Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
727/18.0T8CSC.E1
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: PILOTO DA BARRA
QUEDA AO MAR
ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA NO TRABALHO
CULPA GRAVE
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Nos termos do art. 18.º, n.º 1, da LAT, estamos perante responsabilidade agravada da entidade empregadora num acidente de trabalho, por falta de observação, por esta, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, quando a entidade empregadora possui um dever de observância de determinadas normas ou regras de segurança, dever esse que incumpre, existindo um nexo de causalidade entre esse incumprimento e o acidente de trabalho.
II – Encontrando-se os meios de resgate de pessoa caída à agua na popa da embarcação, local onde não se provou a existência de guias de linha de vida, na operação de resgate os elementos da tripulação estavam sem linhas de vida colocada, pelo que apenas possuíam uma das mãos para resgatar o náufrago, uma vez que com a outra tinham de se agarrar à embarcação.
III – Desconhecendo a tripulação da lancha que o casaco com colete insuflado incorporado, que o sinistrado tinha envergado, possuía uma alça de recuperação na lateral, quando utilizaram o mosquetão do turco, com o intuito de o encaixarem na roupa do sinistrado, procuraram na frente desse casaco e não na sua lateral.
IV – Desconhecendo o sinistrado que o seu casaco tinha uma alça de recuperação na lateral não pôde auxiliar os tripulantes da lancha, enquanto se manteve consciente, na operação de engatar o mosquetão do turco à sua alça.
V – A circunstância de a roupa fornecida ao sinistrado pela entidade empregadora não ser impermeável contribuiu para a pouca resistência daquele ao frio da água do mar, num dia de inverno, à noite e com muito mau tempo.
VI – O facto de cerca de 2 metros do cabo da talha do turco não ser utilizável, por estar ressequido e não ter sido atempadamente substituído, tornou o alcance desse cabo menor, dificultando, igualmente, as operações de resgate.
VII – Se a entidade empregadora tivesse dado formação ao sinistrado sobre situações de emergência de “Homem ao mar” e formação ou informação sobre técnicas de sobrevivência em água fria, este encontrar-se-ia mais bem preparado para resistir à situação de queda ao mar e ao próprio frio da água, determinando, tal circunstância, um período maior de consciência e necessariamente um período maior de participação ativa na sua operação de resgate.
VIII – Se a entidade empregadora tivesse determinado a realização de exercícios de segurança no porto de Lisboa, em ambiente real, para os tripulantes das lanchas e para os próprios pilotos, não só se teria verificado a inadequação de alguns dos meios de resgate utilizados nas lanchas da Ré, podendo, atempadamente tais meios terem sido substituídos ou alterados de molde a ficarem adequados, como se poderia ter concluído pela necessidade de novos meios de resgate mais modernos e seguros.
IX – Se a entidade empregadora tivesse determinado a realização desse tipo de exercícios, os tripulantes das lanchas teriam tido conhecimento do local da alça de recuperação nos casacos dos pilotos.
X – Se a entidade empregadora tivesse procedido ao teste, pelos seus pilotos, em cenário real, do equipamento de proteção envergado por estes, o sinistrado, sabendo do local no seu casaco onde se encontrava a alça de recuperação, enquanto se encontrou consciente, poderia ter auxiliado no engate do mosquetão do turco.
XI – Todos estes fatores, que resultaram da violação legal pela entidade empregadora relativa à informação, formação e segurança dos equipamentos pessoais e de salvamento utilizados, revelaram-se como causa adequada para a morte do sinistrado, tendo efetivamente contribuído decisivamente para este desfecho.
XII – Acresce que se a entidade empregadora tivesse agido como devia, tendo destacado o risco de queda na atividade profissional dos pilotos da barra, deveria ter aprovado regulamentação que restringisse a operacionalidade no respetivo porto, designadamente em situações de más condições de tempo e mar, como ocorreu na madrugada do dia 28-02-2018, protegendo, desse modo, a segurança dos seus pilotos, o que manifestamente não fez, sendo tal regulamentação, a existir, causa adequada a evitar o presente acidente.
XIII – A morte inesperada do sinistrado em virtude de diversas violações dos deveres de formação, informação e segurança a que a entidade empregadora se encontrava obrigada, reflete um grau de culpabilidade intenso por parte desta, grau esse que terá necessariamente de ser ponderado nas indemnizações a atribuir.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 727/18.0T8CSC.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”[2], nos termos do art. 90.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04-09, veio participar do acidente ocorrido no dia 28-02-2018, pela 01h00, em Cascais, de que resultou o falecimento de AA, quando este prestava serviço para a “APL Administração Porto Lisboa, S.A.”[3].
Em 08-11-2018 foi proferido despacho judicial com o seguinte teor decisório:
Assim, em face do requerido pelo Ministério Público e da não oposição da seguradora, e considerando o teor do auto de tentativa de conciliação de fls. 115 a 120, e tendo em conta a retribuição do sinistrado cuja responsabilidade foi já aceite pela seguradora de € 59 337,50 (cinquenta e nove mil, trezentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos) anuais, ao abrigo do disposto no artigo 121.º, n.º 1 e 3 do Código de Processo de Trabalho, decide-se:
- Fixar à viúva do sinistrado, BB, uma pensão anual provisória no valor de € 17 801,25 (dezassete mil, oitocentos e um euros e vinte e cinco cêntimos), a suportar pela Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.;
- Fixar ao beneficiário CC, filho do sinistrado, uma pensão anual provisória no valor de € 11 867,50 (onze mil, oitocentos e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos).
Notifique-se, sendo a seguradora para proceder ao pagamento da pensão provisória ora fixada, devendo comprovar nos autos os pagamentos realizados.
Em 15-01-2019, realizou-se a tentativa de conciliação, estando presentes a viúva do sinistrado, em sua representação e em representação do seu filho menor, a advogada da entidade empregadora com procuração com poderes especiais e o legal representante da seguradora, não tendo sido possível conciliar as partes, uma vez que a viúva do sinistrado imputou a responsabilidade do acidente à entidade empregadora, por sua culpa exclusiva, em virtude da inobservância das regras de segurança no local de trabalho e nomeadamente a falta de formação adequada do piloto e da tripulação da lancha, imputação essa de agravamento que não foi aceite pela entidade empregadora.
Os autos prosseguiram, tendo os Autores BB e CC, respetivamente viúva e filho do sinistrado, apresentado petição inicial de ação emergente de acidente de trabalho com processo especial, contra “APL.” e “Fidelidade”, peticionando, a final, que a ação seja julgada procedente por provada, sendo as Rés condenadas:
a) a pagar à 1ª A.:
- a pensão anual e vitalícia no montante de € 36.480,90, com início em 01.03.2018 e até à idade da reforma por velhice ou até ao momento em que o 2º A. deixe de ter direito à pensão respectiva, e a partir dessa idade ou momento a pensão de € 60.801,50;
- o subsídio de morte, no montante de € 2.830,74;
- o subsídio de despesas de funeral no montante de € 3.774,32;
- a indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a morte do cônjuge no valor de € 40.000,00;
- os juros de mora, calculados sobre as quantias acima à taxa legal, desde a citação deste articulado aos RR. até integral e efectivo pagamento.
b) a pagar ao 2º A.:
- a pensão anual no montante de € 24.320,60 até à idade de 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, com início em 01.03.2018;
- o subsídio de morte, no montante de € 2.830,74;
- a indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a morte do pai no valor de € 30.000,00;
- os juros de mora, calculados sobre as quantias acima à taxa legal, desde o respectivo vencimento, para as pensões, e, para as demais quantias, desde a citação deste articulado aos RR. até integral e efectivo pagamento;
c) a pagar aos AA. a indemnização correspondente ao dano morte no valor de € 70.000,00, acrescida dos juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação deste articulado aos RR. até integral e efectivo pagamento.
Subsidiariamente, e apenas por mera cautela, para o caso de o pedido principal improceder, deverá V.ª Ex.ª julgar a presente acção procedente por provada e, em consequência, condenar a 2ª R.:
a) a pagar à 1ª A.:
- a pensão anual e vitalícia no montante de € 18.240,45, com início em 01.03.2018 e até à idade da reforma por velhice, passando a ser de € 24.320,60 a partir dessa idade, com dedução das quantias já pagas pela 2ª R. a título de pensão provisória;
- o subsídio de morte, no montante de € 2.830,74;
- o subsídio de despesas de funeral, no montante de € 3.774,32;
- os juros de mora, calculados sobre as quantias acima, à taxa legal anual, desde o respectivo vencimento quanto à pensão anual, e desde a citação deste articulado à 2ª R. até integral e efectivo pagamento.
b) a pagar ao 2º A.:
- a pensão anual no montante de € 12.160,30 até à idade de 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior ou equiparado, com início em 01.03.2018, com dedução das quantias já pagas pela 2ª R. a título de pensão provisória;
- o subsídio de morte, no montante de € 2.830,74;
- os juros de mora, calculados sobre as quantias acima, à taxa legal anual, desde o respectivo vencimento quanto à pensão anual, e desde a citação deste articulado à 2ª R. até integral e efectivo pagamento.
A Ré “Fidelidade” apresentou contestação, afirmando, em síntese, que aceita a ocorrência do acidente de trabalho que vitimou AA e a sua caracterização como tal, bem como o nexo causal entre o acidente e a sua morte, não se pronunciando pelas prestações agravadas devidas pela entidade empregadora, nos termos do art. 18.º da Lei n.º 98/2009, de 04-09, sendo que se se vier a comprovar o sinistro nos termos do citado artigo, a Ré tem direito de regresso das importâncias que vier a pagar sobre a entidade empregadora.
“O Instituto de Segurança Social, I.P.” veio deduzir pedido de reembolso das prestações pagas, contra as Rés “APL – Administração do Porto de Lisboa, S.A.” e “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, no montante de €2.404,86.
A Ré “APL” apresentou contestação, solicitando, a final, que a ação seja julgada improcedente por não provada e, consequentemente, seja esta Ré integralmente absolvida dos pedidos contra si formulados.
A Ré “Fidelidade” contestou o pedido formulado pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.”, concluindo, a final, que o pedido deverá ser julgado de acordo com a prova que vier a ser produzida.
A Ré “APL” contestou o pedido formulado pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.”, concluindo, a final, pela improcedência do mesmo, por não provado, e consequentemente pela absolvição da referida Ré desse pedido.
Em resposta ao pedido formulado, os Autores BB e CC vieram alegar já ter pago ao “Instituto de Segurança Social, I.P.” a quantia peticionada de €2.404,86, pelo que o pedido deverá improceder.
Em 15-05-2019, o “Instituto de Segurança Social, I.P.” veio apresentar desistência do pedido formulado, por inutilidade superveniente da lide, reconhecendo já ter recebido tal quantia, requerendo que as custas sejam pagas pelos requeridos.
As Rés “APL” e “Fidelidade” vieram requerer o pagamento das custas da desistência pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.”, visto não existir qualquer inutilidade superveniente da lide.
Proferido despacho saneador, foi homologada a requerida desistência do pedido, condenando-se o “Instituto de Segurança Social, I.P.” pelas custas devidas; foi efetuada a seleção dos factos assentes, dispensando-se a seleção da matéria de facto controvertida.
A Ré “APL” e os Autores BB e CC vieram reclamar da fixação dos factos considerados assentes.
Em 19-09-2019, foram decididas as reclamações, procedendo-se a alterações relativas aos factos constantes das alíneas Q), LL), CCC), GGG) e HHH).
Realizada a audiência de julgamento de acordo com as formalidades legais, foi proferida sentença em 16-03-2022, com o seguinte teor decisório:
Em face do supra exposto, decide-se julgar procedente a presente ação intentada por BB e CC e, em consequência:
a) Condenar a ré FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, SA a pagar:
a.1) À autora BB:
1.º - A pensão anual e vitalícia, no montante de € 18 240,45 (dezoito mil, duzentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos), atualizada a partir de 01/01/2019 para o valor de € 18 532,30; a partir de 01/01/2020 para o valor de € 18 662,02 e a partir de 01/01/2022 para o valor de € 18 848,64, sem prejuízo das atualizações que venham a ser entretanto fixadas, até à idade da reforma; e após essa idade, a pensão anual e vitalícia no montante de € 24 320,60 (vinte e quatro mil, trezentos e vinte euros e sessenta cêntimos), em prestações mensais e no seu domicílio, desde 01/03/2018, acrescida de juros de mora à taxa legal desde essa data sobre as mensalidades já vencidas e não pagas na sua totalidade ou em parte, sem prejuízo de serem deduzidas as quantias já pagas a título de pensão provisória;
2.º - Os subsídios de férias e de Natal, desde 01/03/2018, correspondentes, cada um, a 1/14 do montante da pensão anual, bem como juros de mora sobre as mensalidades já vencidas e não liquidadas na sua totalidade ou em parte;
3.º - O subsídio por morte do sinistrado, no montante de € 2 830,74 (dois mil, oitocentos e trinta euros e setenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal devidos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;
4.º - A quantia de € 3 774,32 (três mil, setecentos e setenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos) a título de despesas de funeral, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
a.2) Ao autor CC:
1.º - A pensão anual e provisória, no montante de € 12 160,30 (doze mil, cento e sessenta euros e trinta cêntimos), devida a partir de 01/03/2018 e atualizada a partir de 01/01/2019 para o valor de € 12 354,87; a partir de 01/01/2020 para o valor de € 12 441,35 e a partir de 01/01/2022 para o valor de € 12 565,77, até perfazer 18 anos, até aos 22 anos se frequentar o ensino secundário ou equiparado, até perfazer 25 anos se frequentar o ensino superior ou equiparado, ou sem limite de idade, quando afetado por deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, em prestações mensais e no seu domicílio, desde 01/03/2018, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre as mensalidades já vencidas e não pagas na sua totalidade ou em parte, sem prejuízo de serem deduzidas as quantias já pagas a título de pensão provisória;
2.º - Os subsídios de férias e de Natal, desde 01/03/2018, correspondentes, cada um, a 1/14 do montante da pensão anual, bem como juros de mora desde aquela data sobre as mensalidades já vencidas e não liquidadas na sua totalidade ou em parte;
3.º - O subsídio por morte do sinistrado, no montante de € 2 830,74 (dois mil, oitocentos e trinta euros e setenta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal devidos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
b) Condenar a ré APL – ADMINISTRAÇÃO DO PORTO DE LISBOA, S.A. a pagar:
b.1) À autora BB:
1.º - A pensão anual e vitalícia, no montante de € 18 240,45 (dezoito mil, duzentos e quarenta euros e quarenta e cinco cêntimos), atualizada a partir de 01/01/2019 para o valor de € 18 532,29; a partir de 01/01/2020 para o valor de € 18 662,02 e a partir de 01/01/2022 para o valor de € 18 848,64, sem prejuízo das atualizações que venham a ser entretanto fixadas, até à idade da reforma; e após essa idade, a pensão anual e vitalícia no montante de € 24 320,60 (vinte e quatro mil, trezentos e vinte euros e sessenta cêntimos), em prestações mensais e no seu domicílio, desde 01/03/2018, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre as mensalidades já vencidas e não pagas na sua totalidade ou em parte, a que devem ser deduzidas as quantias já pagas a título de pensão provisória;
2.º - Os subsídios de férias e de Natal, desde 01/03/2018, correspondentes, cada um, a 1/14 do montante da pensão anual, bem como juros de mora sobre as mensalidades já vencidas e não liquidadas na sua totalidade ou em parte;
3.º - A quantia de € 40 000,00 (quarenta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da presente sentença.
b.2) Ao autor CC:
1.º - A pensão anual e provisória, no montante de € 12 160,30 (doze mil, cento e sessenta euros e trinta cêntimos), atualizada a partir de 01/01/2019 para o valor de € 12 354,87; a partir de 01/01/2020 para o valor de € 12 441,35 e a partir de 01/01/2022 para o valor de € 12 565,77, até perfazer 18 anos, até aos 22 anos se frequentar o ensino secundário ou equiparado, até perfazer 25 anos se frequentar o ensino superior ou equiparado, ou sem limite de idade, quando afetado por deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, em prestações mensais e no seu domicílio, desde 01/03/2018, acrescida de juros de mora à taxa legal sobre as mensalidades já vencidas e não pagas na sua totalidade ou em parte, sem prejuízo de serem deduzidas as quantias já pagas a título de pensão provisória;
2.º - Os subsídios de férias e de Natal, desde 01/03/2018, correspondentes, cada um, a 1/14 do montante da pensão anual, bem como juros de mora desde aquela data sobre as mensalidades já vencidas e não liquidadas na sua totalidade ou em parte;
3.º - A quantia de € 30 000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da presente sentença.
b.3) A pagar à autora BB e ao autor CC a quantia de € 70 000,00 (setenta mil euros) a título de indemnização pelo dano morte.
Condena-se as rés no pagamento integral das custas da ação repartidas segundo a respetiva responsabilidade.
Fixa-se o valor da ação em € 956 405,47 (novecentos e cinquenta e seis mil, quatrocentos e cinco euros e quarenta e sete cêntimos).
Registe e notifique.
Não se conformando com a sentença, veio a Ré “APL” interpor recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
I. Tendo por base o depoimento da testemunha DD [prestado no dia 16.12.2019 e gravado no suporte áudio com a referência 20191216143347_2778682_2871710(6194951.1)] , única que utilizou o turco existente na lancha de pilotagem, deve ser alterada a resposta dada aos factos provados n.º 93 e 153 da matéria de facto.
II. Com efeito, o que decorre do depoimento desta testemunha é que a falta de altura suficiente não era do turco em si mesmo, como mencionado no facto provado n.º 153, mas sim do seu cabo (o cabo da talha de resgate a que se reporta o facto provado n.º 93), permitindo, ainda, esse depoimento saber as razões pelas quais o cabo da talha do turco não tinha altura suficiente, razões às quais, aliás, a própria sentença recorrida alude na fundamentação da matéria de facto.
III. Considerando que, a sentença recorrida decidiu nos termos em que decidiu, entre outros, por considerar que os equipamentos de salvamento disponíveis não eram adequados, revela-se essencial para essa mesma decisão perceber e apurar se o facto de o cabo da talha do turco não ter altura suficiente se ficou a dever à sua efectiva altura ou a outro factor, nomeadamente à acção da testemunha DD.
IV. Termos em que devem os factos provados n.º 93 e 153 ser modificados, passando a sua redacção a ser a seguinte: Facto provado n.º 93: O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água, porque DD o cortou antes de utilizar o turco. Facto provado n.º 153: O cabo da talha de resgate do turco não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés, porque DD o cortou antes de o utilizar, e, no caso de estar inconsciente, teria que ser retirado para bordo à força de braços.
V. Deve ser modificada a redacção dada ao facto provado n.º 154, eliminando-se do mesmo a sua parte final, já que a substituição dos cabos das talhas dos turcos a que se reporta este facto não se ficou a dever à circunstância de ser necessário assegurar que tais cabos eram mais compridos, como resulta da parte final deste facto, mas sim ao facto de tais cabos precisarem de ser substituídos por já não se encontrarem em boas condições, como o demonstra o depoimento da testemunha DD, que explicou ao Tribunal a quo que a substituição dos cabos foi fruto de uma simples necessidade de manutenção dos mesmos, já que os cabos se mostravam ressequidos por causa do sol e do sal [depoimento prestado no dia 16.12.2019, gravado no suporte áudio com a referência 20191216143347_2778682_2871710(6194951.1)]:
VI. Salienta-se, a este respeito, que, o que levou o Tribunal a quo a dar este facto como provado foi o depoimento dos demais pilotos inquiridos, pessoas que, pelas funções que exercem, apenas podem ter conhecimento indirecto dos factos e, mais que isso, que ou não foram inquiridos a esta matéria ou nada sabiam sobre a mesma [como o atestam os depoimentos do piloto EE - cfr. depoimento prestado no dia 06.03.2022, gravado no suporte áudio com a referência 20200306144758_2778682_2871710(6194984.1) – e do piloto FF - depoimento prestado no dia 02.06.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200602160203_2778682_2871710(6195000.1)]
VII. Não existindo, pois, elementos de prova que permitam dar como provado o que ficou a constar da parte final do facto provado n.º 154, parte final essa que deve ser eliminada, passando o facto provado n.º 154 a ter a seguinte redacção: Após a ocorrência dos factos, a ré APL,SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem.
VIII. No artigo 209.º da contestação que apresentou em juízo, a Recorrente alegou que o Sinistrado tinha, na data e hora do acidente, canibinóides no sangue, alegação esta que resulta demonstrada e provada pelo relatório de autópsia junto a fls. __ dos autos, no qual se pode ler que: O exame toxicológico não revelou a presença de etanol ou substâncias medicamentosas, e revelou a presença de cannabinóides (e metabolitos) em concentrações inferiores às consideradas “terapêuticas”.
IX. Sendo a destreza física um elemento relevante para efeitos da determinação da aptidão para o exercício da profissão e, mais que isso, sendo essa mesma destreza física um elemento essencial a ponderar aquando da decisão de proceder à operação de desembarque do piloto (decisão que, em rigor, esteve na génese do acidente em causa nos presentes autos), apurar-se a exacta condição física do sinistrado à data da ocorrência do acidente revela-se absolutamente imprescindível para o apuramento das causas do acidente e, por conseguinte, para a decisão a tomar nos autos.
X. Deste modo, por se tratar de facto oportunamente alegado, devidamente provado nos autos por via do relatório da autópsia que se encontra junto aos autos e com relevância para a decisão a tomar, deve ser aditado o seguinte facto à matéria de facto dada como provada: Na data e hora do acidente, o sinistrado tinha cannabinóides (e metabolitos) no sangue em concentrações inferiores às consideradas “terapêuticas” (novo facto provado n.º 270).
XI. Deve ser dado como provado que Quando a lancha do ISN chegou ao local onde o sinistrado se encontrava, as condições climatéricas já se haviam agravado substancialmente em comparação com as que se faziam sentir no momento em que se iniciou o desembarque do sinistrado (novo facto provado n.º 271), já que o aferir-se se as condições climatéricas sofreram alterações significativas entre o momento em que o sinistrado caiu à água e o momento em que foi, finalmente, resgatado, revela-se essencial para que possa perceber e compreender as razões que estiveram na génese das enormes dificuldades por todos sentidas no resgate do sinistrado.
XII. A prova do referido facto resulta da conjugação do que ficou a constar do facto provado n.º 43 com o que foi dito por quem se encontrava no local após a queda do sinistrado, em particular tripulantes da embarcação SR32 da estação salva-vidas de Cascais, pessoas que, por se encontrarem no local do acidente, têm um conhecimento priveligiado quanto às condições climatéricas que se foram fazendo sentir entre o momento da queda (ocorrido às 00h47 – facto provado n.º 67) e o momento em que sinistrado foi recuperado da água (às 02h28 – facto provado n.º 111).
XIII. As declarações prestadas pelos tripulantes da embarcação SR32, GG e HH, juntas aos autos por via da certidão que constitui o Doc. n.º 4 junto com a p.i. (fls. __ dos autos), atestam bem a ocorrência desse agravamento das condições climatéricas, o qual é ainda comprovado pela análise das imagens de satélite que foram juntas aos autos pelo GAMA – Gabinete de Investigação de Acidentes Marítimos e da Autoridade para a Metereologia em 31.10.2019 (fls. __ dos autos), análise essa que foi feita, em sede de audiência de discussão e julgamento, pela testemunha FF, no depoimento que prestou no dia 02.06.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200602160203_2778682_2871710(6195000.1).
XIV. Por outro lado, o próprio IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), embora não tenha prestado informações muito detalhadas a este respeito, na medida em que o período temporal a que fez reportar a sua informação abrange 3 horas (cfr. certidão junta com o requerimento dos Recorrentes de 6 de Novembro de 2019, a fls. __ dos autos), não deixou de referir que, no que concerne à velocidade do vento, a mesma oscilou entre os 5 e 7 de força na escala de Beaufort (entre as 0h00 e as 03h00), o que é igualmente bastante significativo das diferenças climatéricas que se fizeram sentir ao longo da noite e que, mais que isso, corrobora o que foi afirmado pelos tripulantes da lancha do ISN e pela análise das imagens de satélite feita pela testemunha FF.
XV. Igualmente modificada deve ser a resposta dada ao facto não provado n.º 274, o qual deve passar a corresponder ao facto provado n.º 272, no qual se pode ler Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço.
XVI. Com efeito, a veracidade desta alegação foi confirmada pelo depoimento dos pilotos, que, natural e obviamente, têm conhecimento directo da mesma, em particular pelo que foi afirmado pelos pilotos FF [depoimento prestado em 02.06.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200602110136_2778682_2871710(6194998.1)]; II [depoimento prestado no dia 13.07.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200713111212_2778682_2871710(6195011.1)]; JJ [depoimento prestado no dia 07.02.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200207120009_2778682_2871710(6194972.1)], e KK [depoimento prestado no dia 06.03.2020, gravado no suporte áudio com a referência 20200306104802_2778682_2871710(6194983.1)].
XVII. Todas estas testemunhas afirmaram que os pilotos não só podem, como, para mais, de facto, recusam fazer determinados serviços e operações por razões de segurança, devendo, como tal, a resposta a este facto ser modificada, decidindo-se pela sua demonstração e passando a matéria de facto dada como provada a ter um novo facto (facto n.º 272) com a seguinte redacção: Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço.
XVIII. Para que se possa afirmar que se encontram reunidos os requisitos de aplicabilidade do disposto no n.º 1 do artigo 18.º da LAT, exige-se que a violação de regras de segurança se reporte a uma regra concreta e específica, destinada a assegurar a segurança no trabalho, não bastando, para este efeito, que se verifique a violação de uma norma programática ou geral.
XIX. Não obstante toda a fundamentação da sentença recorrida se basear na alegada violação da obrigação de proporcionar formação profissional, o Tribunal a quo acaba por decidir pela condenação da Recorrente, também, por esta não ter estabelecido quaisquer limites à realização do embarque e/ou desembarque por parte dos pilotos, nomeadamente, os previstos no documento elaborado pelos Pilotos da Barra de Lisboa junto a fls. 1305, volume VI; por não ter elaborado plano de emergência específico para a situação de “homem ao mar” que considerasse os equipamentos existentes e a sua utilização pelos tripulantes da lancha, nem definiu as funções do piloto coordenador em caso de emergência; não existir instruções escritas a bordo da lancha, nem elaborou quaisquer procedimentos para as situações de emergência de “Homem ao Mar” (página 59 da sentença), e, ainda, por entender que o equipamento de trabalho utilizado pelos seus trabalhadores envolvidos na execução da tarefa [não] era adequado e convenientemente adaptado ao trabalho desenvolvido, de forma a garantir as condições de saúde e segurança dos mesmos.
XX. No entanto, quanto a estas alegadas violações não refere a sentença recorrida qual a concreta e específica norma legal de onde as mesmas emergem e, por conseguinte, de onde decorre e resulta a, suposta, obrigação que impendia sobre a Recorrente e que esta, alegadamente, terá violado, falta de referência esta que decorre, simplesmente, do simples facto de não existir qualquer norma que obrigue a Recorrente a adoptar os procedimentos a que alude o Tribunal a quo.
XXI. No que especificamente diz respeito ao estabelecimento de limites à operação de embarque/desembarque dos pilotos, não se pode depreender, pelo simples facto de ter havido um conjunto de trabalhadores que entenderam que deveriam ser estabelecidos limites, que o estabelecimento de tais limites era, de facto, obrigatório, necessário e adequado para assegurar a obrigação genérica de prevenção de riscos, principalmente quando não ficou provado qualquer facto que permitisse ao Tribunal (na ausência de uma norma legal concreta e específica) concluir pela obrigatoriedade, necessidade e adequação do estabelecimento desses limites e quando os factos provados demonstram que que a concreta operação de desembarque já havia sido realizada em condições climatéricas similares às que se faziam sentir no dia do acidente e que todos os acidentes ocorridos até essa data tinham, apenas, provocado luxações, entorses e lesões de natureza semelhante (factos provados n.º 125, 251, 135 e 136).
XXII. Principalmente quando se sabe, porque tal ficou demonstrado nos autos, que a decisão de proceder à operação de embarque/desembarque é feita em vários momentos, o último dos quais imediatamente anterior à sua realização (factos provados n.º 228 a 230) e que os pilotos podem, se entenderem que não há condições de segurança para efectuar a operação, recusar efectuá-la (novo facto provado n.º 272).
XXIII. E o que acabou de se dizer é aplicável, mutatis mutandis, à inexistência de um plano específico para a situação de “homem ao mar”, à falta de definição das funções do piloto-coordenador em caso de emergência, à inexistência de instruções escritas a bordo da lancha, e de procedimentos, escritos, para as situações de emergência de “Homem ao Mar”, os quais também não são subsumíveis à violação de qualquer norma jurídica, tenha esta uma natureza concreta e específica (como, obrigatoriamente tem de ter) ou tenha a mesma uma natureza genérica e programática.
XXIV. Para mais, também aqui não se vislumbra que tais obrigações possam considerar-se fruto das regras gerais vigentes em matéria de segurança no trabalho, mesmo que se admitisse, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona, que é possível afirmar que, para este efeito, é possível recorrer a essas regras, já que não se vê nem a sentença recorrida o explica, como é que a existência deste conjunto de documentos escritos podia, de algum modo, contribuir para prevenir riscos e evitar acidentes.
XXV. Por outro lado, ainda que se admitisse que as regras gerais e programáticas vigentes neste domínio poderia ser suficientes para afirmar que tais concretas obrigações impendiam sobre a Recorrente (o que não se admite e por mero dever de patrocínio se equaciona), para que se pudesse dizer que a inexistência de tal documentação e definição configura uma violação dessas normas, seria imprescindível que resultasse demonstrado que a existência dessa documentação era apta, adequada e, mais que isso, necessária a evitar e prevenir acidentes, o que, in casu, não se verifica.
XXVI. E a idêntica conclusão tem de se chegar no que concerne à alegada, inexistência de equipamentos adequados à realização da operação de desembarque do piloto, em particular aos meios de segurança e resgate existentes na lancha, que o Tribunal a quo considerou insuficientes e inadequados à operação de salvamento de um náugrafo inconsciente.
XXVII. Sucede que, para que se possa concluir que os meios e equipamentos de resgate fornecidos pela Recorrente são insuficientes ou inadequados à sua finalidade e, acima de tudo, que esta insuficiência ou inadaqueação consubstancia uma violação da obrigação de fornecer meios e equipamentos de trabalho adequados, é imprescindível que se demonstre que existem outros meios e equipamentos mais adequados e aptos a essa finalidade.
XXVIII. In casu, os autos apenas contêm elementos relativos aos meios e equipamentos de resgate que existiam a bordo da lancha, mas nada dizem quanto à eventual existência de outros meios e equipamentos mais adequados e aptos a garantir o resgate de um náufrago inconsciente, excepto no que respeito ao facto provado n.º 155, que alude a um novo equipamento de resgate, mas em relação ao qual nada se sabe, em particular no que respeita à sua finalidade, forma de utilização, adequação e aptidão para assegurar a possibilidade de resgate de um náufrago inconsciente, pelo que o simples facto de se ter provado que tal equipamento foi adquirido nada contribui para a decisão a tomar nos autos.
XXIX. Ademais, modificada a matéria de facto nos termos requeridos, verifica-se que, se é certo que o turco não tinha altura suficiente para içar o sinistrado, tal se ficou a dever à circunstância de o mesmo ter sido cortado antes da sua utilização (factos provados n.º 93 e 153, com as alterações requeridas em sede de impugnação da matéria de facto) e, por conseguinte, que essa circunstância não é fruto nem consequência de não terem sido fornecidos meios e equipamentos adequados e aptos mas, sim, de os meios e equipamentos terem sido adulterados.
XXX. Conclui-se, assim, que, contrariamente ao que decidiu a sentença recorrida, não se pode dizer que a Recorrente não forneceu meios e equipamentos adequados a garantir a segurança dos seus trabalhadores e, consequentemente, que não se pode afirmar que a Recorrente violou o disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro.
XXXI. Por outro lado, para que se possa afirmar que a falta de cumprimento da obrigação de ministrar formação profissional dá origem à aplicação do regime constante do artigo 18.º da LAT, é preciso, ainda, que esse incumprimento seja a causa do acidente, o que, in casu, não se pode fazer.
XXXII. De facto, no que ao acidente em si mesmo diz respeito (aqui entendido como o evento externo ocorrido de forma inesperada), a factualidade dada como provada permite concluir, sem margem para dúvidas, que o mesmo ocorreu porque o sinistrado decidiu saltar da escada quebra-costas para o convés da lancha antes de ter recebido a necessária indicação para o efeito por parte do marinheiro, pois que procedeu a essa operação quando o marinheiro se virou para o mestre (factos provados n.º 63 e 64) e sem que tenha recebido qualquer indicação deste para efectuar o salto necessário ao desembarque (indicação esta que é imprescindível, como o atesta o facto provado n.º 244), no que consubstanciou uma clara violação das regras da operação de desembarque, que, por ele, eram sobejamente conhecidas (factos provados n.º 244 e 248 a 250).
XXXIII. Ademais, compulsada a matéria de facto dada como provada, não se vislumbra que da mesma se possam retirar as ilações e deduções constantes da sentença recorrida, e, em particular, a ligação (o nexo causal) entre as consequências do acidente e o incumprimento do dever de ministrar formação profissional.
XXXIV. Com efeito, da leitura dos factos dados como provados decorre, antes de mais, que a tripulação da lancha não teve qualquer dúvida ou hesitação sobre o modo como se devia aproximar do sinistrado que se encontrava dentro de água (factos provados n.º 258, 259, 75 e 82), como não teve qualquer dúvida sobre como utilizar os equipamentos e meios de resgate existentes a bordo (factos provados n.º 75, 76, 78, 79, 83 e 84).
XXXV. A descrição do acidente demonstra bem que a impossibilidade de resgate do sinistrado em nada se ficou a dever a qualquer falta de formação dos tripulantes da lancha, mas, sim da condição em que se encontrava o sinistrado e às condições climatéricas que se faziam sentir.
XXXVI. De facto, o sinistrado ficou inconsciente no curto espaço de menos de 20 minutos desde o momento da queda (factos provados n.º 67 e 100), sem que tenha batido nalgum lado (facto provado n.º 68) e sem que estivesse numa situação de hipotermia, o que apenas se explica porque o mesmo estava sob a inflluência de cannabinoides (novo facto provado n.º 270, nos termos da requerida alteração à matéria de facto) e, ainda, por se tratar de uma pessoa obesa (facto provado n.º 262), já que a capacidade física de uma pessoa obesa é, como é sabido, substancialmente diminuída.
XXXVII. Ademais, esta característica física do sinistrado terá, certamente, contribuído para a impossibilidade sentida pela tripulação da lancha para o içar para dentro da embarcação e pela grande dificuldade da embarcação SR 32, da estação salva-vidas de Cascais, em resgatar o sinistrado, bem demonstrada pelo facto de tal resgate apenas se ter revelado possível depois de o marinheiro da lancha ter passado para dentro da referida embarcação, de modo a auxiliar o resgate (factos provados n.º 109 a 111).
XXXVIII. Acresce ainda que, como se viu em sede de impugnação da matéria de facto, ficou provado que as condições climatéricas se alteraram já depois da queda do sinistrado e antes da chegada da embarcação SR 32, da estação salva-vidas de Cascais (novo facto provado n.º 271), o que, certamente, contribuiu de modo significativo e relevante para a impossibilidade de resgatar o sinistrado, já que todas as pessoas que estavam no local tinha, naturalmente, de assegurar a sua própria segurança.
XXXIX. Acresce que, não se sabendo nos autos que elementos formativos poderiam ser ministrados que pudessem ter feito com que a tripulação e o sinistrado tivessem reagido e actuado de modo diferente, não se pode dizer, como o faz a sentença recorrida, que a falta de formação foi um elemento essencial para determinar as consequências do acidente, pois tal afirmação só poderia ser feita se se soubesse que concretos elementos formativos poderiam ter sido ministrados que pudessem fazer com que a tripulação da lancha e o próprio sinistrado tivessem reagido e actuado de modo distinto, adoptando distintos procedimentos.
XL. A única excepção ao que acabou de se dizer prende-se com as questões suscitadas a respeito da alça de recuperação lateral existente dentro do casaco (facto provado n.º 95), mas analisada tal questão devidamente conclui-se que o desconhecimento da tripulação quanto à existência da referida alça não teve qualquer consequência nas manobras e procedimentos adoptados para resgatar o sinistrado.
XLI. Desde logo, porque ficou provado que a tripulação conseguiu agarrar o sinistrado mais que uma vez (facto provado n.º 94), que é precisamente a finalidade da referida alça de recuperação.
XLII. Note-se, a este respeito, que, para que se pudesse dizer que o desconhecimento da existência da referida alça de recuperação impediu ou, pelo menos, contribuiu para a impossibilidade de resgate e, por conseguinte, para as consequências do acidente, seria necessário e imprescindível que tivesse ficado demonstrado que a tripulação da lancha não conseguiu içar o sinistrado a bordo por essa razão e que o teria conseguido fazer se tivesse conhecimento dessa alça, o que a factualidade provada não permite fazer.
XLIII. Com efeito, o que se provou foi que, como se viu, o facto de a tripulação da lancha não ter conseguido içar o sinistrado para bordo, foi fruto quer dos golpes de mar entretanto ocorridos, quer, como se viu, do peso do sinistrado e das condições físicas e psicológicas em que este se encontrava, para as quais, muito certamente, contribuiu de forma relevante e significativa, o facto de o mesmo ter consumido cannabinóides (novo facto provado n.º 270).
XLIV. Ademais, não pode esquecer-se que os elementos e critérios a seguir para tomar a decisão de proceder, ou não, à operação de desembarque constitutem as regras e praxis da profissão, sendo, por todos, incluindo pelo sinistrado, conhecidas (vide factos provados n.º 220 a 238) e, mais que isso, que o único momento em que essa decisão pode ser tomada é o imediatamente anterior à operação de desembarque, já que só nessa altura se pode aferir se as condições climatérias permitem realizar a operação (facto provado n.º 231).
