto junto ao processo.
6. Através de mensagem enviada por correio electrónico em 21 de Abril de 2022, a plataforma e-leilões informou a Sr.ª AE que “o leilão online LO946662022 do processo aqui em referência havia sido aprovado pela administração da plataforma”, indicando os dados para pagamento com data limite de 11 de Maio de 2022, advertindo ainda que o leilão seria activado assim que confirmado o pagamento.
7. Mediante mensagem electrónica de 17 de Maio de 2022, a plataforma informou a Sr.ª AE de que o leilão tinha tido início naquele mesmo dia, indicando ainda a data do termo – 22.06.2022 – e fornecendo o link para seguimento.
8. Com data de 20 de Maio de 2022, a Sr.ª AE notificou os interessados, incluindo o executado, de que “o imóvel objecto da presente execução será vendido em leilão electrónico, com seguinte data: início do leilão – 17 de Maio de 2022, 22:01 e fim dia 22-06-2022, às 11:00, indicando-se ainda a ligação para acompanhamento.
*
De Direito
Da omissão de formalidades conducentes à anulação da venda
Como se alcança do requerimento de arguição de nulidade apresentado pelo executado no dia 20 de Maio de 2022 e apreciado na decisão recorrida, estava em causa “a nulidade do acto de promoção de venda do imóvel penhorado (…) por preterição da notificação dos intervenientes a que alude o artigo 837.º, n.º 1, do CPC”. Alegou então o ora recorrente que, não tendo sido notificado de qualquer acto praticado no processo após notificação do despacho judicial parcialmente transcrito no ponto 3., foi com surpresa que constatou que o imóvel se encontrava à venda na plataforma e-leilões, tendo sido omitida pela Sr.ª AE notificação com “indicação expressa [d]a data e hora de início do Leilão, descrição do bem imóvel publicitado, a data e hora da cerimónia de encerramento e o link e referência do anúncio”. E tal omissão tinha valor de nulidade, uma vez que frustrou legítimas expectativas do requerente, “já que estava próxima a conclusão de um negócio extrajudicial que permitiria o ressarcimento integral dos créditos dos Exequentes para pôr termo ao processo”, afectando assim a venda.
Tendo a arguição da nulidade sido desatendida, insiste o recorrente nesta via de recurso que deve ser considerada “a nulidade do ato de promoção de venda do imóvel penhorado à ordem dos presentes autos, por preterição das formalidades impostas pelo artigo 168.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 154/2015, de 14 de Setembro, dos artigos 720.º, n.º 7 e 837.º, n.º 1, do CPC, e artigo 4.º, n.ºs 4 e 6, do despacho n.º 12624/2015, de 9 de Novembro”, determinando-se a anulação da venda e o cumprimento por parte da Sr.ª AE das formalidades preteridas, por tal omissão ter causado sério prejuízo ao executado, nos termos do disposto no artigo 157.º, n.º 6, do CPC.
Apreciemos, pois, os fundamentos invocados:
Deferindo a lei ao AE a competência para escolher a modalidade da venda (artigo 812.º, n.º 1), não deixou de consagrar uma modalidade preferencial, no caso a venda por leilão electrónico (cfr. artigo 837.º, n.º 1), pelo que a opção por diversa modalidade terá que ser devidamente fundamentada.
No caso vertente, foi observada a lei e determinada a venda por leilão electrónico, tendo sido fixado como valor base do imóvel a vender aquele que resultou da avaliação efectuada, correspondente ao seu valor de mercado (cfr. artigo 812.º, n.º 2, alínea b), tudo nos termos do despacho proferido em 2 de Dezembro de 2022, de que o executado foi notificado, sem dele reclamar (cfr. os n.ºs 6 e 7 do preceito), pelo que nenhuma irregularidade foi então cometida. Sabia portanto o executado e aqui recorrente, uma vez notificado do aludido despacho judicial, que o bem iria ser vendido em leilão electrónico e o seu valor base era o de € 475.000,00 apurado na avaliação.
