Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1704/15.9T8PTM.E1
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: “Compete ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição; assim sendo, a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a 'história' do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público; ora, como o ónus da prova recai, de forma absoluta, sobre o autor, este terá que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada".
Decisão Texto Integral: Processo 1704/15.9T8PTM.E1
Comarca de Faro
Instância Central Portimão - 2.ª Secção Cível – J4

I. Relatório
Falésias (…), Lda., pessoa colectiva n.º (…), com sede na Av. dos (…), nº (…), 1º, Dtº, em Lagos, instaurou acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, contra o Estado Português, aqui representado pelo Ministério Público, pedindo a final a condenação do R. “no reconhecimento da propriedade privada sobre a parcela de margem de água do mar identificada na petição”.
Em fundamento alegou, em síntese, dedicar-se à compra de venda de imóveis, tendo usado em tempos a denominação “(…) Irrecusável, Lda.”. No exercício da referida actividade, adquiriu em 15/1/2015, por compra que fez à sociedade (…) Construções, SA, o prédio misto sito na (…), freguesia de Lagos (Santa Maria), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), com a área de 84280 m2, o qual confronta do lado Nascente com a falésia das praias (…) e (…).
Mais alegou que logo após a celebração do negócio procedeu à vedação do identificado prédio, com excepção daquele lado nascente, tendo sido surpreendida com uma notificação emanada da Agência Portuguesa do Ambiente para que procedesse à remoção da dita vedação, com fundamento no facto da mesma estar colocada sobre uma suposta área do domínio público marítimo correspondente a uma franja de 50 mt da crista da arriba para o interior da propriedade e longitudinal a toda a confrontação com a falésia.
Sucede, porém, que o imóvel é, em toda a sua extensão, propriedade privada desde o ano de 1804, tal como o comprova a documentação reunida, conforme prevê o n.º. 2 do art.º 15º da Lei 54/2005, de 15/11, o que deve ser declarado.
Juntou documentos.
*
Contestou a D. Procuradora da República em representação do Estado Português, peça na qual invocou a ausência de concretização do facto genericamente alegado pela autora, desconhecendo-se “em que moldes o imóvel mencionado na petição se encontrou na disponibilidade dos ante possuidores, que nem sequer são identificados”, estando o contestante impedido de se defender convenientemente, por não lhe ser possível verificar “a correcção do trato sucessivo”.
Tendo por fim invocado que os documentos juntos não satisfazem as exigências probatórias formuladas no citado art.º 15.º, situando-se a parcela em causa dentro dos limites da margem do mar, prevalece a presunção de que pertencem ao domínio público, assim concluindo pela improcedência da acção.
*
Foi proferido despacho saneador, no qual a Mm.ª juíza julgou improcedente a assim entendida arguição da nulidade de todo o processo decorrente da ineptidão de todo o processo por falta de causa de pedir, invocando para tanto o regime consagrado no n.º 3 do art.º 186.º do CPC.
Tendo depois consignado que se abstinha de proferir despacho de aperfeiçoamento da petição porquanto, “(…) ponderando o espírito do disposto no art.º 278.º, n.º 3, do Código em referência (as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte) e o teor dos documentos juntos ao longo de mais de um ano”, entendia estar “em condições de decidir, evitando mais atos que viriam, no fundo a revelar-se inúteis”, a Mm.ª juíza passou a proferir sentença, por cujos termos foi a acção julgada improcedente e o réu absolvido do pedido.

Inconformada, apelou a autora e, tendo desenvolvido nas alegações que apresentou as razões da sua discordância com a decisão proferida, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª A decisão recorrida reconheceu a propriedade privada até ao ano de 1916.
2.ª Deve ser considerado provado, através da escritura pública de hipoteca de 02/04/1889, que o prédio nº. (…) era propriedade de (…) e que o prédio nº. (…) confrontava com aquele a Norte e que era propriedade de (…), naquele ano de 1889.
3.ª Está provado que ocorreu um incêndio na Conservatória de Lagos em 03/10/1884.
4.ª Fica demonstrado que o prédio nº. (…) teve origem no Foro 61 (com o n.º cobrança 76 e n.º de Tombo …), pelo registo como enphyteuta de (…) que, como já se viu, veio a ser adquirente dos prédios em 1918 a (…) (o prédio …) e em 1919 a (…) (que por sua vez tinha adquirido o prédio … a …).
5.ª O Tombo deste Foro 61 está registado desde 1881.
6.ª Do mesmo Foro 61 (com os mesmos nº. de cobrança 76 e nº. de Tombo …) se provou a posse ou propriedade privada, através de certidão do Livro de Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, datada de 20/09/1868.
7.ª Deve ser considerado provado que o prédio nº. (…) teve origem no Foro 63, porque da certidão do Livro de Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, datada de 20/07/1862, constam como enphyteutas (…) e (…) (proprietário do …, que em 1889, conforme escritura de hipoteca atrás referida, confrontava a Norte com …) confronta do Norte com fazenda do (…), Sul com fazenda de (…), Nascente com a Rocha do Mar (…), (…) e do Poente com fazenda que foi capitão (…) e de sua mulher D. (…).
8.ª E a Tombação deste Foro 63 remonta a 25/11/1773.
9.ª A sentença recorrida apreciou erradamente a matéria de facto nos pontos atrás referidos.
10.ª Por essa razão, aplicou de forma incorrecta o art.º 15.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
11.ª A sentença violou a Constituição da República Portuguesa nos seus art.ºs 20.º e 64º.
12.ª Deve ser dado como provado que as arribas alcantiladas situadas na propriedade da recorrente eram objecto de propriedade privada antes de 22 de Março de 1868.
13.ª Finalmente, se dúvidas houvesse, em virtude do incêndio ocorrido na Conservatória de Lagos em 1884, a propriedade da recorrente deve beneficiar da presunção de titularidade privada, nos termos do n.º 3 do art.º 15.º da já referida Lei nº. 54/2005, de 15 de Novembro, norma esta também violada pela sentença recorrida.
Pediu que fosse concedido provimento ao recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida.
*
A D. Magistrada do M.P, contra alegou doutamente, sustentando a manutenção da decisão.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões sujeitas à apreciação deste Tribunal Superior:
i. da modificação da decisão proferida sobre os factos, com aditamento dos propostos pela recorrente;
ii. decidir se o prédio inscrito a favor da autora se encontra no domínio privado desde data anterior a Março de 1868, devendo assim ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre o mesmo, incluindo a parcela correspondente à margem das águas do mar;
iii. indagar se foram violados os artigos 20.º e 64.º da CRP.
*
Impugnação da matéria de facto
Como se vê do teor das alegações e conclusões com que rematou as suas alegações, a recorrente sustenta que a Mm.ª juíza “a quo”, por não ter dado a devida atenção aos documentos que fez juntar aos autos, não incluiu na factualidade assente matéria relevante e que resulta indiscutivelmente comprovada atento o teor dos documentos que identificou.
Está em causa a seguinte factualidade, que a apelante pretende ver aditada:
- O prédio n.º (…) era propriedade de (…) em 2 de Abril de 1889, data da celebração da escritura de hipoteca junta aos autos, confrontando do lado Norte com o prédio n.º (…), então pertencente a (…);
- O prédio n.º (…) teve origem no Foro 61 (com o n.º cobrança 76 e n.º de Tombo …), que teve como enphyteuta (…), adquirente dos prédios em 1918 a (…) (o prédio …) e em 1919 a (…) (que por sua vez tinha adquirido o prédio … a …).
- O tombo do Foro 61 está registado desde 1881.
- O mesmo Foro 61 constava do Livro de Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, cujo termo de abertura se encontra datado de 20/09/1868.