XLV. Para mais, não só o sinistrado era um piloto experiente (facto provado n.º 262), como teve formação prática em contexto de trabalho (facto provado n.º 147), apenas 2 anos antes do acidente, a qual incluiu formação na concreta operação de embarque e desembarque, e que, naturalmente, incluiu treino sobre a análise dos elementos relevantes para tomar a decisão de efectuar a manobra, precisamente porque essa análise corresponde às regras e praxis da profissão, sendo efectuada sempre que qualquer manobra é realizada, sendo certo que o sinistrado podia, sempre, decidir não efectuar a operação, sem que daí resultassem quaisquer consequências (novo facto provado n.º 272).
XLVI. Por último, não pode esquecer-se (como, salvo o devido respeito, o faz a sentença recorrida) que a lancha do ISN, que devia auxiliar no resgate do sinistrado, demorou uma hora a chegar ao local (conjugação dos factos provados n.º 265 e 105), o que certamente contribuiu de forma extremamente significativa para a morte do sinistrado, já que esta se ficou a dever a afogamento.
XLVII. Em suma: contrariamente ao que foi decidido pelo Tribunal a quo, o acidente que vitimou o sinistrado e, mais que isso, as consequências que do mesmo advieram, foram consequência de diversos factores, nenhum deles relacionado ou emergente da falta de formação profissional.
XLVIII. Por assim não ter entendido, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 18.º da LAT.
XLIX. Para a absurda e não admitida eventualidade de se entender que a sentença recorrida deve ser mantida na parte que se reporta à responsabilidade da Recorrente pelo acidente e suas consequências (o que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona), sempre deve a referida sentença ser modificada na parte que se reporta à concreta condenação da Recorrente.
L. De facto, analisada a mencionada condenação, verifica-se, desde logo, que a mesma não é suficientemente clara no que concerne ao número de prestações mensais em que deve ser liquidada a pensão anual em cujo pagamento a Recorrente foi condenada quer no que respeita à 1.ª Recorrida quer em relação ao 2.º Recorrido, já que, em clara violação do disposto no n.º 1 do artigo 72.º da LAT, não estabelece que as prestações mensais correspondem a 1/14 do montante da pensão anual.
LI. Assim, a manter-se a sentença recorrida no essencial (o que não se admite e por mero dever de patrocínio se equaciona), deve a mesma ser alterada, de forma a esclarecer que, nos termos do citado n.º 1 do artigo 72.º da LAT, cada prestação mensal da pensão anual a pagar aos Recorrentes deve corresponder a 1/14 do montante desta pensão anual.
LII. A manter-se a sentença recorrida na parte que se reporta à condenação da Recorrente, o que, repete-se, não se admite e por mero dever de patrocínio se equaciona, deve, ainda, a mesma ser alterada no que concerne ao quantum das indemnizações relativas ao dano morte do sinistrado e dos danos morais sofridos pelos Recorrentes, reduzindo-se as mesmas, já que os valores em que a Recorrente foi condenada são claramente exagerados.
LIII. Com efeito, no que concerne à indemnização pelo dano morte, deve ter-se em consideração que a esperança média de vida do sinistrado aquando do seu nascimento se situava nos 65 anos de idade, o que equivale a dizer que o mesmo tinha a expectativa de viver mais 20 anos, sendo que, quanto ao seu estado de saúde, apenas se sabe que o mesmo era obeso, facto que, como é do conhecimento público e notório, reduz, drasticamente, a esperança média de vida.
LIV. No que concerne à vida particular e pessoal do sinistrado nada se sabe nos autos, excepto no que respeita ao relacionamento que mantinha com a sua mulher e o seu filho (Recorridos nos presentes autos), não existindo qualquer elemento que permita avaliar e aferir qual a natureza dessa vida particular e pessoal, nomeadamente no que concerne a projectos de vida que o mesmo pudesse ter ou, mesmo, à vontade de viver que o mesmo pudesse, ou não, sentir, sendo os autos, igualmente, inteiramente omissos no que respeita à inserção social do sinistrado e no que concerne à sua vida profissional.
LV. Tendo presente a posição jurisprudencial sobre a questão, a total ausência de elementos de facto que permitam avaliar e aferir as circunstâncias pessoais da vida do sinistrado que têm vindo a ser utilizadas e aceites pela jurisprudência como relevantes para este efeito e os valores que têm vindo a ser fixados judicialmente como contrapartida do dano morte, entende-se que, a manter-se esta condenação (o que não se concede e por mero dever de patrocínio se equaciona), a mesma deve ser reduzida para o valor mínimo que tem vindo a ser aceite e fixado judicialmente, ou seja, para € 50.000,00 (cinquenta mil euros).
LVI. Por assim não ter entendido, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 496.º do Código Civil, em particular os seus números 2 e 4.
LVII. A manter-se a decisão recorrida, concluir-se-á que nada nos autos permite concluir que o grau de culpabilidade da Recorrente é elevado, muito pelo contrário, os elementos existentes permitem concluir que tal grau de culpabilidade (a existir, o que não se concede) é extremamente reduzido, sendo que os autos são inteiramente omissos no que concerne à situação económica quer dos Recorridos quer da Recorrente, excepto no que concerne ao facto de o sinistrado providenciar pelo sustento da família, o qual, de resto, continua e continuará a ser assegurado por via da pensão anual concedida aos Recorridos.
LVIII. As circunstâncias pessoais do caso, em particular, o grau de parentesco do sinistrado aos Recorrentes, a ligação existente entre os mesmos, o tipo, natureza e dimensão do acompanhamento e envolvimento do sinistrado na vida de cada um dos Recorridos, sendo significativas, são, com o perdão da expressão, normais, revelando que o sinistrado era um bom pai de família, que seguia e vivia de acordo com os padrões sociais que, neste domínio, se consideram aceitáveis e recomendáveis, mas que não excediam esta normalidade.
LIX. Por outro lado, o tipo, extensão e natureza dos danos morais sofridos pelos Recorrentes enquadram-se e encaixam-se, também, neste padrão de normalidade, sendo os sentimentos por ambos sentidos e vivenciados habituais e comuns em qualquer situação de morte de um marido e pai, independentemente da causa dessa morte.
LX. Deste modo, tudo visto e ponderado, conclui-se que os valores das indemnizações fixadas pelo Tribunal a quo são, manifestamente, exagerados, devendo, por conseguinte, ser reduzidos para € 20.000,00 (vinte mil euros) no caso da 1.ª Recorrida e para € 10.000,00 (dez mil euros) no caso do 2.º Recorrido.
LXI. Por assim não ter entendido, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 496.º do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de direito que doutamente se suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva integralmente a Recorrente de todos os pedidos contra si formulados, assim se fazendo a tão costumada Justiça.
Os Autores BB e CC apresentaram contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida, terminando com as seguintes conclusões:
Questões prévias
1. Antes de mais, impõe-se a rectificação do ponto 279 dos Factos Não Provados (erro de escrita) e do ponto 101 dos Factos Provados (lapso manifesto) quanto a erros materiais da douta sentença recorrida, o que os Recorridos requerem seja feito, nos termos do art.º 614º, n.ºs 1 e 2 do CPC;
2. Requerem também os Recorridos a junção do Relatório do ISN relativo ao “Curso de Sobrevivência e Resgate no Mar para Pilotos e Tripulantes de Embarcações de Pilotos de Barra”, elaborado em 21.10.2021, ao abrigo do n.º 1 do art.º 651º e do art.º 425º do CPC;
Da matéria de facto
1. A modificabilidade da decisão recorrida apenas releva quanto a factos que imponham decisão diversa da recorrida e que sejam insusceptíveis de ser destruídos por quaisquer outros meios de prova que sejam idóneos, nos termos do n.º 1 do art.º 662º do CPC, o que não acontece no caso da impugnação da Recorrente relativa a matéria de facto; Assim,
2. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre os pontos 93 e 153 dos Factos Provados, porquanto, não obstante o lapso manifesto da motivação da douta sentença recorrida que a Recorrente pretende aproveitar, não há dúvida de que os factos em questão se reportam a realidades distintas: o ponto 93 dos Factos Provados visa o alcance do cabo da talha e o ponto 153 dos Factos Provados refere-se à altura do turco, sendo elementos também eles distintos, como resulta dos pontos 91 e 151 dos Factos Provados; das imagens 20 e 21 do Relatório de Investigação Técnica do GAMA (Doc. 2 da p.i., de fls. 228 a 253 – pág. 21, vol. II); e do depoimento da testemunha comum DD, na passagem da gravação que está devidamente indicada no corpo da alegação para a qual aqui se remete;
3. Especificamente, sobre o ponto 93 dos Factos Provados, tal facto é confirmado na sequência da inspecção realizada à lancha (cfr. pág. 21 do Relatório de Investigação Técnica do GAMA - Doc. 2 da p.i., fls. 228 a 253, vol. II); sendo que é verdade que a testemunha comum DD, marinheiro e tripulante da lancha na altura do acidente, refere ter cortado o cabo da talha, também é verdade que o mesmo explica a razão pela qual teve de o fazer. Fê-lo porque o cabo não se encontrava em condições que permitissem a sua utilização imediata porque estava todo ondulado, não ficando esticado, e estava emaranhado de cima a baixo, o que se explica pelo estado em que os cabos das talhas das lanchas se encontravam antes de serem substituídos pela Recorrente, tendo a testemunha declarado que estavam na mesma posição há muito tempo, a apanhar água e sol, o que os deixou muito duros, de acordo com o seu depoimento cujas passagens da gravação se encontram devidamente indicadas no corpo da alegação para a qual aqui se remete; e nem o turco nem o cabo da talha foram vistoriados pela Capitania do Porto de Lisboa, em 16.01.2018, conforme resulta do Termo de vistoria da lancha de pilotagem “Torre de Belém” (Doc. 13 p.i., a fls. 427 e ss., vol. III);
4. Assim, considerando a finalidade pretendida pela Recorrente com a impugnação desta matéria, a sua eventual modificação, a ser feita, teria oficiosamente de contemplar os motivos que levaram o marinheiro a cortar o cabo por resultarem da prova produzida e, nesse caso, a alteração pretendida pela Recorrente apenas iria confirmar que os meios existentes a bordo da lancha não eram adequados, devendo o Facto Provado 93 passar, com o douto suprimento desta Veneranda Relação, a ter a seguinte redacção: O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água porque foi cortado pelo marinheiro antes de utilizar o turco por se encontrar todo enrolado em virtude de ter estado muito tempo arrumado na mesma posição e não permitir a sua utilização imediata;
5. Especificamente sobre o ponto 153 dos Factos Provados, deve improceder a impugnação da Recorrente por não se reportar ao cabo da talha e com base no depoimento da testemunha DD, cujas passagens da gravação se encontram devidamente indicadas no corpo da alegação para a qual aqui se remete;
6. No que concerne o ponto 154 dos Factos Provados, como a própria Recorrente reconhece no ponto V. das suas conclusões de recurso, os cabos das talhas dos turcos foram por si substituídos “por já não se encontrarem em boas condições”, e tal decorre também do depoimento da testemunha DD, cujas passagens da gravação se encontram devidamente indicadas no corpo da alegação para a qual aqui se remete;
7. Tal implica que, uma eventual modificação do Facto Provado 154 não possa ser feita sem oficiosamente contemplar a situação concreta dos cabos que motivaram a sua substituição por tais motivos se revelarem de primordial importância para a aferição do estado em que se encontravam os meios de resgate existentes a bordo das lanchas de pilotagem à data do acidente, devendo a redacção, com o douto suprimento do tribunal ad quem, passar a ser a seguinte: Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por estarem na mesma posição há muito tempo, a apanhar água e sol, o que os deixou muito duros;
8. É irrelevante o facto que a Recorrente pretende ver aditado à matéria de facto provada e que consta do ponto X das suas Conclusões de recurso, devendo improceder a impugnação da Recorrente em face dos pontos 2, 13, 263 e 172 dos Factos Provados, a própria Recorrente nunca sequer alegou que tal facto tivesse causado ou contribuído para o acidente e, portanto, nenhuma prova foi feita quanto a este aspecto. Por outro lado, já na posse do relatório da autópsia do sinistrado, nem o GAMA no seu Relatório de Investigação Técnica (Doc. 2 da p.i., fls. 228 a 253, vol. II) nem os serviços da própria Recorrente no respectivo Relatório Interno ao acidente (Doc. n.º 11 requerimento de 31.10.2019; fls. 927 a 961 vol. IV e V) lhe atribuem qualquer relevância. O único intuito da Recorrente com a presente impugnação é, à falta de melhor argumento, o de criar a semente da reprovação moral no espírito do julgador no que toca ao sinistrado, procurando condicionar a apreciação objectiva do caso, quando, até neste aspecto, a Recorrente é responsável, como se verá abaixo;
9. Deve igualmente improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 273 dos Factos Não Provados, que deve ser mantida, em face da certidão emitida pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, I.P. (IPMA), em 14.05.2019, relativa às condições de tempo e mar na zona da baía de Cascais entre as 00:00 e as 03:00 horas locais de dia 28.02.2018 (Doc. 4 do requerimento dos AA. de 05.11.2019, de fls. 984 a 985, vol. V) a partir “da”. Trata-se de um documento autêntico (art.º 363º, n.º 2 e art.º 369º do Cód. Civil), fazendo prova plena dos factos praticados pelo técnico do IPMA, nomeadamente a “análise das informações disponíveis, designadamente cartas sinópticas do tempo, imagens de Radar Meteorológico, dados do Sistema de Deteção e Localização de Descargas Elétricas Atmosféricas, observações de Estações Meteorológicas e resultados de modelos numéricos”, bem como dos factos que nele são atestados (art.º 371º do Cód. Civil), não tendo a sua força probatória sido alguma vez ilidida pela Recorrente, posto que só seria contrariável mediante prova do contrário, para o que, contudo, está vedada a prova testemunhal (art.º 347º e n.º 2 do art.º 393º do Cód. Civil);
10. A certidão emitida pelo DIAP que contém as fotocópias dos autos de inquirição dos tripulantes da embarcação SR32 do ISN não serve para contrariar os factos contidos na certidão do IPMA porquanto não certifica a verdade dessas declarações e os tripulantes do ISN apenas chegaram ao local do acidente pelas 02:11 horas de dia 28.02.2018 (ponto 105 dos Factos Provados), tendo o acidente ocorrido pelas 00:47 horas, não podendo atestar se o estado do tempo agravou substancialmente ou não;
11. De resto, a decisão recorrida sempre seria confirmada pelos depoimentos dos três tripulantes da lancha que, esses sim, estiveram sempre no local do acidente: DD, LL e MM, cujas passagens da gravação estão indicadas na alegação para a qual aqui se remete. As imagens de radar do navio “SINGAPORE EXPRESS” (a que a Recorrente erradamente chama “imagens de satélite”) são documentos particulares, pela sua natureza, insusceptíveis de provar a matéria factual em causa de acordo com as razões expressas na alegação, sendo que, a partir das 01:30 horas de dia 28.02.2018, nada mais foi feito pela tripulação da lancha que se limitou a ficar a assinalar o local onde se encontrava o corpo do sinistrado (pontos 104 e 106 dos Factos Provados), sendo irrelevante qualquer alteração verificada a partir dessa hora;
12. Deve improceder a impugnação da decisão que recaiu sobre o ponto 274 dos Factos Não Provados, que deve ser mantida, e que se refere à possibilidade de o piloto nomeado poder decidir não executar o serviço de pilotagem, por entender que não há condições, designadamente, de segurança para tal, e não, como pretende a Recorrente através da descontextualização dos depoimentos das testemunhas, à possibilidade de o piloto nomeado decidir não desembarcar do navio, que pressupõe que o piloto já tenha prestado o serviço de pilotagem e deva abandonar o navio a bordo do qual se encontra;
13. Resulta dos depoimentos das testemunhas II (devidamente contextualizado), EE, JJ (devidamente contextualizado), KK (devidamente contextualizado), NN, todos pilotos, e OO, Director de Segurança e Pilotagem da APL, cujas passagens da gravação estão devidamente indicadas na alegação para a qual aqui se remete, que o piloto nomeado para o serviço só não embarcava quando objectivamente não conseguia embarcar e que as condições a que o piloto nomeado atendia para aferir da possibilidade de realizar ou não o serviço de pilotagem eram as condições de segurança do navio e do porto, o que está de acordo com o n.º 2 do art.º 4º do RGSP, em anexo ao DL n.º 48/2002, de 2/3, e não as suas próprias condições de segurança na realização do trabalho. Acresce que, mesmo a decisão relativa à não realização do serviço com fundamento na falta de condições de segurança para a manobra do navio tinha de ter o acordo do respectivo comandante em virtude das pressões comerciais decorrentes da exploração do porto, sendo assim raros os casos em que tal acontecia;
14. Esta situação encontra justificação na matéria factual provada nos pontos 116, 117, 121 a 125, 139, 141 e 144 e é comprovada pelo Documento elaborado pelos Pilotos da Barra de Lisboa e entregue à Recorrente em 19.10.2018, cuja junção foi determinada por douto despacho proferido em audiência de julgamento realizada no dia 07.02.2020 (a fls. 1305, vol. VI), que atesta que a única iniciativa dos pilotos relativa à sua segurança foi colectiva (e não individual) e foi tomada apenas após o acidente, com base na recomendação “4.1. Operacionalidade de Pilotagem” do Relatório Interno do Acidente (de fls. 927 a 961 vol. IV e V);
Da matéria de direito
15. A douta sentença recorrida não violou o disposto no art.º 18 da LAT, devendo improceder os pontos XVIII a XLVIII das Conclusões de recurso da Recorrente;
16. Conforme resulta daquela douta decisão, a responsabilidade agravada da Recorrente, prevista no n.º 1 do art.º 18º da LAT, tem como fundamento o facto de o acidente ter sido provocado quer pelo seu comportamento culposo quer por ter sido o resultado da violação, por parte desta, de regras sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho;
17. O equívoco da Recorrente consiste em ter atentado apenas neste último fundamento, sendo que, mesmo quanto a ele, partilha um entendimento demasiado redutor e que deixaria sem tutela trabalhadores para os quais inexistem regras específicas sobre segurança no trabalho, em clara violação do direito fundamental previsto na al. c) do n.º 1 do artigo 59º da CRP, e que encontra depois expressão legal no art.º 281º, n.º 1 do Cód. do Trabalho e no art.º 5º, n.º 1 da Lei n.º 102/2009. À luz destas normas, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido a de que “a ausência de normas concretas que especificamente regulem a actividade em causa não conduz, necessariamente, ao vazio normativo e, consequentemente à impossibilidade da imputação da responsabilidade agravada por esse facto, havendo neste caso que indagar junto dos normativos de maior generalidade e amplitude regulativa acerca da capacidade e possibilidade de neles se enquadrar o circunstancialismo em causa”;
18. Atenta a duplicidade de fundamentos da douta decisão recorrida, e em virtude da extenção dos factos ilícitos e culposos praticados pela Recorrente, o difícil é encontrar algo que a Recorrente não tenha violado. Em todo o caso, podemos dizer que os principais vectores da responsabilidade agravada da Recorrente radicam na falta de regulamentação dos limites e condições de embarque e desembarque de pilotos, na falta de avaliação dos riscos profissionais dos mesmos nas operações de embarque e desembarque, na falta de formação profissional e de informação e na completa desadequação dos equipamentos de resgate à popa da lancha;
19. Em primeiro lugar, sendo a Recorrente uma empresa pública (ponto 113 dos Factos Provados), com especiais competências na área da segurança marítima e portuária (art.º 1º, n.ºs 1 e 3 do DL n.º 46/2002, de 2 de Março), cabia-lhe a definição das condições de segurança de funcionamento do porto, em todas as suas vertentes (al. a) do art.º 2º do DL n.º 46/2002, de 2/3), e, mais concretamente, cabia-lhe estabelecer e concretizar os limites e as condições em que o piloto embarca e desembarca através de regulamento portuário, nos termos do art.º 3º do Regulamento Geral do Serviço de Pilotagem (RGSP), anexo ao DL n.º 48/2002, de 2/3;
20. Esta disposição não é mais do que a manifestação do princípio geral de prevenção previsto na al. e) do n.º 2 da Lei n.º 102/2009, de 10/9;
21. Simplesmente, a Recorrente nunca aprovou qualquer regulamento de execução dessa norma legal e, assim, nunca estabeleceu quaisquer limites ou restrições que pudessem condicionar ou impedir e entrada e saída dos navios e, consequentemente, que determinassem a suspensão do serviço de pilotagem, e logo dos embarques e desembarques dos pilotos ao seu serviço, nomeadamente em condições de tempo e mar adversas (ponto 124 dos Factos Provados);
22. Pelo contrário, a Recorrente permitiu não só que o serviço, sendo obrigatório, fosse prestado ininterruptamente, ao manter o porto de Lisboa aberto à navegação 24 horas por dia, sete dias por semana (ponto 121 dos Factos Provados), como também criava as condições para que os pilotos embarcassem/desembarcassem em más condições de tempo e mar, mantendo as lanchas de pilotagem em Cascais (pontos 122 e 123 dos Factos Provados), e assim aumentando enormemente a exposição do sinistrado ao risco de acidente, em vez de o diminuir ou evitar como era seu dever. Portanto, a Recorrente não só não protegeu como também diminuiu o nível de protecção do sinistrado e violou as als. a), e) e l) do n.º 2 e n.º 6 do art.º 15º da Lei n.º 102/2009;
23. Sem limites e condições para embarque/desembarque definidos a montante, com más condições de tempo e mar, o piloto-coordenador nomeou o sinistrado para o serviço com base no facto de o piloto do serviço anterior ter conseguido embarcar em Cascais num navio de menor dimensão e que, por isso, fazia menor abrigo à ondulação e ao vento do que o navio que o sinistrado iria pilotar;
24. E foi assim que foram aferidas as condições de desembarque do sinistrado em Cascais e que tinham mais a ver com a possibilidade de o sinistrado desembarcar do com condições de segurança do piloto no desembarque. E, na falta de fundamento técnico para recusar o serviço de pilotagem (cfr. n.º 2 do art.º 4º do RGSP), o sinistrado embarcou. E, sendo possível o seu desembarque em Cascais (ponto 44 dos Factos Provados), também não tinha argumento para não desembarcar (cfr. art.º 6º do RGSP), o que, além do mais, sempre o obrigaria a seguir viagem com o navio para longe de casa e do local de trabalho e desembarcar no porto de um outro Estado;
25. A Recorrente violou culposamente as als. a) e b) do art.º 16º do próprio Estatuto de Pessoal das Administrações Portuárias (EPAP), aprovado pelo DL n.º 421/99, de 21/10; a al. h) do n.º 1 do art.º 127º do Cód. do Trabalho; e, por não ter assegurado ao sinistrado condições de segurança em todos os aspectos do seu trabalho, incluindo, portanto, no seu desembarque do navio para a lancha de pilotagem, violou culposamente o n.º 2 do art.º 281º do Cód. do Trabalho e n.º 1 do art.º 15º da Lei n.º 102/2009, de 10/9;
26. A invocação pela Recorrente da inexistência de normas concretas e específicas que apenas competia à Recorrente aprovar através de regulamento portuário, consubstancia um venire contra factum proprium, inadmissível segundo o princípio da boa fé;
27. A violação pela Recorrente dos seus deveres e obrigações, é tão mais gravosa quanto as operações de embarque/desembarque, pela sua própria natureza, eram de perigosidade elevada (pontos 61, 130 e 131 dos Factos Provados), como foi reconhecido nas duas análises de índices de sinistralidade elaboradas pelos serviços de higiene, segurança e saúde no trabalho da Recorrente e que constam dos autos (cfr. Doc. 5 do requerimento dos AA de 05.11.2019, de fls. 986 a 1023, vol. V; e Doc. 10 p.i., de fls. 381 a 421 vol. III);
28. A Recorrente reconheceu ao embarque/desembarque do sinistrado riscos profissionais para a sua segurança e saúde, deles figurando, a queda e o afogamento (morte), podendo esses riscos afectar qualquer parte do corpo e as vias respiratórias, respectivamente (ponto 132 dos Factos Provados);
29. Ao contrário do que agora conclui, a Recorrente também reconhecia que devia disponibilizar formação aos pilotos e aos marinheiros das lanchas no âmbito da segurança e saúde no trabalho quanto aos riscos profissionais associados ao embarque/desembarque e que devia adoptar medidas de prevenção desses riscos, mas, não obstante as análises de sinistralidade e o reconhecimento daqueles riscos, a estes profissionais nunca foi dada qualquer formação neste domínio, tendo violado as normas que, nesta matéria, resultam da al. c) do art.º 16º e do art.º 36º do EPAP, aprovado pelo DL n.º 421/99, de 21/10, e também dos art.ºs 15º, n.º 4, e 20º, n.º 1 da Lei n.º 102/2009, de 10/9, bem como o dever geral previsto na al. i) do n.º 1 do art.º 127º do Cód. do Trabalho e as obrigações que para si resultam do n.º 3 do art.º 282º do Cód. do Trabalho;
30. E não lhes foi dada essa formação apesar de tal ter sido solicitado à Recorrente quer pelos pilotos ao seu serviço quer pela APIBARRA (ponto 142 dos Factos Provados), o que significa que a Recorrente, ao ter recusado essa formação aos pilotos, actuou com dolo. Apenas após o acidente do sinistrado é que a Recorrente celebrou um protocolo com o ISN nesse sentido e bem se vê que teria bastado a formação para esclarecer vários aspectos que a Recorrente não tinha qualquer interesse em ver esclarecidos;
31. A falta de formação e treino foi determinante para a morte do sinistrado. A tripulação da lancha com 3 elementos a bordo não conseguiu resgatar o piloto. A embarcação do ISN com 3 elementos a bordo (já contando com o marinheiro da lancha) conseguiu resgatar o sinistrado sem qualquer escada ou turco;
32. Por outro lado, a Recorrente também reconhecia que devia implementar as medidas preventivas e correctivas decorrentes do processo de avaliação de riscos profissionais dos pilotos e dos marinheiros das lanchas, mas, como nunca procedeu à avaliação dos riscos associados ao embarque/desembarque dos pilotos (ponto 139 dos Factos Provados), também nunca implementou quaisquer medidas preventivas ou correctivas;
33. E, inclusivamente, no seu recurso desvaloriza, como sempre fez, os acidentes de trabalho ocorridos com pilotos até ao acidente do sinistrado, dando, assim, a ideia de que apenas lhe seria exigível um maior cuidado caso os acidentes fossem mais graves quando a avaliação de riscos e a prevenção têm em vista exactamente evitar que os riscos se materializem em acidentes;
34. Sendo inexistente o planeamento da prevenção, que integraria a identificação e a avaliação dos riscos para a segurança do sinistrado nas concretas operações de embarque/desembarque e, consequentemente, não se tendo adoptado as adequadas medidas de prevenção quanto aos riscos identificados de queda do piloto à água e de morte por afogamento, a Recorrente violou a al. g) do n.º 1 art.º 127º do Cód. do Trabalho e o art.º 15.º, n.ºs 1, 2, als. a), b), c), d) e e), i) e l), e n.º 3 da Lei 102/2009;
35. No quadro do exercício de funções pelo sinistrado, normais deveres de cuidado e diligência se impunham à Recorrente para prevenir e reduzir os riscos de queda do sinistrado à água e o seu consequente afogamento, nomeadamente os decorrentes de falhas na comunicação entre o piloto e o marinheiro no momento crítico da transferência do piloto da escada para a lancha, em virtude de o marinheiro ter de dar indicações tanto ao piloto como ao mestre da lancha, comunicação que é dificultada em condições de mau tempo porque as indicações são dadas verbalmente, tendo o marinheiro de se virar para um e para outro;
36. Com efeito, o sinistrado desequilibrou-se e ficou pendurado na altura em que o marinheiro não estava virado para ele por estar a dar indicações ao mestre para deixar descair a lancha e, assim, não o pôde auxiliar. Aliás, o marinheiro nem sequer tinha as duas mãos disponíveis para o auxiliar porque não havia linha de vida a bordo (ponto 276 dos Factos Não Provados), dispondo apenas de uma mão;
37. A Recorrente não padronizou a comunicação, como se impunha de acordo com o n.º 3 da art.º 13º da Portaria n.º 1456-A/95, de 11/12, e também não adoptou nenhum outro sistema de comunicação que pudesse evitar que o marinheiro tivesse de se virar para o mestre e assim deixar de auxiliar o piloto em caso de necessidade, sendo tal possível, conforme decorre do Relatório do ISN, que também recomenda o uso de linhas de vida a bordo das lanchas;
38. Normais deveres de cuidado impunham também à Recorrente que avaliasse os meios para a recuperação de náufrago existente à popa da lancha, a fim de determinar em que condições podiam os mesmos ser usados, articular o seu uso com o EPI dos pilotos (casaco com colete insuflável e colete salva-vidas) e verificar se estes eram adequados ao resgate com os meios da lancha, bem como testar a adequação dos demais meios de salvação da lancha (ponto 165 dos Factos Provados) e verificar as respectivas limitações, designadamente em que condições de tempo e mar podiam ser usados e se eram aptos a resgatar o piloto caso este se encontrasse consciente, mas sem forças, ou mesmo inconsciente. Nada foi feito, apesar das orientações da OMI (Docs. 8, 9 e 10 do requerimento dos AA de 05.11.2019 a fls. 1061 a 1097 vol. V, e tradução a fls. 1143 a 1150, vol. V, a fls. 1178 a 1217, e 1218 a 1246, vol. VI), muito específicas e úteis para este efeito, caso a Recorrente tivesse querido fazer o que lhe competia;
39. A Recorrente limitou-se a entregar ao sinistrado uns sapatos e um casaco com colete salva-vidas incorporado (EPI), a que chamou “medidas de controlo” dos riscos de queda e afogamento (Anexo ao contrato de trabalho - Doc. 7 p.i.; fls. 374 a 380 vol. III), mas que não controlaram nada. A Recorrente não podia alhear-se das condições concretas de segurança em que efectivamente os seus trabalhadores exerciam a actividade, mas foi isso que fez;
40. No que toca ao casaco, a Recorrente não informou o sinistrado e os tripulantes da lancha da existência de uma alça de recuperação lateral no seu interior que apenas fica visível quando o colete acoplado ao casaco dos pilotos insufla automaticamente; não ministrou formação ao sinistrado sobre a sua utilização, organizando exercícios de segurança; e o casaco envergado pelo sinistrado nunca foi testado em cenário real, sendo que o uso do mesmo não se encontra entre o EPI recomendado pelo ISN no seu Relatório. Actos omissivos da Recorrente que claramente violam o n.º 1 do art.º 282º do Cód. do Trabalho e as als. b) e d) do art.ºs 6º e o art.º 9º do DL n.º 348/93, de 1/10;
41. A ser verdade o que a própria Recorrente diz, que a alça lateral do casaco do piloto não servia para este ser içado pelo turco, mas apenas puxado pelos tripulantes com as mãos, então ficaria anulada a função do turco, por impossibilidade de ligação ao sinistrado, e imperioso se torna concluir que, apenas dispondo os tripulantes de uma mão para auxiliar o sinistrado, e considerando o bordo livre da lancha que era de 1,20 metros, era impossível resgatá-lo da água por inadequação do EPI;
42. A lancha não tinha os meios necessários ao resgate do sinistrado da água, sobretudo em condições de tempo e mar adversas, e com o mesmo sem forças ou mesmo inconsciente. O próprio ISN no seu Relatório recomenda a aquisição de plataformas elevatórias electricas ou hidráulicas, idênticas às usadas nas lanchas do porto de Leixões e de Sines;
43. Tendo, deste modo, violado todas as normas do art.º 3º do DL n.º 50/2005, de 25/2, porquanto não assegurou que estes equipamentos eram adequados à operação de resgate a efectuar e que garantiam a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização; não atendeu, na escolha desses equipamentos, à possibilidade da sua utilização em condições de tempo adversas com náufrago consciente e sem forças ou inconsciente, nem aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores; não tomou em consideração a posição dos tripulantes da lancha e do sinistrado durante a utilização desses equipamentos, nomeadamente que aqueles apenas dispusessem de uma mão para operar com o equipamento e que este se encontrasse na água sem possibilidade de aceder ao equipamento ou de subir a escada; e não tomou as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes; não assegurou a manutenção adequada do cabo da talha, de modo que o mesmo não tivesse de ser cortado e não alcançasse o nível da água, dificultando o resgate do náufrago;
44. A Recorrente violou também o n.º 1 do art.º 282º do Cód. do Trabalho e o art.º 8º, n.ºs 1 e 2, als. a) e d) do mesmo DL n.º 50/2005, porquanto a Recorrente não prestou aos trabalhadores informação escrita sobre esses equipamentos, condições de utilização e riscos inerentes. E ainda violou o art.º 31º, als. a) e f) do DL n.º 50/2005, porquanto os meios de recuperação não estavam instalados de modo a reduzir os riscos profissionais nem foram utilizados em operação de resgate e em condições de tempo e mar para as quais fossem apropriados;
45. Competia ainda à Recorrente, a elaboração de plano de emergência para a situação de “Homem ao Mar”, como recomendado pelo Relatório do ISN, que também definisse as funções do piloto-coordenador a fim de não se perder tempo em accionar os outros meios de socorro para além da lancha (17 minutos, uma eternidade, demorou o alerta à Capitania do Porto de Cascais), o que a Recorrente também não fez como lhe competia, violando culposamente a al. f) do art.º 2º do referido DL n.º 46/2002;
46. Nesse caso, a lei ou os normais deveres de cuidado de um homem médio impunham à Recorrente medidas adequadas para minimizar o risco existente, não podendo de maneira nenhuma permitir que o sinistrado trabalhasse nas condições em que trabalhava. Aquilo a que a Recorrente chama a praxis da profissão, mais não é do que a necessidade de os pilotos preencherem o vazio deixado pela falta de regulamentação apropriada das suas condições de trabalho e não isenta a Recorrente dos seus deveres e obrigações neste domínio;
47. Assim sendo, interpretada globalmente a decisão de facto, forçoso é concluir que foi a omissão culposa da Recorrente e a violação de regras especiais e gerais sobre segurança no trabalho que causou o acidente. Se a Recorrente tivesse cumprido com os seus deveres em matéria de segurança no trabalho, o acidente não teria ocorrido, conforme decorre de todos os relatórios produzidos sobre este acidente (pelo GAMA, pela Recorrente e pelo ISN);
48. Havendo ausência e omissão total das medidas de segurança que deviam ser implementadas pela Recorrente, a probabilidade objetiva de originar e de causar um acidente de trabalho era muito elevada, sobretudo atendendo à perigosidade das funções desempenhadas pelo sinistrado, estando verificado o necessário nexo causal;
49. Importa apenas fazer uma última referência às insinuações relativas à menor destreza física do sinistrado apesar de nenhuma prova ter sido feita que a colocasse em causa. A destreza física integra a aptidão física necessária para o exercício de funções e foi atestada pela própria Recorrente (serviços de Medicina do Trabalho) ao sinistrado (art.º 14º, n.º 1 do DL n.º 48/2002), sendo que ficou provado (ponto 263) que o sinistrado estava fisicamente apto ao exercício de funções. Se a Recorrente considerasse o peso e o consumo de canabinóides factores de risco acrescido, caber-lhe-ia, mais uma vez, ter aprovado um regulamento interno que estabelecesse limites ao peso dos pilotos e que proibisse o consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, nos termos do n.º 3 do art.º 14º do DL n.º 48/2002, ou realizado ao sinistrado exames intercalares, ao abrigo do n.º 2 do mesmo preceito, o que também não fez;
50. No que toca às conclusões L e LI do recurso, a sentença recorrida não tinha de referir que as prestações mensais correspondem a 1/14 do montante da pensão anual porque essa proporção decorre directamente da lei (n.º 1 do art.º 72º da LAT), sendo que os Recorridos não querem nem podem receber mais do que aquilo a que têm direito. Assim sendo, nada há a alterar ou a esclarecer;
51. No que toca aos danos não patrimoniais, a esperança média de vida do sinistrado é aferida por referência à data do acidente e não à data do seu nascimento, contendo os autos os elementos suficientes para aferir da sua saúde, vida social, familiar e profissional, como se retira dos pontos 170 a 179, 262 e 263 dos Factos Provados e do Doc. 9 junto com a contestação, de fls. 701 a 722, vol. III, junto pela própria Recorrente;
52. Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art.º 494º do Cód. Civil, por remissão do n.º 4 do art.º 496º do mesmo Código, a prova produzida permite concluir que a Recorrente causou o acidente por omissão culposa que lhe é imputável e por violação de várias regras sobre segurança e saúde no trabalho, revestindo a sua actuação um elevado grau de culpabilidade em função da sua natureza jurídica e das suas especiais atribuições em matéria de segurança;
53. Deste modo, as indemnizações fixadas devem ser mantidas, por se situarem dentro dos valores indemnizatórios admitidos pela jurisprudência dos tribunais superiores para casos semelhantes, não tendo a sentença recorrida violado o art.º 496º do Código Civil. Devem, assim, improceder as conclusões LII a LXI do recurso da Recorrente.
Da ampliação do objecto do recurso
54. Por mera cautela, plenamente justificável pela tutela dos interesses em presença, nomeadamente os de uma criança, subsidiariamente, requer-se a ampliação do objecto de recurso - sem embargo dos poderes oficiosamente conferidos ao tribunal ad quem pelo art.º 662º do CPC - com fundamento no n.º 2 do art.º 636º do CPC, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pela Recorrente, o que não se concebe nem aceita, ou antecipando que algumas questões possam relevar para a decisão de direito e sobre as quais a sentença recorrida não se tenha pronunciado, como devia, ocorrendo a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC. Assim,
55. Deve ser julgada não provada a matéria constante do ponto 226 dos Factos Provados, por visar a decisão do piloto nomeado de prestar ou não o serviço de pilotagem, encontrando-se em contradição com o ponto 274 dos Factos Não Provados, objecto de impugnação pela Recorrente e sobre a qual os Recorridos já se pronunciaram, motivo pelo qual, por economia de exposição, dão aqui por integralmente reproduzidos todos os concretos meios de prova indicados nos pontos 15 e 16 destas Conclusões, devendo esta matéria passar a constar dos Factos Não Provados, uma vez que, não se pode considerar que seja uma regra da operação de desembarque que integra a praxis da profissão, que seja de todos – pilotos e tripulação da lancha – conhecida e, por eles, colocada em prática diariamente (pontos 248, 249 e 250 dos Factos Provados);
56. Deve também ser dada como não provada a matéria do ponto 244 dos Factos Provados, com fundamento no depoimento unânime dos pilotos e dos tripulantes da lancha, designadamente do próprio marinheiro, como atestam os depoimentos das testemunhas da Recorrente e da Recorrida DD, MM, JJ, PP, KK, EE e NN, cujas passagens da gravação estão devidamente indicadas na alegação e que aqui se consideram reproduzidas. Ao contrário do que consta da motivação da douta sentença, o “Procedimento de Coordenação da Pilotagem” (doc. 4 junto com a contestação; fls. 620 a 627 vol. III) nada refere a este propósito;
57. Deve ainda ser modificada a redacção do ponto 256 dos Factos Provados, eliminando-se a parte em que se lê “umas calças impermeáveis com flutuabilidade positiva”, passando a constar apenas: Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco com o colete salva-vidas incorporado e uns sapatos, com classificação máxima de segurança;
58. O texto a eliminar deve-se certamente a lapso manifesto, por estar em contradição com os pontos 70 e 71 dos Factos Provados, pois o EPI aprovado, adquirido e fornecido pela Recorrente ao sinistrado não contemplava nenhumas calças impermeáveis com flutuabilidade positiva, nem as mesmas constam do Regulamento de Utilização dos Equipamentos de Protecção Individual, anexo à ordem de serviço n.º 09/2010, de 30.03.2010, aprovado pela Recorrente e vigente à data do acidente (doc. 3 do requerimento dos AA. de 05.11.2019, de fls. 967 a fls. 983, vol. V), nem do EPI constante do documento Anexo ao contrato de trabalho do sinistrado (doc. 7 da p.i., de fls. 374 a 380 vol. III), o que também decorre dos depoimentos das testemunhas JJ, PP, KK e EE cujas passagens da gravação por referência à acta estão indicadas na alegação para a qual aqui se remete;
59. Os factos sobre os quais a decisão é omissa, ocorrendo nulidade da mesma ao abrigo da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, mas que os Recorridos entendem que deveria sobre os mesmos ter recaído decisão, por terem sido alegados pelos Recorridos na sua p.i. e serem relevantes para a decisão de direito, são os seguintes:
60. Deve ser aditado aos factos provados o seguinte facto: Na autópsia realizada ao sinistrado foram observadas lesões traumáticas na cabeça, no pescoço e no antebraço direito que terão sido produzidas por uma acção de natureza contundente, mas que não foram adequadas a produzir a morte do sinistrado;
61. Por se tratar de matéria alegada pelos Recorridos nos artigos 92º e 93º da p.i., ser relevante para aferir da sua condição na água e das consequências da operação de resgate, prevenindo a hipótese de procederem os pontos VIII a X das Conclusões da Recorrente, devia a sentença recorrida ter-se pronunciado sobre esta matéria já que a mesma consta do relatório de autópsia e é sustentada com elevado grau de probabilidade pelos pontos 68, 152, 97, 99 e 101 dos Factos Provados;
62. Deve também ser aditado aos factos provados o seguinte facto: No Inverno, a água do mar assume temperaturas entre 12ºC e os 13ºC. A temperatura da água do mar no Inverno foi matéria alegada pelos Recorridos no artigo 202º da sua p.i., tendo ficado provado pelo depoimento das testemunhas DD, marinheiro da lancha, e PP, piloto, cujas passagens da gravação por referência à respectiva acta estão indicadas na alegação para a qual aqui se remete, que essa temperatura será de 12/13ºC. Este facto releva para a aplicação da tabela de hipotermia (Doc. 7 do requerimento dos AA. de 05.11.2019; fls. 1060 e tradução a fls. 1122 a 1125, vol. V) por forma a melhor demonstrar os efeitos da imersão em água fria no sinistrado e caso venham a ser julgadas procedentes as conclusões XXXVI e XLIII da alegação da Recorrente, o que não se concebe nem aceita;
63. Atenta a matéria alegada pelos Recorridos nos artigos 221º e 214º da p.i., devia a douta sentença ter julgado provados os seguintes factos: O único meio de salvação existente no local para prestar auxílio imediato ao sinistrado era a lancha dos pilotos, com a respectiva tripulação e equipada com os meios existentes a bordo. E que: A tripulação da lancha devia funcionar como equipa de resgate em caso de queda à água do piloto;
64. Prevenindo a possibilidade de ser relevante para a decisão na perspectiva do direito, no caso de, por absurdo, vir a ser dado provimento à conclusão XLVI da alegação da Recorrente. Esta matéria foi comprovada pelos depoimentos das seguintes testemunhas: DD, LL, MM, JJ, PP e OO, cujas passagens da gravação estão devidamente indicadas na alegação e que aqui se dão por reproduzidas;
65. Deve também ser aditado aos factos provados o seguinte facto: A escada da lancha era curta. Este facto foi alegado pelos Recorridos no artigo 228º e releva para aferir a adequação dos meios de resgate da lancha à popa no concreto circunstancialismo da noite do acidente.
66. Este facto encontra-se suficiente demonstrado pelo ponto 4.6. l) c) das Recomendações para a aquisição de novos equipamentos do “Relatório Interno do Acidente que vitimou o piloto da barra AA no dia 28 de Fevereiro de 2018”, elaborado pela equipa de análise interna do Departamento de Pilotagem da Recorrente (doc. n.º 11 do requerimento de 31.10.2019, de fls. 927 a 961 vol. IV e V); pelo ponto 10.3.4 do Guia sobre técnicas de resgate (Doc. 9 do requerimento dos AA. de 05.11.2019 de fls. 1061 a 1097, vol. V, e tradução a fls. 1143 a 1150, vol. V, a fls. 1178 a 1217, e 1218 a 1246, vol. VI); e pelos depoimentos dos tripulantes da lancha DD, LL e MM, bem como o do piloto PP, que se encontram devidamente indicados na alegação por referência à acta e com as passagens da gravação pertinentes e que aqui se dão por reproduzidas;
67. De igual forma, por resultar da matéria alegada pelos Recorridos no artigo 231º da p.i. e por relevar para a apreciação da falta de preparação da tripulação da lancha para o resgate e dinâmica do acidente, deve ser aditado aos factos provados que: O sinistrado estava inconsciente na água quando o marinheiro e o motorista usaram o turco. Tal facto foi, sem sombra de dúvida, testemunhado pelo marinheiro DD, cuja passagem da gravação se encontra indicada na alegação para a qual aqui se remete;
68. Também devia ter sido provado o seguinte facto: Para ser resgatado o sinistrado tinha de engatar o mosquetão do cabo da talha na alça lateral do seu casaco. Esta matéria decorre do artigo 235º da p.i. e releva para a apreciação da falta de adequação dos meios de resgate a bordo da lancha e falta de preparação da tripulação para uma operação de resgate deste tipo. A sua prova encontra-se estribada no Relatório de Investigação Técnica do GAMA (pág. 21 do Doc. 2 da p.i., de fls. 228 a 253, vol. II) e no depoimento das testemunhas JJ, NN, II e OO, de acordo com as passagens da gravação que se encontram indicadas no corpo da alegação e que aqui se dão por reproduzidas;
69. Com os mesmos fundamentos, mas reportando-se às condições de tempo e mar, devia ter sido julgado provado que: O turco e a escada existentes na lancha não eram adequados à operação de resgate de náufrago nas condições de tempo e mar referidas em 43. Tal facto decorre do artigo 197º da p.i. dos Recorridos que lograram prová-lo através dos depoimentos das testemunhas DD, LL, JJ, KK e NN, cujas passagens da gravação constam do corpo da alegação e que aqui se dão por reproduzidas;
70. Quaisquer outros factos relevantes e que constem, nomeadamente, do documento superveniente que ora se junta, devem ser tidos em conta na apreciação da matéria de facto, determinando, se necessário, a sua modificação, à luz dos poderes que oficiosamente o art.º 662º do CPC reconhece ao tribunal ad quem.
TERMOS EM QUE deve ser negado provimento ao presente recurso e confirmada a douta sentença recorrida, com o que V.as Ex.as, Senhores Desembargadores, farão a costumada JUSTIÇA!
Por despacho judicial proferido em 31-05-2022, procedeu-se às seguintes correções da sentença:
- no ponto 101 dos factos provados, ser eliminada a referência a “o que não conseguiu”; e
- no ponto 279 da matéria de facto não provada, onde consta ponto “9” passe a constar ponto “278”.
No mesmo despacho, o tribunal a quo pronunciou-se quanto às nulidades da sentença, invocadas pelos Autores, a título subsidiário, no sentido da sua improcedência.
A Ré “APL” veio responder à ampliação do recurso apresentada pelos Autores, terminando com as conclusões que se seguem:
I. Contrariamente ao que preconizam os Recorridos, o documento junto aos autos com as suas alegações de recurso não tem a virtualidade probatória que do mesmo os Recorridos pretendem retirar.
II. Desde logo, porque tal documento atesta que, em todo o sector de actividade em que a Recorrente actua, nunca antes se havia sentido a necessidade de proceder a uma formação do tipo que foi feito após a ocorrência do acidente em causa nos presentes autos, e, mais que isso, que não existia qualquer formação disponível que a Recorrente pudesse facultar aos seus trabalhadores.
III. Ora, a Recorrente não podia fornecer aos seus trabalhadores, maxime, ao sinistrado uma formação inexistente, pelo que o simples facto de, após o acidente, tal formação se ter revelado possível (para o que muito contribuíu o acidente, como o atesta o relatório da formação) não é, nem pode ser, considerado suficiente para concluir que a Recorrente deveria ter feito mais do que aquilo que fez em matéria de formação profissional.
IV. Por outro lado, a formação que deu origem à elaboração do referido relatório abrangeu trabalhadores de 4 administrações portuárias (Leixões, Setúbal, Sines e Lisboa), tendo sido utilizados os equipamentos de protecção individual fornecidos por cada uma dessas administrações, sendo que o relatório não especifica, em relação aos diversos grupos de trabalhadores que frequentaram a formação que equipamentos lhes haviam sido fornecidos, mas, muito mais que isso, não especifica que concretos equipamentos de protecção individual foram considerados desadequados à finalidade pretendida.
V. A circunstância de o relatório em análise não especificar, nem concretizar, a que trabalhadores se reporta impede, naturalmente, que o mesmo possa ser utilizado para concluir que os equipamentos de protecção indivual fornecidos pela Recorrente aos seus trabalhadores não eram aptos ou adequados à sua finalidade.
VI. Ademais, o relatório em apreço permite concluir que há determinados comportamentos que, não sendo correctos, são transversais aos trabalhadores de todas as administrações portuárias, o que significa que há aspectos relacionados com a segurança das operações que não são cumpridos, de forma generalizada, pelos trabalhadores, por decisão própria e sem qualquer responsabilidade dos respectivos empregadores, como sucede com a não utilização das linhas de vida.
VII. Por último, ainda se dirá que, contrariamente ao que parecem pretender os Recorridos, a Recorrente não poderia ter seguido ou cumprido as recomendações constantes do relatório ora junto aos autos antes do acidente, pela simples razão que o relatório foi elaborado em data posterior.
VIII. A ampliação do objecto do recurso, deduzida ao abrigo do n.º 2 do artigo 636.º do C.P.C., só pode ser admitida se for relevante para a posição do recorrido, relevância essa que apenas se verifica se tal ampliação for susceptível de, face à procedência do recurso interposto, dar origem à manutenção da sentença recorrida.
IX. Não basta, pois, para que se considere admissível a ampliação do objecto do recurso, que o recorrido requeira tal ampliação, arguindo a nulidade da sentença ou impugnando a matéria de facto, sendo, ainda, necessário que o recorrido justifique e explique em que medida é que a eventual procedência da ampliação do objecto do recurso é susceptível de contribuir ou assegurar que, não obstante a procedência do primitivo recurso, a decisão recorrida se deve manter inalterada.
X. A este propósito, constata-se que os Recorridos se limitam a fazer afirmações vagas e genéricas, que mais não são do que a mera reprodução das normas legais aplicáveis, sem que, verdadeiramente, se consiga compreender porque razão é entendimento dos mesmos que a eventual procedência da impugnação que apresentam, quando conjugada com a procedência do recurso apresentado pela Recorrente, levaria a manter a decisão recorrida, nos seus exactos termos.
XI. Na verdade, pese embora façam afirmações como prevenindo a hipótese de procedência de uma concreta conclusão do recurso apresentado pela Recorrente, o certo é que não explicam em que medida é que a ampliação do objecto do recurso pode contribuir, e de que forma, para afastar essa procedência.
XII. Não se sabendo, porque os Recorridos o não explicam, em que medida e alcance é que a alteração à matéria de facto que requerem pode influenciar ou modificar a decisão de direito a proferir, não pode, senão, concluir-se que não se verificam os requisitos de que depende a admissibilidade da requerida ampliação do objecto do recurso, a qual deve, portanto, ser indeferida.
XIII. Parte substancial da requerida ampliação do objecto do recurso assenta numa suposta nulidade da sentença por omissão de pronúncia por alegada falta de decisão quanto a um conjunto de supostos factos alegados pelos Recorridos na p.i.
XIV. Sucede que, como tem vindo a ser jurisprudência constante do nosso Supremo Tribunal de Justiça, a nulidade por falta de pronúncia apenas se pode verificar em relação a questões (ou seja, a matéria de direito) e não às decisões relativas à matéria de facto, em particular no que concerne à relevância (ou falta dela) que alguns factos alegados pelas partes possam ter para a decisão a tomar nos autos.
XV. Nesta medida, tal aparente falta de decisão, a ocorrer, configurará, eventualmente, um erro de julgamento, susceptível de ser objecto de recurso, mas não se traduzirá em qualquer nulidade da sentença.
XVI. Ademais, os factos a que os Recorridos aludem nas suas alegações são factos que o Tribunal a quo não considerou relevantes para a decisão da causa, como bem o atesta o teor da sentença.
XVII. Tanto basta, pois, para que, sendo o recurso da Recorrente julgado procedente (como não poderá deixar de o ser) o concreto segmento da ampliação do objecto do recurso relativo a uma suposta nulidade da sentença por omissão de pronúncia não seja conhecido, em virtude da inexistência de qualquer nulidade.
XVIII. Decorre da leitura das alegações de recurso que o que fundamenta a discordância dos Recorridos quanto à resposta dada ao facto n.º 266 é, tão-só o facto de entenderem que tal resposta contradiz o que ficou a constar do facto não provado n.º 274 (que, como se viu em sede de recurso deve, de resto, ser transposto para a matéria de facto dada como provada).
XIX. A proceder a modificação da matéria de facto requerida pela Recorrente (como não poderá deixar de suceder), verificar-se-á que se provou que A decisão última quanto à realização do serviço de pilotagem é do piloto-nomeado (facto provado n.º 226) e, ainda que, Os pilotos nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço (facto não provado número 274, que deve passar a constar da matéria de facto dada como provada).
XX. Da conjugação destes dois factos resulta que o piloto-nomeado é quem decide, em última instância, se o serviço de pilotagem é, ou não, efectuado, e, ainda, que já houve, de facto, situações em que o referido piloto-nomeado decidiu não efectuar o serviço por razões de segurança.
XXI. É, pois, evidente que não há qualquer contradição entre tais factos, pois que um reporta-se ao que é possível acontecer (a não realização do serviço por decisão do piloto-nomeado) e o outro retrata o que já aconteceu (a efectiva não realização do serviço por decisão do piloto-nomeado).
XXII. Por outro lado, importa, ainda, esclarecer que, contrariamente ao que preconizam os Recorridos, ambos estes factos abarcam e abrangem quer o serviço de pilotagem propriamente dito quer a concreta operação de embarque e desembarque do piloto, já que sem esta o serviço de pilotagem não pode ser efectuado.
XXIII. Ademais, e como já se disse em sede de alegações de recurso (que, aqui, se dão por integralmente reproduzidas), a prova efectuada nos autos permite bem demonstrar, sem qualquer dúvida, a veracidade de ambos os factos em análise, os quais se devem, pois, manter nos termos já peticionados em sede de alegações de recurso.
XXIV. O facto provado n.º 244 reporta-se, como bem o atesta o segmento da matéria de facto em que o mesmo se insere, aos procedimentos que devem ser seguidos aquando da concreta operação de desembarque, retratando o que deve ser feito, o que corresponde às regras e praxis da profissão, que é matéria que não se confunde com o que alguns trabalhadores da Recorrente decidem, ou não fazer, por sua livre iniciativa e, até, em violação dos procedimentos que devem seguir.
XXV. Nesta medida, a circunstância de existirem trabalhadores que afirmam que não seguem o referido procedimento não significa que o procedimento não exista, que não corresponda ao que ficou provado e que não deva ser seguido, sendo que os depoimentos citados pelos Recorridos apenas permitem saber que há, de facto, trabalhadores que não seguem esse procedimento, embora o conheçam e reconheçam.
XXVI. Acresce que, ficou cabalmente demonstrado nos autos que, entre outras funções, compete ao marinheiro auxiliar o piloto na concreta operação de desembarque (vejam-se os factos provados n.º 241 e 242, cuja veracidade os Recorridos não questionam), e que o piloto, antes de proceder ao desembarque, deve posicionar-se de modo a, entre outros, ver o marinheiro (facto provado n.º 243), o que bem atesta que deve seguir as indicações deste, pois que, se assim não fosse, não precisaria de manter o marinheiro no seu campo de visão antes de proceder ao desembarque, XXVII. No que concerne ao facto provado n.º 256, os Recorridos nem mesmo utilizam as expressões genéricas e vagas a que recorreram para justificar as restantes modificações que pretendem que sejam introduzidas à matéria de facto dada como provada, nada referindo ou dizendo quanto às razões que os leva a entender que a modificação deste concreto facto possa ter alguma relevância caso o recurso interposto pela Recorrente seja procedente (como não poderá deixar de ser o caso).
XXVIII. Ademais, analisada a decisão proferida nos autos e, bem assim, o recurso interposto pela Recorrente, constata-se, facilmente, que o facto provado n.º 256, na parte em que se reporta ao fornecimento de calças impermeáveis com flutuabilidade positiva, não tem qualquer relevância ou importância para a decisão a tomar, não se vislumbrando porque motivo o mesmo deverá ser modificado.
XXIX. É entendimento pacífico e unânime na nossa jurisprudência que a matéria de facto não pode conter conclusões ou juízos de valor, devendo integrar, somente, factos.
XXX. Dos 6 alegados factos que os Recorridos pretendem que sejam aditados à matéria de facto, os “factos” D2.1 (na sua parte final), D2.3, D2.4 e D2.7 são, na verdade conclusões e não factos, pelo que não podem constar da matéria de facto, sendo que, no que especificamente diz respeito ao suposto “facto” D2.7 o mesmo encerra, em si mesma, a decisão a dar aos autos, o que não é processualmente admissível.
XXXI. Tendo ficado demonstrado que o sinistrado morreu por asfixia mecânica por afogamento (facto provado n.º 4), não se vê que importância possa ter a circunstância de o mesmo ter sofrido lesões traumáticas no pescoço e no antebraço direito, ainda que, como não poderá deixar de ser, fique provado que o mesmo tinha cannabinóides no sangue, já que este facto o que faz é esclarecer e explicar as razões que estiveram na génese da dificuldade sentida pela tripulação para resgatar o sinistrado.
XXXII. Para este efeito, saber-se que o sinistrado sofreu lesões traumáticas, sem que se saiba em que momento do ocorrido tais lesões foram infligidas e, mais que isso, sem que se saiba quais as consequências para o seu estado clínico que tais lesões podem ter tido, nenhuma relevância ou importância tem, pelo que este concreto pedido de aditamento à matéria de facto dada como provada deve ser indeferido.
XXXIII. Determinar a temperatura da água no momento do acidente seria relevante, nomeadamente para apurar quais as consequências que essa temperatura poderá ter tido para o sinistrado, mas saber-se qual a temperatura que se poderia fazer sentir de nada serve para esse efeito, pois que, não permite saber qual a temperatura que, no momento do acidente, se fazia sentir dentro de água.
XXXIV. Ademais, tal facto, desacompanhado de um outro facto que permita demonstrar quais as consequências que a temperatura da água e o tempo a que uma pessoa esteve sujeita a essa temperatura, é absolutamente inútil, sendo que a matéria de facto dada como provada não inclui qualquer referência a tais consequências e esta falta não pode ser suprida, como pretendem os Recorridos, por via de meios probatórios.
XXXV. Por outro lado, os meios de prova citados pelos Recorridos para sustentar este específico pedido de modificação da matéria de facto não são aptos a demonstrar a sua veracidade, quer porque as duas testemunhas citadas pelos Recorridos nas suas alegações não demonstraram ter qualquer razão de ciência ou efectivo conhecimento sobre as afirmações e conclusões a que fizerem alusão nos seus depoimentos a este concreto respeito e, ainda, porquanto não afirmaram que a temperatura da água se situaria entre os 10.º e os 12.º mas, sim, entre os 12.º e os 13.º que é realidade bem distinta e diferente daquela que os Recorridos pretendem carrear para os autos.
XXXVI. É falso que a lancha dos pilotos fosse o único meio de salvação existente no local, aquando da ocorrência do sinistro em causa nos presentes autos, pois que, como resulta da conjugação dos factos provados n.º 67, 74 e 260, no momento em que o sinistrado caiu à água, para além da lancha dos pilotos, encontrava-se no local o navio “Singapore Express”, que não só tinha a capacidade de auxiliar o sinistrado como, mais que isso, adoptou, de facto, procedimentos de auxílio, como o demonstra a circunstância de ter atirado ao sinistrado uma bóia com lanterna (facto provado n.º 260).
XXXVII. E nem se diga, como fazem os Recorridos, que os depoimentos dos tripulantes da lancha (citados pelos Recorridos) afastam o que acabou de se dizer, pois que a circunstância destes terem afirmado saber que, no âmbito das suas funções, lhes incumbia resgatar pessoas da água não é o mesmo que afirmar, de forma conclusiva, que tais tripulantes e a embarcação onde os mesmos se encontravam eram o único meio de salvação e resgate existente.
XXXVIII. Acresce que, o facto de tais tripulantes terem declarado que, numa situação de homem ao mar, lhes compete adoptar todos os procedimentos necessários à salvação do naufrágo não constitui, como pretendem os Recorridos, qualquer norma específica ou costume da actividade pelos mesmos desempenhada, dado que, qualquer pessoa, independentemente das funções que exerça e das circunstâncias em que se encontre, tem a obrigação de auxiliar alguém que se encontre em perigo, sob pena de praticar um crime de omissão de auxílio (artigo 200.º do Código Penal).
XXXIX. Da própria matéria de facto dada como provada, pois que desta consta que o sinistrado se agarrou à escada (facto provado n.º 84), o que atesta que a mesma não era curta, como pretendem os Recorridos, pois que se o foss o sinistrado não se teria conseguido agarrar a ela.
XL. Acresce que, o facto de o relatório interno feito ao acidente em causa nos presentes autos (Doc. n.º 11 do requerimento de 31.10.2019) recomendar que a escada de resgate fosse aumentada não significa, por si só, que a escada fosse curta para a sua finalidade (como o não era, como se viu), pois que tal recomendação teve, por base, somente facilitar o acesso à escada, como, de resto, os próprios Recorridos reconhecem.
XLI. Por seu turno, as orientações da IMO a que os Recorridos aludem nas suas alegações são, para este efeito, inteiramente irrelevantes, na medida em que não se sabe qual a altura da escada e, consequentemente, não se sabe se tal altura está de acordo com tais orientações.
XLII. Por último, a propósito dos depoimentos citados pelos Recorridos para fundamentar esta sua pretensão, sempre se dirá que os mesmos não passam de opiniões sem qualquer sustentação ou suporte factual e que, para mais, são afastadas pelo depoimento de outra testemunhas, igualmente pilotos da barra, como o atesta o depoimento da testemunha FF, prestado no dia 02.06.2020, gravado no suporte áudio 20200602160203_2778682_2871710).
XLIII. Acresce que, se é certo que a testemunha DD afirmou que a escada era curta, é igualmente certo que essa mesma testemunha acabou por reconhecer não saber, de facto, qual era a altura da escada, já que nem mesmo sabia se a escada depois de arreada ficava com dois ou três degraus debaixo da linha de água, como de igual modo não sabia qual a distância entre cada degrau, o que equivale a dizer que nem mesmo sabia qual era, na verdade, a altura da escada (cfr. minutos 44 a minutos 49 do depoimento prestado no dia 16.12.2019, gravado em suporte áudio com a referência 20191216105333_2778682_2871710)
XLIV. O facto de os Recorridos entenderem que as circunstâncias em que o acidente ocorreu e, em particular, o momento em que determinados factos se verificaram não se encontra suficientemente explicado nos autos não é, obviamente, suficiente para que se possa afirmar que uma determinada alegação resultou provada nos autos.
XLV. Resulta da conjugação dos factos provados n.º 89 e 97 com o facto provado n.º 92 e, acima de tudo, com a conjugação da sequência de todos os factos referentes ao modo como aconteceu o acidente e, em concreto, dos factos relativos às tentativas de resgate do sinistrado (factos provados n.º 67 a 99), que, quando a tripulação da lancha, em particular, o marinheiro, desceram o turco, o sinistrado ainda estava consciente.
XLVI. A matéria de facto dada como provada não pode conter factos que sejam contraditórios entre si, pelo que da mesma não pode, simultaneamente, decorrer que o sinistrado ainda estava consciente quando o turco foi descido (como acabou de se ver que decorre) e que, nesse mesmo momento, o não estava.
XLVII. Para que o facto que os Recorridos pretendem aditar à matéria de facto pudesse ser dado como provado era, desde logo, necessário que os mesmos tivessem, igualmente, requerido a modificação dos factos a que acabou de se aludir, pois só dessa forma se conseguiria assegurar que a matéria de facto não contém factos contraditórios entre si.
XLVIII. Afirmar-se que para ser resgatado o sinistrado tinha de engatar o mosquetão é o mesmo que afirmar que a única forma de resgate possível era através da utilização do cabo da talha, afirmação que a matéria de facto dada como provada demonstra bem não ser verdade, já que o sinistrado poderia ser resgatado e puxado para dentro da lancha através da escada que existia à popa da lancha (factos provados n.º 83 e 84).
XLIX. Por outro lado, a testemunha FF (depoimento prestado no dia 02.06.2020 e gravado no suporte aúdio com a seguinte referência 20200602160203_2778682_2871710), a respeito desta matéria, explicou devidamente que o turco e o cabo que o compõe são perfeitamente aptos ao resgate de náufragos inconscientes, o que significa que podem ser utilizados sem auxílio do náufrago.
L. Ademais, analisando devidamente os depoimentos citados pelos Recorridos verifica-se, desde logo, que a sua grande maioria não afirma que só era possível resgatar o sinistrado se este prendesse o mosquetão do cabo da talha à alça do colete, dizendo, somente, que era difícil fazê-lo, que é realidade bem distinta.
LI. Afirmar-se, como pretendem os Recorridos que se afirme, que o turco e escada existentes na lancha não eram adequados não só configura uma conclusão (que, como já se viu, não pode constar da matéria de facto dada como provada), como, mais que isso, permite retirar, sem mais, da matéria de facto a solução de direito a dar a causa.
LII. Na verdade, se o que se discute nos autos é se a Recorrente violou ou não violou as suas obrigações em matéria de segurança no trabalho, é evidente que a existência de um suposto facto que afirma, sem mais, que os meios de resgate existentes não eram adequados à sua finalidade, é fazer constar da matéria de facto dada como provada a solução jurídica a dar à causa, o que é processualmente proibido.
LIII. Acresce que, contrariamente ao que pretendem os Recorridos, o turco e a escada eram perfeitamente adequados a uma operação de resgate, como o atesta o que, a este respeito, foi afirmado pela testemunha FF (depoimento prestado no dia 02.06.2020, pelas 16h02 e gravado no suporte áudio com a referência 20200602160203_2778682_2871710).
LIV. Por outro lado, não pode esquecer-se que, a proceder o recurso interposto pela Recorrente (como não poderá deixar de suceder), ficará demonstrado nos autos que o cabo do turco foi cortado por DD, facto que, obviamente, não pode deixar de ser tido em consideração, principalmente, na análise do depoimento desta testemunha quanto à alegada desadequação dos meios de resgate em apreço.
LV. Ademais, o depoimento da testemunha LL não é apto a sustentar tal conclusão, já que desse depoimento apenas resultam as dificuldades sentidas no resgate do sinistrado e não qualquer inaptidão ou inadequação destes concretos meios de resgate.
LVI. Acresce, ainda, que os depoimentos das testemunhas JJ, KK e NN, de que os Recorridos se socorrem para sustentar a sua tese, não correspondem, verdadeiramente, a depoimentos, mas sim a opiniões e conclusões.
Nestes termos, e nos melhores de direito que doutamente se suprirão, deve ser indeferida a requerida modificação da matéria de facto, mantendo-se a sentença inalterada, somente, no que aos concretos pontos da matéria de facto que os Recorridos pretendem ver modificados.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, sido dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, no qual a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso e, nessa conformidade, pela não apreciação da ampliação do recurso.
Não houve respostas a tal parecer.
Neste tribunal, o recurso foi admitido nos seus precisos termos e os autos foram aos vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, as questões que importa decidir são[4]:
1) Admissão de documento (requerido pelos Autores);
2) Apreciação oficiosa das contradições fácticas;
3) Impugnação da matéria de facto (recurso da Ré “APL”);
4) Inexistência dos requisitos previstos no art. 18.º, n.º 1, da LAT (recurso da Ré “APL”);
5) Incompleta determinação do número de prestações mensais a liquidar (recurso da Ré “APL”);
6) Exagerado quantum indemnizatório atribuído relativamente ao dano morte do sinistrado e aos danos morais sofridos pelos Autores (recurso da Ré “APL”);
7) Impugnação fáctica (ampliação de recurso pelos Autores);
8) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia (ampliação de recurso pelos Autores).
III – Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
1. Em 28/02/2018, AA (doravante, sinistrado) exercia as funções de piloto do porto e da barra sob a autoridade e direcção da A.P.L. – Administração do Porto de Lisboa, S.A. (doravante, empregadora) com a categoria de piloto júnior, correspondente ao grau 3 da carreira do pessoal técnico de pilotagem [alínea A) dos factos assentes].
2. O sinistrado sofreu, em 28/02/2018, pelas 00:47 horas, ao largo da baía de Cascais, um acidente de trabalho durante o desempenho das suas funções de piloto do porto e da barra ao serviço da entidade empregadora [alínea B) dos factos assentes].
3. Tal acidente ocorreu quando o sinistrado, ao desembarcar do navio “SINGAPORE EXPRESS, caiu à água, durante a sua transferência da escada do piloto para a lancha de pilotagem [alínea C) dos factos assentes].
4. Do acidente adveio o óbito do sinistrado que foi declarado às 02:30 horas do dia 28/02/2018 [alínea D) dos factos assentes].
5. A causa da morte do sinistrado foi asfixia mecânica por afogamento [alínea E) dos factos assentes].
6. O sinistrado auferia, à data, a remuneração base de € 2330,70 x 14 meses, acrescido de subsídio de alimentação de € 7,73 x 242 dias e ainda das importâncias de € 1686,68 x 14, € 94,00 x 12 e € 129,96 x 12, num total anual de € 60.801,50 [alínea F) dos factos assentes].
7. Na data referida em 2., a empregadora tinha a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho transferida para a ré Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, mediante contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº AT23061161, assegurando a cobertura da retribuição indicada em 6. [alínea G) dos factos assentes].
8. O sinistrado nasceu em .../.../1972 [alínea H) dos factos assentes].
9. O sinistrado faleceu no estado de casado com BB desde 03/10/2006 [alínea I) dos factos assentes].
10. BB nasceu em .../.../1977 [alínea J) dos factos assentes].
11. O casal tinha um filho, CC, nascido em .../.../2010 [alínea K) dos factos assentes].
12. A autora pagou a quantia de € 3 774,32 a título e despesas de funeral e transladação [alínea L) dos factos assentes].
13. No dia 15/01/2019, foi realizada tentativa de conciliação, na qual ambas as rés aceitaram a existência do acidente e a sua caracterização como acidente de trabalho no tempo e local acima indicados, o nexo de causalidade entre acidente e a morte do sinistrado, o resultado do relatório de autópsia, a retribuição do sinistrado no valor de € 60.801,50 e a transferência de responsabilidade para a ré seguradora pelo contrato de seguro mencionado em 7. [alínea M) dos factos assentes].
14. A ré Fidelidade – Companhia de Seguros, SA aceitou pagar à beneficiária uma pensão anual e vitalícia no montante de € 18 240,45, com início em 01/03/2018; o subsídio por morte no montante de € 2 830,74 e o subsídio por despesas de funeral, com transladação, no montante de € 3 774,32; e aceitou pagar ao beneficiário a pensão anual no montante de € 12 160,30, com início em 01/03/2018, até perfazer 18, 22 ou 25 anos e o subsídio por morte no montante de € 2 830,74 [alínea N) dos factos assentes].
15. Não houve conciliação entre as partes porque as rés não aceitaram pagar aos autores as quantias por estes reclamadas a título de agravamento da responsabilidade da ré empregadora no acidente de trabalho decorrente da falta de observação, por esta, das regras sobre segurança e saúde no trabalho [alínea O) dos factos assentes].
16. No exercício das suas funções, em 27/02/2018, pelas 22:00 horas, o sinistrado embarcou no navio de transporte de mercadorias “SINGAPORE EXPRESS”, com o n.º IMO 9200809, para aconselhar o comandante do mesmo nas manobras de largada do cais e na navegação de saída do porto, de acordo com a escala de serviço elaborada pelo Departamento de Pilotagem da ré empregadora [alínea P) dos factos assentes].
17. As características, dimensões e capacidade de manobra do navio “SINGAPORE EXPRESS” constam da ficha técnica (“Pilot Card”) apresentada pelo comandante do navio ao piloto após o embarque deste no navio, documento que foi assinado por ambos [alínea Q) dos factos assentes].
18. O navio era do tipo porta contentores, tinha uma arqueação bruta de 54401 toneladas, 293,99 metros de comprimento de fora a fora e 32,30 metros de boca [alínea R) dos factos assentes].
19. O sinistrado tinha iniciado a sua jornada de trabalho no dia 26.02.2018, pelas 12:00 horas, tendo anteriormente ao embarque no navio “SINGAPORE EXPRESS” realizado dois outros serviços de pilotagem sem que tivessem ocorrido quaisquer incidentes [alínea S) dos factos assentes].
20. O sinistrado embarcou no navio “SINGAPORE EXPRESS” em virtude de ter sido decidido pela Coordenação da Direção de Segurança e Pilotagem da ré APL, SA, na presença do Chefe do Departamento de Pilotagem, que se procederia à realização do serviço de pilotagem para dar saída ao navio.
21. A decisão de embarque no navio “SINGAPORE EXPRESS” foi tomada após terem sido consideradas pela Coordenação as condições de tempo e mar que se faziam sentir na altura ao largo de Cascais.
22. Estando previsto um serviço de pilotagem para dar entrada do navio tanque “TRANS EMERALD” no porto de Lisboa pelas 21:30 horas, com embarque de piloto no fundeadouro Sul da baía de Cascais, a Coordenação da pilotagem enviou a lancha dos pilotos “TORRE DE BELÉM”, que se encontrava no cais de espera da marina de Cascais, com o piloto que deveria embarcar nesse navio a bordo a fim de verificar se as condições de tempo e mar permitiam a realização das operações de embarque e desembarque de piloto no local.
23. O navio “TRANS EMERALD” tinha 5815 toneladas de arqueação bruta, 115 metros de comprimento de fora a fora e 18,83 metros de boca.
24. Como o navio “TRANS EMERALD”, com o n.º IMO 9295452, era de menor dimensão relativamente ao navio “SINGAPORE EXPRESS”, e fazendo, por isso, menor abrigo à ondulação e ao vento, o embarque de piloto naquele navio serviria como referência para a decisão sobre a existência de condições para o desembarque do sinistrado no mesmo local.
25. A transferência do piloto da lancha de pilotagem para o navio “TRANS EMERALD” e respetivo embarque ocorreu sem incidentes, não tendo a Coordenação da pilotagem recebido qualquer aviso para não se operar em Cascais.
26. Deste modo, foi decidido pela Coordenação da pilotagem manter o serviço de pilotagem requisitado para o navio “SINGAPORE EXPRESS”.
27. O navio “SINGAPORE EXPRESS” encontrava-se atracado e amarrado ao cais do terminal de contentores de Alcântara, no interior do porto de Lisboa, tendo, por isso, o sinistrado embarcado por terra, utilizando a escada de portaló do navio [alínea T) dos factos assentes].
28. O navio “SINGAPORE EXPRESS” largou do cais do terminal de contentores de Alcântara no dia 27.02.2018, pelas 23:00 horas, com o sinistrado a bordo [alínea U) dos factos assentes].
29. Após ter passado a boia de saída n.º 2, cerca das 00:17 horas de dia 28.02.2018, o navio “SINGAPORE EXPRESS” pilotado pelo sinistrado dirigiu-se para a Zona Sul da Baía de Cascais para desembarcar o piloto sinistrado.
30. O desembarque do sinistrado do navio pilotado seria feito com recurso à lancha dos pilotos “TORRE DE BELÉM”, com o conjunto de identificação LX-39-EST, pertencente à ré empregadora [alínea V) dos factos assentes].
31. Esta embarcação tinha uma arqueação bruta de 15,81 toneladas, 11,80 metros de comprimento e 3,35 metros de boca [alínea W) dos factos assentes].
32. A tripulação da referida lancha era composta, nesta ocasião, por três trabalhadores da ré empregadora com as seguintes funções: um mestre, um motorista e um marinheiro [alínea X) dos factos assentes].
33. Estes tripulantes correspondem ao número de marítimos que estão previstos estar a bordo da lancha “TORRE DE BELÉM” para que esta possa navegar.
34. A lancha em questão estava atracada no cais de espera da marina de Cascais a aguardar para ir realizar o serviço de desembarque e transporte do sinistrado do navio “SINGAPORE EXPRESS” para a referida marina, conforme programado pelos serviços da Direção de Segurança e Pilotagem da ré empregadora [alínea Y) dos factos assentes].
35. O navio “SINGAPORE EXPRESS” e a lancha “TORRE DE BELÉM” estavam equipados com AIS [alínea Z) dos factos assentes].
36. Ao passar a boia de saída n.º 2, pelas 00h17, o sinistrado contactou o mestre da lancha para coordenar com este o local e a forma pela qual se iria fazer o desembarque [alínea AA) dos factos assentes].
37. A comunicação entre o sinistrado e o mestre da lancha fez-se por telemóvel.
38. Nesse contacto telefónico, por forma a indagar das condições de segurança para o seu desembarque, o sinistrado questionou o mestre da lancha sobre se o navio aproado a Norte proporcionava um bom abrigo à ondulação e ao vento [alínea BB) dos factos assentes].
39. O mestre da lancha “TORRE DE BELÉM” confirmou que o navio faria um bom abrigo à lancha e que o sinistrado poderia desembarcar [alínea CC) dos factos assentes].
40. E, assim, o sinistrado e o mestre da lancha acordaram em fazer o desembarque por estibordo do navio “SINGAPORE EXPRESS”, com este aproado a Norte, por ser o lado que estava a sotavento e, portanto, abrigado da ondulação e do vento [alínea DD) dos factos assentes].
41. Após, a lancha largou do cais da marina de Cascais, às 00:18 horas de dia 28/02/2018, e dirigiu-se para o local do desembarque do sinistrado previamente acordado com o mestre da lancha [alínea EE) dos factos assentes].
42. Na Zona Sul da Baía de Cascais, e dentro da área de pilotagem obrigatória, o navio aproou a Norte para criar abrigo ao desembarque do sinistrado que se faria por estibordo.
43. Na altura do desembarque do sinistrado, a ondulação era de 4 metros de Sudoeste, chuva intensa, vento muito forte de Oeste (escala Beaufort força 5 com rajadas de força 7), preia-mar às 00:59 horas de 28.02.2018, com uma altura de 2,50 metros.
44. A visibilidade perto do navio era boa e este proporcionava um bom abrigo à ondulação e ao vento, que viabilizavam o desembarque do sinistrado [alínea FF) dos factos assentes].
45. O navio ficou com a proa a 350º, mantendo seguimento, com a máquina propulsora muito devagar a vante e à velocidade, em relação ao fundo, entre os 4 e os 5 nós, e o leme estava todo a estibordo para contrariar o efeito do vento e do mar, ou seja, que o navio derivasse e abatesse [alínea GG) dos factos assentes].
46. O navio não fundeou [alínea HH) dos factos assentes].
47. Pelas 00:43 horas, o sinistrado saiu da ponte de comando e dirigiu-se para a porta de desembarque, situada junto ao porão n.º 4, do lado de estibordo, a fim de desembarcar do navio para a lancha acima referida [alínea II) dos factos assentes].
48. Na porta de desembarque, que estava aberta e com a escada do piloto (escada de quebra costas) arreada sobre o costado do navio, o sinistrado aguardou pela lancha de pilotagem acompanhado pelo 2º piloto do navio [alínea JJ) dos factos assentes].
49. A escada do piloto era o único meio existente a bordo do navio para o desembarque do sinistrado [alínea KK) dos factos assentes].
50. A lancha “TORRE DE BELÉM” aproximou-se do lado de estibordo do navio, ficando com a sua amura de bombordo cerca de dois ou três metros avante da localização da escada do piloto [alínea LL) dos factos assentes].
51. A escada do piloto estava a ser iluminada pelo projetor do navio e pelo projetor da lancha [alínea MM) dos factos assentes].
52. De entre os tripulantes da lancha, é o marinheiro quem auxilia o piloto na transferência deste da escada pendurada no costado do navio para a lancha, para além de auxiliar também o mestre no governo da lancha [alínea NN) dos factos assentes].
53. O marinheiro estava no convés do lado de bombordo da lancha para simultaneamente dar indicações ao sinistrado e ao mestre da lancha, através de comunicação verbal com os mesmos [alínea OO) dos factos assentes].
54. O mestre e o motorista permaneciam dentro da cabine, o primeiro no governo da lancha e o segundo a auxiliar o mestre operando o projetor da lancha [alínea PP) dos factos assentes].
55. A escada de quebra-costas era formada por dois cabos separados entre si, para o piloto se agarrar com as mãos, e por estreitas tábuas transversais de madeira que constituíam os degraus para o piloto apoiar os pés, e tinha o comprimento de 1,58 metros [alínea QQ) dos factos assentes].
56. A altura da linha de água até ao primeiro degrau da escada era aproximadamente de 1,50 metros, sendo essa a altura solicitada pelo sinistrado para o desembarque de acordo com as práticas e usos da profissão [alínea RR) dos factos assentes].
57. A lancha dos pilotos tinha cerca de 1,20 metros de bordo livre, que é a altura da linha de água ao convés [alínea SS) dos factos assentes].