No que respeita à tramitação dos leilões electrónicos, o Despacho Ministerial n.º 12624/2015, de 9 de Novembro, veio definir “como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores” e homologar “as regras do sistema aprovadas por essa entidade”. Trata-se do sistema www.e-leiloes.pt e regras anexas aprovadas pela Câmara dos Solicitadores, na qualidade de entidade gestora do referido sistema, por deliberação do seu Conselho Geral de 19 de Setembro de 2015.
Nos termos do artigo 4.º do aludido despacho, é da exclusiva responsabilidade do agente de execução a colocação de bens em leilão electrónico, bem como a informação introduzida na plataforma (cfr. n.º 1).
O procedimento a seguir vem descrito nos números seguintes, iniciando-se com a apresentação de um formulário específico, sendo obrigatório o preenchimento de todos os campos que estejam caracterizados como tal. Concluído o preenchimento do formulário e depois de validado pela plataforma, é devolvida uma referência multibanco para pagamento da taxa de colocação em leilão, a data e hora provisória para o termo do leilão e local onde vai decorrer o ato de certificação de conclusão.
Após a concretização do pagamento da taxa de colocação em leilão, que terá de ocorrer no prazo de 10 dias, sob pena de cancelamento, o pedido é submetido, sendo confirmados “por correio eletrónico, a data e hora fixada para o termo do leilão e o local onde vai decorrer o ato de certificação de conclusão”, sendo que, consoante impõe o n.º 8, “o termo do leilão é fixado para dia em que, nos termos da lei processual, os tribunais estejam abertos, num período não inferior a 20 dias nem superior aos 60 dias seguintes ao pagamento da taxa de colocação”.
Finalmente, e com relevância para a questão que agora nos ocupa, preceitua o n.º 11 que a cada leilão é atribuído um número único de identificação (NUL), cabendo ao agente de execução titular do processo, uma vez atribuído, notificar as partes processualmente relevantes do a) Número de identificação do leilão; b) Data e hora de termo; c) Bens em leilão (cfr. n.º 12).
Pois bem, confrontando os procedimentos prescritos no convocado artigo 4.º com a tramitação seguida nos presentes autos, não vemos que tenha sido omitida a prática de acto imposto ou praticado qualquer acto não permitido. Vejamos:
Ordenada a venda por leilão electrónico e fixado o valor base do bem a vender, seguia-se muito naturalmente a colocação do imóvel penhorado na plataforma, tendo a Sr.ª AE providenciado previamente, e sem oposição do executado, pela obtenção de registos fotográficos pertinentes.
Verifica-se ainda que, tendo sido comunicado à mesma AE por meio electrónico que o leilão havia sido aprovado, a sua efectiva realização dependia do pagamento da correspondente taxa de colocação, cujo prazo de pagamento se prolongava até 11 de Maio, donde não lhe ser exigível -nada na lei o impõe- que tivesse comunicado ao executado a mera circunstância de ter promovido a colocação do bem em leilão ou que o mesmo havia sido aprovado. E efectuado o pagamento, só em 17 de Maio a Sr.ª AE foi notificada de que o leilão tinha tido o seu início nesse mesmo dia e qual a data, hora e local do respectivo encerramento, elementos notificados ao executado em 20 de Maio, em cumprimento do n.º 12 do artigo 4.º, mostrando-se observado o prazo geral consagrado no n.º 7 do artigo 720.º do CPC, sem que se vislumbre qualquer violação do dever de diligência latamente consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 168.º da Lei 154/2005.
O apelante insurge-se contra o facto de ter sido notificado depois do leilão ter tido o seu início mas a verdade é que em parte alguma a lei impõe que de tal lhe seja dado conhecimento – a própria AE foi notificada no próprio dia –, referindo-se sempre a apenas à data e hora fixada para o seu termo e local onde vai decorrer o ato de certificação de conclusão.
Resulta do que vem de se expor que nenhuma irregularidade, com ou sem valor de nulidade, foi cometida na tramitação da venda, inexistindo fundamento para determinar a sua anulação com fundamento na omissão de atempada notificação da data do início do leilão.