- O prédio n.º (…) teve origem no Foro 63 que em 20/7/1862 constava do Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, aí se mencionando como enphyteutas (…) e (…), conforme consta da certidão extraída do referido L.º, a confrontar do Norte com fazenda do (…), Sul com fazenda de (…), Nascente com a Rocha do Mar (…), e do Poente com fazenda que foi capitão (…), e de sua mulher (…).
- A Tombação deste Foro 63 remonta a 25/11/1773.
*
Pois bem, no que concerne à transcrita factualidade, indica a recorrente como prova certidões de documentos autênticos e particulares que, não tendo sido impugnados, têm a força probatória dos respectivos originais (cf. art.º 383.º do CC) permitindo, pois, que se dê por assente quanto deles consta, nos termos dos art.ºs 371.º e 376.º do mesmo diploma legal. De resto, estando em causa apenas e tão só prova documental, reconhecida a sua pertinência, nada impede -antes se impõe- a sua consideração por este Tribunal da Relação, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, ex vi do n.º 2 do art.º 663.º do CPC.
Visto o documento junto de fls. 315 a 320 – certidão que é reprodução fiel do original exarado do livro de escrituras n.º (…), fls. 1 a 3, ano de 1889, do notário Fernando António Freitas Oliveira, Cartório Notarial de Lagos, intitulada de “Escriptura de confissão de dívida com hypotheca que fasem (…) e sua esposa dona (…) a (…) da quantia de 1.400$000” –, dele resulta que no dia 2 de Abril de 1889 os referidos (…) e esposa se declararam devedores ao segundo outorgante, (…), da quantia de um conto e quatrocentos mil réis, proveniente de empréstimo que este lhe fez, e que para garantia desse empréstimo hipotecaram diversos prédios, dentre eles “uma fazenda no sítio da (…), freguesia de Santa Maria, desta cidade de Lagos, composta de terra de semiar, arvoredo e monte, foreira em mil e duzentos réis à Junta de Parochia de Santa Maria de Lagos e confronta pelo Norte com Dona (…) e (…), Sul com prédio de (…), Nascente com o mar e Poente com estrada da Piedade”.
Este mesmo prédio veio a ser descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…) como “prédio rústico no sítio da (…), de Santa Maria de Lagos, foreiro em 1200R e consta de uma terra de semear, arvoredo e monte e confronta do Norte com D.ª (…) e (…), Sul (…), Nascente com mar e Poente com estrada da Piedade”. Da descrição consta ainda que o documento de onde foi extraída a certidão foi apresentado sob o n.º 1 do Diário de 25 de Junho de 1889 (cf. doc. de fls. 291 a 300 junto sob o n.º 13 com o requerimento de 29 Abril 2016).
O referido prédio foi depois objecto da escritura celebrada em 26 de Agosto de 1916 no Cartório Notarial de Lagos do notário Artur Baptista Galvão (certidão de fls. 308 a 314, com transcrição de fls. 327 a 329), por cujos termos “Dona (…), veúva, e (…) e sua esposa, Dona (…), proprietários” disseram “Que por bom e justo título são senhores e legítimos possuidores, em comum, de um prédio rústico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria d’esta cidade de Lagos, que se compõe d’uma fasenda com terra de semear, arvoredo e casas, e no seu todo confronta do Norte com Dona (…) e (…), Nascente com Rochas do Mar, Sul com (…) e Poente com Estrada da Piedade, foreira em um escudo e vinte centavos, anualmente, à Comissão concelhia de Lagos, antes à fábrica da Igreja de Santa Maria deste concelho e está descripto na Conservatória d’esta comarca sob o numero (…), a fls. Onze verso do livro B sexto; Que podendo livremente dispôr do descripto e confrontado prédio ajustaram e contractaram vende-lo, como efectivamente e pela presente escriptura o vendem, ao segundo outorgante … (…)”.
Mediante escritura pública celebrada no mesmo Cartório Notarial de Lagos em 17 de Junho de 1919 (certidão de fls. 301 a 306, com transcrição a fls. 330-332), o referido (…) e sua mulher, (…), tendo declarado “Que são senhores e legítimos possuidores d’um prédio rústico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria desta cidade, que se compõe d’uma fasenda com terra de semear, arvoredo e casas e confronta do Norte com dona (…) e o capitão (…), Sul com prédio do menor comprador Excelentíssimo (…), Nascente com a Rocha do Mar e Poente com a Estrada da Piedade, é foreiro em um escudo e vinte centavos anualmente à comissão concelhia de Lagos e descripto na Conservatória desta comarca sob o numero (…), a fls. onse verso do livro B sexto”, disseram ainda “Que podendo livremente dispôr do descripto e confrontado prédio, ajustaram e contractaram vende-lo, como efectivamente e pela presente escriptura o vendem ao referido menor Excelentíssimo (…), pelo preço de mil e duzentos escudos que neste acto receberam da mão do outorgante seu pai o Excelentíssimo (…) e do qual dão plena quitação (…)”.
Resulta assim das assinaladas escrituras que o prédio em causa, cuja descrição no registo remonta a Junho de 1889, tendo ficado descrito sob o n.º (…), do Livro B sexto, data em que eram proprietários os identificados Dona (…) e marido, (…), foi então dado de garantia do bom pagamento de dívida que confessaram, sobre ele tendo sido constituída hipoteca em escritura celebrada em Abril desse mesmo ano de 1889. Posteriormente, o prédio, que confinava do Sul com fazenda de (…), foi vendido a (…) por escritura de 26 de Agosto de 1916, que em 17 de Junho de 1919, juntamente com sua mulher, (…), o vendeu ao menor (…), no acto representado por seu pai, (…).
Sabe-se ainda, considerando o teor da escritura celebrada em 14 de Fevereiro de 1953, na qual outorgaram como vendedores o referido (…) e sua mulher, (…), e ainda (…), viúva, todos representados por (…), e como comprador (…) (cf. certidão de fls. 265 a 270 dos autos, que é reprodução fiel do original da escritura exarada no livro n.º 432, de fls. 36 a 38 do ano de 1953 do Cartório Notarial de Lagos do notário José dos Santos Pimenta Formosinho, com transcrição a fls. 333-334) que nela aquele identificado procurador declarou que os seus constituintes são “os donos um prédio rustico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria de Lagos, alodial, que consta de terra de semear com arvores e montes e confronta do Norte com herdeiros de (…) e com doutor (…), Sul com herdeiros de (…) e herdeiros de (…), Nascente com a rocha e Poente com a estrada da Piedade: este prédio está inscrito na respectiva matriz predial sob … dos artigos dez, onze e doze e sob o total do artigo numero (…) e está descrito na Conservatória do Registo Predial d´esta comarca sob os números (…) a folhas onze verso do Livro B seis e (…) a folhas oitenta e uma verso do Livro B-20”, mais tendo declarado que “usando dos poderes que lhe foram conferidos pelos seus referidos constituintes vende ao segundo outorgante (…) o prédio antes descrito e confrontado pelo preço ajustado de trinta e cinco mil escudos (…)”.
Resulta da escritura que se deixou extractada que o referido prédio descrito sob o n.º 2040 foi vendido juntamente com o descrito sob o n.º (…), como se de um só se tratasse, o que foi averbado à descrição de ambos os prédios, como se vê de fls. 253 (doc. 5, de fls. 253 a 262, interessando o averbamento n.º 1, a fls. 253 em relação ao ..., e 291 a 300, no que se reporta ao n.º ..., interessando o averbamento n.º 7 a fls. 291).