58. Com a amura de bombordo da lancha posicionada avante da escada e com a popa aberta, o marinheiro deu indicação ao sinistrado para descer a escada [alínea TT) dos factos assentes].
59. O sinistrado deixou então a porta de desembarque e, após largar os respetivos balaústres, agarrou-se aos cabos da escada, uma mão em cada um, e ficou com os pés apoiados no último ou penúltimo degrau [alínea UU) dos factos assentes], de costas para o mar, mas com o tronco ligeiramente virado para a lancha.
60. Nesta posição, o sinistrado aguardou o posicionamento da lancha para largar a escada e saltar para o convés da lancha, entrando na mesma pelo lado de bombordo [alínea VV) dos factos assentes].
61. O espaço livre para o salto no convés da lancha é exíguo e encontra-se permanentemente em movimento.
62. Naquela ocasião, o marinheiro tinha um capuz na cabeça, por causa da chuva [alínea WW) dos factos assentes].
63. O marinheiro virou-se para o mestre, que se encontrava dentro da cabine e a estibordo, para lhe dar indicações para se aproximar da escada no preciso momento em que o sinistrado resolveu saltar para o convés da lancha.
64. O sinistrado tentou saltar para o convés da lancha e largou uma das mãos da escada e quando passava um dos pés para o convés da lancha o apoio falhou e entrou em desequilíbrio [alínea XX) dos factos assentes].
65. Ficando sem apoio para os pés e suspenso apenas por uma mão à escada [alínea YY) dos factos assentes].
66. Ao se ter virado para o mestre, o marinheiro perdeu o contacto visual com o sinistrado e quando se voltou a virar para o mesmo já este se encontrava em desequilíbrio.
67. O sinistrado caiu ao mar quando deixou de se conseguir segurar à escada, pelas 00:47 horas de dia 28/02/2018, ao largo da baía de Cascais, na posição geográfica aproximada Latitude 38º 39.7’N e Longitude 009º 25.3’W [alínea ZZ) dos factos assentes].
68. O corpo do sinistrado não bateu em nada durante a queda, tendo caído diretamente na água [alínea AAA) dos factos assentes].
69. O sinistrado ao cair pediu auxílio.
70. Aquando da queda, o sinistrado envergava o equipamento de proteção individual aprovado, adquirido e fornecido pela 1ª R [alínea BBB) dos factos assentes].
71. Equipamento que consistia num casaco azul escuro, com gola vermelha, capuz amarelo fluorescente, com reflector longitudinal, da marca “Mullion Harbour Pilot Jacket”, e sapatos pretos de atacadores com sola antiderrapante e biqueira de aço [alínea CCC) dos factos assentes].
72. Após cair ao mar, o piloto manteve-se consciente, com a cabeça fora da água [alínea DDD) dos factos assentes] e a flutuar de barriga para cima.
73. O colete de salvação existente dentro do referido casaco de serviço envergado pelo sinistrado insuflou automaticamente quando este caiu à água e tinha uma luz branca que piscava [alínea EEE) dos factos assentes].
74. Nesta condição, o vento levou o sinistrado na direção da popa do navio “SINGAPORE EXPRESS”, mas afastado do costado deste e sem nele embater [alínea SS) dos factos assentes].
75. A lancha de pilotagem deu a volta e foi na direção do sinistrado de proa para o resgatar, tendo o marinheiro agarrado um busca-vidas existente a bordo [alínea GGG) dos factos assentes].
76. A cerca de 60 metros a ré do navio e, portanto, já sem o abrigo que este proporcionava, o marinheiro da lancha munido do busca-vidas, à proa, conseguiu alcançar o sinistrado que agarrou na outra extremidade desse busca-vidas [alínea HHH) dos factos assentes].
77. O motorista da lancha saiu da cabine para o convés para auxiliar o marinheiro a recuperar o sinistrado.
78. Após, o marinheiro pediu ao motorista que fosse buscar um cabo de amarração que estava guardado num compartimento da lancha, o que o motorista fez [alínea III) dos factos assentes].
79. De seguida, o marinheiro da lancha atirou ao sinistrado o chicote desse cabo que este agarrou firmemente [alínea JJJ) dos factos assentes].
80. Com esse cabo o marinheiro puxou o sinistrado pela proa e trouxe-o para a popa da lancha [alínea KKK) dos factos assentes].
81. O marinheiro puxou o sinistrado com uma única mão, enquanto que com a outra mão se agarrava ao varandim da lancha para não cair também ele ao mar.
82. O mestre parou os motores para evitar que o sinistrado fosse apanhado pelas pás das hélices [alínea LLL) dos factos assentes].
83. O motorista já tinha arreado a escada da lancha situada à popa para que o sinistrado pudesse subir para bordo [alínea MMM) dos factos assentes].
84. Com a escada arriada, o sinistrado largou o cabo de amarração e agarrou-se à escada [alínea NNN) dos factos assentes].
85. Nenhum dos tripulantes da lancha que estavam no convés tinha a linha da vida colocada.
86. Os tripulantes que estavam no convés apenas podiam auxiliar o sinistrado com uma mão, uma vez que com a outra mão tinham de estar a agarrar o varandim para evitarem cair também eles ao mar.
87. O motorista deitou-se no convés da lancha, junto da escada, tendo conseguido alcançar o sinistrado, e tendo-lhe gritado para se segurar.
88. O mestre da lancha foi para o local onde se encontrava o motorista marítimo e segurou-o pelas pernas, com vista a garantir a liberdade de movimentos deste e a possibilidade de aplicar mais força ao puxar o sinistrado para bordo.
89. O sinistrado não falou, não tendo qualquer reação para além de se agarrar à escada, encontrando-se já sem forças [alínea OOO) dos factos assentes].
90. Enquanto esteve agarrado à escada da lancha, o sinistrado ficou submerso algumas vezes devido à ondulação.
91. A lancha tem à popa um turco com uma talha.
92. O marinheiro e o motorista da lancha desceram o turco para tentar engatar o arnês do turco em algum local do sinistrado.
93. O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água. (alterado, conforme fundamentação infra)
94. O motorista conseguiu, mais do que uma vez, agarrar no casaco e no flutuador do colete do sinistrado.
95. Mas não viu a alça de recuperação lateral existente dentro do casaco.
96. Os tripulantes da lancha não sabiam que essa alça existia, tendo procurado um ponto de engate frontal que não existia no casaco de serviço que o sinistrado envergava.
97. Com o sinistrado consciente e agarrado à escada situada à popa da lancha, de súbito a lancha sofreu balanço acentuado em consequência de golpes de mar mais violentos e, por via disso, o sinistrado não conseguiu continuar a segurar-se e largou a escada [alínea PPP) dos factos assentes].
98. Quando voltaram a avistá-lo, a cerca de três metros da popa da lancha, a tripulação da lancha constatou que o sinistrado estava inconsciente [alínea QQQ) dos factos assentes].
99. Após este momento, o sinistrado não voltou a ganhar consciência, permanecendo na água inconsciente.
100. Pelas 01:07 horas, o navio voltou a proporcionar algum abrigo à lancha [alínea RRR) dos factos assentes].
101. O mestre ligou os motores e deu a ré e a lancha aproximou-se do corpo do sinistrado e o marinheiro com a vara existente a bordo tentou puxar o sinistrado para junto da mesma. [alínea SSS) dos factos assentes][5].
102. A tripulação da lancha falhou todas as tentativas de conseguir colocar o sinistrado, consciente ou inconsciente, a bordo da lancha.
103. A tripulação da lancha informou, por mais do que uma vez, os serviços da Direção de Segurança e Pilotagem da 1ª R., por rádio VHF, que não conseguiam retirar o corpo inconsciente do sinistrado da água.
104. A partir das 01:30 horas de dia 28.02.2018 nada mais foi feito por parte da tripulação da lancha que se limitou a ficar a assinalar o local onde se encontrava o corpo do sinistrado, mantendo a lancha na sua proximidade até à chegada da embarcação SR 32.
105. Às 02:11 horas de dia 28.02.2018 chegou ao local a embarcação SR 32, da estação salva-vidas de Cascais [alínea TTT) dos factos assentes].
106. A lancha de pilotagem encontrava-se apenas a iluminar com um foco de luz o sinistrado que se encontrava a cerca de 10 metros da mesma, inconsciente e em decúbito dorsal [alínea UUU dos factos assentes].
107. A tripulação da embarcação SR 32 é composta por dois elementos durante o período noturno, e assim apenas dois tripulantes seguiam a bordo da mesma [alínea VVV) dos factos assentes].
108. No período diurno a estação salva-vidas de Cascais dispõe de três tripulantes em regime de prevenção [alínea WWW) dos factos assentes].
109. Para conseguir retirar o náufrago inconsciente da água, os tripulantes da embarcação SR 32 solicitaram à lancha “TORRE DE BELÉM” que um dos seus tripulantes passasse para a SR 32 para ajudar a recolher o sinistrado da água.
110. O marinheiro da lancha, nas condições de tempo e mar acima referidas, passou para a SR 32.
111. O sinistrado foi recuperado inconsciente da água apenas cerca das 02:28 horas, do dia 28/02/2018, pela embarcação SR 32 [alínea XXX) dos factos assentes].
112. Um dos tripulantes da SR2 iniciou manobras de suporte básico de visa, sem reação do sinistrado e após foi transportado para junto da equipa médica do INEM [alínea YYY) dos factos assentes].
113. A ré empregadora é uma empresa pública com poderes de autoridade portuária [alínea ZZZ) dos factos assentes].
114. É à ré empregadora que compete assegurar o serviço de pilotagem aos navios no porto de Lisboa [alínea AAAA) dos factos assentes].
115. Em 01.03.2016, o sinistrado foi contratado pela ré empregadora para exercer, sob a autoridade e direção desta, as funções inerentes à atividade de piloto no porto de Lisboa, com a categoria de estagiário, correspondente ao grau 1 da carreira do pessoal técnico de pilotagem [alínea BBBB) dos factos assentes].
116. As funções de piloto do porto e da barra desempenhadas pelo sinistrado consistem na assistência técnica aos comandantes das embarcações nos movimentos de navegação e manobra nas águas sob soberania e jurisdição nacionais, de modo a proporcionar que os mesmos se processem em condições de segurança [alínea CCCC) dos factos assentes].
117. No porto de Lisboa, o recurso ao serviço de pilotagem é obrigatório em toda a zona navegável do rio Tejo e até ao limite exterior de 6 milhas, centrado no farol de São Julião [alínea DDDD) dos factos assentes].
118. O trabalho do sinistrado era prestado regularmente fora do estabelecimento da ré empregadora (Edifício VTS) e a bordo dos navios pilotados [alínea EEEE) dos factos assentes].
119. Na navegação de saída do porto de Lisboa, o navio “SINGAPORE EXPRESS” tinha obrigatoriamente de ser pilotado.
120. A presença do sinistrado a bordo do navio para auxiliar na respetiva manobra e na navegação de saída dentro da área de pilotagem obrigatória do porto de Lisboa implicava que, uma vez prestado o serviço, tivesse de desembarcar desse navio para a lancha de pilotagem no mar [alínea FFFF) dos factos assentes].
121. O porto de Lisboa é um porto aberto à navegação 24 horas por dia e sete dias por semana.
122. A ré APL, SA assegura a permanência das lanchas de pilotagem na marina de Cascais para realizar esses serviços.
123. A permanência das lanchas em Cascais permite à ré APL, SA assegurar a entrada e a saída de navios 24 horas por dia e sete dias por semana, independentemente do estado do tempo e do mar.
124. A ré APL, SA não regulamentou ou aprovou quaisquer restrições à operacionalidade no porto de Lisboa que pudessem condicionar ou impedir os movimentos dos navios em condições de tempo e mar adversas e que determinassem a suspensão do serviço de pilotagem com fundamento na falta de condições de segurança para o embarque ou desembarque dos pilotos ao seu serviço.
125. As operações de embarque e desembarque de piloto já tinham sido realizadas no porto de Lisboa em condições de tempo e mar similares às que as que se faziam sentir na altura dos factos, sem que tivessem ocorrido situações de “Homem ao mar”.
126. A ré APL, SA não emitiu aviso à navegação destinado a dar conhecimento público de limitações de condições de segurança existentes, nem antes de o sinistrado embarcar no navio “SINGAPORE EXPRESS” nem aquando do seu desembarque ao largo de Cascais, cabendo essa competência à capitania do Porto de Lisboa.
127. Não existem regras que definam a zona de embarque do piloto na lancha por referência à zona mais segura.
128. A zona de embarque/desembarque do piloto não estava assinalada nem marcada no convés da lancha por forma a assegurar que é bem visível à noite.
129. O sinistrado não desembarcava sempre para a mesma lancha nem era auxiliado pelo mesmo marinheiro de cada vez que embarcava ou desembarcava.
130. O desembarque do piloto do navio para a lancha implicava que o sinistrado tivesse de largar a escada pendurada no costado do navio e saltar para um espaço do convés da lancha, com esta em permanente movimento.
131. Para realizar essa transferência o sinistrado não podia estar preso a qualquer lado.
132. A ré APL, SA reconheceu à função/atividade de entrada e saída do navio riscos profissionais para a segurança e saúde do sinistrado, deles figurando, entre outros, a queda e o afogamento, podendo esses riscos afetar qualquer parte do corpo e as vias respiratórias, respetivamente.
133. A ré APL, SA disponibilizou ao sinistrado informação sobre segurança e saúde no trabalho aquando da sua admissão, em 01.03.2016, em documento anexo ao seu contrato de trabalho do qual faz parte integrante.
134. Desse documento consta, quanto às medidas de controlo desses riscos, o seguinte: utilizar tinta antiderrapante no convés das embarcações; equipar as embarcações com barras para apoio; utilização dos equipamentos de proteção individual (EPI’s): calçado com sola antiderrapante e colete salva-vidas; usar vestuário fluorescente e refletor adequado à situação climatérica.
135. De acordo com a “Análise aos Acidentes de Trabalho ocorridos ao longo do ano 2017”, elaborada em janeiro de 2018 pelos serviços da ré APL, SA, consta que dos 16 acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores da mesma ocorridos no tempo e local de trabalho em 2017, 15 foram sofridos por trabalhadores da Direção de Segurança e Pilotagem; desses 15 acidentes de trabalho, 10 foram sofridos por pilotos, sendo que 5 deles ocorreram aquando do embarque ou desembarque do navio pilotado.
136. As lesões decorrentes dos acidentes ocorridos em 2017 por causa do embarque/desembarque do piloto do navio consistiam em luxação, deslocamento, entorse e rotura de ligamentos.
137. Esses acidentes ocorreram no local de trabalho dos sinistrados quando estes executavam as tarefas habituais e essencialmente durante o período diurno.
138. De 2015 a 2017, ocorreram 49 acidentes de trabalho com trabalhadores da ré APL, SA e, desses, 36 foram sofridos por trabalhadores da Direção de Segurança e Pilotagem, dos quais 20 eram pilotos.
139. Até à data do acidente, a ré APL, SA não procedia à avaliação de riscos profissionais decorrentes do embarque e desembarque dos pilotos.
140. Inexistia à data do acidente comissão de trabalhadores que, no seio da ré APL, SA representasse os pilotos na promoção da segurança e saúde no trabalho, nem existiam representantes eleitos por estes.
141. Em momento anterior à ocorrência dos factos, a ré APL, SA não aprovou plano de formação específico para os pilotos ou para os tripulantes das lanchas no domínio da prevenção dos riscos profissionais associados ao embarque/desembarque dos navios.
142. Não obstante essa formação ter sido solicitada à ré APL, SA quer pelos pilotos ao seu serviço quer pela APIBARRA – Associação dos Pilotos de Barra e Portos.
143. A ré APL, SA não deu formação nem treino ao sinistrado, no âmbito da segurança e saúde no trabalho, quanto aos riscos profissionais específicos da sua atividade relativos ao embarque/desembarque do navio e às medidas de prevenção desses riscos e, muito menos, em situação de emergência de “Homem ao mar”.
144. Até ao acidente do sinistrado, nunca foram feitos exercícios de segurança no porto de Lisboa, em ambiente real, nomeadamente para os tripulantes das lanchas e para os próprios pilotos.
145. O sinistrado não recebeu formação ou informação sobre técnicas de sobrevivência em água fria.
146. Os tripulantes da lancha desconheciam os efeitos produzidos pela imersão do sinistrado na água fria, nomeadamente, a letargia.
147. O estágio do piloto, com início em 01.03.2016 e termo em 31.08.2016, consistiu em assistir os comandantes na navegação e manobras dos respetivos navios e posteriormente realizar tais manobras, com a supervisão de um piloto como a categoria de piloto da carreira de pilotagem.
148. O sinistrado não teve formação de utilização do equipamento de proteção individual.
149. Os serviços da ré APL, SA não informaram o sinistrado nem os tripulantes da lancha que o casaco de serviço do piloto tem uma alça de recuperação lateral no seu interior que apenas fica visível quando o colete acoplado ao casaco insufla automaticamente.
150. O equipamento de proteção envergado pelo sinistrado não foi testado pelos pilotos da ré APL, SA em cenário real.
151. O sistema de recuperação de naufrago constituído pelas escadas de acesso da própria lancha e pelo turco com uma talha cujo cabo tinha um mosquetão na ponta para engatar num ponto de apoio do náufrago encontrava-se situado à popa da embarcação.
152. Com a localização do sistema de recuperação à popa da lancha havia o risco de o sinistrado bater nas escadas metálicas, nas esquinas vivas dos tubos de escape, e nos lemes e hélices da lancha.
153. O turco não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha e, no caso de estar inconsciente, teria que ser retirado para bordo à força de braços. (alterado, conforme fundamentação infra)
154. Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por outros mais compridos. (alterado, conforme fundamentação infra)
155. A ré APL, SA adquiriu, também posteriormente ao acidente, cintas de resgate (“rescue slings”) com as quais equipou as lanchas dos pilotos.
156. Nenhum dos tripulantes das lanchas da ré APL, SA afetas ao serviço de pilotagem tinha tido formação, treino ou participado em exercícios de segurança em situação de emergência de “Homem ao mar”.
157. O marinheiro da lancha tinha apenas formação em segurança básica na formação inicial, cujo curso não contempla a vertente de “Homem ao mar”, nem formação sobre o embarque e desembarque de pilotos no mar, e é prestada sempre em piscina.
158. O aviso da queda do sinistrado ao mar foi feito pelo navio “SINGAPORE EXPRESS”, pelas 01:00 horas de dia 28.02.2018, para o Centro de Controlo de Tráfego Marítimo da ré APL, SA.
159. A partir desse aviso, pelas 01:02 horas desse dia, quando já tinham decorrido 17 minutos desde a queda do sinistrado ao mar, a Estação de Pilotos deu o alerta para a Capitania do Porto.
160. A ré APL, SA não definiu as funções do piloto coordenador em caso de emergência.
161. Não existia um plano de emergência aprovado pela ré APL, SA para a situação de “Homem ao mar” que considerasse as características próprias das lanchas dos pilotos, o equipamento de recuperação de náufragos existente a bordo e o número de tripulantes da lancha.
162. Não existia a bordo da lancha “TORRE DE BELÉM” um registo de operações, de exercícios, um manual de procedimentos para embarque e desembarque de piloto e nem procedimentos em caso de emergência, nomeadamente de “Homem ao mar” e manobras para a respetiva recolha.
163. A ré APL, SA não elaborou qualquer procedimento ou manual definindo as funções dos tripulantes das lanchas em caso de emergência, nomeadamente descrevendo o que cada tripulante deve fazer e em que momento, como devem ser efetuadas as manobras de resgate pela lancha, sobretudo no que toca à aproximação ao náufrago e à sua recolha para bordo, que meios e equipamentos de emergência devem ser utilizados.
164. Em 16.01.2018, a lancha de pilotos “TORRE DE BELÉM” foi sujeita pela Capitania do Porto de Lisboa a vistoria para efeitos de prorrogação do seu certificado de navegabilidade
165. No que toca a meios de salvação e de socorro, a embarcação tinha a bordo um busca-vidas, uma escada acoplada, um turco recuperador junto à escada, 2 jangadas pneumáticas e respetivo disparador hidrostático; 2 boias de salvação com retenida flutuante de 30 m (à proa); 2 boias de salvação com fachos luminosos (à ré) e um croque.
166. Para tentar resgatar o sinistrado a tripulação da lancha utilizou apenas o busca-vidas, a escada acoplada e o turco.
167. Após o acidente que vitimou o sinistrado, a ré APL, SA celebrou um Protocolo com o Instituto de Socorros a Náufragos, I.P. para ser ministrada formação aos pilotos e aos tripulantes das lanchas ao seu serviço, no total de 73 trabalhadores.
168. E integrou no seu plano de formação o curso de “Sobrevivência e Resgate no Mar”, que visa desenvolver competências técnicas em três vertentes: sobrevivência no mar; resgate e recuperação de vítimas no meio aquático; e prestação de primeiros socorros.
169. Essa formação integra exercícios práticos realizados em Algés e na baía de Cascais, utilizando as lanchas de pilotagem.
170. Após 11 anos a residir nos Açores, o sinistrado regressou com a mulher e filho ao ..., sua terra natal, com o propósito de aqui fazer a sua vida em conjunto com a sua família.
171. O sinistrado optou por ser piloto da barra para poder estar mais próximo da família e ter uma vida familiar mais estável.
172. Era uma pessoa saudável, alegre e divertida.
173. A autora trabalhava para a Cerci de Lisboa, com um contrato de trabalho a tempo indeterminado, como educadora social e com horário completo.
174. A autora deixou o seu emprego, a família e os amigos para poder acompanhar o marido quando este foi trabalhar para os Açores.
175. Era o sinistrado que assegurava o sustento da família.
176. A autora dependia do marido para tomar as decisões relacionadas com a parte financeira e burocrática da vida conjugal.
177. Quando a família regressou ao continente, em virtude de o sinistrado começar a trabalhar para a ré APL, SA, a autora e o marido iniciaram uma nova fase das suas vidas e começaram a construir novos planos em conjunto para o seu futuro.
178. Em setembro de 2017, a autora e o marido decidem comprar a sua casa, no ....
179. Pretendiam melhorar a habitação adquirida, fazendo obras de remodelação.
180. A morte do marido e pai do seu filho, provocou à autora uma grande dor e tristeza.
181. A autora perdeu o gosto pela vida e entrou em depressão.
182. Com o apoio de familiares e temendo não ser capaz de dar o apoio necessário ao filho, na semana seguinte à morte do marido, a autora recorreu a apoio psiquiátrico, mantendo desde essa data consultas regulares com o Dr. QQ
183. Atento o quadro da autora, este médico prescreveu-lhe os seguintes fármacos: Mirtazapina Psidep, Alprazolam Prazolam, Seroxat e Anafranil.
184. Medicamentos que a autora ainda hoje toma, em menor dosagem.
185. Paralelamente, a autora passou também a ser seguida em consulta de psicologia pela Dr.ª RR e pela medica de família Dr.ª SS.
186. Em virtude de se encontrar incapacitada para tratar dos assuntos relacionados com a morte do marido, a autora pediu ajuda à sua irmã.
187. Por isso, era a irmã da autora quem contactava a ré APL, SA, pedindo informações e ajuda.
188. A irmã da autora contactava igualmente, em nome da 1ª A., o banco, os médicos, a Segurança Social, etc.
189. A autora não tinha trabalho nem outro tipo de rendimento porque prescindiu de ter uma carreira profissional para o acompanhar em benefício da união familiar.
190. A autora teve que recorrer às poupanças do casal para suportar as prestações da compra da casa e as despesas familiares.
191. Quando se esgotaram as poupanças do casal, a autora viu-se na necessidade de pedir ajuda à sua irmã, para ir satisfazendo as necessidades mais básicas da sua família.
192. A autora sentia-se impotente e envergonhada por ter de viver da caridade de terceiros.
193. Esta situação apenas terminou quando o tribunal lhe atribuiu a pensão provisória que presentemente está a receber da ré Fidelidade, SA.
194. O autor tinha 7 anos quando o pai morreu.
195. Pai e filho tinham uma relação muito próxima.
196. O sinistrado acompanhava o filho nas suas atividades escolares e extracurriculares.
197. Faziam atividades lúdicas juntos, passeavam à beira mar, pescavam na doca, iam à praia.
198. Na sequência da morte do pai o autor teve que receber apoio psicológico com a Dr.ª TT.
199. O autor experienciou a perda do pai de uma forma muito contida e reservada, sem nunca falar muito sobre um assunto que ainda não entende completamente.
200. Após a morte do pai, o autor começou a demonstrar falta de concentração e de motivação na escola.
201. E baixou as notas escolares.
202. O autor passou também a revelar inquietação, impaciência, alguma rebeldia e desobediência em casa, comportamentos que se prendem com um certo sentimento de revolta pela perda do pai.
203. O autor é confrontado na escola com a imagem dos pais dos seus colegas que os vão levar ou os vão buscar, que jogam à bola e fazem atividades em conjunto com os filhos, como ele fazia quando o pai era vivo e que agora acabou.
204. O autor em virtude da sua idade, não sabe como lidar com a falta do pai e com a dor que isso lhe causou, causa e causará no futuro.
205. A estrutura organizativa da ré APL, SA inclui uma Direção de Segurança e Pilotagem, à qual compete assegurar a segurança e a fiscalização marítimo-portuária e a pilotagem.
206. A Direção de Segurança e Pilotagem está dividida em quatro unidades orgânicas: Departamento de Pilotagem; Divisão de Segurança e Operação Marítima; Serviço de Coordenação e Serviço de Fiscalização.
207. O Departamento de Pilotagem tem a seu cargo a gestão e execução dos serviços de pilotagem, e a Divisão de Segurança e Operação Marítima gere e executa os serviços de apoio aos serviços de pilotagem (as lanchas e tripulações que assistem os pilotos nas operações de embarque e desembarque).
208. O Departamento de Pilotagem integrava, à data do acidente, 42 postos de trabalho: um posto de Chefe de Departamento; 30 postos de piloto; 6 postos de operador de Central de Controlo de Tráfego Marítimo (usualmente designados como operadores de VTS) e 5 postos de operador de Radar e Telecomunicações.
209. O Departamento de Pilotagem inclui, ainda, um posto de trabalho de piloto-coordenador, a quem compete definir e organizar os concretos serviços de pilotagem a executar em cada momento.
210. O posto de trabalho de piloto-coordenador é ocupado, sucessivamente, pelos pilotos que prestam o seu trabalho para a ré APL, SA.
211. À data do acidente, a ré APL, SA tinha ao seu serviço 29 pilotos, com uma média etária de 56 anos e uma média de experiência na função de 21 anos.
212. Considerando que a ré APL, SA presta serviços de pilotagem 24 horas por dia, 365 dias por ano, organiza escalas de serviço para distribuir os pilotos pelo período de funcionamento e, simultaneamente, garantir que os mesmos gozam os períodos de descanso a que têm direito.
213. Em média, estão escalados para prestar trabalho 10 a 12 pilotos por cada período de 24 horas.
214. Os serviços de pilotagem são solicitados à ré APL, SA através de uma plataforma informática [Janela Única Portuária (JUP II)] com, pelo menos, 2 horas de antecedência e nunca mais de 24 horas de antecedência em relação à data em que devem ser realizados.
215. A entidade que solicita o serviço de pilotagem deve, logo quando efetua essa solicitação, inserir na mencionada plataforma informática as características da embarcação que irá ser pilotada, em particular: i) a Gross Tonage (arqueação bruta); ii) o calado; iii) o comprimento; iv) a boca; v) o local de estacionamento; vi) outras informações necessárias à boa execução do serviço.
216. Após receber o pedido de serviço de pilotagem, o piloto-coordenador deve confirmar os pressupostos técnicos do serviço, verificando, designadamente, se as características da embarcação permitem realizar em segurança o serviço de pilotagem solicitado.
217. Competindo-lhe, ainda, verificar e assegurar que estão reunidas as condições de segurança necessárias para a específica operação de embarque e desembarque do piloto.
218. Após ter confirmado que o serviço de pilotagem pode ser realizado, o piloto-coordenador nomeia o piloto que vai efetuar o serviço, escolhendo-o de entre os pilotos que estão escalados para o serviço.
219. Na escolha do piloto que deve efetuar o serviço de pilotagem, o piloto-coordenador deve seguir os seguintes critérios:
a. Assegurar que o número de serviços de pilotagem feito por cada piloto é, em cada semana, semelhante;
b. Os pilotos com idade superior a 58 anos não fazem operações de embarque e desembarque em Cascais;
c. Os pilotos com idades compreendidas entre os 50 e 58, só devem estar escalados para fazer operações de embarque e desembarque em Cascais uma vez de 7 em 7 semanas;
d. Excetuam-se do disposto no número anterior, os pilotos que, estando nessa faixa etária, tenham decidido continuar a fazer tais operações sem limitação e a tanto tenham sido autorizados pela ré APL, SA.
220. O piloto que tiver sido designado para a realização do serviço de pilotagem (“piloto-nomeado”) deve, depois de ter tomado conhecimento dessa designação, dirigir-se ao Centro de Controlo e Coordenação de Pilotagem e, aí chegado, deve confirmar e validar a avaliação feita pelo piloto-coordenador quanto ao cumprimento dos pressupostos técnicos de que depende a realização do serviço.
221. Confirmação esta que deve ter em consideração, também, a existência de condições de segurança para a realização da concreta operação de embarque e desembarque do piloto. (alterado, conforme fundamentação infra)
222. Depois de o piloto-nomeado ter confirmado com o piloto-coordenador que é possível efetuar o serviço de pilotagem, este contacta a Divisão de Segurança e Operação Marítima, para que esta assegure os meios técnicos e humanos necessários à operação de embarque e desembarque do piloto, ou, quando aplicável, a empresa de transportes terrestre contratada pela ré APL, SA para proceder ao transporte terrestre de pilotos e tripulações.
223. Após, o piloto-nomeado embarca ou é transportado para a embarcação (consoante o local onde esta se encontre) devendo, assim que chegar à mesma, confirmar, novamente, desta vez em coordenação com o comandante da embarcação, que é possível realizar o serviço de pilotagem.
224. Ao proceder a esta nova análise, o piloto-nomeado deve, novamente, confirmar e verificar que as condições climatéricas e as características da embarcação permitem efetuar o serviço de pilotagem.
225. Caso o piloto-nomeado conclua que o serviço não pode ser efetuado, deve dar disso conhecimento ao piloto-coordenador.
226. A decisão última quanto à realização do serviço de pilotagem é do piloto-nomeado. (alterado, conforme fundamentação infra)
227. Concluído o serviço de pilotagem, é necessário assegurar o regresso do piloto que o executou a terra, o que é feito através do seu desembarque.
228. Como entre o momento do embarque do piloto-nomeado e o fim do serviço de pilotagem pode haver alterações significativas nas condições climatéricas, a específica operação de desembarque é objeto de uma nova análise, com vista a apurar se existem condições de segurança que a permitam realizar. (alterado, conforme fundamentação infra)
229. Esta análise é feita, em primeira linha, pelo piloto-nomeado em coordenação com o comandante da embarcação; num segundo momento, pelo piloto-nomeado em coordenação com o mestre da lancha, devendo o piloto-nomeado manter-se, sempre, em articulação com o piloto-coordenador.
230. É ao piloto-nomeado que compete decidir, em última instância, se o desembarque deve, ou não, ser efetuado. (alterado, conforme fundamentação infra)
231. As informações relativas às condições climatéricas (transmitidas pelo IPMA) não são veiculadas a cada minuto, nem mesmo a cada hora, pelo que as mesmas têm de ser avaliadas no exato momento em que se pretende efetuar a operação de embarque ou desembarque do piloto.
232. As características próprias de cada porto devem ser tomadas em consideração.
233. As específicas características do porto de Cascais obrigam a que, neste porto, o desembarque do piloto se faça em alto mar.
234. Este facto faz com que a destreza física do piloto e as dimensões e características da embarcação de onde o piloto deve desembarcar assumam particular relevância.
235. O desembarque do piloto em alto mar faz com que essa tarefa seja particularmente afetada pela ondulação e a velocidade do vento.
236. A destreza física é um dos critérios a considerar para efeitos de determinação da sua aptidão clínica para o exercício da função.
237. As embarcações de grande porte criam uma espécie de uma “parede” que anula ou minora os efeitos e as consequências da ondulação e da velocidade do vento.
238. A operação de desembarque do piloto em alto-mar é feita em função da conjugação dos seguintes fatores: destreza física do piloto, características da embarcação e condições climatéricas.
239. No porto de Cascais, a lancha que presta este serviço tem sempre uma tripulação de três pessoas: o mestre, o motorista marítimo (também designado por maquinista) e o marinheiro.
240. O mestre da lancha deve ficar ao leme desta (de modo a poder controlar o movimento da lancha); quando o desembarque ocorre à noite, o motorista marítimo deve ficar junto do mestre de modo a utilizar o projector da lancha para iluminar o local do desembarque, e o marinheiro deve colocar-se no local do convés que, de acordo com o que tiver sido combinado com o piloto-nomeado, for o mais adequado à operação de desembarque.
241. Durante o desembarque, o marinheiro tem como função servir de “elo de ligação” entre o mestre da lancha (que está ocupado a manobrá-la e a garantir a sua estabilidade) e o piloto-nomeado, dando indicações a um ou a outro em função do que se revelar necessário.
242. O desembarque faz-se, sempre, através de uma escada colocada na embarcação de onde o mesmo é feito, devendo o piloto descer a escada de frente para a embarcação e de costas para o mar e para a lancha, apoiando-se com os dois braços na escada e descendo um degrau de cada vez.
243. Ao chegar aos últimos degraus da escada, o piloto-nomeado deve parar e rodar ligeiramente o tronco para a proa da lancha (i.e. para a frente da lancha), de modo a poder ver a lancha, o local onde deve ser feito o desembarque e o marinheiro.
244. Só depois de o marinheiro confirmar ao piloto-nomeado que pode proceder ao desembarque é que este deve dar um ligeiro salto, de natureza rotativa, de modo a entrar de frente na lancha.
245. A lancha nunca pode ficar encostada à escada do desembarque nem imediatamente debaixo desta.
246. A ondulação do mar (independentemente da sua intensidade) não permite que a lancha fique completamente parada, estável, sem oscilações.
247. Por esta razão, se a lancha ficar colada à escada ou imediatamente abaixo desta as oscilações a que a mesma está sujeita poderiam fazer com que a escada ficasse presa ou, no limite, se partisse, colocando em risco a integridade física do piloto.
248. Estas são as regras da operação de desembarque que integram a praxis da profissão.
249. Sendo de todos – pilotos e tripulação da lancha – conhecidas.
250. E são colocadas em prática diariamente por todos os pilotos e membros da tripulação que efetuam operações de desembarque.
251. Desde pelo menos 1998 que não ocorreu qualquer outro acidente de trabalho mortal com trabalhador da ré APL, SA.
252. Prevê o ponto 16.12 do Regulamento de Autoridade Portuária da ré APL, SA que, na eventualidade de ocorrer alguma situação de Homem ao mar, todos os navios e embarcações que se aperceba dessa ocorrência devem comunicar o sucedido ao Centro de Controlo de Tráfego Marítimo da mesma ré (designado por VTS – Lisboa), por VHF Ch 74.
253. O “busca-vidas” é uma vara/cabo com um arco na ponta em forma de foice que permite segurar o náufrago e puxá-lo para a embarcação.
254. A forma de foice do arco acoplado à vara/cabo visa envolver o tronco do náufrago, precisamente com o propósito de o puxar para junto da embarcação.
255. E é adequada tanto para socorrer náufragos que estejam conscientes como para socorrer náufragos inconscientes porque os permite envolver e puxar para junto da embarcação sem necessidade de colaboração por parte do náufrago.
256. Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco como colete salva-vidas incorporado; umas calças impermeáveis com flutuabilidade positiva e uns sapatos, com classificação máxima de segurança. (alterado, conforme fundamentação infra)
257. Estes equipamentos foram escolhidos depois de consultados pilotos que prestam serviço para a 1.ª Ré
258. Imediatamente após a queda do sinistrado, o marinheiro avisou o mestre da lancha do que havia sucedido.
259. Tendo o mestre, de imediato, dirigido a lancha para a popa do navio, acompanhando a deriva do sinistrado, que seguiu ao longo do costado do navio.
260. Imediatamente a seguir à queda do sinistrado, o navio SINGAPORE EXPRESS atirou-lhe uma boia com lanterna.
261. O sinistrado pesava 99kg, sendo clinicamente qualificado como obeso.
262. O sinistrado tinha, à data do acidente, 45 anos, era um piloto experiente, que realizava há mais de 21 anos operações de embarque e desembarque diariamente.
263. O sinistrado encontrava-se fisicamente apto ao desempenho das suas funções.
264. A Capitania do Porto de Cascais decidiu enviar para o local uma das suas lanchas.
265. Às 01h11 que foram acionados os meios de socorros a náufragos, ou seja, 9 minutos depois de a Capitania do Porto ter tido conhecimento da ocorrência.
266. Às 01h11 as indicações dadas pela Capitania do Porto foram, apenas, de deixar tais meios prontos, para o caso de os mesmos se virem a revelar necessários.
267. O que continuou a fazer até às 01h44.
268. A lancha do ISN tinha uma tripulação de 2 pessoas: um marinheiro e um sota-patrão.
269. O sinistrado realizou um estágio 1 logo após a sua admissão.
E foram dados como não provados:
270. O desembarque do sinistrado do navio pilotado tenha ocorrido no fundeadouro sul da Baía de Cascais.
271. O rádio VHF, a bordo da lancha, não estava a funcionar em condições.
272. Às 00h55, o mestre da lancha avisou a Estação de Pilotos que o sinistrado havia caído ao mar.
273. Quando a lancha do ISN chegou ao local onde o sinistrado se encontrava, as condições climatéricas já se haviam agravado substancialmente em comparação com as que se faziam sentir no momento em que se iniciou o desembarque do sinistrado.
274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço. (alterado, conforme fundamentação infra)
275. Se o piloto cair dentro de água na distância mantida entre a lancha e a embarcação, o risco de lesões é quase nulo.
276. As lanchas de apoio aos pilotos têm instaladas guias de linhas de vida a toda a volta, ou seja, cabos de aço aos quais devem ser presos linhas de vida ou outros cabos que, por seu turno, se prendem à tripulação da lancha, assim permitindo que esta possa utilizar as duas mãos para puxar o náufrago para bordo caso tal se revele necessário.
277. Que a forma de utilização dos meios de salvamento existentes a bordo das lanchas de apoio aos pilotos é inteiramente conhecida dos respetivos tripulantes.
278. Que o documento escrito denominado Instrução de Trabalho Actuação de Emergência elaborado pela ré APL, SA tenha previsto que, em caso de emergência de queda de homem ao mar, o Centro de Controlo de Tráfego Marítimo deve, de imediato, comunicar a ocorrência ao Piloto-Coordenador e contactar a Capitania do Porto; que a Capitania do Porto deve, de imediato, contactar o Capitão do Porto de modo a que este, diretamente ou por delegação na Polícia Marítima, organize e acione os meios de socorro adequados à situação, nomeadamente contactando o Instituto de Socorros a Náufragos (ISN); que ao tomar conhecimento da ocorrência, o piloto-coordenador deve, antes de mais, tentar obter todas as informações relevantes junto de quem participou na ocorrência, para poder acionar os meios de emergência adequados; que seguidamente, o piloto-coordenador deve organizar e acionar esses meios; que o piloto-coordenador deve contactar o Chefe do Departamento, recebendo deste as ordens e instruções; que o Chefe de Departamento deve contactar o Diretor do Departamento de Segurança e Pilotagem, transmitindo-lhe toda a informação de que tiver conhecimento; que durante o processo de “busca e salvamento”, ou seja, enquanto estiverem a decorrer as operações de socorro, o piloto-coordenador deve manter-se em contacto com o VTS e acompanhar as medidas de socorro que tiverem sido acionadas.
279. A ré APL, SA tenha instituído os procedimentos referidos em 278 e dado conhecimento dos mesmos aos seus trabalhadores[6].
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) é de admitir o documento cuja junção foi requerida pelos Autores; (ii) se existem contradições entre os factos; (iii) houve erro na apreciação da matéria de facto segundo a Ré “APL”; (iv) inexistem os requisitos previstos no art. 18.º, n.º 1, da LAT; (v) é incompleta a determinação do número de prestações mensais a liquidar; (vi) é exagerado o quantum indemnizatório atribuído relativamente ao dano morte do sinistrado e aos danos morais sofridos pelos Autores; (vii) houve erro na apreciação da matéria de facto segundo os Autores e em sede de ampliação da matéria de facto; e (vi) a sentença é nula por omissão de pronúncia segundo os Autores e em sede de ampliação da matéria de facto.

