Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1821/20.3GBABF.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: TÍTULO DE CONDUÇÃO
CARTEIRAS NACIONAIS DE HABILITAÇÃO BRASILEIRAS
CARTA CADUCADA
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - A definição do conceito de “falta de habilitação legal” não emerge do artigo 130.º, mas antes dos artigos 121.º e 125.º, do Código da Estrada.
- A Convenção de Viena relativa ao tráfego Rodoviário e o despacho n.º 10942/2000, de 27.05.2000, reconhecem que as carteiras nacionais de habilitação brasileiras habilitam à condução em Portugal desde que se encontrem válidas e não “desde que não se encontrem caducadas há mais de cinco anos”, sendo esta interpretação contrária à lei (artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).

- Sendo portador de carta de condução brasileira caducada à data dos factos, o arguido não tinha habilitação legal para conduzir em Portugal, porque esse título cai fora do âmbito de aplicação, quer da convenção de Viena, quer da convenção bilateral de reconhecimento mútuo, não se encontrando, assim, habilitado a conduzir, nos termos do disposto dos artigos 121.º e 125.º, ambos do Código da Estrada.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo Local Criminal de … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo abreviado n.º 1821/20.3GBABF, tendo aí, após realização da audiência de julgamento, sido proferida a seguinte decisão (transcrição):

“Assim sendo e em face do exposto, o Tribunal decide absolver o arguido AA da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, sem custas, deposite, registe e notifique, remeta os autos à ANSR para efeitos de imputação de eventual imputação contraordenacional.”

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O Ministério Público não se conformando com a douta sentença que absolveu o arguido AA da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 03/01, vem dela interpor recurso, o qual incide sobre matéria de direito, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por se entender que o Tribunal absolveu o arguido devido a uma errada interpretação jurídica das normas aplicadas.

2. Sem prejuízo, a título de questão prévia, e caso não tenha sido proferida decisão sobre esta matéria pelo Tribunal a quo, requer-se a correcção de erro material contido na sentença, ao abrigo do disposto 380.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

3. Nos factos provados da sentença recorrida consta que “No dia 18/01/2020, pelas 22h30, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula …(…)”, quando do teor da própria sentença e da prova aí enunciada, resulta claro que a data indicada “18/01/2020” trata-se de mero lapso, e que se pretendia fazer constar “18/10/2020”, o que se requer.

4. A questão a decidir no presente recurso subsume-se a saber se o regime de caducidade e cancelamento dos títulos de condução, previsto no artigo 130.º, do Código da Estrada, é ou não aplicável aos títulos de condução brasileiros caducados, porquanto o Tribunal absolveu o arguido, por entender que a sua conduta apenas é susceptível de integrar a contra-ordenação prevista no n.º 7 desta disposição legal.

5. Ao absolver o arguido o Tribunal interpretou erradamente tal disposição legal e violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/09, de 03/01, 121.º, n.ºs 1, 4 e 9, 125.º, n.º 1, als. c) e c), e 130.º, todos do Código da Estrada, 41.º, n.º 2, da Convenção de Viena relativa ao tráfego Rodoviário, e despacho n.º 10942/2000, publicado em Diário da República, 2.ª Série, 27.05.2000.

6. O artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 2/09, de 03/01, mais concretamente o segmento “sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada”, carece de concretização, sendo que, para tal efeito, e tendo em consideração que o arguido é titular de carta de condução emitida pelas autoridades brasileiras, não basta recorrer à previsão do artigo 121.º, n.ºs 1 e 4, do Código da Estrada, sendo necessário complementar esta disposição legal com o regime previsto no artigo 125.º, n.º 1, als. c) e d), do mesmo diploma legal e com a Convenção de Viena relativa ao tráfego Rodoviário

7. O artigo 41.º, n.º 2, desta Convenção, prevê que as Partes Contratantes reconhecerão – para aquilo que nos interessa, Portugal e Brasil – o título que tenha sido emitido por outra Parte Contratante, desde que este se encontre válido. Em conformidade, o despacho n.º 10942/2000, publicado no Diário da República, 2.ª Série, 27.05.2000, reconhece que “as carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada” (actual al. d) da mesma disposição legal, anotação e sublinhados nossos).