Quanto ao prédio descrito sob o n.º (…) como “rústico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria de Lagos e que consta de terra de semear e árvores, a confrontar do Norte com (…), Sul (…), Nascente com a rocha do mar e Poente estrada da Piedade”, a sua primeira inscrição data de 16 de Outubro de 1918 e respeita à aquisição em favor de (…) por compra a (…) e esposa, D.ª (…).
A aludida aquisição foi formalizada pela escritura pública outorgada no dia 5 de Maio de 1918 (cf. certidão extraída do livro de escrituras n.º 191, fls. 28v. a 30v. do ano de 1918 do notário Artur Baptista Galvão, Cartório Notarial de Lagos constante de fls. 276/281, com transcrição a fls. 322-333), na qual se consignou que (…) e esposa, Dona (…), tendo declarado “que são senhores e legítimos possuidores d’um prédio rustico no sitio da (…), freguesia de Santa Maria desta cidade, que se compõe de terra de semear e arvoredo e confronta do Norte com (…), Sul com o outorgante (…), Nascente com a Rocha do mar e Poente com a Estrada da Piedade, é foreiro em doze centavos, anualmente, à Misericordia de Lagos e não está descripto na conservatória desta comarca (…)” mais disseram “Que podendo livremente dispor do descripto e confrontado prédio ajustaram e contractaram vende-lo, como efectivamente e pela presente escriptura o vendem ao referido outorgante Excelentíssimo (…), pelo preço de trezentos e cincoenta escudos que dele neste acto receberam e de que dão plena quitação. (…) Seguidamente pelo segundo outorgante Excelentíssimo Senhor (…) me foi dito (…) Que aceita para seu dito filho menor (…) e venda, quitação e obrigação que pela presente escriptura lhe são outorgadas (…)”.
Da análise dos referidos documentos conclui-se portanto que os prédios que vieram a ser descritos sob os n.ºs (…) e (…) confinavam entre si pelo lado Sul do primeiro e Norte deste último (sendo que o …, por seu turno, confrontava ainda pelo lado Sul com prédio de …, pai de (…), que adquiriu por compra aqueles outros. Tal prédio pertencente ao pai do então menor, será presumivelmente o descrito sob o n.º (…), a fls. 71 do Livro B-20, inscrito a seu favor em 16 de Outubro de 1918, por o ter comprado por escrito particular datado de 12 de Abril de 1915 a (…), viúvo, proprietário, conforma consta de fls. 254 destes autos).
Aqui chegados, pretende a recorrente que se dê por assente que o prédio n.º (…) teve origem no Foro 61, com o n.º de cobrança 76 e Tombo n.º …, tombo este registado desde 1881, constando do Livro de Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, cujo termo de abertura se encontra datado de 20/09/1868; e que o prédio n.º 7511, por seu turno, teve origem no Foro 63 que em 20/7/1862 constava do mesmo inventário, aí se mencionando como enphyteutas D. (…) e (…) e cuja tombação remonta a 25/11/1773.
Vejamos quanto resulta dos documentos indicados pela recorrente a este propósito:
a) Do livro de inventário dos Bens pertencentes à “Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da Cidade de Lagos, hoje Igreja Matriz e Paroquial de Santa Maria da Cidade de Lagos”, cujo termo de abertura se encontra datado de 20 de Setembro de 1868, consta relacionado, para além do mais, o foro com o n.º 61 (as menções Livro de Cobrança n.º 76; Tombo Novo n.º 76; Tombo Geral a fls. 283), com a seguinte descrição “Um prazo fateusim imposto em uma courela no sítio da (…), freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos, que se compõe hoje de vinha, figueiras e terras de semear, que parte do Norte com (…), Sul com terreno do estado, Nascente com a rocha e Poente com Estrada da Piedade, avaliada em cem mil réis. Foi enfiteuta originário (…) e actualmente (…) da quantia de cento e vinte réis anuais. Tombado em 27 de Maio de 1729 pelo escrivão Manuel da Costa Sampaio, e em laudémio de quarentena. Valor do domínio directo e do laudémio quatro mil oitocentos e quarenta réis (cf. certidão extraída do livro de Inventário dos bens pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, hoje Igreja Matriz e Paroquial de Santa Maria da Cidade de Lagos – termo de abertura e foro n.º 61 junta com a petição inicial como doc. n.º 6).
b) Do fólio n.º 120 do Livro n.º 2 de Foros a Dinheiro da Santa Casa da Misericórdia de Lagos consta registado sob o n.º 76 “Fôro imposto a uma courela de fazenda no sítio da (…) Vencimento pelo Natal, n.º de inventário 61, Tombo Geral a fls. 283”, nele se identificando como enfiteutas a partir do ano de 1881, primeiro (…) e depois (…) (certidão junta como doc. n.º 10, a fls. 282/283 dos autos).
c) Do “Livro de Registo dos foros em dinheiro que se pagam à Misericórdia de Lagos” consta registado sob o n.º 76, as indicações “Lagos Natal, Tombo a fls. 283; Tombado a fls. 102;120 - N.º 76 D. (…)/(…) e a seguinte descrição “Este fôro he fateosim, e importa em huma courella de Figueiras, e vinha na (…) aonde chamão a (…), que parte do Poente com fazenda que foi do capitão (…) e de sua mulher D. (…), do Sul com fazenda de (…), do Nascente com Rocha do Mar da (…), (…), do Norte com fazenda do Alferes (…). Tombação n.º 102 foi confirmado pela Real Junta a 25 de Nov.º de 1773” (certidão de fls. 289-290, com transcrição a fls. 326).

Da análise dos documentos ora referenciados resulta desde logo a ausência de descrição do invocado foro n.º 63, alegadamente correspondente ao prédio que depois viria a ser descrito sob o n.º (…).
Por outro lado, estamos em crer que os documentos acima extractados se reportam, todos eles, e pese embora não se verifique coincidência nas confrontações, que terão sofrido alterações, ao mesmo “foro fateusim” que surge identificado sob o n.º 61 no Livro de Inventário dos bens pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia e veio a ser vendido por (…) e mulher ao então menor (…) – Tombo Geral a fls. 283 e inscrito para cobrança sob o n.º 76, conforme consta dos Livros de Registo dos foros em dinheiro que se pagavam à Misericórdia de Lagos a que se referem as als. b) e c) supra –, vindo a dar origem ao prédio descrito sob o n.º (…).
Deste modo, comprovando os documentos que este prédio foi adquirido pelo (…) por compra feita ao casal (…) e mulher, vindo a ser descrito sob o n.º (…), prédio que, nos termos documentados, fora tombado em 27 de Maio de 1727 em laudémio de quarentena, tombação n.º 102 confirmada pela Real Junta a 25 de Nov.º de 1773, será de aceitar a sua natureza privada tendo como referência aquelas datas sem que, todavia, tal signifique que tenha exacta correspondência com aquele que, tendo englobado o prédio descrito sob o n.º (…), veio a ser vendido no ano de 1953 a (…) (que o veio a vender à …, Club Internacional de Férias, SARL por escritura de 31 de Julho de 1972 que, por seu turno, o vendeu a … por escritura de 17 de Outubro de 1983, cujos herdeiros o vieram a vender à ... Construções, SA por escritura pública outorgada no dia 7 de Janeiro de 2008, transmitente à autora e aqui recorrente).