1) Admissão de documento (requerimento dos Autores)
Requerem os Autores a junção do Relatório do ISN relativo ao “Curso de Sobrevivência e Resgate no Mar para Pilotos e Tripulantes de Embarcações de Pilotos de Barra”, elaborado em 21-10-2021, ao abrigo dos arts. 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do Código de Processo Civil, uma vez que este documento já tinha sido solicitado pelo tribunal da 1.ª instância, só não tendo sido junto ao processo por ter sido elaborado em data posterior à do encerramento da audiência de discussão e julgamento.
Ouvida a Ré “APL”, veio a mesma responder que o referido documento não possui a virtualidade probatória que os Autores lhe atribuem.
Cumpre decidir.
Dispõe o art. 651.º do Código de Processo Civil, que:
1- As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
2- As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão.

Por sua vez, dispõe o art. 425.º do Código de Processo Civil que:
Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.

Da conjugação destes artigos resulta que, em sede de recurso, apenas é admitida a junção de documentos, a título excecional, em duas situações, dependendo sempre tal admissão da alegação e prova (i) da impossibilidade de apresentação de tal documento em momento anterior ao do recurso; ou (ii) da necessidade de tal apresentação decorrer da introdução de um elemento de novidade em sede de julgamento do tribunal a quo. A impossibilidade de apresentação tanto pode se reportar a uma superveniência objetiva (documento que tenha sido criado em momento posterior àquele em que deveria ter sido apresentado), como a uma superveniência subjetiva (o documento só foi conhecido pela parte em momento posterior àquele em que o deveria ter apresentado). Por sua vez, a necessidade do documento implica que a decisão proferida em sede de 1.ª instância tenha introduzido um elemento de novidade ou imprevisibilidade, elemento esse que, exatamente por isso, não podia existir desde o início do processo[7].
Tratando-se de uma situação excecional, compete à parte que pretende tal junção, alegar e provar (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil) que se encontra numa das duas situações suprarreferidas.
No caso em apreço, verifica-se que o presente documento foi elaborado em 21-10-2021 e que a audiência de discussão e julgamento encerrou em 18-12-2020, pelo que efetivamente estamos perante um documento que foi criado em momento posterior àquele em que deveria ter sido apresentado (superveniência objetiva), integrando-se, nessa medida, no disposto no art. 425.º do Código de Processo Civil.
Por sua vez, a relevância desse documento já tinha sido aferida pelo tribunal a quo, aquando da sua solicitação junto do ISN, por despacho proferido na audiência de julgamento de 25-05-2020, relevância essa que, por se reportar à matéria dos autos, concretamente à adequação dos equipamentos de proteção individual e de salvamento, em caso de queda de pessoa ao mar, usados pela Ré “APL”, é igualmente de subscrever.
Acresce que os Autores, ainda que em sede de ampliação do recurso, também vieram a impugnar a matéria de facto, podendo esse documento ser relevante, em caso de apreciação dessa ampliação.
Pelo exposto, admite-se, nos termos dos arts. 651.º, n.º 1 e 425.º, ambos do Código de Processo Civil, ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho, a junção do documento relativo ao relatório elaborado pelo ISN referente ao “Curso de Sobrevivência e Resgate no Mar para Pilotos e Tripulantes de Embarcações de Pilotos de Barra”.