8. Uma vez que a carta de condução do arguido não se encontrava dentro do prazo de validade, não habilita à condução de veículos em território nacional, pelo que não se poderão aplicar as mesmas regras da caducidade e cancelamento previstas no artigo 130.º, do Código da Estrada, inexistindo qualquer violação do princípio constitucional da igualdade com tal solução (neste sentido, veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 07/01/2016, processo 651/13.3PAPTM.E1, e de 22/10/2019, processo 126/18.4GBPTM.E1, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/10/2020, processo 872/18.2SILSB.L1-5).

9. A definição do conceito de “falta de habilitação legal” não emerge do artigo 130.º, mas antes dos artigos 121.º e 125.º, do Código da Estrada.

10. A Convenção de Viena relativa ao tráfego Rodoviário e o despacho n.º 10942/2000, de 27.05.2000, reconhecem que as carteiras nacionais de habilitação brasileiras habilitam à condução em Portugal desde que se encontrem válidas e não “desde que não se encontrem caducadas há mais de cinco anos”, sendo esta interpretação contrária à lei (artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).

11. Sendo portador de carta de condução brasileira caducada à data dos factos, o arguido não tinha habilitação legal para conduzir em Portugal, porque esse título cai fora do âmbito de aplicação, quer da convenção de Viena, quer da convenção bilateral de reconhecimento mútuo, não se encontrando, assim, habilitado a conduzir, nos termos do disposto dos artigos 121.º e 125.º, ambos do Código da Estrada.

12. Atento o exposto, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/09, de 03/01, sendo adequado, no nosso entender, impor-lhe uma pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros).”

Defendendo em síntese:

“Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 03/01.”

O recurso foi admitido.

O arguido respondeu ao recurso, nos termos que, em síntese, se expõem (transcrição):

“1. O Ministério Público deduziu acusação contra o Arguido imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-lei n.º 2/98, de 03/01;

2. O processo prosseguiu para Audiência Final que decorreu com observância de todas as legais formalidades;

3. O Tribunal a quo, por entender que a factualidade dada como provada não integra o crime de condução sem habilitação legal, mas antes a prática de uma contraordenação, p. e p. pelo n.º 7 do artigo 130.º do Código da Estrada, decidiu absolver o Arguido;

4. O Ministério Público não se conformando com a sentença proferida veio dela interpor recurso nos presentes autos;

5. A sentença recorrida fez correta apreciação dos factos e aplicação de Direito, devendo ser confirmada pelos seus fundamentos;

6. O objeto do recurso é em síntese saber se o disposto no n.º 7 do artigo 130º do Código da Estrada se aplica apenas aos títulos de condução portugueses ou se se aplica também aos títulos de condução estrangeiros caducados;

7. A conduta do arguido não preenche os elementos típicos do crime de condução sem habilitação legal;

8. Os elementos do tipo de crime (condução sem habilitação) são definidos pelo DL 2/98;

9. O Arguido entende que o Tribunal “a quo” fez uma correta interpretação e aplicação do direito na sentença recorrida;

10. Em face do direito aplicável e da prova produzida em juízo não poderia o Tribunal “a quo” ter decidido de outra forma, porquanto a sentença respeita a prova produzida e todas as normas legais aplicáveis ao caso;

11. Ora, da prova produzida no âmbito dos presentes autos resulta provado que o Arguido é detentor de carta de condução emitida pela República Federal do Brasil, com data de validade de 11/04/2019 a 04/04/2020;

12. No termos do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 125º do Código da Estrada, considera-se título habilitante para a condução de veículo a motor no território nacional, as licenças de condução emitidas por Estado estrangeiro que o Estado Português se tenha obrigado a reconhecer, por convenção ou tratado internacional;