Quanto ao prédio que veio a ser descrito sob o n.º (…), já nada permite relacioná-lo com qualquer um dos referidos foros. A este respeito não pode deixar de se referir que a autora, na petição inicial – o que resulta desde logo da indicação da data de 1804 como sendo aquela a partir da qual se encontraria documentalmente demonstrada a natureza privada do prédio por si adquirido –, intentou identificar como origem do prédio por si adquirido os foros relacionados no Livro de Inventário dos bens pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia sob os n.ºs 40, 60 e 61, mediante remissão para a pertinente certidão (cf. docs 6 e 7 que acompanharam o articulado), omitindo então qualquer referência a um foro n.º 63, cuja descrição se desconhece, o que só agora em sede de recurso veio fazer (tendo omitido, em contrapartida, qualquer referência aos ditos foros n.ºs 40 e 60, no aparente reconhecimento de que nada têm a ver com o prédio objecto dos autos). Todavia, a verdade é que a respeito daquele prédio (…) – que após a aquisição pelo (…) foi objecto da desanexação de diversas parcelas do lado Nascente, as quais vieram a dar origem aos prédios …, …, …, … e … (cf. doc. de fls. 291 a 300), nada se sabe quanto à sua origem e natureza antes de Abril de 1889, data da celebração da escritura de confissão de dívida e hipoteca que (…) e marido, (…), outorgaram como devedores, nada permitindo relacioná-lo com qualquer um dos foros convocados pela recorrente, e designadamente com o foro n.º 61 que, como vimos, estará antes na origem do prédio que veio a ser descrito na Conservatória sob o n.º (…), pelo que terá de ser julgada improcedente, nesta parte, a pretensão modificativa da recorrente.
Atento o que vem de se expor, concluindo a apreciação da impugnação dirigida à matéria de facto, na sua parcial procedência, devem dar-se como assentes os seguintes factos:
Tendo por referência a data de 2 de Abril de 1889, (…) e marido, (…), constituíram hipoteca sobre o prédio n.º (…), foreiro à Junta da Parochia de Santa Maria de Lagos, a confrontar do Sul[1] com prédio pertencente a (…) que veio a ser descrito sob o n.º (…), para garantia da quantia de 1:400$00, de que se confessaram devedores, tudo conforme consta da escritura pública celebrada em naquele dia 2 de Abril de 1889 no Cartório Notarial de Lagos, sendo notário Fernando António de Freitas Oliveira (doc. de fls. 315 a 320).
O Foro 61 constava do Livro de Inventário dos Bens Pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lagos, cujo termo de abertura se encontra datado de 20/09/1868.
*
II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a considerar (agora logica e cronologicamente ordenada):
1. A autora é uma sociedade que se dedica à compra e venda de imóveis e que antes usava a firma “(…)Irrecusável, Lda.” – fls. 359 (art.º 1.º da petição inicial)
2. Em 15 de Janeiro de 1015, “(…) Irrecusável. Lda.” declarou adquirir a “(…) Construções, S.A.”, que declarou vender pelo preço de € 945.000,00 o prédio misto situado no sítio da (…), freguesia de Lagos (Santa Maria), concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº. (…) da freguesia de Lagos, inscrito na matriz da união das freguesias de Lagos (São Sebastião e Santa Maria) a parte urbana sob o art.º. (…) e a parte rústica sob o art. (…), Secção 1M – fls. 12 (95, 107, 235), 17 e 19 (art.º 2.º da petição inicial).
3. O imóvel identificado em 3. foi transmitido sem qualquer ónus e com a área de 84 280 m2, situando-se sobre arriba alcantilada (art.º 3.º da petição inicial e acordo das partes – cf. art.º 14.º da contestação).
4. Consta do registo como sendo titular a autora, conforme atualização da Ap. (…), de 15 de Janeiro de 2015, pela qual se registou a aquisição a favor da “(…) Irrecusável” – fls. 25 (223).
5. O prédio misto situado no sítio da (…), freguesia de Lagos (Santa Maria), concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o nº. (…), apresenta no registo as seguintes composição e confrontações: cultura arvense, mato, construção rural e um edifício de 1 piso com 7 compartimentos para escritório, arrecadação, oficinas e garagem e anexo para arrecadação; confronta de Norte com estrada para a praia (…); de Sul com caminho do miradouro da praia do (…); de Nascente com Rocha do Mar; e de Poente com estrada do farol da Ponta da Piedade; foi anexado o prédio n.º (…), livro B-6 e desanexados os prédios n.ºs (…), livro B-33; (…), livro B-33; (…), livro B-35; (…), livro B-35; (…), livro B-36; (…), livro B-39; (…), livro B-41; e (…), livro B-41 – fls. 25 e 121. Foi entretanto averbada a descrição de fls. 97.
6. O prédio descrito sob o n.º (…) provém do descrito em livro sob o n.º (…), Livro B-20, com a seguinte descrição e confrontações: “prédio misto no sítio da (…), freguesia de Santa Maria de Lagos, consta de terra de semear e árvores, confronta do Norte com (…), (…), Nascente com rocha do mar e Poente com estrada da Piedade” – fls. 25 e 253.
7. O referido prédio descrito sob o n.º (…) foi inscrito em favor de (…) em 16 de Outubro de 1918, por compra feita a (…) e esposa, D.ª (…), formalizada por escritura pública outorgada no dia 5 de Maio de 1918 no Cartório Notarial de Lagos do notário Artur Baptista Galvão (fls. 254 e 276 a 281, com transcrição a fls. 322-323).
8. O prédio n.º (…) foi descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos – descrição extraída do documento apresentado sob o n.º 1 do Diário de 25 de Junho de 1889 – com a seguinte composição e confrontações: “prédio rústico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria de Lagos. É foreiro em 1200$. Consta de uma terra de semear, arvoredo e monte e confronta do Norte com D. (…) e (…), Sul com (…), Nascente com mar e Poente estrada da Piedade. Valor anual d’este prédio setecentos mil réis” (fls. 291).
9. Sobre o referido prédio n.º (…) foi inscrita hipoteca constituída por escritura outorgada no dia 2 de Abril de 1889, na qual (…) e sua esposa, dona (…), arrogando-se donos do mesmo, declararam ser devedores ao segundo outorgante, (…), da quantia de um conto e quatrocentos mil réis, proveniente de empréstimo que este lhe fez, e para garantia desse empréstimo (fls. 299-300 e 315-320).
10. Sobre o mesmo prédio veio a ser inscrita em 29 de Agosto de 1916 a transmissão a favor de (…), casado, por compra que fez a D. (…), viúva, e a (…) e esposa, negócio titulado por escritura pública celebrada em 23 de Agosto de 1916 no Cartório Notarial de Lagos do notário Artur Baptista Galvão (fls. 298 e 308 a 313, com transcrição a fls. 327-328).
11. Sobre o identificado prédio descrito sob o n.º (…) foi inscrita em 12 de Setembro de 1919 a transmissão a favor de (…), por compra feita a (…) e mulher, (…), titulado por escritura pública outorgada no dia 17 de Junho de 1919 no Cartório Notarial de Lagos do notário Artur Baptista Galvão (fls. 297 e 301 a 307).
12. Do referido prédio foram desanexadas as parcelas que deram origem aos prédios autónomos descritos sob os nºs (…), (…), (…), (…) e já em 1965 o prédio descrito sob o nº (…) (fls. 291).