2) Apreciação oficiosa das contradições fácticas
Nos termos do art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil apreciaremos as contradições invocadas.

a) Consideram os Autores que existe uma contradição entre o facto provado 226 e o facto não provado 274, pelo que o facto provado 226 deve passar a não provado.
Consta do facto provado 226 que:
226. A decisão última quanto à realização do serviço de pilotagem é do piloto-nomeado.

E consta do facto não provado 274 que:
274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço.

Apreciemos.
Conforme resulta do depoimento das testemunhas JJ, KK, EE, NN e II, sendo, aliás, por esta última testemunha esta situação bastante bem explicada no final do seu depoimento, os pilotos da barra têm autonomia técnica, pelo que, apesar de terem sido nomeados para efetuar determinado serviço de pilotagem, podem vir a constatar, já após a nomeação ou mesmo em momento prévio ao embarque no navio, em face do agravamento do estado de tempo e mar, da impossibilidade de realização desse mesmo serviço, até porque entre a nomeação e a realização do serviço medeia obrigatoriamente, pelo menos, duas horas. No entanto, essa impossibilidade afere-se quanto às questões de operacionalidade e segurança do próprio navio na entrada ou saída do porto, ou seja, o piloto afere, em termos técnicos, da possibilidade ou impossibilidade de realização da manobra para a qual foi nomeado, já não relativamente à sua segurança pessoal aquando do seu embarque ou desembarque nos navios. Aliás, conforme bem referiu a testemunha II, mesmo nas situações de recusa de realização da operação de pilotagem de um navio, devido a questões de operacionalidade técnica face às condições de tempo e mar, acertava primeiro com o comandante do navio essa situação e só após a obtenção do acordo deste quanto a inoperacionalidade da operação é que a operação de pilotagem era adiada, tendo afirmado ainda que, desse modo, ninguém ficava melindrado. Mais esclareceu que, quando se tratava de uma operação de desembarque, a tendência do piloto era a de desembarcar, para não ter de ir com o navio.
Também a testemunha JJ mencionou que, em 10 anos, apenas teve conhecimento de um piloto que não desembarcou e seguiu viagem, pois ninguém gosta desta situação, visto que o comandante do navio não gosta pois vai ter de desembarcar o piloto noutro posto, o piloto não gosta porque tem de ir para longe e apenas com aquilo que tem vestido e o Departamento não gosta pois fica com menos um piloto para trabalhar. Relatou ainda esta testemunha que, por se ter recusado, uma vez, a embarcar, a entidade patronal considerou que desobedeceu ao coordenador, vindo a ter um processo disciplinar, no qual foi condenado em dias de suspensão.
Elucidou ainda a testemunha EE que o serviço de pilotagem podia não ser efetuado depois de o piloto ser nomeado se não existissem condições de segurança para efetuar a manobra do navio, ou seja, se existissem problemas para a segurança do navio, já não para a segurança do piloto, visto que a segurança do piloto, nas operações de embarque e desembarque, nunca foi tida em conta.
Deste modo, apenas inexiste contradição entre o facto provado 226 e o facto não provado 274, se o primeiro se reportar a questões de carácter técnico e o segundo à segurança pessoal dos pilotos.
Assim, de forma a tornar mais esclarecedor o conteúdo de ambos os factos, proceder-se-á às seguintes alterações:
- O facto provado 226 passará a ter a seguinte redação:
226. A decisão última quanto à realização do serviço de pilotagem, em termos técnicos, é do piloto-nomeado.

- O facto não provado 274 passará a ter a seguinte redação:
274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições de segurança pessoal para a execução do serviço.

Em face destas alterações, para que não haja contradição entre o facto provado 226 e o facto não provado 274, nas suas novas versões, com os factos provados 221, 228 e 230, estes terão igualmente que sofrer alterações.
Dispõem os factos provados 221, 228 e 230 que:
221. Confirmação esta que deve ter em consideração, também, a existência de condições de segurança para a realização da concreta operação de embarque e desembarque do piloto
228. Como entre o momento do embarque do piloto-nomeado e o fim do serviço de pilotagem pode haver alterações significativas nas condições climatéricas, a específica operação de desembarque é objeto de uma nova análise, com vista a apurar se existem condições de segurança que a permitam realizar
230. É ao piloto-nomeado que compete decidir, em última instância, se o desembarque deve, ou não, ser efetuado.

Em face do depoimento das testemunhas JJ, EE e II, o piloto nomeado só não procedia ao embarque ou desembarque dos navios se tal se revelasse objetivamente impossível (por exemplo, quando as escadas do navio não estavam em condições ou a lancha não conseguia chegar ao local), ou seja, quando os pilotos não conseguissem mesmo fazer essa operação, sendo que o serviço de pilotagem só não podia ser efetuado depois de o piloto ser nomeado se não existissem condições de segurança para efetuar a manobra do navio, ou seja, se existissem problemas para a segurança do navio, já não para a segurança do piloto, visto que a segurança do piloto, nas operações de embarque e desembarque, nunca foi tida em conta.
Essa foi, aliás, a razão pela qual, por iniciativa própria, a quase totalidade dos pilotos da barra, assinaram uma carta, que deram conhecimento ao conselho de administração da Ré “APL”, onde estabeleceram um limite relacionado com a altura das ondas, a partir do qual não realizariam as operações de pilotagem.
Assim, os factos provados 221, 228 e 230 passarão a ter a seguinte redação:
221. Confirmação esta que não tinha como fator de ponderação a existência de condições de segurança para a realização da concreta operação de embarque e desembarque do piloto.
228. Como entre o momento do embarque do piloto-nomeado e o fim do serviço de pilotagem pode haver alterações significativas nas condições climatéricas, a específica operação de desembarque é objeto de uma nova análise, com vista a apurar se existem condições objetivas para a realização de tal operação.
230. O piloto-nomeado, caso não conseguisse objetivamente efetuar o embarque ou desembarque do navio, decidia, em última instância, não efetuar tais operações.

b) Consideram os Autores que existe uma contradição entre o facto provado 256 e os factos provados 70 e 71
Consta dos factos provados 70, 71 e 256 que:
70. Aquando da queda, o sinistrado envergava o equipamento de proteção individual aprovado, adquirido e fornecido pela 1ª R [alínea BBB) dos factos assentes].
71. Equipamento que consistia num casaco azul escuro, com gola vermelha, capuz amarelo fluorescente, com reflector longitudinal, da marca “Mullion Harbour Pilot Jacket”, e sapatos pretos de atacadores com sola antiderrapante e biqueira de aço [alínea CCC) dos factos assentes].
256. Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco como colete salva-vidas incorporado; umas calças impermeáveis com flutuabilidade positiva e uns sapatos, com classificação máxima de segurança.

Entendem os Autores que este facto deve passar a ter a seguinte redação:
256. Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco com o colete salva-vidas incorporado e uns sapatos, com classificação máxima de segurança.

Efetivamente, existe uma contradição entre os factos provados 70 e 71, por um lado, e o facto provado 256, por outro, sendo que o facto que merece correção é o 256.
Na realidade, as testemunhas JJ, PP, KK e EE referiram-se ao equipamento de segurança fornecido pela Ré “APL” e nenhuma delas mencionou que lhes tivesse sido fornecido quaisquer calças impermeáveis com flutuabilidade positiva.
Acresce que no documento anexo ao contrato de trabalho, celebrado entre o sinistrado AA e a Ré “APL”, consta apenas nos equipamentos de proteção individual “calçado com sola anti-derrapante, colete salva-vidas”[8].
Por fim, quanto ao Regulamento de Utilização dos Equipamentos de Protecção Individual, divulgado pela ordem de serviço n.º 09/2010, de 30-03-2010, em vigor à data do acidente[9], o mesmo é demasiado genérico para fornecer qualquer indicação concreta quanto ao exato equipamento fornecido pela Ré “APL”.
Deste modo, o facto provado 256 terá de ser alterado, passando a ter a seguinte redação:
256. Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco com o colete salva-vidas incorporado e uns sapatos, com classificação máxima de segurança.

Em conclusão:
De forma a solucionar as contradições fácticas existentes, nos termos do art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 1.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo do Trabalho, proceder-se-á às seguintes alterações fácticas.
1) O facto provado 226 passará a ter a seguinte redação:
226. A decisão última quanto à realização do serviço de pilotagem, em termos técnicos, é do piloto-nomeado.

2) O facto provado 221 passará a ter a seguinte redação:
221. Confirmação esta que não tinha como fator de ponderação a existência de condições de segurança para a realização da concreta operação de embarque e desembarque do piloto.

3) O facto provado 228 passará a ter a seguinte redação:
228. Como entre o momento do embarque do piloto-nomeado e o fim do serviço de pilotagem pode haver alterações significativas nas condições climatéricas, a específica operação de desembarque é objeto de uma nova análise, com vista a apurar se existem condições objetivas para a realização de tal operação.

4) O facto provado 230 passará a ter a seguinte redação:
230. O piloto-nomeado, caso não conseguisse objetivamente efetuar o embarque ou desembarque do navio, decidia, em última instância, não efetuar tais operações.

5) O facto provado 256 passará a ter a seguinte redação:
256. Antes do acidente em causa nos presentes autos, a 1.ª Ré forneceu a todos os seus pilotos um EPI que integra um casaco com o colete salva-vidas incorporado e uns sapatos, com classificação máxima de segurança.

6) O facto não provado 274 passará a ter a seguinte redação:
274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições de segurança pessoal para a execução do serviço.

3) Impugnação da matéria de facto (recurso da Ré “APL”)
Pretende a Ré “APL” que sejam alterados os factos provados 93, 153 e 154, que sejam dados como provados os factos não provados 273 e 274 e que o facto constante do art. 209.º da sua contestação seja dado como provado; tudo em face dos depoimentos das testemunhas DD, FF, II, JJ e KK; das declarações prestadas pelos tripulantes da embarcação SR32, GG e HH, perante a Polícia Marítima, conforme documento 4 junto com a petição inicial; das imagens de satélite juntas pelo GAMA em 31-10-2019; da informação prestada pelo IPMA junto pela Ré em 06-11-2019; e do relatório da autópsia do sinistrado.

Dispõe o art. 640.º do Código de Processo Civil que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Relativamente à interpretação das obrigações que impendem sobre a Apelante, nos termos do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, cita-se, entre muitos, o acórdão do STJ, proferido em 03-03-2016[10]:
I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III – O ónus a cargo do Recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado.
IV – Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adopção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, máxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coarctando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica.

Relativamente à apreciação da matéria de facto em sede de recurso, importa acentuar que o disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil consagra atualmente um duplo grau de jurisdição, persistindo, porém, em vigor o princípio da livre apreciação da prova por parte do juiz da 1.ª instância, previsto no art. 607.º, n.º 5, do mesmo Diploma Legal.
No entanto, tal princípio da livre apreciação da prova mostra-se condicionado por uma “prudente convicção”, competindo, assim, ao Tribunal da Relação aferir da razoabilidade dessa convicção, em face das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da ciência e da lógica.
Veja-se sobre esta matéria o sumário do acórdão do STJ, proferido em 31-05-2016[11]:
I - O tribunal da Relação deve exercer um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição da matéria de facto e não um simples controlo sobre a forma como a 1.ª instância respondeu à matéria factual, limitando-se a intervir nos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, pois que só assim se assegurará o duplo grau de jurisdição, em matéria de facto, que a reforma processual de 1995 (DL n.º 329-A/95, de 12-12) visou assegurar e que o actual Código confirmou e reforçou.
II - Desde que o recorrente cumpra as determinações ínsitas no art. 640.º, o tribunal da Relação não poderá deixar de fazer a reapreciação da matéria de facto impugnada, podendo alterar o circunstancialismo dado como assente na 1.ª instância.

Cita-se ainda o sumário do acórdão do TRG, proferido em 04-02-2016[12]:
I- Para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada na resposta que se deu à factualidade controvertida, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.

E, a ser assim, o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação da matéria de facto, deve, não só recorrer a todos os meios probatórios que estejam à sua disposição e usar de presunções judiciais para, desse modo, obter congruência entre a verdade judicial e a verdade histórica, como também, sem incorrer em excesso de pronúncia, ao alterar a decisão de determinados pontos da matéria de facto, retirar dessa alteração as consequências lógicas inevitáveis que se repercutem noutros pontos concretos da matéria de facto, independentemente de tais pontos terem ou não sido objeto de impugnação nas alegações de recurso.
Cita-se a este propósito, o sumário do acórdão do STJ, proferido em 13-01-2015[13]:
XIII - Não ocorre excesso de pronúncia da decisão, se a Relação, ao alterar a decisão da matéria de facto relativamente a alguns pontos, retira dessa modificação as consequências devidas que se repercutem noutra matéria de facto, sendo irrelevante ter sido esta ou não objecto de impugnação nas alegações de recurso.

Por fim, importa ainda esclarecer que o Tribunal da Relação, na sua reapreciação da prova, terá sempre que atender à análise crítica de toda a prova e não apenas aos fragmentos de depoimentos que, por vezes, são indicados, e que retirados do seu contexto, podem dar uma ideia bem distinta daquilo que a testemunha efetivamente mencionou, bem como daquilo que resultou da globalidade do julgamento.
Consigna-se que se procedeu à audição do julgamento com mais de 50 horas de gravação.
Decidamos.
A Ré deu integralmente cumprimento ao disposto no art. 640.º do Código de Processo Civil relativamente à impugnação fáctica efetuada.

a) Factos provados 93 e 153
Dispõem os factos provados 93 e 153 que:
93. O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água.
153. O turco não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha e, no caso de estar inconsciente, teria que ser retirado para bordo à força de braços.

Pretende a Ré que, em face das declarações da testemunha DD, passem estes factos a ter a seguinte redação:
93. O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água, porque DD o cortou antes de utilizar o turco.
153. O cabo da talha de resgate do turco não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés, porque DD o cortou antes de o utilizar, e, no caso de estar inconsciente, teria que ser retirado para bordo à força de braços.

Relativamente ao facto provado 93, mencionou a testemunha DD que, após a queda do sinistrado à água, no momento em que pretendeu utilizar o turco, ao desenrolar o cabo da talha, teve de cortar cerca de 2 metros do mesmo, porque essa parte estava toda enleada, pelo que sempre que ele tentava desenrolar, o cabo voltava a enrolar, e como estava a ficar sem tempo, a única forma de o conseguir esticar era cortar uma parte. Mais referiu que os cabos do turco eram arrumados todos enrolados e ficavam naquela posição muito tempo, a apanhar água e sol, pelo que começavam a ficar muito duros.
O depoimento desta testemunha demonstrou total isenção e sinceridade, pelo que deverá ser apreciado na sua totalidade, até porque não se saberia do corte do cabo da talha e da razão pela qual o fez, se não tivesse sido esta testemunha a referir tal situação, uma vez que, na confusão do momento, mais nenhuma das testemunhas presentes (as testemunhas LL e MM) se apercebeu de tal situação.
Deste modo, de forma a compreender a razão pela qual o cabo da talha não chegava ao nível da água, deverá ficar a constar que o mesmo foi cortado, bem como a razão pela qual esse corte foi feito.
Assim, o facto provado 93 passará a ter a seguinte redação:
93. O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água, porque o marinheiro DD, quando pretendeu utilizá-lo, não o conseguia desenrolar, pelo que para o conseguir esticar teve de lhe cortar cerca de 2 metros.

Relativamente ao facto provado 153, é importante efetuar uma distinção entre o turco e o cabo da talha.
Conforme bem referiu a testemunha DD, o turco é um aparelho de força que desmultiplica o peso para permitir içar o corpo da água, possuindo um chicote na parte de dentro que possibilita içar o corpo manualmente, obrigando, porém, esta atividade a que ambas as mãos de quem puxa estejam disponíveis para ser possível fazer a força necessária para içar o corpo. Mais referiu que, para que se possa içar alguém da água através do turco, é necessário utilizar um cabo (cabo da talha), que tem na sua extremidade um engate (ou mosquetão), o qual deverá ser encaixado na roupa do náufrago, de forma a ser possível, posteriormente, através do turco, içá-lo.
Por sua vez, a testemunha FF acrescentou que o turco possui roldanas para que, ao içar o náufrago, a pessoa faça menos força.
Assim, na realidade, o turco é o equipamento completo, constituído (i) por uma parte que se encontra no interior da embarcação, formada por uma estrutura metálica, vertical e direita, com roldanas, cuja parte interior é formada por um chicote que permite a quem se encontra na embarcação puxar; e (ii) por um cabo em material resistente, normalmente em aço (um cabo com determinada extensão), ou seja, o denominado cabo da talha, que se fixa a essa roldana e que é lançado da embarcação até à água, possuindo na sua extremidade um engate[14], engate esse que permite agarrar o náufrago pela roupa e içá-lo.
De acordo com o depoimento da testemunha DD, efetivamente, quando este refere que o turco tinha pouca altura, ou seja, cerca de 1,60 do convés, está a referir-se à estrutura metálica, vertical e direita, que se encontra no interior da embarcação, e não ao cabo da talha.
Esta testemunha referiu ainda que a ideia com que ficou aquando do acidente (de que essa estrutura metálica tinha pouca altura), foi por si confirmada no exercício prático fornecido pelo ISN, e efetuado posteriormente ao acidente, quando, ao usarem o turco, se constatou que este não tinha altura suficiente para içar o náufrago da água e colocá-lo no convés, sendo sempre necessário que alguém descesse a escada para auxiliar e puxar para dentro da embarcação o referido náufrago.
Deste modo, e ainda que o facto provado 153 esteja, no essencial, correto, deverá inserir-se uma pequena alteração, de forma não se confundir a expressão turco, que abrange todo o equipamento, com a parte específica desse equipamento que não possuía altura suficiente.
Assim, o facto provado 153 passará a ter a seguinte redação:
153. A estrutura metálica, vertical e direita, do turco, que se encontrava no interior da embarcação, não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha e, no caso de este estar inconsciente, teria sempre que ser retirado para bordo com o auxílio à força de braços dos tripulantes.

b) Facto provado 154
Dispõe o facto provado 154 que:
154. Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por outros mais compridos.

Pretende a Ré “APL” que, em face do depoimento da testemunha DD, este facto passe a ter a seguinte redação:
154. Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem.

Efetivamente não resultou provado que os novos cabos das talhas dos turcos fossem mais compridos do que os anteriores. Aliás, o que a testemunha DD referiu, e que a Ré “APL” menciona nas suas alegações, é que os cabos das talhas dos turcos já não estavam em boas condições, por se mostrarem ressequidos por causa do sol e do sal.
Assim, o facto provado 154 passará a ter a seguinte redação:
154. Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por outros, uma vez que os antigos já se encontravam ressequidos por causa do sol e do sal.

c) Facto não provado 273
Dispõe o facto não provado 273 que:
273. Quando a lancha do ISN chegou ao local onde o sinistrado se encontrava, as condições climatéricas já se haviam agravado substancialmente em comparação com as que se faziam sentir no momento em que se iniciou o desembarque do sinistrado.

Considera a Ré que, em face das declarações da testemunha FF, bem como das imagens de satélite juntas pelo GAMA, da informação fornecida pelo IPMA, e da certidão identificada como documento 4 junto com a petição inicial, deve ser dado como provado este facto.
Vejamos.
As testemunhas DD, LL e MM foram ouvidas em sede de audiência de julgamento, sujeitas ao princípio do contraditório, e, apesar de terem sido por diversas vezes e de distintas maneiras questionadas, responderam, de forma unânime, que a situação de tempo e mar, ainda que se tenha agravado entre o embarque da testemunha II e o desembarque do sinistrado AA, entre este desembarque e o aparecimento da embarcação SR 32 não houve alteração, mantendo-se a intensidade do mau tempo. Estas foram as testemunhas que assistiram, no local, a tudo o que se passou, revelando os seus depoimentos isenção e credibilidade.
Já os pilotos da embarcação SR 32, para além de não se encontrarem no local à data do acidente, tendo apenas aí comparecido uma hora e vinte e quatro minutos depois (factos provados 67 e 105), não foram ouvidos em sede de audiência de julgamento, não tendo, por isso, sido possível exercer o respetivo contraditório, pelo que a sua versão não possui a solidez e consistência necessárias para colocar em causa o afirmado pelas testemunhas supramencionadas.
De igual modo, nenhum dos outros dois documentos invocados pela Ré “APL” o fazem, como não o fez o depoimento da testemunha FF.
Relativamente às cinco imagens de satélite juntas pelo GAMA[15], referentes ao dia 28-02-2018, entre as 00h47 e as 02h07, capturadas pelo navio Singapore Express, o próprio depoimento da testemunha FF, único que afirma que tais imagens demonstram um agravamento do tempo entre o momento da queda do sinistrado à água e o momento em que a lancha do ISN chegou ao local do acidente, é bastante titubeante e confuso. Na realidade, apesar de afirmar, num momento inicial, que nas primeiras imagens não se via a frente (que refere estar associada a uma descarga de água e de vento concentrado), estando a imagem completamente limpa, só começando a aparecer a frente na imagem da 01h07, ou seja, mais de uma hora após o acidente, e vendo-se bem na imagem das 02h07, o que, no seu entender, significava ter existido um agravamento do estado do tempo e do mar; quando confrontado, com a existência de um cone de sombra (o ângulo morto que o radar do navio não apanha por causa do mastro), que poderá ter tapado a tal frente ou chuva, de que fala, na imagem das 00h47, visto que na imagem das 00h50, já se identifica a tal frente/chuva, depois de ter começado por dizer que nesta imagem o que se via não era a frente/chuva, mas sim uma nuvem, acabou por admitir que nessa imagem aquilo que se via podia ser a chuva. De igual modo, apesar de ter começado por referir que o ponto escuro nas várias imagens representava o cone de sombra, a seguir já referia que naquelas imagens não existia qualquer cone de sombra, sendo o ponto escuro um obstáculo móvel que não sabia explicar, mas que já não esconderia nada. Por fim, ao lhe ser perguntado como explicava, na sua versão de agravamento significativo do tempo, que os dados nas cinco imagens relativas à chuva (Rain) fossem sempre iguais, ou seja, 25[16], não conseguiu esclarecer tal.
Contrariamente a este depoimento, as explicações da testemunha PP, quando confrontadas com estas imagens, merecem bem mais credibilidade. Referiu esta testemunha que na imagem das 00h47 não se vê a frente, podendo lá estar, mas não ser visível, porém, na imagem das 00h50 já se vê.
Acresce que apenas consta da informação fornecida pelo IPMA[17], entre as 00h00 e as 03h00, na zona da baía de Cascais, do dia 28-02-2018, que:
● o vento tenha soprado com força 5 a 7 do quadrante sul; ocorrência de rajadas até valores da ordem de 50 nós;
● a visibilidade horizontal tenha sido fraca (valores de 2 a 4 km), temporariamente muito fraca (valores de 1 a 2 km), devido a precipitação;
● as ondas tenham tido direção dominante de sudoeste, com cerca de 4 metros de altura significativa e cerca de 10 segundo de período médio.

Ora, tal informação, ainda que se reporta a uma variação do vento entre valores de 5 a 7, não refere em que momentos, nesse período de 3 horas, a situação se agravou, pelo que esta informação não comprova a tese defendida pela Ré “APL”.
Em conclusão, mantém-se como não provado e nos seus exatos termos o facto não provado 273.

d) Facto não provado 274
Dispõe o facto não provado 274 que:
274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições, designadamente, de segurança, para a execução do serviço.

Entende a Ré que este facto deve passar a provado em face das declarações das testemunhas FF, II, JJ e KK.
Ora, para além de este facto já possuir uma nova versão[18], aquando da apreciação das invocadas contradições, foi fundamentada esta alteração, fazendo menção às declarações das testemunhas JJ, KK, EE, NN e II que fizeram a distinção entre a autonomia técnica do piloto e as questões relacionadas à sua segurança no ato de embarque ou desembarque do navio, referindo que o facto de esta questão não ser atendida pela Ré “APL”, levou-os, após o acidente do sinistrado AA, em 05-10-2018, a assinar uma carta, com vinte seis assinaturas dos pilotos da barra, que deram conhecimento ao conselho de administração da referida Ré, onde estabeleceram, eles próprios, limites aos atos de pilotagem em função do tamanho da ondulação[19].
Transcreve-se pela sua clareza o teor de tal carta, cujos limites aí estabelecidos têm estado em vigor desde então:
Os pilotos da Barra do Porto de Lisboa determinam que, até à concretização de alterações relevantes nas práticas operacionais, na formação e no treino, nos equipamentos e nos recursos humanos, os actos de pilotagem ficam condicionados às recomendações relativas às alturas significativas constantes no Relatório Interno ao acidente do Colega Cte. AA.
Especificamente para a estação de Cascais:
- no caso da bóia ondógrafo do Porto de Lisboa não se encontrar completamente operacional, considerar-se-á o valor mais elevado das leituras das bóias do IH em Sines e Leixões;
Ou
- Aviso Amarelo do IPMA;

Algés, 5 de Outubro de 2018

Importa referir que no Relatório Interno efetuado ao acidente do sinistrado AA[20], na Recomendação 4.1, ficou a constar:
É recomendado que a pilotagem seja interrompida quando se verificar ondulação superior a uma altura significativa de 3 metros.

Pelo exposto, apenas nos resta concluir que o facto não provado 274 se manterá como tal, na versão por este tribunal fixada supra.

e) Art. 209.º da contestação
Dispõe o art. 209.º da contestação que:
Na data e hora do acidente, o sinistrado tinha cannabinóides (e metabolitos) no sangue em concentrações inferiores às consideradas “terapêuticas.

Entende a Ré que este facto deve ser dado como provado em face do teor do relatório da autópsia.
Ora, para além de este facto não ter sido mencionado em sede de audiência de julgamento, designadamente não se ter procurado apurar que tipo de consequências poderia essa reduzida substância existente no sangue do sinistrado ter provocado na capacidade de resistência do mesmo ao frio da água do mar ou ao grau de consciência; a sua prova, em face dos demais factos que se mostram dados como provados, revela-se manifestamente inútil para a apreciação jurídica das questões em apreço.
Nesta conformidade, por ser proibida a prática de atos inúteis, nos termos do art. 130.º do Código de Processo Civil, não se procederá à sua apreciação[21].

Em conclusão:
Procedeu-se à alteração dos seguintes factos provados:
A) O facto provado 93 passa a ter a seguinte redação:
93. O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água, porque o marinheiro DD, quando pretendeu utilizá-lo, não o conseguia desenrolar, pelo que para o conseguir esticar teve de lhe cortar cerca de 2 metros.

B) O facto provado 153 passa a ter a seguinte redação:
153. A estrutura metálica, vertical e direita, do turco, que se encontrava no interior da embarcação, não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha e, no caso de este estar inconsciente, teria sempre que ser retirado para bordo com o auxílio à força de braços dos tripulantes.

C) O facto provado 154 passa a ter a seguinte redação:
154. Após a ocorrência dos factos, a ré APL, SA substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por outros, uma vez que os antigos já se encontravam ressequidos por causa do sol e do sal.

4) Inexistência dos requisitos previstos no art. 18.º, n.º 1, da LAT (recurso da Ré “APL”)
Considera a Ré “APL” que não se mostram reunidos os requisitos de aplicabilidade do art. 18.º, n.º 1, da LAT, por não ter havido a violação de regras de segurança que se reporte a uma regra concreta e específica, destinada a assegurar a segurança no trabalhando, não bastando para tal a violação de uma norma programática ou geral.
Específica que, apesar de a sentença recorrida ter concluído que a Ré “APL” violou a obrigação de proporcionar formação profissional aos seus trabalhadores; a obrigação de estabelecer limites à realização do embarque e/ou desembarque por parte dos pilotos; a obrigação de elaborar um plano de emergência específico para a situação de “homem ao mar” que considerasse os equipamentos existentes e a sua utilização pelos tripulantes da lancha; a obrigação de definir as funções do piloto coordenador em caso de emergência; a obrigação de redigir instruções a bordo da lancha e de, elaborar procedimentos para as situações de emergência de “homem ao mar”; e a obrigação de fornecer equipamento de trabalho utilizado pelos seus trabalhadores adequado e convenientemente adaptado ao trabalho desenvolvido, de forma a garantir as condições de saúde e segurança dos mesmos; tal sentença não indica qual tenha sido a concreta e específica norma legal de onde tais obrigações emergem.
Referiu ainda que o acidente se ficou a dever à violação por parte do sinistrado das regras da operação de desembarque e não por qualquer falta da Ré.
Esclareceu também que, mesmo a ter existido algum incumprimento das obrigações que impediam sobre a Ré “APL”, não resultou provado o nexo de causalidade entre tal violação e as consequências do acidente, uma vez que, naquela situação, era impossível o resgate do sinistrado de dentro da água, visto que o sinistrado ficou inconsciente no curto espaço de menos de 20 minutos, não por hipotermia, mas por estar sob a influência de cannabinoides e por se tratar de uma pessoa obesa, sendo que as condições climatéricas se alteraram já depois da queda do sinistrado e antes da chegada da embarcação SR 32, da estação salva-vidas de Cascais.
Invocou ainda que a Ré desconhece que concretos elementos formativos poderiam ter sido administrados que pudessem fazer com que a tripulação da lancha e o próprio sinistrado tivessem reagido e atuado de modo distinto, adotando procedimentos diferentes, sendo que o desconhecimento da alça de recuperação lateral existente dentro do casaco do piloto por parte da tripulação da lancha não teve qualquer consequência nas manobras e procedimentos adotados para resgatar o sinistrado, uma vez que o sinistrado apenas não foi içado para bordo, em virtude dos golpes de mar, entretanto, ocorridos, e do peso e condições físicas e psicológicas do sinistrado.
Referiu ainda que a demora da lancha do ISN, que devia auxiliar no resgate do sinistrado, demorou uma hora a chegar ao local, o que certamente contribuiu, de forma extremamente significativa, para a morte do sinistrado por afogamento.
Dispõe o art. 18.º da LAT que:
1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade criminal em que os responsáveis aí previstos tenham incorrido.
3 - Se, nas condições previstas neste artigo, o acidente tiver sido provocado pelo representante do empregador, este terá direito de regresso contra aquele.
4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes:
a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição;
b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente.
5 - No caso de morte, a pensão prevista no número anterior é repartida pelos beneficiários do sinistrado, de acordo com as proporções previstas nos artigos 59.º a 61.º
6 - No caso de se verificar uma alteração na situação dos beneficiários, a pensão é modificada, de acordo com as regras previstas no número anterior.