13. Veja-se que, tanto Portugal, como o Brasil, subscreveram a Convenção de Viena de 1968-Convenção sobre Trânsito Rodoviário e o Estado Português reconheceu os documentos brasileiros (Carteira nacional de habilitação brasileira) equivalentes às cartas de condução portuguesas (Despacho nº 10942/2000, publicado em Diário da República, 2ª série, em 27/05/2000);

14. Sendo o Arguido possuidor de carta de condução brasileira, também é possuidor de um título de condução reconhecido pelo Estado Português;

15. Assim, deve entender-se que deverá ser aplicado ao Arguido o mesmo regime que se fosse titular de carta de condução portuguesa, designadamente o n.º 7 do artigo 130º do Código da Estrada, e neste sentido, decidiu, e bem, o Douto Tribunal “a quo”.

16. Pois, quem conduzir com a sua carta de condução caducada há menos de 5 anos, pratica uma contraordenação, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 130º do Código da Estrada;

17. Sendo a carta de condução do Arguido reconhecida em Portugal, por efeito da Convenção de Viena e do Acordo Bilateral de reconhecimento mútuo;

18. E conduzindo o Arguido com tal título caducado há menos de 5 anos (desde Abril de 2020), só podemos concluir que o Arguido praticou uma contraordenação e não um crime, e consequentemente a absolvição do Arguido;

19. Deve manter-se a sentença tal como foi proferida, absolvendo-se o Arguido da prática de um crime de condução sem habilitação legal.”

Termina nos seguintes termos:

“Termos em que deve a sentença proferida pelo tribunal a quo ser confirmada na íntegra, negando-se provimento ao recurso interposto, assim se fazendo a Costumada JUSTIÇA!”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação deu parecer no sentido de que o recurso interposto deve ser julgado procedente.

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“Resultam provados os seguintes factos da Acusação Pública:

No dia dezoito de janeiro de 2020, pelas vinte e duas e trinta, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, com a matrícula …, na Rua …, em …, quando foi fiscalizado por militares da GNR.

Na altura o arguido não era titular de documento válido que o habilitasse para o exercício da condução.

Desta forma agiu o arguido com o intuito de conduzir o referido veículo, apesar de saber que não era titular de documento que o habilitasse a conduzir.

O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida.

O arguido confessou ainda a prática dos factos imputados.

O arguido foi detentor de carteira nacional de habilitação emitida pela República Federal do Brasil com a data de validade de onze de abril de 2019, a quatro de abril de 2020.

Mais resulta provado que o arguido se encontra no estado civil de solteiro, reside com a sua mãe e com o padrasto, em casa arrendada, pela qual pagam mensalmente a quantia de setecentos e cinquenta euros, contribuindo o arguido com uma quantia mensal sensivelmente de trezentos euros.

O arguido é ajudante de cozinha, auferindo mensalmente a quantia de seiscentos e dez euros.

O arguido tem a sua carta de condução apreendida no âmbito do processo número 214/20.7GTABF.

O arguido não tem antecedentes criminais, e assim sendo, também não existem factos por provar.

O Tribunal fundou a sua convicção desde logo nas declarações do arguido, que de forma livre, integral e sem reservas, confessou os factos que constam da acusação, nessas medidas, nessa medida lograram as suas declarações convencer o Tribunal.

Não invocou qualquer causa imperiosa para conduzir, pelo que não se considerou que exista qualquer causa que exclua a ilicitude da sua conduta, no entanto e considerando que existe demais prova, o Tribunal ainda atendeu àquilo que consta nos autos relativamente à prova documental, designadamente a informação do IMT, que atesta a folhas vinte e seis que o arguido não é titular de carta, de qualquer titulo de condução português, mas como foi junto também aos autos, o arguido é titular de carta condução brasileira, fora de validade ã data dos factos, é certo, que consta também dos autos.