13. Mediante escritura pública lavrada no dia 14 de Fevereiro de 1953 no cartório notarial de Lagos, (…), na qualidade de bastante procurador de Dona (…), viúva, e de (…) e sua esposa, Dona (…), disse “Que os seus ditos constituintes são donos de um prédio rústico no sítio da (…), freguesia de Santa Maria de Lagos, alodial, que consta de terra de semear com árvores e montes e confronta do Norte com herdeiros de (…) e com Doutor (…), Sul com herdeiros de (…) e herdeiros de (…), Nascente com a rocha e Poente com a Estrada da Piedade: este prédio está inscrito na respectiva matriz predial sob mil cento e sessenta mil quatrocentos avos dos artigos dez, onze e doze e sob o total do artigo numero treze e está descrito na conservatória do Registo Predial d’esta comarca sob os números (…) a folhas onze verso do livro B seis, e (…), a folhas oitenta e uma verso do Livro B vinte. Que usando dos poderes que lhe foram conferidos pelos seus referidos constituintes vende ao segundo outorgante (…) o prédio antes descrito e confrontado pelo preço ajustado de trinta e cinco mil escudos que do comprador já recebeu e de que deu a respectiva quitação (…)”, tudo conforme consta da certidão de fls. 265 a 270, com transcrição a fls. 333-334, cujo teor se dá quanto ao mais, por reproduzido.
13. O adquirente requereu a inscrição a seu favor do prédio identificado como um único, o que foi averbado às descrições … e … (cf. docs. fls. 263-264, 253 e 291).
14. A transmissão a favor do adquirente (…) foi registada como referente ao prédio n.º (…), fls. 71 v, livro B-20 (que engloba o inscrito sob o n.º …, a fls. 11 v., livro […]) – fls. 123.
15. Pela ap. (…) do dia 7 de Agosto de 1972 foi inscrito a favor de (…), Club Internacional de Férias SARL o direito de propriedade sobre o prédio descrito sob o n.º (…), por tê-lo adquirido a (…) e mulher em negócio titulado por escritura de 31 de Julho de 1972 (cf. fls. 256).
16. Pela ap. (…) de 15 de Fevereiro de 1984 foi inscrita a aquisição por (…) por compra a (…), SARL, negócio titulado por escritura outorgada em 17 de Outubro de 1983 no 14.º Cartório Notarial de Lisboa (doc. fls. 260).
17. No dia 7 de Janeiro de 2008, (…) e outros, na qualidade de herdeiros de (…), declararam vender a “(…) Construções, SA”, que declarou comprar, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o n.º (…), do livro B-20, descrevendo-o como prédio misto composto, a parte urbana por edifício de um só piso, destinado a escritório, arrecadação, oficina, garagem e anexo e sanitário, e a parte rústica por terra de semeadura e cultura arvense, localizado no sítio da (…) inscrito na matriz do Serviço de Finanças de Lagos, a parte urbana sob o n.º (…) a parte rústica sob o n.º (…), secção M – fls. 114 (241).
18. Com data de 1/4/2015 a Agência Portuguesa do Ambiente enviou à autora a carta junta como doc. n.º 5, subordinada ao tema “notificação para retirar vedação não licenciada, construção sobre estacas, em terreno de domínio público marítimo, na praia de (…) e na praia de (…), em Lagos”, por cujos termos, para além do mais que ali consta, foi a autora notificada na pessoa do seu legal representante “da intenção de ordenar a retirada da vedação nas extremidades do prédio, lado da praia de (…) e praia do (…), parte que ocupa o terreno que corresponde a margem das águas do mar, área dentro do domínio público marítimo, conforme al. gg) do art.º 4.º da Lei da Água (Lei n.º 58/2055, de 29/12) e art.º 11.º da Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos”, aqui se dando por reproduzido quanto ao mais o seu teor (art. 7.º da petição inicial)[2].
19. Do livro de inventário dos Bens pertencentes à “Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da Cidade de Lagos, hoje Igreja Matriz e Paroquial de Santa Maria da Cidade de Lagos”, cujo termo de abertura se encontra datado de 20 de Setembro de 1868, constam relacionados os seguintes foros:
Foro n.º 40
Livro de Cobrança n.º 46
Tombo Novo n.º 46
Tombo Geral a fls. 86
Um prazo fateusim imposto em uma fazenda no sítio da (…), freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos, que se compõe de figueiras, terras de semear e mais árvores, que parte do Norte com (…), Sul com terras do estado, Nascente com Rocha e do Poente com Estrada da Piedade, avaliada em setecentos mil réis. É actualmente enfiteuta (…) da quantia de nove mil réis anuais.
Foi deixado este Foro à Santa Casa em testamento com que faleceu o Capitão (…), que consta da Tombação de 20 de Novembro de 1804 pelo Escrivão Manuel da Costa Sampaio, com laudémio de quarentena. Valor do domínio directo e laudémio cento e noventa e três mil réis.
NB: Ignora-se quem foi o enfiteuta originário”.
Foro n.º 61
Livro de Cobrança n.º 76
Tombo Novo n.º 76
Tombo Geral a fls. 283
Um prazo fateusim imposto em uma courela no sítio da (…), freguesia de Santa Maria, concelho de Lagos, que se compõe hoje de vinha, figueiras e terras de semear, que parte do Norte com (…), Sul com terreno do estado, Nascente com a rocha e Poente com Estrada da Piedade, avaliada em cem mil réis. Foi enfiteuta originário (…) e actualmente (…) da quantia de cento e vinte réis anuais. Tombado em 27 de Maio de 1729 pelo escrivão Manuel da Costa Sampaio, e em laudémio de quarentena. Valor do domínio directo e do laudémio quatro mil oitocentos e quarenta réis (cf. certidões extraídas do livro de Inventário dos bens pertencentes à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, hoje Igreja Matriz e Paroquial de Santa Maria da Cidade de Lagos – termo de abertura e foros n.ºs 40, 60 e 61 juntas com a petição inicial como docs. n.ºs 6 e 7).
20. Do fólio n.º 120 do Livro n.º 2 de Foros a Dinheiro da Santa Casa da Misericórdia de Lagos consta registado sob o n.º 76 “Fôro imposto a uma courela de fazenda no sítio da (…) Vencimento pelo Natal, n.º de inventário 61, Tombo Geral a fls. 283, Cópia do livro 2, fls. 69”, nele se identificando como enfiteutas a partir do ano de 1881, primeiro (…) e depois (…) (certidão junta como doc. n.º 10, a fls. 282/283 dos autos).
21. Do “Livro de Registo dos foros em dinheiro que se pagam à Misericórdia de Lagos”, cujo termo de abertura se encontra datado de 1862, consta registado sob o n.º 76 o seguinte foro:
“Lagos Natal Tombo a fls. 283;
Tombado a fls. 102
120
N.º 76 (…)
Este fôro he fateosim, e importa em huma courella de (…), e vinha na (…) aonde chamão a Cruz da (…), que parte do Poente com fazenda que foi do capitão (…) e de sua mulher D. (…), do Sul com fazenda de (…), do Nascente com Rocha do Mar (…), (…), do Norte com fazenda do Alferes (…). Tombação n.º 102 foi confirmado pela Real Junta a 25 de Nov.º de 1773 (certidão de fls. 289-290, com transcrição a fls. 326).
22. Na noite de 2 para 3 de Outubro de 1884 ocorreu um incêndio na Conservatória de Lagos que destruiu todos os livros e papéis – fls. 212 (344).
*
De Direito
Do reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre a faixa de “margem do mar”
Com a presente acção pretende a autora ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o n.º (…), com a composição e confrontações que indicou, incluindo portanto a faixa a Nascente na sua confrontação com rocha do mar. Tendo visto negada tal pretensão pela 1.ª instância por inêxito probatório insiste agora, nesta via de recurso, ter feito a exigida prova documental dessa titularidade.
A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, não se limita a regular os recursos aquíferos, mas ainda, e para o que aqui releva, as parcelas de terreno que com os mesmos se encontram relacionadas, designadamente as margens que, no caso das águas do mar, tem a largura de 50 m (cf. art.º 11.º, n.º 2, interessando ainda o n.º 6 que rege para o caso da linha limite do leito atingir arribas alcantiladas).