No que respeita à invocada violação por banda da Sr.ª AE dos seus ético-deontológicos e profissionais, decorrentes da Lei n.º 154/2015, tendo actuado, no dizer do apelante, sem consideração pelos seus interesses, revela que a fonte do inconformismo do executado assenta na circunstância de, segundo alega, a Sr.ª AE ter omitido a prestação da necessária colaboração – passando eventualmente pela não colocação do bem em venda ou cancelamento do leilão, decisão que, todavia, recorda-se, tem de ser fundamentada nos termos prescritos no art.º 5.º do Despacho Ministerial n.º 12624/2015, de 9 de Novembro – em ordem a viabilizar, conforme se teria comprometido a fazer, a realização de negócio de venda extra judicial que se encontrava em curso e de que tinha conhecimento.
A este respeito, não se questiona que os agentes de execução se encontram vinculados a deveres deontológicos, de que é ilustrativo o artigo 119.º do respectivo estatuto, que, impressivamente epigrafado de independência, lhes impõe que mantenham, “em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livres de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos seus colegas, ao tribunal, a exequentes, a executado, aos seus mandatários ou a terceiros”. Todavia, sendo a violação de tais deveres susceptível de constituir ilícito disciplinar (cfr. o artigo 180.º do Estatuto), fazendo incorrer o agente de execução em responsabilidade disciplinar e, eventualmente, civil, se tal actuação ilícita vier a causar danos, tais condutas, não integrando o quadro de irregularidades cometidas no processo, não são idóneos a fundamentar a requerida anulação da venda. Daí que, ainda a comprovar-se a veracidade dos factos alegados pelo executado, não assumindo relevância para efeitos da pretendida anulação da venda, não determinariam a inversão da decisão impugnada.
*
Da inconstitucionalidade da venda da casa de morada de família e da fixação de um valor de venda inferior ao preço de mercado
O recorrente alegou ainda que “o artigo 816.º, n.º 2, do NCPC, ao ter sido aplicado, isto é, o AE, ao ter efectuado a fixação do valor do bem a alienar por 85%, é materialmente inconstitucional”, acrescentando que “Não somente o valor base fixado, como a modalidade da venda não foram aceites ou tidas como as adequadas pelo executado, de tal modo que nunca poderia ser o bem vendido pelo valor de 85% do seu real valor, nem muito menos podia ser vendido abaixo do preço de mercado, sem intervenção do juiz ou executado, a assentir em tal lesiva e expropriativa solução”.
Previamente, impõe-se precisar que, conforme decorre do que acima se deixou dito, não é rigoroso que o executado não tenha aceitado como adequados, quer a modalidade da venda escolhida, quer o preço base fixado. De todo o modo, a modalidade de venda é a que decorre da lei e o preço foi fixado de harmonia com o resultado de ordenada avaliação nos termos despacho judicial de que o executado, regularmente notificado, não reclamou.
Feitas tais prévias precisões, importa igualmente referir que o artigo 816.º, n.º 2, do CPC se impõe naturalmente ao Sr. Agente de execução, que fez anunciar a venda em conformidade com a regra ali estabelecida, sendo destituída de fundamento a invocação de inconstitucionalidade material - a querer significar, ao que se depreendeu da alegação, que apenas o juiz poderia determinar o anúncio de venda por valor inferior e autorizar a concretização da mesma. Mas não é assim, posto que é a própria lei a fixar o valor a anunciar, imposição legal que o Sr. AE está obrigado a acatar. E, como parece óbvio, surgindo interessado a licitar por valor superior ao anunciado, ainda que inferior ao valor base, o Sr. AE não carece da autorização do juiz para vender o bem, cumpridas que sejam as formalidades previstas na lei. Não sendo assim por acaso que o artigo 2.º do Despacho Ministerial – define na sua alínea h) licitação como “(…) a proposta apresentada por um utente, por si ou em representação de terceiro, para um determinado bem ou conjunto de bens que integram um lote, de valor igual ou superior a 85% do valor base”, dada a sua necessária conformação às normas que no código do processo regulam a venda forçada.
Questão diversa é saber se a determinação legal de fazer anunciar a venda por 85% do valor base fixado é conforme à lei fundamental, considerando designadamente o direito de propriedade privada. Não cremos, porém, antecipa-se, que a norma contenha um atropelo a este princípio que a torne merecedora de um juízo de desconformidade.