Nos termos do art. 18.º da LAT resulta que para que estejamos perante uma situação de responsabilidade agravada por parte da entidade empregadora na produção de um determinado acidente de trabalho se torna necessário, na segunda situação nele referida[22], a verificação dos seguintes requisitos[23]:
a) existência de um dever de observância de determinadas normas ou regras de segurança por parte da entidade patronal (direta ou indiretamente);
b) incumprimento por parte da entidade patronal desse dever;
c) existência de um nexo de causalidade entre esse incumprimento e o acidente de trabalho.
No caso em apreço, a Apelante considera, em primeiro lugar, que a sentença recorrida não indica as normas legais, concretas e específicas, de onde emergem as obrigações que considera que impendem sobre si.
Procederemos, assim, à transcrição, nessa parte, da sentença recorrida:
No âmbito do contrato de trabalho, compete ao empregador a obrigação de prevenir eventuais riscos para a segurança e saúde do trabalhador, adotar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho e fornecer-lhe a informação e formação adequadas à prevenção de riscos de acidente – artigo 127.º, n.º 1, alíneas g), h) e i) do Código de Trabalho.
A segurança no trabalho depende de adequada formação dos trabalhadores que utilizam os referidos equipamentos, a qual constitui uma obrigação do empregador, a par de outras previstas na Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, que estabelece o Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho.
Soba epígrafe “Obrigações gerais do empregador” dispõe o artigo 15.º da mencionada Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, na versão introduzida pela Lei n.º 3/2014, de 28 de janeiro, que: “1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.
2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
b) Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto
das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;
g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
h) Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;
i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.
4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.
6 - O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.
7 - O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.
8 - O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.
9 - O empregador deve estabelecer em matéria de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação as medidas que devem ser adotadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades externas competentes para realizar aquelas operações e as de emergência médica.
10 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.
11 - As prescrições legais ou convencionais de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas para serem aplicadas na empresa, estabelecimento ou serviço devem ser observadas pelo próprio empregador .(…)
Por seu lado, estabelece o artigo 17.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, que: “1 - Constituem obrigações do trabalhador:
a) Cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador;
b) Zelar pela sua segurança e pela sua saúde, bem como pela segurança e pela saúde das outras pessoas que possam ser afetadas pelas suas ações ou omissões no trabalho, sobretudo quando exerça funções de chefia ou coordenação, em relação aos serviços sob o seu enquadramento hierárquico e técnico;
c) Utilizar corretamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de proteção coletiva e individual, bem como cumprir os procedimentos de trabalho estabelecidos;
d) Cooperar ativamente na empresa, no estabelecimento ou no serviço para a melhoria do sistema de segurança e de saúde no trabalho, tomando conhecimento da informação prestada pelo empregador e comparecendo às consultas e aos exames determinados pelo médico do trabalho;
e) Comunicar imediatamente ao superior hierárquico ou, não sendo possível, ao trabalhador designado para o desempenho de funções específicas nos domínios da segurança e saúde no local de trabalho as avarias e deficiências por si detetadas que se lhe afigurem suscetíveis de originarem perigo grave e iminente, assim como qualquer defeito verificado nos sistemas de proteção;
f) Em caso de perigo grave e iminente, adotar as medidas e instruções previamente estabelecidas para tal situação, sem prejuízo do dever de contactar, logo que possível, com o superior hierárquico ou com os trabalhadores que desempenham funções específicas nos domínios da segurança e saúde no local de trabalho.
2 - O trabalhador não pode ser prejudicado em virtude de se ter afastado do seu posto de trabalho ou de uma área perigosa em caso de perigo grave e iminente nem por ter adotado medidas para a sua própria segurança ou para a segurança de outrem.
3 - As obrigações do trabalhador no domínio da segurança e saúde nos locais de trabalho não excluem as obrigações gerais do empregador, tal como se encontram definidas no artigo 15.º. (…)
O trabalhador deve receber uma formação e informação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado, a qual deve ser assegurada de modo a que não possa resultar prejuízo para o mesmo - cfr. artigo 19.º, n.º 1, alínea a), 20.º, n.º 1 e 4, da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro.
Prevê o Decreto-Lei n.º 421/99 de 21 de outubro, que aprovou o Estatuto de Pessoal das Administrações Portuárias (EPAP), ao que ao caso interessa, no respetivo artigo 16.º, sob a epígrafe “Deveres das administrações portuárias”, que: “São deveres das administrações portuárias, para além de outros decorrentes da lei e do presente Estatuto:
a) Cumprir e fazer cumprir a lei, o presente Estatuto e os regulamentos que lhe dão execução;
b) Proporcionar e manter boas condições de trabalho, designadamente em matéria de salubridade, higiene e segurança;
c) Promover a formação profissional dos trabalhadores nos termos previstos no presente Estatuto; (…)”.
Dispõe o artigo 24.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Competência das administrações portuárias”, que:
1 - Dentro dos limites da lei e nos termos do presente Estatuto, compete às administrações portuárias fixar os termos em que deve ser prestado o trabalho.
2 - As administrações portuárias, atentas as condições de trabalho, poderão elaborar regulamentos internos sobre a organização e disciplina do trabalho.
No Capítulo XII do mesmo diploma, dedicado à formação profissional, prevê-se no respetivo artigo 36.º que: “A formação profissional compreende o conjunto de acções que, pela transmissão de novos conhecimentos ou modificações de atitudes e mediante a utilização de técnicas e pedagogia adequadas a cada área específica, acrescidas, quando necessário, do acesso a conhecimentos de ordem geral que lhes sirvam de suporte, visam:
a) O desenvolvimento dos conhecimentos técnico-profissionais dos trabalhadores com vista a torná-los mais aptos ao desempenho das suas funções numa perspectiva de progresso técnico, nomeadamente através de acções de reciclagem;
b) A preparação técnica e profissional dos trabalhadores para efeito de reconversão ou reclassificação profissional;
c) A contribuição para o desempenho pelos trabalhadores de funções de natureza mais complexa ou diversificada, designadamente decorrente da evolução profissional ou da mudança de carreira;
d) A sensibilização para a adopção de novos processos tecnológicos ou para a introdução de novos métodos de trabalho ou reformulação e reforço dos praticados.”
A organização, instalação e regulamentação da formação profissional em cada administração portuária serão definidas pelo respetivo conselho de administração (cf. artigo 37.º do Decreto-Lei 421/99 de 21 de outubro), sendo aquelas competentes para praticar todos os atos previstos no presente Estatuto que não estejam expressamente reservados a outra entidade, nomeadamente para aprovar os regulamentos necessários à sua boa execução (artigo 39.º do mesmo diploma).
Impõe-se, ainda, ter em consideração o disposto no Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, que estabelece as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho.
Nos termos do artigo 3.º deste diploma, “Para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve:
a) Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;
b) Atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização;
c) Tomar em consideração os postos de trabalho e a posição dos trabalhadores durante a utilização dos equipamentos de trabalho, bem como os princípios ergonómicos;
d) Quando os procedimentos previstos nas alíneas anteriores não permitam assegurar eficazmente a segurança ou a saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho, tomar as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes;
e) Assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos artigos 10.º a 29.º e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.
De harmonia com o disposto no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, de “1 – O empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados.
2 - A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:
a) Condições de utilização dos equipamentos;
b) Situações anormais previsíveis;
c) Conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização dos equipamentos;
d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afectar os trabalhadores, ainda que não os utilizem directamente (…)”.
Conclui-se, assim, que a formação adequada do trabalhador para que possa desempenhar a sua atividade profissional em condições de segurança e saúde, é, pois, obrigatória, recaindo sobre o empregador a obrigação de prestar tal formação, por via direta ou indireta.

Da parte citada da sentença recorrida, resulta, desde logo, um elenco significativo de legislação. Pretende, porém, a Ré que tal legislação não se lhe aplica por não indicar em concreto que ações de formação profissional deveria proporcionar aos seus trabalhadores; não indicar, em concreto, que, na situação de “homem ao mar”, teria de ter elaborado um plano de emergência específico para essa situação, considerando os equipamentos existentes e a sua utilização pelos tripulantes da lancha; não indicar que tinha a obrigação de definir as funções do piloto coordenador em caso de emergência; não indicar que tinha a obrigação de redigir instruções a bordo da lancha e de elaborar procedimentos para as situações de emergência de “homem ao mar”; não indicar qual o equipamento de trabalho utilizado pelos seus trabalhadores que tinha de fornecer que era adequado e convenientemente adaptado ao trabalho desenvolvido, de forma a garantir as condições de saúde e segurança dos mesmos; e não indicar que tinha a obrigação de estabelecer limites à realização do embarque e/ou desembarque por parte dos pilotos.
Na realidade, a Ré “APL”, na qualidade de entidade empregadora, encontra-se sujeita aos deveres constantes do art. 127.º, n.º 1, do Código do Trabalho, designadamente aos deveres de (i) “Prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, devendo indemnizá-lo dos prejuízos resultantes de acidentes de trabalho;” (al. g); (ii) “Adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;” (al. h); e (iii) Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença;” (al. i).
Recai igualmente sobre a Ré “APL”, enquanto empregadora, o dever de informar os trabalhadores sobre os aspetos relevantes para a proteção da sua segurança e saúde e a de terceiros, nos termos do art. 282.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Por sua vez, o DL n.º 50/2005, de 25-02, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de junho, reporta-se às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho e aplica-se a “todos os ramos de actividade dos sectores privado, cooperativo e social, administração pública central, regional e local, institutos públicos e demais pessoas colectivas de direito público, bem como a trabalhadores por conta própria” (art. 1.º, n.º 2), pelo que inevitavelmente também se aplica à Ré “APL”, sendo que, de acordo com este diploma, se considera «Equipamento de trabalho» qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho” (art. 2.º, al. a).
Este diploma consagra, no seu art. 3.º, que:
Para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve:
a) Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;
b) Atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização;
c) Tomar em consideração os postos de trabalho e a posição dos trabalhadores durante a utilização dos equipamentos de trabalho, bem como os princípios ergonómicos;
d) Quando os procedimentos previstos nas alíneas anteriores não permitam assegurar eficazmente a segurança ou a saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho, tomar as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes;
e) Assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança constantes dos artigos 10.º a 29.º e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.

Compete ainda ao empregador, e apenas a ele, e independentemente da área de atividade que seja exercida, nos termos do art. 8.º do referido Diploma, o seguinte:
1 - O empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados.
2 - A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:
a) Condições de utilização dos equipamentos;
b) Situações anormais previsíveis;
c) Conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização dos equipamentos;
d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afectar os trabalhadores, ainda que não os utilizem directamente.

Acresce que o art. 36.º, no seu n.º 8, reportando-se a situações com riscos de queda em altura, estabelece que “Os trabalhos em altura só devem ser realizados quando as condições meteorológicas não comprometam a segurança e a saúde dos trabalhadores”.
De igual modo, a Lei n.º 102/2009, de 10-09, dispõe no seu art. 5.º, n.º 1, que[24]:
1 - O trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou coletiva, que detenha a gestão das instalações em que a atividade é desenvolvida.

E estabelece no art. 15.º que:
1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.
2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
b) Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;
d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
f) Assegurar, nos locais de trabalho, que as exposições aos agentes químicos, físicos e biológicos e aos fatores de risco psicossociais não constituem risco para a segurança e saúde do trabalhador;
g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
h) Adaptação ao estado de evolução da técnica, bem como a novas formas de organização do trabalho;
i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.
4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.
6 - O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não possa ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.
7 - O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos da realização dos trabalhos, quer nas instalações quer no exterior.
8 - O empregador deve assegurar a vigilância da saúde do trabalhador em função dos riscos a que estiver potencialmente exposto no local de trabalho.
9 - O empregador deve estabelecer em matéria de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação as medidas que devem ser adotadas e a identificação dos trabalhadores responsáveis pela sua aplicação, bem como assegurar os contactos necessários com as entidades externas competentes para realizar aquelas operações e as de emergência médica.
10 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.
11 - As prescrições legais ou convencionais de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas para serem aplicadas na empresa, estabelecimento ou serviço devem ser observadas pelo próprio empregador.
12 - O empregador suporta a totalidade dos encargos com a organização e o funcionamento do serviço de segurança e de saúde no trabalho e demais sistemas de prevenção, incluindo exames de vigilância da saúde, avaliações de exposições, testes e todas as ações necessárias no âmbito da promoção da segurança e saúde no trabalho, sem impor aos trabalhadores quaisquer encargos financeiros.
(…)

Consagra igualmente o art. 19.º, n.º 1, al. a), em conjugação com o art. 18.º, n.º 1, al. j), ambos da Lei n.º 102/2009, de 10-09, que o trabalhador deve dispor de informação atualizada sobre os riscos para a segurança e saúde, bem como informação relativa às medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço.
Estatui, de igual modo, o art. 20.º deste Diploma Legal que:
1 - O trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado.
2 - Aos trabalhadores designados para se ocuparem de todas ou algumas das atividades de segurança e de saúde no trabalho deve ser assegurada, pelo empregador, a formação permanente para o exercício das respetivas funções.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, o empregador deve formar, em número suficiente, tendo em conta a dimensão da empresa e os riscos existentes, os trabalhadores responsáveis pela aplicação das medidas de primeiros socorros, de combate a incêndios e de evacuação de trabalhadores, bem como facultar-lhes material adequado.
4 - A formação dos trabalhadores da empresa sobre segurança e saúde no trabalho deve ser assegurada de modo a que não possa resultar prejuízo para os mesmos.
5 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, o empregador e as respetivas associações representativas podem solicitar o apoio dos organismos públicos competentes quando careçam dos meios e condições necessários à realização da formação.
6 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 1 a 4.

Por fim, nos termos do Estatuto de Pessoal das Administrações Portuárias[25], devem as administrações portuárias (i) cumprir e fazer cumprir a lei, o presente Estatuto e os regulamentos que lhe dão execução; (ii) Proporcionar e manter boas condições de trabalho, designadamente em matéria de salubridade, higiene e segurança; e (iii) Promover a formação profissional dos trabalhadores nos termos previstos no presente Estatuto (art. 16.º, als. a), b) e c)). E devem os trabalhadores cumprir o Estatuto e os regulamentos que lhe dão execução; participar em ações de formação; e cumprir as normas de salubridade e higiene e de segurança do trabalho, equipamento e instalações (art. 17.º, als. a), b) e d)). Sendo que as ações de formação profissional visam, entre outras finalidades, o desenvolvimento dos conhecimentos técnico-profissionais dos trabalhadores através de ações de reciclagem (art. 36.º, al. a).
Posto isto, não se compreende que dúvidas possa a Ré ter de que lhe incumbe assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho, devendo zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, devendo evitar os riscos; planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais; proceder à identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos.
De igual modo, incumbe-lhe assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização; atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização; e assegurar a manutenção adequada dos equipamentos de trabalho durante o seu período de utilização, de modo que os mesmos respeitem os requisitos mínimos de segurança e não provoquem riscos para a segurança ou a saúde dos trabalhadores.
Compete ainda à Ré prestar aos trabalhadores informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados, designadamente as condições da sua utilização, sobre as conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização desses equipamentos; e sobre os riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afetar os trabalhadores, ainda que não os utilizem diretamente.
Ora, todos estes deveres são obrigações da entidade empregadora na sua área de atividade, competindo a esta apurar quais são os riscos inerentes à atividade profissional desenvolvida, bem como quais os melhores meios a adotar para os evitar ou minimizar, dando conhecimento aos seus trabalhadores quer desses riscos, quer do modo correto de utilização dos equipamentos de trabalho utilizados, inclusive os relacionados com a segurança, competindo, por sua vez, ao trabalhador cumprir as normas, designadamente as de segurança do trabalho.
De igual modo, fazendo parte da função dos pilotos da barra a subida e descida de escadas, um dos riscos que lhes está associado é o da queda em altura, pelo que tais trabalhos não devem ser praticados quando as condições meteorológicas comprometam a sua segurança e saúde.
Deste modo, não só a sentença recorrida indicou, na essencialidade, as concretas normas legais aplicáveis à Ré, como efetivamente tais disposições legais são, em si mesmas, suficientes para lhe serem aplicáveis, sem necessidade de qualquer outra concretização.
Importa, então, apurar, em face da matéria dada como assente, e não àquela que a Ré pretendia que tivesse sido dada como assente, se as obrigações relativas à informação a prestar aos seus trabalhadores, bem como a adoção das medidas necessárias ao exercício da atividade profissional em condições de segurança e de saúde desses trabalhadores, foram integralmente cumpridas pela Ré.
Na situação que ora nos ocupa, e relativamente ao não cumprimento pela Ré das obrigações de informação e formação a prestar aos seus trabalhadores quanto aos equipamentos de segurança e de salvamento que estes tinham de utilizar em situações de emergência, resultou provado que:
a) Aquando do acidente:
- Quando o marinheiro e o motorista da lancha desceram o turco para tentar engatar o arnês do turco em algum local do sinistrado, o motorista, apesar de, mais de uma vez, ter agarrado no casaco e no flutuador do colete do sinistrado, não viu a alça de recuperação lateral existente dentro do casaco, nem nenhum elemento da tripulação da lancha sabia da existência dessa alça, tendo o motorista procurado um ponto de engate frontal que não existia no casaco de serviço que o sinistrado envergava (factos provados 92, 94, 95 e 96);
b) Em geral:
- A Ré “APL”, em momento anterior à ocorrência dos factos, (i) não aprovou plano de formação específico para os pilotos ou para os tripulantes das lanchas no domínio da prevenção dos riscos profissionais associados ao embarque/desembarque dos navios, apesar de tal formação lhe ter sido solicitada quer pelos pilotos ao seu serviço quer pela APIBARRA – Associação dos Pilotos de Barra e Portos; (ii) não deu formação nem treino ao sinistrado, no âmbito da segurança e saúde no trabalho, quanto aos riscos profissionais específicos da sua atividade relativos ao embarque/desembarque do navio e às medidas de prevenção desses riscos e, muito menos, em situação de emergência de “Homem ao mar”; (iii) nunca determinou a realização de exercícios de segurança no porto de Lisboa, em ambiente real, nomeadamente para os tripulantes das lanchas e para os próprios pilotos; (iv) não deu formação ou informação sobre técnicas de sobrevivência em água fria ao sinistrado; (v) não informou os tripulantes da lancha dos efeitos produzidos pela imersão de uma pessoa na água fria, nomeadamente, a letargia; (vi) não forneceu ao sinistrado formação para a utilização do equipamento de proteção individual que envergava; (vii) não informou nem o sinistrado nem os tripulantes da lancha que o casaco de serviço do piloto tem uma alça de recuperação lateral no seu interior, que apenas fica visível quando o colete acoplado ao casaco insufla automaticamente; (viii) não procedeu ao teste, pelos seus pilotos, em cenário real, do equipamento de proteção envergado pelo sinistrado; (ix) não deu formação, treino ou determinado a participação em exercícios de segurança em situação de emergência de “Homem ao mar” a nenhum dos tripulantes das lanchas, afetas ao serviço de pilotagem, sendo que o marinheiro que se encontrava na lancha, aquando do acidente, tinha apenas formação em segurança básica, obtida na sua formação inicial, cujo curso não contempla a vertente de “Homem ao mar”, nem a vertente sobre o embarque e desembarque de pilotos no mar, e era prestado sempre em piscina; (x) não definiu as funções do piloto coordenador em caso de emergência; (xi) não aprovou um plano de emergência para a situação de “Homem ao mar” que considerasse as características próprias das lanchas dos pilotos, o equipamento de recuperação de náufragos existente a bordo e o número de tripulantes da lancha; (xii) não colocou a bordo da lancha “TORRE DE BELÉM” um registo de operações, de exercícios, um manual de procedimentos para embarque e desembarque de piloto e nem procedimentos em caso de emergência, nomeadamente de “Homem ao mar” e manobras para a respetiva recolha; e (xiii) não elaborou qualquer procedimento ou manual definindo as funções dos tripulantes das lanchas em caso de emergência, nomeadamente descrevendo o que cada tripulante deve fazer e em que momento, como devem ser efetuadas as manobras de resgate pela lancha, sobretudo no que toca à aproximação ao náufrago e à sua recolha para bordo, que meios e equipamentos de emergência devem ser utilizados (factos provados 141, 142, 143, 144, 145, 146, 148, 149, 150, 156, 157, 160, 161, 162 e 163).
Resultou ainda provado que, após o acidente, a Ré “APL” celebrou um Protocolo com o “Instituto de Socorros a Náufragos, I.P.” para ser ministrada formação aos pilotos e aos tripulantes das lanchas ao seu serviço, no total de 73 trabalhadores, integrando nesse plano de formação o curso de “Sobrevivência e Resgate no Mar”, que visa desenvolver competências técnicas em três vertentes, a saber, sobrevivência no mar, resgate e recuperação de vítimas no meio aquático, e prestação de primeiros socorros, sendo que essa formação integrou exercícios práticos realizados em Algés e na baía de Cascais, utilizando as lanchas de pilotagem da “APL” (factos provados 167, 168 e 169).
É, assim, manifesto, em face dos factos elencados, que a Ré “APL” violou as obrigações relativas à informação e formação a prestar aos seus trabalhadores constantes dos arts. 127.º, n.º 1, al. i) e 282.º, n.º1, ambos do Código do Trabalho; do art. 8.º, nºs. 1 e 2, als. a) e d), do DL n.º 50/2005, de 25-02; dos arts. 15.º, nºs. 2, al. l), 4, 9 e 10, 20.º, nºs. 1, 2, 3 e 4 e 19.º, n.º 1, al. a), em conjugação com o art. 18.º, n.º 1, al. j), todos da Lei n.º 102/2009, de 10-09; e arts. 16.º, als. a) e c) e 36.º, al. a), do Estatuto de Pessoal das Administrações Portuárias.
Posteriormente ao acidente, pelo menos, quanto à formação sobre técnicas de sobrevivência e de resgate no mar, a “APL” veio a dar cumprimento à sua obrigação legal.
Relativamente à adoção, por parte da Ré “APL”, das medidas necessárias ao exercício da atividade profissional em condições de segurança e de saúde dos seus trabalhadores, resultou provado que:
- Na altura do desembarque do sinistrado, a ondulação era de 4 metros de Sudoeste, chuva intensa, vento muito forte de Oeste (escala Beaufort força 5 com rajadas de força 7), preia-mar às 00:59 horas de 28.02.2018, com uma altura de 2,50 metros (facto provado 43);
- Aquando da queda, o sinistrado envergava o equipamento de proteção individual aprovado, adquirido e fornecido pela Ré “APL”, equipamento esse que consistia num casaco azul escuro, com gola vermelha, capuz amarelo fluorescente, com reflector longitudinal, da marca “Mullion Harbour Pilot Jacket”, e sapatos pretos de atacadores com sola antiderrapante e biqueira de aço (factos provados 70 e 71);
- Nenhum dos tripulantes da lancha que estavam no convés tinha a linha da vida colocada, pelo que apenas podiam auxiliar o sinistrado com uma mão, uma vez que com a outra mão tinham de estar a agarrar o varandim para evitarem cair também eles ao mar (factos provados 85 e 86);
- Enquanto esteve agarrado à escada da lancha, o sinistrado ficou submerso algumas vezes devido à ondulação (facto provado 90);
- Com o sinistrado consciente e agarrado à escada situada à popa da lancha, de súbito a lancha sofreu balanço acentuado em consequência de golpes de mar mais violentos e, por via disso, o sinistrado não conseguiu continuar a segurar-se e largou a escada (facto provado 97);
- Quando voltaram a avistá-lo, a cerca de três metros da popa da lancha, a tripulação da lancha constatou que o sinistrado estava inconsciente, não tendo voltado a ganhar consciência, tendo, quando a lancha se voltou a aproximar do sinistrado, o marinheiro, com a vara existente a bordo, tentado puxar aquele para junto da lancha, sendo que todas as tentativas para colocar o sinistrado, consciente ou inconsciente a bordo da lancha, falharam (factos provados 98, 99, 101 e 102);
- O cabo da talha de resgate não chegava ao nível da água, porque o marinheiro DD, quando pretendeu utilizá-lo, não o conseguia desenrolar, pelo que para o conseguir esticar teve de lhe cortar cerca de 2 metros, razão pela qual a Ré, após a ocorrência deste acidente, substituiu os cabos das talhas dos turcos existentes a bordo das lanchas de pilotagem por outros, uma vez que os antigos já se encontravam ressequidos por causa do sol e do sal (factos provados 93 e 154);
- A estrutura metálica, vertical e direita, do turco, que se encontrava no interior da embarcação, não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha e, no caso de este estar inconsciente, teria sempre que ser retirado para bordo com o auxílio à força de braços dos tripulantes (facto provado 153);
- Não existem regras que definissem a zona de embarque do piloto na lancha por referência à zona mais segura (facto provado 127);
- A zona de embarque/desembarque do piloto não estava assinalada nem marcada no convés da lancha por forma a assegurar que é bem visível à noite (facto provado 128);
- O sistema de recuperação de náufrago constituído pelas escadas de acesso da própria lancha e pelo turco com uma talha cujo cabo tinha um mosquetão na ponta para engatar num ponto de apoio do náufrago encontrava-se situado à popa da embarcação (facto provado 151);
- Com a localização do sistema de recuperação à popa da lancha havia o risco de o sinistrado bater nas escadas metálicas, nas esquinas vivas dos tubos de escape e nos lemes e hélices da lancha (facto provado 152);
- No que toca a meios de salvação e de socorro, a embarcação tinha a bordo um busca-vidas, uma escada acoplada, um turco recuperador junto à escada, 2 jangadas pneumáticas e respetivo disparador hidrostático; 2 boias de salvação com retenida flutuante de 30 m (à proa); 2 boias de salvação com fachos luminosos (à ré) e um croque (facto provado 165);
- O “busca-vidas” é uma vara/cabo com um arco na ponta em forma de foice que permite segurar o náufrago e puxá-lo para a embarcação, sendo a forma de foice do arco acoplado à vara/cabo, tendo como objetivo envolver o tronco do náufrago, precisamente com o propósito de o puxar para junto da embarcação, e é adequada tanto para socorrer náufragos que estejam conscientes como para socorrer náufragos inconscientes, porque os permite envolver e puxar para junto da embarcação, sem necessidade de colaboração por parte do náufrago (factos provados 253, 254 e 255);
- Para tentar resgatar o sinistrado a tripulação da lancha utilizou apenas o busca-vidas, a escada acoplada e o turco (facto provado 166);
- O porto de Lisboa é um porto aberto à navegação 24 horas por dia e sete dias por semana, sendo que a permanência das lanchas em Cascais permite à ré “APL” assegurar a entrada e a saída de navios 24 horas por dia e sete dias por semana, independentemente do estado do tempo e do mar (factos provados 121 e 123);
- A Ré “APL” não regulamentou ou aprovou quaisquer restrições à operacionalidade no porto de Lisboa que pudessem condicionar ou impedir os movimentos dos navios em condições de tempo e mar adversas e que determinassem a suspensão do serviço de pilotagem com fundamento na falta de condições de segurança para o embarque ou desembarque dos pilotos ao seu serviço (facto provado 124);
- A Ré “APL” reconheceu à função/atividade de entrada e saída do navio riscos profissionais para a segurança e saúde do sinistrado, deles figurando, entre outros, a queda e o afogamento, podendo esses riscos afetar qualquer parte do corpo e as vias respiratórias, respetivamente, constando desse documento, quanto às medidas de controlo desses riscos, o seguinte: utilizar tinta antiderrapante no convés das embarcações; equipar as embarcações com barras para apoio; utilização dos equipamentos de proteção individual (EPI’s): calçado com sola antiderrapante e colete salva-vidas; usar vestuário fluorescente e refletor adequado à situação climatérica (factos provados 132 e 134);
- De acordo com a “Análise aos Acidentes de Trabalho ocorridos ao longo do ano 2017”, elaborada em janeiro de 2018, pelos serviços da Ré “APL”, consta que dos 16 acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores da mesma, ocorridos no tempo e local de trabalho em 2017, 15 foram sofridos por trabalhadores da Direção de Segurança e Pilotagem; desses 15 acidentes de trabalho, 10 foram sofridos por pilotos, sendo que 5 deles ocorreram aquando do embarque ou desembarque do navio pilotado, consistindo as lesões decorrentes desses acidentes, por causa do embarque/desembarque do piloto do navio, em luxação, deslocamento, entorse e rotura de ligamentos (factos provados 135 e 136);
- Tais acidentes ocorreram no local de trabalho dos sinistrados quando estes executavam as tarefas habituais e essencialmente durante o período diurno (facto provado 137);
- De 2015 a 2017, ocorreram 49 acidentes de trabalho com trabalhadores da Ré “APL” e, desses, 36 foram sofridos por trabalhadores da Direção de Segurança e Pilotagem, dos quais 20 eram pilotos (facto provado 138);
- Até à data do acidente, a ré APL, SA não procedia à avaliação de riscos profissionais decorrentes do embarque e desembarque dos pilotos (facto provado 139);
- As específicas características do porto de Cascais obrigam a que, neste porto, o desembarque do piloto se faça em alto mar, facto que implica que a destreza física do piloto e as dimensões e características da embarcação de onde o piloto deve desembarcar assumam particular relevância (factos provados 233 e 234);
- O desembarque do piloto em alto mar faz com que essa tarefa seja particularmente afetada pela ondulação e a velocidade do vento, sendo a destreza física do piloto um dos critérios a considerar para efeitos de determinação da sua aptidão clínica para o exercício da função (factos provados 235 e 236);
- em conclusão, a operação de desembarque do piloto em alto-mar é feita em função da conjugação dos seguintes fatores: destreza física do piloto, características da embarcação e condições climatéricas (facto provado 238);
- O sinistrado pesava 99kg, sendo clinicamente qualificado como obeso, tinha 45 anos, era um piloto experiente, que realizava há mais de 21 anos operações de embarque e desembarque diariamente e encontrava-se fisicamente apto ao desempenho das suas funções (factos provados 261, 262 e 263).
Pela sua relevância, faz-se constar igualmente que não foi dado como provado que as lanchas de apoio aos pilotos tenham instaladas guias de linhas de vida a toda a volta, ou seja, cabos de aço aos quais devem ser presos linhas de vida ou outros cabos que, por seu turno, se prendem à tripulação da lancha, assim permitindo que esta possa utilizar as duas mãos para puxar o náufrago para bordo, caso tal se revele necessário (facto não provado 276).