A regra, em matéria de recursos hídricos, é a de que pertencem ao domínio público, proclamando o art.º 4.º do diploma a que nos vimos reportando que o domínio público marítimo pertence ao Estado. O art.º 12, na sua parte final, estabelece ainda a presunção de dominialidade dos leitos e margens das águas públicas, presunção “iuris tantum”, cabendo portanto ao interessado a prova da sua natureza privada, decorrente nomeadamente, e para o que ora importa, de direitos adquiridos anteriormente.
Epigrafado de “reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos”, dispõe o art.º 15.º da citada lei, no seu n.º 2: “Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868”[3].
Compreende-se a escolha dos aludidos marcos temporais, uma vez que foi a partir do Decreto de 31 de Dezembro de 1864 que os leitos e margens se tornaram públicos, ao passo que as arribas alcantiladas passaram a integrar o domínio público com a entrada em vigor do CC 1867. Deste modo, ou tais parcelas de leitos e margens já eram antes propriedade privada ou, ressalvados os casos de desafectação, não poderiam ser apropriadas por particulares após o legislador ter estabelecido a sua dominialidade.
No caso em apreço, como se referiu, a autora invocou como causa de pedir precisamente a natureza privada do prédio adquirido, incluindo a faixa que constitui margem do mar, desde 1804. Assim tendo elegido como causa de pedir a prevista no n.º 2 do convocado art.º 15.º, sobre a apelante recaía o encargo de trazer aos autos prova documental bastante da existência de título legítimo de aquisição desde aquela data ou, pelo menos, estando em causa arribas alcantiladas conforme as partes acordaram (cf. ponto 3. dos factos agora assentes), desde data anterior a 22 de Março de 1868, marco relevante para este efeito.
A título prévio importa precisar que constituirão justo título ou título legítimo de aquisição, entre outros, todos os expressamente previstos no art.º 1316.º do CC (contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e acessão)[4], cabendo portanto ao autor demonstrar a originária aquisição privada do bem por algum dos modos legítimos de adquirir. A tal encargo probatório acresce ainda o de demonstrar que essa mesma natureza se manteve até à actualidade, competindo finalmente ao interessado fazer prova de que é o proprietário actual, podendo prevalecer-se para este último efeito da presunção registral. Em síntese: “Compete, portanto, ao autor demonstrar e provar a originária propriedade privada do bem e a posterior manutenção do bem nessa condição. Assim sendo, a presunção de dominialidade terá que ser afastada relativamente a toda a “história” do bem, pois não há garantia de que o bem não tenha ingressado, depois daquelas datas, e por um qualquer motivo admissível, no domínio público. Ora, como o ónus da prova recai, de forma absoluta, sobre o autor, este terá que demonstrar que o bem foi e continua a ser propriedade privada”[5].
De volta ao caso dos autos, e vista a cadeia de transmissões que os factos provados permitem identificar, parece inequívoco que a partir de 1953 o prédio identificado em 1., então descrito sob o n.º (…) do Livro B-20, surge a formar um único com o antes descrito sob o art.º (…), assim tendo sido adquirido pela autora no ano de 2015. E se é facto que este último sofreu em 1965 desanexação de uma parcela que veio a constituir o prédio autónomo descrito sob o n.º (…) – o que se afigura algo estranho, dado o averbamento à descrição efectuado no ano de 1953 de que formava um único prédio com o descrito sob o n.º (…) –, o qual sofreu igualmente diversas desanexações, parcelas cuja área e localização são desconhecidas dos autos, impõe-se reconhecer, conforme a M.ª juíza fez igualmente notar, que se manteve a sua confrontação nascente com Rocha do Mar, ainda que se desconheça se com a extensão inicial.
O identificado prédio, como se fosse um só, foi adquirido naquele ano de 1953 por (…), por compra, o que corresponde sem dúvida a um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade. Todavia, analisada a escritura que formalizou o contrato celebrado, referenciada no ponto 13. da matéria de facto assente, e pese embora nela se mencionem como prédios objecto da venda apenas os descritos sob os n.ºs (…) e (…), ambos inscritos a favor de (…), verifica-se que nela interveio igualmente como vendedora (…), viúva, sendo certo que nenhum documento comprova a sua qualidade de (con)titular do direito sobre qualquer um dos aludidos prédios, desconhecendo-se ainda qual o parentesco com o também vendedor … (apesar da identidade de apelidos, conforme se vê da procuração que instruiu a mesma escritura, não partilham o progenitor, tratando-se presumivelmente da sua mãe).
Por outro lado, analisada a procuração mediante a qual os identificados vendedores constituíram seu bastante procurador (…), que veio a outorgar a escritura de compra e venda em representação daqueles, verifica-se terem-lhe sido conferidos os poderes necessários para vender “um núcleo de propriedades denominado “A (…)”, também conhecida por “(…)”, composto de três parcelas, situada em Lagos, a Poente da estrada da Piedade e entre esta estrada e o mar” (cf. documento de fls. 271 a 274, sendo nosso o destaque). Ora, não se tendo identificado na aludida procuração a que prédios correspondiam as mencionadas “três parcelas”, e sendo certo que na escritura apenas se identificaram os prédios descritos sob os n.ºs (…) e (…), a verdade é que a Sul deste último existia um outro, descrito sob o n.º (…), cujo titular inscrito era precisamente (…), pai do (…) (cf. inscrição com o n.º …, de 16 de Outubro de 1918, da qual consta ter ficado “inscrita a favor de … a transmissão do prédio agora descrito com o n.º … a fls. 71 do Livro B-20, por haver comprado pela quantia de quatro escudos a …, viúvo, por escrito particular datado de 12 de Abril de 1915” – cf. doc. de fls. 254) e que, a ter sido incluído na venda feita ao (…), justificaria a intervenção como vendedora da sua viúva (a ser essa a qualidade da referida …), enquanto meeira. De todo o modo, a verdade é que, podendo ser esta a justificação da intervenção da aludida (…), tal não resulta dos termos do negócio celebrado e titulado pela mencionada escritura pública, donde ficar por esclarecer a razão de tal intervenção quando se considere que o objecto da venda eram os prédios identificados, os quais se encontravam inscritos apenas em favor do vendedor (…).
Não obstante as dúvidas suscitadas pela referida intervenção, e desprezando por ora as diversas e sucessivas desanexações de que os mesmos prédios foram objecto (isto embora se desconheça em que medida afectaram a área e confrontações dos mesmos), resulta dos factos assentes que o prédio (…) havia sido adquirido em 1918 pelo vendedor (…) por compra feita a (…) e esposa, (…). Tratava-se contudo, conforme da mesma escritura consta, de um prédio foreiro à Santa Casa da Misericórdia de Lagos, ou seja, submetido a enfiteuse ou aforamento, pelo que o domínio directo se teria mantido na senhoria, ressalvado o caso de remição do foro, que não se sabe se ocorreu ou não.
Seja como for, vista a factualidade assente nos autos, afigura-se dever ser reconhecido que o dito prédio, o qual veio a ser descrito nesse mesmo ano de 1918 sob o n.º (…) do Livro B-20 (encontrava-se omisso aquando da realização da escritura, sendo a primeira inscrição precisamente a transmissão a favor do então menor …) corresponde ao relacionado sob o n.º 61 no livro de inventário dos bens pertencentes à “Irmandade da Santa Casa da Misericórdia da Cidade de Lagos, hoje Igreja Matriz e Paroquial de Santa Maria da Cidade de Lagos”, tombado em 27 de Maio de 1729. Do referido prédio foi enfiteuta originário (…), depois (…), sabendo-se que em 1881 eram enfiteutas (…) e D. (…), tendo-lhe sucedido nessa qualidade o referido (…) (cf. pontos 19., 20. e 21). Desconhece-se contudo – a autora não o alegou e os documentos não esclarecem – qual o título aquisitivo deste prédio por banda dos vendedores (…) e esposa, Dona (…). Com efeito, perfilando-se a sucessão como título possível, atenta a parcial identidade dos apelidos dos anteriores enfiteutas e dos vendedores, a verdade é que tal não foi alegado nem resulta, repete-se, evidenciado por qualquer um dos documentos que a recorrente fez juntar aos autos.