Anote-se, antes de mais, que da disposição em causa não resulta o estabelecimento de um valor fixo para a venda, ficando o preço dependente das ofertas que vierem a ser efectuadas, tudo dependendo, pois, do número de interessados. Concede-se, porém, que se permite, por esta via, que o bem seja vendido por preço inferior ao seu valor base, que será aquele que se aproxima do preço de mercado, com eventual prejuízo do executado (e diz-se eventual porque nada garante que fora do âmbito da venda forçada o bem atingisse o seu valor de mercado, tudo dependendo, também aqui, entre muitos outros factores, da urgência do vendedor). Não poderá, no entanto, olvidar-se que estamos no âmbito de uma venda forçada, havendo que contar com o interesse do credor em ver o seu crédito satisfeito. E foi da necessária ponderação destes interesses em conflito que o legislador ordinário, dentro da margem de discricionariedade que lhe é reconhecida, adoptou uma solução que se vê como equilibrada, conformando-se com a perda de uma percentagem de até 15% do valor do bem, em ordem a obter uma mais rápida satisfação do crédito do exequente (o que, em última análise, também beneficia o executado, designadamente evitando o avolumar de eventuais juros).
Termos em que se conclui pela não desconformidade da norma do artigo 816.º à CRP.
*
Da impenhorabilidade da casa de morada de família em observância do princípio constitucional “da dignidade da pessoa humana e a protecção da família”
Finalmente, aludiu ainda o recorrente à criação pela Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, de uma impenhorabilidade absoluta, em conformidade com o valor constitucional “da dignidade da pessoa humana e a protecção da família”, argumento que derradeiramente se apreciará.
Antes de mais, não é rigoroso que a Lei n.º 13/2006 tenha vindo consagrar uma impenhorabilidade absoluta do imóvel que constitua a casa de morada de família do executado, antes protegendo a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (vide artigo 1.º). Tal protecção, de resto, deixa de fora os imóveis “cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis” (cfr. o n.º 3 do artigo 244.º do CPPT, na redacção introduzida pela citada Lei).
Por outro lado, e decisivamente para a questão que nos ocupa, tal protecção tem a sua aplicação limitada às execuções tributárias, não se estendendo às execuções comuns por razões de política legislativa que, não cabendo aos tribunais questionar, se compreendem – a solução inversa, com elevado grau de certeza, não passaria o crivo da constitucionalidade, por não caber aos privados garantir o direito à habitação dos seus devedores.
A este propósito o TC pronunciou-se com meridiana clareza no acórdão 50/2022, de 18 de Janeiro[2], de que se transcrevem as seguintes passagens, por relevantes para a questão que agora se enfrenta:
"O artigo 65.º da Constituição, sob a epígrafe «Habitação e Urbanismo», estabelece o seguinte nos seus n.ºs 1 a 4:
«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;
d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.».
O direito à habitação consagrado neste artigo – cujo conteúdo se traduz no «direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família» (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, pág. 958 e ss.) – assume, a exemplo do que se verifica com outros direitos sociais, uma dupla natureza ou dimensão, conforme tem vindo a ser reconhecido pelo Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 101/92, 612/2019 e 393/2020).
Por um lado, tem uma dimensão negativa ou defensiva, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, tem uma dimensão positiva, que correspondente ao direito dos cidadãos a medidas e prestações estaduais, visando a sua promoção e proteção, isto é, a medidas e prestações estaduais tendentes a assegurar «uma habitação adequada e condigna à realização da condição humana, em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
(….)