Da descrição destes factos, resulta, desde logo, que a Ré “APL”, apesar de ter identificado o risco de queda por parte da atividade profissional dos pilotos da barra, no dia e hora do acidente, em que as conduções climatéricas eram bastante más (ondulação de 4 metros de Sudoeste, chuva intensa, vento muito forte de Oeste e preia-mar às 00h59, com uma altura de 2,50 metros), não adotou a medida imposta pelo art. 36.º, n.º 8, do DL n.º 50/2005, de 25-02, sendo que inexista na Ré qualquer regulamentação que limitasse a operacionalidade no porto de Lisboa de forma a condicionar ou impedir os movimentos dos navios em condições de tempo e mar adversas e que levasse à suspensão do serviço de pilotagem com fundamento na falta de condições de segurança para o embarque ou desembarque dos pilotos ao seu serviço. Ora, não só a inexistência dessa regulamentação viola a citada disposição legal, como, exatamente por tal regulamentação inexistir, o serviço de pilotagem do sinistrado AA foi realizado no dia 28-02-2018 apesar das condições de tempo e mar bastante adversas.
De igual modo, resulta que, apesar de a Ré “APL” ter identificado o risco de afogamento por parte da atividade profissional dos pilotos da barra, no dia e hora do acidente, quando o sinistrado caiu à água não envergava qualquer equipamento de proteção individual fornecido por aquela que fosse impermeável à água, de forma a evitar riscos de hipotermia, sendo, assim, de concluir pela inadequação desse seu equipamento de proteção individual.
Acresce que, aquando da queda do sinistrado ao mar e durante toda a operação de tentativa de resgate, nenhum dos tripulantes da lancha, que estava no convés, tinha a linha da vida colocada, razão pela qual estavam obrigados a agarrar-se com uma mão ao varandim da lancha, só tendo, por isso, uma mão disponível para auxiliar o sinistrado. No entanto, apesar de a embarcação possuir linhas de vida para os seus tripulantes, não se provou a existência de guias de linhas de vida (o local onde devem ser presas as linhas de vida aplicadas aos tripulantes) a toda a volta da referida lancha, concretamente, não se provou a existência de guias de linha de vida na zona da popa, ou seja, no local onde os tripulantes procuravam efetuar o resgate do sinistrado, quer por aí existirem a escadas para subir para a embarcação, quer por aí estar colocado o turco, sendo, por isso, de concluir pela inadequação de tais linhas de vida para as necessárias operações de resgate.
Por sua vez, aquando da tentativa de resgate por parte do marinheiro da lancha da Ré “APL”, este constatou que o cabo da talha do turco não era utilizável, por não se conseguir desenrolar, visto estar ressequido, consequência do sol e do sal que apanhara, razão pela qual teve de lhe cortar 2 metros, o que o tornou incapaz de chegar ao nível da água. Deste modo, o cabo da talha do turco não se encontrava em boas condições para ser utilizado em operações de resgate de náufrago.
Também a estrutura metálica, vertical e direita do turco, que se encontrava no interior da embarcação, não tinha altura suficiente para içar o sinistrado da água para o convés da lancha, obrigando, em caso de inconsciência do náufrago, como era o caso do sinistrado, a ter de ser auxiliado pela força de braços dos tripulantes da lancha, que, também eles, tinham de se agarrar à lancha para não serem atirados ao mar. Assim, também essa parte metálica do turco não era adequada para a operação de resgate de um náufrago da água ao convés da lancha, sobretudo, quando inconsciente, ou seja, insuscetível de ajudar na operação de resgate.
O local de colocação do turco, que é um sistema de recuperação de um náufrago, consciente ou inconsciente, à popa da lancha, não teve em conta os riscos de acidente para o náufrago com os materiais que igualmente se encontram à popa, concretamente, com as escadas metálicas, as esquinas vivas dos tubos de escape, os lemes e as hélices da lancha. Deste modo, o local de colocação do turno não se mostra adequado a proteger a saúde e a vida do náufrago.
Com estes comportamentos, a “APL” violou o disposto no art. 3.º, als. a), b), d) e e), do DL n.º 50/2005, de 25-02; os arts. 5.º, n.º 1 e 15.º, nºs. 1, 2, als. a) e c) e 10, da Lei n.º 102/2009, de 10-09; e o art. 16.º, al. b), do Estatuto de Pessoal da Administração Portuária.
Apesar de a Ré “APL” ter efetuado uma análise aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores entre 2015 a 2017, e também exclusivamente em 2017, onde concluiu que a atividade que sofria mais acidentes era a dos pilotos da barra, e concretamente, no embarque e desembarque dos navios, até à data do acidente, ocorrido em 28-02-2018, não procedeu à avaliação dos riscos profissionais decorrentes especificamente da atividade de embarque e desembarque dos pilotos. Deste modo, violou o disposto no art. 127.º, n.º 1, al. g), do Código do Trabalho e o art. 15.º, nºs. 1, 2, al. d) e 3, da Lei n.º 102/2009, de 10-09.
Apesar de a atividade de embarque e desembarque ser a operação com mais acidentes na atividade dos pilotos da barra não existem regras a definir a zona de embarque por referência à zona mais segura, nem tal zona se encontra assinalada nem marcada no convés da lancha por forma a assegurar que é bem visível à noite. Com este comportamento, a Ré “APL” violou o art. 15.º, nºs. 1, al. d) e 10, da Lei n.º 102/2009, de 10-09.
Preenchidos os dois primeiros requisitos do art. 18.º, n.º 1, da LAT (a existência de um dever de observância de determinadas normas ou regras de segurança por parte da entidade patronal direta ou indiretamente e o incumprimento por parte da entidade patronal desse dever), importa apreciar se se verifica a existência de um nexo de causalidade entre esse incumprimento e o acidente de trabalho.
Quanto ao nexo de causalidade, consigna-se que, nos termos do art. 563.º do Código Civil, a lei portuguesa adotou a doutrina da causalidade adequada, ou seja, existe nexo de causalidade entre determinada ação ou omissão e o dano se tal ação ou omissão, agravando o risco na produção do dano, o tornou mais provável.
Conforme bem refere Inocêncio Galvão Telles[26] “[a] lei reconduz assim a questão da causalidade a uma questão de probabilidade, o que significa aderir à tese da causa adequada, pois esta tese tem esse significado. Causa adequada é justamente aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável”.
Cita-se ainda, a este propósito, o acórdão do STJ, proferido em 08-10-2014[27]:
1 - No juízo de preenchimento do nexo causal entre um acidente de trabalho e a morte do sinistrado que veio a ocorrer na sequência do mesmo, há que fazer apelo à teoria da causalidade adequada, consagrada no artigo 563° do Código Civil, teoria segundo a qual para que um facto seja causa de um dano é necessário que, no plano naturalístico ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo, traduzindo-se, essa adequação, em termos de probabilidade fundada nos conhecimentos médicos, de harmonia com a experiência comum, atendendo às circunstâncias do caso;
2 - O nosso sistema jurídico consagra a vertente ampla da causalidade adequada, não se exigindo a exclusividade do facto condicionante do dano, sendo configurável a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, ao mesmo tempo que se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie um outro que suscite directamente o dano;

Deste modo, mesmo que se apure que a Ré “APL”, enquanto entidade empregadora do sinistrado, violou as regras de formação, informação e de segurança, para que exista agravamento da sua responsabilidade, torna-se necessário apurar se, caso não fosse o incumprimento dessas regras, o acidente não teria ocorrendo, sendo esse incumprimento causa adequada, ou seja, provável, da ocorrência do acidente.
Vejamos então o caso concreto.
O sinistrado AA morreu por afogamento em virtude de ter caído ao mar aquando da operação de desembarque de um navio ao largo da baía de Cascais. Após a queda à água, o sinistrado manteve-se consciente, e agarrou-se, primeiro, no busca-vidas, com o objetivo de ser aproximado da lancha; depois no cabo de amarração que lhe foi lançado e com o qual o marinheiro o conseguiu trazer para a popa da embarcação; e, por fim, nas escadas da própria lancha, que, porém, não conseguiu subir. A tripulação tentou içá-lo com as mãos, sendo que, por não usar linhas de vida, cujas guias, não se provou existirem à popa, tinha de se agarrar ou de ser agarrada para também não cair à água, o que dificultava seriamente a manobra de resgate. De igual modo, a tripulação tentou içá-lo com o turco, porém, por desconhecer que a alça de recuperação do casaco do sinistrado era lateral, procurou engatar o mosquetão do turco na parte frontal do casaco, o que se revelou impossível, por inexistir aí qualquer alça de recuperação. Se o sinistrado soubesse que o seu casaco tinha uma alça de recuperação na lateral do seu casaco, poderia ter auxiliado o engate do mosquetão do turco nessa alça enquanto se encontrou consciente. Ao não ter sido engatado o mosquetão do turco à alça de recuperação do casaco do sinistrado, este não pôde ficar agarrado à embarcação, levando-o, assim que ficou inconsciente e deixou de poder agarrar-se, a afastar-se ao sabor das ondulações do mar. A circunstância de o sinistrado não possuir roupa impermeável levou-o a ter muito menos resistência ao frio da água do mar, num dia de inverno, à noite e com muito mau tempo. O facto de cerca de 2 metros do cabo da talha do turco não ser utilizável, por estar ressequido e não ter sido atempadamente substituído, tornou o alcance desse cabo menor, dificultando, igualmente, as operações de resgate.
Se a Ré “APL” tivesse dado formação ao sinistrado sobre situações de emergência de “Homem ao mar” e formação ou informação sobre técnicas de sobrevivência em água fria, este encontrar-se-ia mais bem preparado para resistir à situação de queda ao mar e ao próprio frio da água, determinando, tal circunstância, um período maior de consciência e necessariamente um período maior de participação ativa na sua operação de resgate.
Se a Ré “APL” tivesse determinado a realização de exercícios de segurança no porto de Lisboa, em ambiente real, para os tripulantes das lanchas e para os próprios pilotos, não só se teria verificado a inadequação de alguns dos meios de resgate utilizados nas lanchas da Ré (o lugar do turco, a altura do turco, o estado de manutenção do cabo do turco), podendo, atempadamente tais meios terem sido substituídos ou alterados de molde a ficarem adequados, como se poderia ter concluído pela necessidade de novos meios de resgate mais modernos e seguros. De igual modo, nessa situação, os tripulantes das lanchas teriam tido conhecimento do local da alça de recuperação nos casacos dos pilotos.
E se a Ré “APL” tivesse procedido ao teste, pelos seus pilotos, em cenário real, do equipamento de proteção envergado pelo sinistrado, este, sabendo do lugar no seu casaco onde se encontrava a alça de recuperação, enquanto se encontrou consciente, poderia ter auxiliado no engate do mosquetão do turco.
Todos estes fatores, que resultaram da violação legal pela Ré “APL” relativa à informação, formação e segurança dos equipamentos pessoais e de salvamento utilizados, revelaram-se como causa adequada para a morte do sinistrado AA, tendo efetivamente contribuído decisivamente para este desfecho.
Acresce que se a Ré tivesse agido como devia, tendo destacado o risco de queda na atividade profissional dos pilotos da barra, deveria ter aprovado regulamentação que restringisse a operacionalidade no porto de Lisboa, designadamente em situações de más condições de tempo e mar, como ocorreu na madrugada do dia 28-02-2018, protegendo, desse modo, a segurança dos seus pilotos, o que manifestamente não fez. Tal regulamentação, a existir, era causa adequada a evitar o presente acidente.
Dir-se-á ainda que, contrariamente ao afirmado pela Ré “APL”, não resulta da matéria de facto apurada que o acidente se ficou a dever à violação por parte do sinistrado das regras da operação de desembarque, uma vez que, apesar de existir uma praxis estabelecida, na qual, só depois de o marinheiro confirmar ao piloto-nomeado que pode proceder ao desembarque, é que este deve dar um ligeiro salto, de natureza rotativa, de modo a entrar de frente na lancha (facto provado 244), na situação do presente acidente, não é percetível a razão pela qual o sinistrado veio a cair à água, sabendo-se apenas que tentou passar um dos pés para o convés da lancha, tendo-lhe faltado o apoio e entrado em desequilíbrio. Atente-se que o facto de na operação de desembarque ser habitual o piloto apenas dever saltar para a embarcação após o marinheiro confirmar que pode proceder ao desembarque, dadas as más condições de tempo e mar registadas à hora e local do acidente (grandes ondulações e muita chuva), a que acresce o barulho inerente a ambas as embarcações (navio e lancha) que se encontravam com os motores ligados, comunicando o marinheiro e o piloto apenas verbalmente, sem recurso a qualquer outro sistema, não é possível afastar a possibilidade de errada perceção por parte do sinistrado da comunicação havida com o marinheiro. E, a ser assim, não é possível concluir, em face dos factos dados como assentes, que, no acidente ocorrido, perante tantas variáveis (a chuva, a ondulação, o vento, o barulho) que o sinistrado tivesse adotado voluntariamente um qualquer comportamento violador de uma qualquer regra de segurança, regra essa que, de qualquer modo, inexistia de forma clara e expressa na “APL”.
Esclarece-se ainda que, apesar de o sinistrado ter sido considerado clinicamente obeso, a própria Ré “APL” o considerou fisicamente apto ao desempenho das suas funções.
Por fim, apesar de ser indesmentível que a lancha do ISN demorou imenso tempo a prestar auxílio, competia à lancha da Ré “APL”, de imediato, prestar tal auxílio, não só por se encontrar no local, como por dever estar equipada com todos os meios adequados ao resgate de um piloto à água, encontrando-se, aliás, o risco de queda e de afogamento devidamente identificados pela Ré como riscos inerentes à atividade dos pilotos da barra, sendo a lancha, adequadamente equipada com os meios necessários, um dos meios para controlar tal risco.
Pelo exposto, apenas resta concluir pela improcedência da pretensão da Ré “APL”, mostrando-se inteiramente preenchidos os requisitos do art. 18.º, n.º 1, da LAT.

5) Incompleta determinação do número de prestações mensais a liquidar (recurso da Ré “APL”)
Considera a Ré “APL” que a sentença, na parte condenatória, não é clara no que concerne ao número de prestações mensais em que deve ser liquidada a pensão anual em cujo pagamento foi condenada, em clara violação do disposto no n.º 1 do art. 72.º da LAT.
Dispõe o art. 72.º, n.º 1, da LAT, que:
1 - A pensão anual por incapacidade permanente ou morte é paga, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual.

Sobre esta específica matéria elucida a sentença recorrida, na sua fundamentação, que:
A pensão anual é paga, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual cf. artigo 72.º, n.º 1 da Lei dos Acidentes de Trabalho.
Às referidas pensões acrescem os subsídios de férias e de Natal, cada um no valor de 1/14 da pensão anual a serem pagos, respetivamente, nos meses de junho e novembro de cada ano - cf. n.º 2 do mesmo artigo 72.º.

Deste modo, a sentença refere o modo de pagamento na sua fundamentação, não sendo, por isso, necessário que o mesmo conste na parte decisória, tanto mais que tal decorre da lei, nos termos do citado art. 72.º, n.º 1, da LAT.
Improcede, assim, nesta parte, a pretensão da Ré “APL”:

6) Exagerado quantum indemnizatório atribuído relativamente ao dano morte do sinistrado e aos danos morais sofridos pelos Autores (recurso da Ré “APL”)
Entende a Ré “APL” que o quantum indemnizatório relativo ao dano morte do sinistrado e aos danos morais sofridos pelos Apelados deve ser alterado, reduzindo-se o mesmo.
Relativamente ao dano morte do sinistrado, considera a Ré “APL” que a esperança média de vida do sinistrado a ter-se em consideração é a constante à data do seu nascimento, a qual se situava nos 65 anos, pelo que o mesmo apenas teria a expectativa de viver mais 20 anos, sendo que o facto de ser obeso reduz, drasticamente, a esperança média de vida.
Mais referiu que, quanto à vida particular e pessoal do sinistrado, nada se sabe, exceto no que respeita ao relacionamento que mantinha com a sua mulher e o seu filho, não existindo qualquer elemento que permita avaliar e aferir qual a natureza dessa vida particular e pessoal, nomeadamente no que concerne a projetos de vida que o mesmo pudesse ter ou, mesmo, à vontade de viver que o mesmo pudesse, ou não, sentir, sendo os autos, igualmente, inteiramente omissos no que respeita à inserção social do sinistrado e no que concerne à sua vida profissional, pelo que, como contrapartida do dano morte, deve tal indemnização ser reduzida para o valor mínimo que tem vindo a ser aceite e fixado judicialmente, ou seja, para €50.000,00.
Relativamente aos danos morais sofridos pelos Apelados, uma vez que não é possível concluir que o grau de culpabilidade da Ré “APL” é elevado, sendo os autos totalmente omissos no que concerne à situação económica das partes envolvidas, a que acresce o facto de tais danos morais encaixarem-se no padrão de normalidade neste tipo de situações, entende a Ré “APL” que as indemnizações devem ser reduzidas para €20.000,00 no caso da Apelada, e para €10.000,00 no caso do Apelado.
Vejamos como fundamentou a sentença recorrida tais indemnizações.
d) Dos danos não patrimoniais:
Os autores peticionam o pagamento de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante global de € 140 000,00, sendo que € 70.000,00 são peticionados em conjunto pela morte do sinistrado, ou seja, pelo dano morte e 40.000,00€ são respeitantes aos danos sofridos pela autora com a morte do marido e € 30 000,00 são respeitantes aos danos sofridos pelo autor com a morte do seu pai.
Cumpre apreciar.
Como já supra referido, quando o acidente de trabalho tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, a responsabilidade pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais (cf. n.º 1 do artigo 18.º da LAT).
Assim, tendo já concluído que o acidente ocorreu em consequência da falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, há lugar à reclamada indemnização por danos não patrimoniais, nos termos gerais.
O pedido formulado pelos autores decorre, assim, da responsabilidade civil por facto ilícito, prevista no artigo 483.º do Código Civil, o qual dispõe: "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Por seu turno, o artigo 496.º, n.º 1, do mesmo código, estabelece que apenas são atendíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, estipulando o n.º 4, 1ª parte, do mesmo artigo, que o montante pecuniário da compensação por este tipo de danos deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção, nomeadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, designadamente a extensão e gravidade dos danos, a sensibilidade da vítima e o seu sofrimento (cf. artigo 494.º, do Código Civil).
Os danos não patrimoniais que justificam a tutela do direito carecem necessariamente de uma especial gravidade para serem ressarcidos, sendo que alguns são logo suficientemente graves e merecedores de tutela (mesmo que esta venha a ser quantitativamente variável de caso para caso), como é o caso dos danos aqui invocados: o dano de afeição (pela morte de um familiar próximo) e o (chamado) dano morte.
Os titulares previstos na lei (artigo 496.º, n.º 2 do Código Civil) têm o direito a obterem uma compensação pelo seu próprio sofrimento, causado pela morte da vítima, e também uma compensação correspondente ao próprio dano da perda da vida (da vítima). Refere o aludido preceito que: “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”.
Existem, assim, dois danos diferentes a que importa atender neste processo: os danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos por cada um dos autores enquanto, respetivamente, cônjuge e filho do sinistrado; os danos da morte do sinistrado, da respetiva perda de vida, estes atribuíveis, por determinação legal, à viúva e ao filho em conjunto.
A reparação destes danos em sede de ação especial emergente de acidente de trabalho implica que o demandante seja um beneficiário legal, o que aqui se verifica, nos termos sobreditos.

- Danos próprios:
Em relação aos danos não patrimoniais sofridos pelos autores, os seus danos próprios pela perda de um familiar próximo (marido e pai) há a considerar os factos apurados, o entendimento jurisprudencial dominante e ter presente que esses danos, e correspondente montante indemnizatório, são fixados equitativamente, olhando todas as circunstâncias do caso concreto, onde se incluem o grau de culpabilidade e a situação económica, quer do lesante, quer do lesado (artigos 494.º e 496.º, n.º3 do CC) num resultado que se pretende venha a traduzir uma compensação significativa e equilibrada.
E, conforme vem sendo sucessivamente afirmado pela nossa jurisprudência, a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, mas também não deve nem pode representar negócio.
Ponderadas as circunstâncias do caso concreto e que resultam dos factos apurados nos pontos 9 a 11 e 170 a 204, desde logo, o grau de parentesco imediato, a idade dos autores, o tempo de convivência conjugal, a ligação íntima e cooperante entre a vítima, a autora e o filho de ambos, o acompanhamento e apoio familiar que o sinistrado proporcionava à família, quer do ponto de vista pessoal, quer monetário, a frequente presença do falecido, a circunstância repentina e inesperada da morte, e o contributo culposo para a sua ocorrência, consideramos que os montantes indemnizatórios peticionados pelos autores (€ 40 000,00 e € 30 000,00, respetivamente) se mostram equitativamente adequados, aferido segundo um juízo de equidade, ao momento da presente sentença.
Aceita-se a diferença entre o valor do dano decorrente da perda do marido e do pai em face do sofrimento profundo da autora e da dependência desta do falecido, quer emocional, quer económico-financeira, sobejamente refletida na factualidade assente.
Entende-se, assim, que as quantias peticionadas de € 40 000,00 e € 30 000,00, a título de danos não patrimoniais próprios sofridos em consequência do falecimento do seu marido e pai são adequadas ao caso concreto.

- Dano morte:
Impõe-se, agora, avaliar qual a quantia reputada adequada para o ressarcimento do dano da morte, que é a lesão mais grave que pode decorrer de um acidente de trabalho.
A morte é, sem margem para dúvida, um dano autónomo decorrente da violação do direito à vida, bem pessoal mais valioso do ser humano.
Na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em conta a própria vida em si e, bem assim, impõe-se ter em conta as circunstâncias específicas de cada vítima, como a idade, a saúde, a vontade de viver, a realização profissional, a situação familiar, os projetos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica.
Analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça constata-se que o ressarcimento do dano pela perda do direito à vida tem vindo a fixar-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 120.000,006, atribuídos a vítimas mais jovens ou em casos ocorridos em circunstâncias excecionais.
No caso em apreço, há a considerar que a vítima tinha 45 anos de idade à data do seu falecimento, era saudável, alegre e divertido, casado há cerca de 11 anos com a autora e com um filho de 7 anos de idade, que vivia e trabalhava para dar uma vida digna à sua família, tendo a seu cargo a sua esposa e o seu filho, tendo uma vida profissional e pessoal ativa, sendo socialmente bem inserido, tendo o acidente que o vitimou ocorrido quando se encontrava a trabalhar; tinha projetos de vida iniciados recentemente e a concretizar com a família que foram abruptamente interrompidos.
A privação da vida do sinistrado pode, deste modo, configurar-se como dano situado num patamar superior da escala de gravidade dos danos deste tipo.
Somos, assim, do entendimento que a quantia peticionada de € 70 000,00, a título de compensação à viúva e filho do sinistrado, pelo dano morte do seu marido e pai, é absolutamente junta e equitativa ao caso concreto.

Desde já assumimos inteira concordância com tal fundamentação.
Na realidade, quanto aos danos próprios dos Apelados, a morte inesperada do sinistrado em virtude de diversas violações dos deveres de formação, informação e segurança a que a Apelante “APL” se encontrava obrigada, reflete um grau de culpabilidade intenso por parte desta, grau esse que terá necessariamente de ser ponderado nas indemnizações a atribuir.
Por outro lado, provou-se que os Apelados dependiam para a sua sobrevivência exclusivamente dos rendimentos do sinistrado, tendo a Apelada chegado a pedir ajuda à sua irmã para ir satisfazendo as necessidades mais básicas da sua família (factos provados 174, 175 e 191); e que a “APL” é uma empresa pública com poderes de autoridade portuária, a quem compete assegurar o serviço de pilotagem aos navios no porto de Lisboa (factos provados 113 e 114), pelo que é manifesta a diferença de capacidade económica entre os Apelados e a Apelante.
Acresce que a Apelada e o sinistrado estavam casados há mais de 11 anos, dependendo aquela deste para tomar as decisões relacionadas com a parte financeira e burocrática da vida conjugal, tendo a morte do marido e pai do seu filho causado àquela uma grande dor e tristeza, levando-a a perder o gosto pela vida, entrando em estado depressivo, o que a levou a recorrer a consultas regulares de psiquiatria e de psicologia, encontrando-se, desde então, a tomar os fármacos Mirtazapina Psidep, Alprazolam Prazolam, Seroxat e Anafranil, ainda que atualmente em menor dosagem (factos provados 9, 176, 180, 181, 182, 183, 184, 185). As dificuldades económicas associadas à morte do marido, que a levaram a ter de pedir ajuda à irmã, causaram na Autora um sentimento de impotência e de vergonha por ter de viver da caridade de terceiros (facto provado 192).
Todo este quadro familiar da Apelada permite-nos concluir que a morte do sinistrado lhe causou danos extensos e graves, sendo manifesta a sua especial vulnerabilidade e profundo sofrimento.
Relativamente ao Apelado, que tinha 7 anos à data do sinistro, por causa da morte do pai teve de receber apoio psicológico, tendo experienciado a perda do pai de uma forma muito contida e reservada, sem nunca falar muito sobre um assunto que ainda não entende completamente (factos provados 194, 198 e 199). Desde então, o Apelado tem demonstrado falta de concentração e de motivação na escola, baixou as notas escolares e passou a revelar inquietação, impaciência, alguma rebeldia e desobediência em casa, comportamentos que se prendem com um certo sentimento de revolta pela perda do pai (factos provados 200, 201 e 202). O Apelado tinha uma relação muito próxima com o pai, sendo acompanho por este nas suas atividades escolares e extracurriculares, fazendo atividades lúdicas juntos, passeando à beira mar, pescando na doca e indo à praia (factos provados 195, 196 e 197). O Apelado ao ver os seus colegas com os respetivos pais sente uma profunda dor, não sabendo como lidar, dada a sua idade, com esta ausência (factos provados 203 e 204).
Todo este quadro familiar do Apelado permite-nos concluir que a morte do sinistrado lhe causou danos extensos e graves, sendo manifesta a sua especial vulnerabilidade e profundo sofrimento.
Desta forma é de manter a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelos Apelados, no montante de €40 000,00 para a Apelada e de €30 000,00 para o Apelado.
Relativamente ao dano morte, importa referir que a apreciação da esperança de vida da pessoa que faleceu se afere à data da sua morte e não, como pretende a Apelante, à data do seu nascimento[28]. No ano de 2018, a esperança de vida para os homens era de 77,78 anos, de acordo com as Tábuas de Mortalidade para Portugal 2016-2018, publicadas pelo INE em 31-05-2019[29].
Acresce que se apurou que o sinistrado, à data do acidente, tinha 45, era casado há mais de 11 anos e tinha um filho de sete anos (factos provados 8, 9 e 11).
Apurou-se igualmente que o sinistrado regressou dos Açores para o ..., com a mulher e o filho, com o propósito de aí fazer a sua vida em conjunto com a sua família, iniciando uma nova fase das suas vidas, com novos planos em conjunto para o seu futuro, pelo que, em setembro de 2017, o sinistrado e a Apelada decidiram comprar casa, no ..., pretendendo melhorar a habitação adquirida, fazendo obras de remodelação (factos provados 170, 177, 178 e 179).
Apurou-se igualmente que o sinistrado, apesar de pesar 99 Kg, era uma pessoa saudável, alegre e divertida (factos provados 172 e 261).
Acresce que todos os planos construídos pelo sinistrado e família foram brutalmente destruídos por culpa do comportamento adotado pela Apelante “APL”.
Deste modo, apenas nos resta concluir pela boa ponderação efetuada pelo tribunal a quo ao atribuir, a título de indemnização pelo dano morte, a quantia de €70.000,00[30].

7) e 8) Ampliação de recurso pelos Autores
Vieram os Autores, em sede de ampliação de recurso, requerer a impugnação fáctica e a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Dispõe o art. 636.º do Código de Processo Civil que:
1 - No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
2 - Pode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
3 - Na falta dos elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal de recurso mandar baixar os autos, a fim de se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida.

A apreciação da ampliação do recurso apenas faz sentido se o recurso interposto pela parte contrária tiver tido, parcial ou integralmente, provimento, o que, no caso, não aconteceu.
Cita-se a este propósito António Santos Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil:
Aliás, a ampliação do objeto do recurso apenas será apreciada se acaso o tribunal ad quem vier a pronunciar-se sobre o mérito do recurso interposto, à semelhança do que ocorre com o recurso subordinado (art. 633.º, n.º 3). Por outro lado, apenas fará sentido apreciar as questões suscitadas se porventura forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou de que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida.

Veja-se igualmente o acórdão do TRP, proferido em 10-01-2022[31]:
III - A ampliação do âmbito do recurso é sempre subsidiária, no sentido de que apenas é conhecida se a apelação proceder. Improcedendo a apelação, a ampliação do âmbito do recurso não é conhecida.

Deste modo, tendo improcedido a apelação, a ampliação do recurso requerida pelos Apelados não será apreciada.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, sem prejuízo das alterações fácticas efetuadas.
Custas a cargo da Ré “APL” (art. 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 2 de março de 2023
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Doravante “Fidelidade”.
[3] Doravante “APL”.
[4] Não se apreciará a invocada questão prévia do recurso dos Autores, relativo a retificações da matéria de facto, por tal questão já ter sido apreciada e deferida pelo tribunal da 1.ª instância, não tendo havido qualquer impugnação dessas retificações.
[5] Na versão do despacho judicial proferido em 31-05-2022.
[6] Na versão do despacho judicial proferido em 31-05-2022.
[7] Vejam-se, designadamente os acórdãos do STJ, proferido em 30-04-2019, no âmbito do processo n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2; do TRC, proferido em 18-11-2014, no âmbito do processo n.º 628/13.9TBGRD.C1; e do TRG, proferido em 24-04-2019, no âmbito do processo n.º 3966/17.8T8GMR.G1, consultáveis em www.dgsi.pt.
[8] Documento 7 junto com a petição inicial.
[9] Documento 3 junto pela Autora em 05-11-2019, mas apenas constante do processo eletrónico, por deficiência técnica, em 06-11-2019.
[10] No âmbito do processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] No âmbito do processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[12] No âmbito do processo n.º 283/08.8TBCHV-A.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[13] No âmbito do processo n.º 219/11.9TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[14] Ver a segunda imagem da figura 20 do Relatório de Investigação Técnica elaborada pelo GAMA, junto como documento 2 com a petição inicial.
[15] Juntas, por email, no processo eletrónico em 31-10-2019.
[16] Mantendo-se igualmente iguais os dados referentes ao Gain (valor do ganho) e ao Sea Man (mar).
[17] Documento 4 junto pelos Autores em 06-11-2019.
[18] 274. Os pilotos-nomeados acabam por não fazer o serviço, ou por fazê-lo noutra hora, por entenderem que não há condições de segurança pessoal para a execução do serviço.
[19] Documento junto em audiência de discussão e julgamento no dia 07-02-2020.
[20] Documento 11, junto pela Ré “APL”, em 31-10-2019.
[21] Atente-se que, de igual modo, também não ficou a constar no elenco dos factos provados outros aspetos constantes da referida autópsia (Documento junto em 10-07-2018), designadamente que foram observadas lesões traumáticas na cabeça (sem fraturas), no pescoço e no antebraço direito, que terão sido produzidas por uma ação de natureza contundente, mas que não foram adequadas a produzir a morte do sinistrado.
[22] Apenas nos debruçaremos sobre a situação de falta de observação, pela entidade patronal, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, por ser aquela que é invocada na sentença recorrida.
[23] Veja-se neste sentido, entre muitos, os acórdãos do STJ, proferidos em 06-05-2015, no âmbito do processo n.º 220/11.2TTTVD.L1.S1; e em 14-01-2015, no âmbito do processo n.º 644/09.5T2SNS.E1.S1; o acórdão do TRC, proferido em 16-06-2016, no âmbito do processo n.º 933/11.9TTCBR.C1; e acórdão do TRE, proferido em 21-12-2017, no âmbito do processo n.º 572/15.5T8LRA.E1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[24] Que se aplica à Ré nos termos do art. 3.º
[25] DL n.º 421/99, de 21-10.
[26] Em Direito das Obrigações, 4.ª edição, p. 325.
[27] No âmbito do processo n.º 4028/10.4TTLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[28] Acórdão do TRG, proferido em 29-06-2017, no âmbito do processo n.º 382/15.0T8VCT.G1, consultável em www.dgsi.pt.
[29] DestaqueINE_TabuasMortalidade2016_2018.
[30] Vejam-se os acórdãos do STJ, proferido em 22-02-2018, no âmbito do processo n.º 33/12.4GTSTB.E1.S1, e do TRG, proferido em 29-06-2017, no âmbito do processo n.º 382/15.0T8VCT.G1; consultáveis em www.dgsi.pt.
[31] No âmbito do processo n.º 2344/20.6T8PNF.P1, consultável em www.dgsi.pt.