Mas se a autora não logrou provar uma cadeia ininterrupta de detentores de justo título desde data anterior a 1868 até ao presente em relação ao prédio inscrito sob o artigo (…), tal falência probatória é mais evidente quando se considere o descrito sob o n.º (…), em relação ao qual apenas se sabe que, tendo por referência a data da escritura a que se refere o ponto 9 –Abril de 1889 –, (…) e mulher, (…), sobre ele constituíram hipoteca, vindo o mesmo a ser vendido em 1916 a (…), que depois o vendeu ao menor (…), tratando-se igualmente de prédio foreiro “em um escudo e vinte centavos anuais à comissão concelhia de Lagos”. E nada mais se sabe, nomeadamente quando se constituíram aqueles (…) e esposa enfiteutas do referido prédio e ainda quando e por que justo título foi adquirido pela senhoria.
Em suma, e confirmando-se o juízo formulado na sentença recorrida, não logrou a autora fazer prova de que o prédio por si adquirido, incluindo a faixa que a nascente confina com a rocha do mar, foi adquirido e pertencia a privados em data anterior a 1868 por justo título, nem logrou fazer o reatamento do trato sucessivo desde então através de uma ininterrupta cadeia de transmissões, conforme exige o n.º 2 do art.º 15.º da Lei 54/2005 (cf. ainda o n.º 1 do art.º 342.º do CC), assim prevalecendo a presunção de dominialidade da mesma faixa (cf. art.º 12.º, n.º 1, al. a), in fine).
Argumenta ainda a autora inovadoramente nesta fase de recurso que em virtude de incêndio ocorrido na Conservatória de Lagos em 1884 beneficia da presunção de titularidade privada consagrada no n.º 3 do art.º 15.º da já referida Lei nº. 54/2005, preceito que entende assim ter sido violado pela decisão recorrida.
Antes de mais dir-se-á que estamos perante uma questão nova, não suscitada perante a primeira instância, que por isso sobre ela não se pronunciou, sendo certo que, conforme é sabido, os recursos ordinários visam a reponderação da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu, não sendo o meio de obter decisão sobre questões novas, afora as de conhecimento oficioso.
Por outro lado, não estamos no âmbito da indagação, interpretação e aplicação de normas jurídicas, domínio em que o juiz se move com total liberdade (cf. n.º 3 do art.º 5.º do CPC), antes pretendendo a recorrente que o tribunal aprecie uma nova e diferente causa de pedir.
Cumpre ainda esclarecer que a alegação da recorrente padece, em nosso entender, de ostensivo lapso ao invocar o n.º 3 do preceito, querendo seguramente referir-se ao n.º 4, uma vez que alude ao incêndio ocorrido na Conservatória do Registo Predial de Lagos e a tais ocorrências se reporta este último normativo.
É o seguinte o teor do referido n.º 4 do art.º 15.º: “Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas”.
Ciente das dificuldades probatórias que as exigências formuladas pelo n.º 2 do art.º 15.º previsivelmente suscitariam, e visando atenuar essas mesmas dificuldades, o legislador veio consagrar nos n.ºs 3, 4 e 5 do preceito causas de pedir alternativas, servidas por um regime probatório mais flexível, permitindo, nos termos do transcrito n.º 4, que o interessado se limite a invocar -e provar-, a par do evento causador da perda ou ilegibilidade dos documentos, que em data anterior a 1 de Dezembro de 1892 (data da publicação do Decreto n.º 8, que organizou os serviços hidráulicos[6]) aqueles terrenos eram objecto de propriedade ou posse privadas. Trata-se, no entanto, de uma outra e diferente causa de pedir, impondo-se ao autor a alegação dos factos constitutivos da mesma, podendo agora fazer prova da factualidade alegada por qualquer meio (com excepção da confissão, dado estarmos no domínio dos direitos indisponíveis).
No caso em apreço, conforme se deixou já referido, a autora, exercitando plenamente o princípio do dispositivo (de que é corolário o princípio da auto responsabilização das partes), alegou como causa de pedir a propriedade privada do prédio desde data anterior a 1868 e até a 1864, juntando documentos que, em seu entender, faziam a demonstração de que assim ocorria sem interrupção desde 1804. Tal prova, contudo, e conforme se crê ter demonstrado, não logrou a autora fazê-la.
É certo que na contestação que apresentou foi o próprio MP quem reconheceu ter ocorrido o aludido incêndio (cf. art.º 14.º da contestação), mas se a autora queria prevalecer-se do facto, alterando a causa de pedir ou invocando uma nova causa de pedir, teria que o fazer nos termos e prazo assinados nos artigos 264.º e 265.º do CPC, de modo a ser cumprido o contraditório. Não o fez, não podendo portanto concluir-se pela existência de qualquer acordo quanto a eventual consideração desta nova causa de pedir, o que impede este Tribunal de se pronunciar sobre aquela que é assim uma questão inteiramente nova.
Dir-se-á, finalmente, que ainda a entender-se diversamente temos sérias dúvidas quanto à possibilidade de a autora se poder prevalecer de tal causa de pedir. Com efeito, ela poderá ser mobilizada apenas e só no caso de o interessado não dispor, ou não dispor nas devidas condições, dos documentos, neste caso anteriores a 1868, por alguma das causas ali previstas. No caso em apreço, e pese embora os termos algo equívocos da certidão junta a fls. 344, dela parece resultar que houve lugar à reforma das descrições dos prédios sitos na dita freguesia de Santa Maria do concelho de Lagos perdidos no incêndio, pelo que a inexistência de registos anteriores se deverá ao facto dos prédios se encontrarem omissos, e não propriamente à perda dos livros.
Em suma, improcede igualmente este argumento recursivo, não tendo a sentença recorrida violado o disposto no n.º 4 do art.º 15.º da Lei 54/2005, por não ter aqui aplicação, dada a diferente causa de pedir invocada pela recorrente.
*
Da violação dos direitos tutelados pelos artigos 20.º e 62.º da CRP
Finalmente, imputa a apelante à sentença recorrida violação dos artigos 20.º e 64.º da CRP (tratar-se-á, também aqui, de manifesto lapso da recorrente, querendo reportar-se, crê-se, ao art.º 62.º, uma vez que o art.º 64.º consagra o direito à saúde, que não se vislumbra esteja aqui em causa), visando portanto os direitos constitucionalmente consagrados ao direito e tutela jurisdicional efectiva e à propriedade privada.
A questão assim suscitada, nesta dupla vertente, não é nova, tendo sido já objecto de apreciação por banda do TC, que sobre ela se pronunciou desenvolvidamente no acórdão
n.º 326/2015 (DR n.º 146/2015, Série II, de 29/7/2015).
Começando pela imputada violação ao direito à propriedade privada, queixa-se a recorrente que a aquisição do prédio foi escrutinada por diversos organismos do estado, que cobraram taxas e emolumentos sobre a área total da propriedade sem fazerem referência a qualquer limitação ou que a área seria inferior por efeito de um “confisco estatal”.