É nesta segunda vertente ou dimensão positiva do direito à habitação, enquanto direito fundamental de natureza social, que se encontra acentuada no artigo 65.º da Constituição, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4. Nesta vertente, conforme tem salientado o Tribunal Constitucional na sua jurisprudência (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 130/92, 131/92, 151/92, 633/95, 32/97, 374/2002, 212/2003, 590/2004 e 168/2010), o direito à habitação é configurado um direito a prestações, cujo principal destinatário é o Estado, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito (cfr. o n.º 2 do referido artigo 65.º), bem como a adoção de políticas no sentido de estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (cfr. o n.º 3, idem) e ainda, em conjunto com as regiões autónomas e as autarquias locais, a adoção de outras medidas adequadas à prossecução daquele direito (cfr. o n.º 4, ibidem). Significa isto que as pretensões fundadas no direito à habitação não têm como destinatários diretos os particulares nas relações entre si, mas antes o Estado e igualmente as Regiões Autónomas e autarquias locais”.
E acrescentou: “Acresce ainda, por outro lado, e conforme já referido, que o direito à habitação constitucionalmente garantido não se identifica nem se confunde com o direito a ser proprietário (ou titular de um direito real de gozo) sobre o imóvel onde se tenha a habitação. Daí que não se possa configurar como constitucionalmente imposto, enquanto exigência decorrente da proteção do direito à habitação, uma solução no sentido de, nas relações entre particulares, consagrar um regime impeditivo da caducidade do direito real de habitação, quando o mesmo incida sobre uma casa de morada de família e esteja em conflito com uma hipoteca com registo anterior, incidente sobre o mesmo imóvel. Por outro lado, conforme também já mencionado, o “mínimo de garantia” do direito à habitação – enquanto direito de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias” – é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado.
De resto, é certo que tem havido por parte do legislador um reforço da tutela da habitação própria permanente no âmbito dos processos de natureza executiva, designadamente através de iniciativas legislativas tendentes a restringir ou, mesmo, a impedir a possibilidade de penhora daqueles imóveis (cfr., por exemplo, a Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, que prevê medidas de proteção da casa de morada de família no âmbito dos processos de execução fiscal, e, mais recentemente, a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que alterou os n.ºs 3 e 4 do artigo 751.º do Código de Processo Civil no que respeita aos requisitos de penhorabilidade dos referidos imóveis).
(…)
Acresce ainda que, no âmbito do processo executivo, o legislador não desconsiderou em absoluto o direito à habitação. Por um lado, a circunstância de o imóvel constituir habitação própria permanente do executado assume relevo no tocante aos pressupostos de admissibilidade da penhora (cfr. artigo 751.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPC). Por outro lado, estando em causa a casa de habitação do executado, uma vez efetuada a venda executiva, e requerendo o adquirente, na própria execução, a entrega dos bens, poderá ter lugar, em determinadas circunstâncias, a suspensão da entrega do imóvel e, no caso de se suscitarem sérias dificuldades quanto ao realojamento do executado, o agente de execução deverá comunicar antecipadamente tal facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes (cfr. artigos 828.º, 861.º, n.º 6, e 863.º, n.ºs 3 a 5, todos do Código de Processo Civil).
(…)
No entanto, não obstante o reconhecimento, por este Tribunal, da função social da propriedade, sobretudo em sede de arrendamento, que poderá justificar a imposição de restrições aos direitos do proprietário privado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre, repete-se, que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cfr. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001)”.
Tendo presentes tais considerandos, somos a concluir que nada obstava à venda do imóvel nos presentes autos.
Improcedentes são, assim, todos os fundamentos do recurso, determinando a manutenção da decisão recorrida.
*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto pelo executado, confirmando a decisão recorrida.
As custas do recurso serão suportadas pelo recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
*
Sumário:
(…)
*
Évora, 02 de Março de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
José Manuel Barata

__________________________________________________
[1] Não se resiste no entanto a referir que nos termos do disposto no artigo 720.º, n.º 4, do CPC, a destituição do AE cabe ao órgão com competência disciplinar (cfr. artigo 33.º, n.ºs 2, b) e 3, do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, aprovado pela Lei n.º 154/2014, de 14 de Setembro), sendo certo ainda que tem legitimidade para participar à Ordem ou à CAAJ, quando se trate de facto praticado por agente de execução susceptível de constituir infração disciplinar, qualquer pessoa direta ou indiretamente afetada pelos factos participados (cfr. artigo 185.º, n.º 1, alínea f), do mesmo diploma).
[2] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220050.html