A este respeito cumpre fazer notar que a lei, ao estabelecer a titularidade dos recursos hídricos, não deixou, por razões de justiça, de reconhecer a propriedade privada das margens do domínio público hídrico, designadamente das águas do mar, fazendo naturalmente recair sobre o privado que se arroga a titularidade do direito o ónus da prova respectiva (saber se as exigências probatórias assumem um tal grau de dificuldade que, na prática, equivalem a denegar o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, é já questão diversa e que será apreciada de seguida).
A autora elegeu a causa de pedir que entendeu, ciente do ónus probatório que a mesma acarretava, sendo certo que o não reconhecimento do direito que se arrogava radica apenas e só no inêxito probatório. Não se trata portanto de não reconhecer o direito de propriedade da autora, mas antes desta não ter feito prova da titularidade desse direito, não se vislumbrando, pois, que a decisão proferida e, nessa justa medida agora confirmada, seja violadora do assinalado preceito constitucional. Se a autora pagou impostos tendo por referência uma área que não comprou porque não pertencia ao vendedor -o que, em todo o caso, não ficou demonstrado na acção, desconhecendo-se se a área constante da descrição compreende a faixa correspondente à margem do mar- é uma questão diversa, que não contende com o princípio constitucional invocado e que aqui não cumpre apreciar.
No que se reporta à também invocada violação do direito a uma tutela jurisdicional efectiva -que a recorrente, em bom rigor, não especifica- conforme se fez notar no antes citado acórdão do TC “Dispondo o legislador ordinário de ampla margem de conformação na acomodação dos interesses que avultam no processo, os eventuais ónus, cominações e preclusões só merecerão censura constitucional se forem insuscetíveis de credenciar-se racionalmente, nos termos de um juízo negativo de controlo (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 337/2000, 428/2003, 215/2007, 451/2008 e 556/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
E debruçando-se especificamente sobre “a exigência de prova reportada a momento anterior a 1864 [ou, como é aqui o caso, a 1866], quando acoplada a uma presunção ilidível de dominialidade” ponderou quanto segue:
“Dois pontos que afiguram decisivos para o juízo deste Tribunal.
O primeiro respeita à explicação da relevância da data de 31 de dezembro de 1864 para efeitos da prova da propriedade privada. É que foi nesta data, como se disse já, que as margens de águas públicas foram objeto de declaração de dominialidade, através do decreto régio então publicado. Nada houve de arbitrário na escolha de tal data, que sendo aquela em que as margens de águas públicas passaram a estar excluídas do comércio jurídico privado, apresenta uma evidente credenciação racional – era mesmo a única data que faria sentido considerar para o efeito.
O segundo recorda a já mencionada jurisprudência constitucional em matéria de distribuição do ónus da prova (cf. o Acórdão n.º 596/09): ela exige que tal ónus seja alocado à parte que se encontra em melhores condições para antecipadamente poder lançar mão dos meios ou instrumentos materiais aptos à prova dos factos. Ora, não é contestável que o particular é, à partida, quem preenche melhor – ou, pelo menos, menos mal – esta exigência.
Não se esconde que duas circunstâncias podem causar embaraço a estes pontos, que reputámos decisivos.
A primeira lembra que os diplomas anteriores a 1971 não continham, apesar dos argumentos doutrinais, uma presunção de dominialidade semelhante à que constava do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 468/71 e à que atualmente consta do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, nem qualquer ónus de intentar uma ação de reconhecimento da propriedade privada sobre os terrenos marginais.
A segunda sublinha criticamente o facto de, impendendo, desde 1892, sobre a administração pública, o dever de pôr em marcha a classificação e demarcação das bacias hidrográficas, contendo uma série de informações relevantes para a atual ação de reconhecimento, tais como a navegabilidade ou flutuabilidade das águas e dos troços, ou a largura das margens confinantes – e que permitiriam ter atempadamente "dissipado" eventuais "dúvidas" sobre a situação jurídica dos bens em causa –, tal dever jamais haver sido cumprido.
Estes "embaraços" não se afiguram, porém, suficientes para pôr em causa a credenciação racional que já sublinhámos.
Reconhecendo-se embora a existência de instrumentos jurídicos que permitiriam acautelar, pelo menos em parte, os interesses públicos que o regime jurídico vigente visa salvaguardar – nomeadamente, as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública –, não se duvida que a dominialidade pública é o que melhor garante aqueles”.
E acabou por concluir “Ainda que algumas dúvidas possam substituir, elas não se afiguram suficientes para pôr em causa a conformidade constitucional da norma do artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da Lei n.º 54/2005, na redação conferida pela Lei n.º 78/2013, quando interpretada no sentido da obrigatoriedade da prova a efetuar pelos autores se reportar a data anterior a 31 de dezembro de 1864, quando confrontada com o direito de acesso ao direito e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição”.
Ora, sendo este o entendimento expresso pelo TC, argumentos de que não vemos razões para dissentir, não ocorreu no caso vertente violação de qualquer um dos invocados princípios constitucionais, tendo-se o tribunal limitado a aplicar a lei e designadamente quanto resulta do disposto no art.º 342.º do CC.
Por outro lado, reconhecendo-se, conforme se referiu já, as dificuldades probatórias associadas à causa de pedir prevista no n.º 2 do art.º 15.º citado, a verdade é que a lei prevê outras causas de pedir, com atenuação das exigências probatórias e maior flexibilidade quanto aos meios de prova admissíveis, donde não poder afirmar-se que estamos perante uma solução legal que, na prática, conduz ao não reconhecimento do direito.
Improcede, pelo exposto, este derradeiro fundamento recursivo, impondo-se a confirmação da sentença apelada.
*
III Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença apelada.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 08 de Fevereiro de 2018
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Maria da Conceição Ferreira
__________________________________________________
[1] E não Norte, como certamente por lapso indica a recorrente; daí que após a compra a (…) e mulher que fez o menor (…), pelo av. 2 à descrição do prédio (…) tenha ficado a constar que confrontava do Sul com (…) – cf. fls. 291.
[2] Dada a sua irrelevância para a decisão, eliminou-se o anterior ponto 7. da sentença, com o seguinte conteúdo “7. A autora desenvolveu esforços com vista a obter provas documentais que atestassem a titularidade privada deste imóvel (art. 10.º da petição inicial).
[3] A razão de ser das referidas datas, conforme se explica em “Acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos”, José Miguel Júdice e José Miguel Figueiredo, 2015, 2.ª edição, a fls. 27 “prende-se com o facto de os leitos e as margens que constituem o âmbito da acção se terem tornado do domínio público em 31 de Dezembro de 1864 [data da publicação do decreto que estabeleceu a dominialidade pública dos leitos e margens], enquanto as arribas alcantiladas, passíveis de subsunção no conceito actual de margem, apenas terem integrado o domínio público em 22 de Março de 1868” [data da entrada em vigor do Código Civil de 1867]. No mesmo sentido Manuel do Carmo Bargado, “O reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos do domínio público hídrico”, julgar on-line, pág. 11.
[4] Sendo ainda de admitir outros títulos aquisitivos, designadamente, e no que respeita às águas originariamente públicas que tenham entrado no domínio privado até 21 de Março de 1868 por preocupação, doação régia ou concessão, trata-se ainda aqui de justo título por força do que dispõe o art.º 1386.º do CC – Cf. Manuel do Carmo Bargado, cit., pág. 21, e “Acção de reconhecimento…”, pág. 96.
[5] “Acção de Reconhecimento da propriedade Privada sobre Recursos Hídricos”, pág. 97.
[6] Conforme se dá nota na ob. citada “Acção de Reconhecimento…”, a págs. 102, interessando ainda a nota 166 na mesma página.