Dizer ainda que relativamente aos antecedentes criminais do arguido fez-se fé no certificado criminal que consta dos autos e quanto às condições socio-económicas, fez-se fé naquilo que foi declarado pelo arguido.

Relativamente ao crime que foi imputado ao arguido, ou seja, o crime de condução de veiculo sem habilitação legal, dizer que não existem dúvidas que de facto o arguido conduziu este veículo ligeiro de mercadorias na via pública, na cidade de …, neste dia, que resulta provado e que nessa altura não tinha carta de condução portuguesa, mas que na altura tinha uma carta de condução emitida pela República Federal do Brasil, que não se mostrava válida, como já vimos, desde quatro de abril de 2020, ora, neste ponto, o artigo 130.° do Código da Estrada, ou seja, e aparentemente está de facto preenchida em nosso ver â partida o crime de condução de veiculo sem habilitação legal, no entanto, e neste ponto, o artigo 130.º do Código da Estrada e sob a epígrafe, caducidade e cancelamento dos títulos de condução, dispõe que o titulo de condução caduca se não for revalidado nos termos fixados, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de validação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico, inválido durante esse período, ainda o número 3 do mesmo artigo refere que o título de condução é cancelado quando, alínea d), tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido, e ainda nos termos do número 5 do mesmo artigo, os titulares de título de condução cancelados, consideram-se para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o titulo for emitido, e nos termos do artigo 7.°, que é aquilo que nos interessa, quem conduzir com veículo caducado, é sancionado com coima de cento e vinte a seiscentos euros, ou seja, o condutor com o titulo caducado é punido com uma infração contraordenacional, o condutor com titulo cancelado é considerado como não habilitado e como tal, remetendo assim para o artigo 3.° do Decreto-Lei 2/98 de três de janeiro, para o preenchimento da falta de habilitação, só consegue cumprir estes requisitos do crime em questão, quem de facto não tenha habilitação para o caso, ora no caso, como já dissemos, o arguido terá tido carta de condução brasileira, a qual seria perfeitamente reconhecida em Portugal, aplicados os devidos condicionalismos, nos termos do artigo 125.° número 1, alínea d) do Código da Estrada, na redação em vigor à data dos factos, constituem títulos habilitantes para a condução de veículos a motor, para além dos títulos nacionais, os emitidos por estado estrangeiro desde que este reconheça idêntica validade aos títulos nacionais, ora por despacho número 1942/2000, publicado em Diário da República, segunda série, número 123, a 27 de maio de 2000, sob a epígrafe Carteira Nacional de Habilitação Brasileira, a Direção Geral de Viação determinou o seguinte, que as carteiras nacionais de habilitação brasileira que se apresentem dentro do seu prazo de validade, habilitar â condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do número 1 do artigo 125.° do Código da Estrada, no entanto e como vimos, resulta também provado que esta já não seria válida desde dois de março de 2010, ora a condução com títulos caducados passou a estar prevista como mera contraordenação nos termos do artigo 7.°, do artigo 130.° já citado, no caso o título de condução como vimos não é válido, e que dizer que também não valoramos o entendimento que os titulares de carta de países estrangeiros ou não aderentes à União Europeia, não deverão beneficiar deste regime e ser automaticamente considerados como praticantes de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, no imediato momento em que a sua carta caduca, perdão, com o fundamento que o título em causa estando caducado nunca poderia ser revalido em Portugal, se não há dúvidas de que o titular de condução cancelado e emitido em Portugal ou outro pais da União se trataria de uma mera contraordenação, não vemos porque motivo o mesmo regime não possa ser subsumido para cidadãos estranhos â União Europeia, tanto mais que a definição de conceito de falta de habilitação com relevância criminal emerge diretamente deste artigo 130.° do Código da Estrada, não descriminando em nenhum dos seus artigos qualquer nacionalidade, cremos assim que o principio da tipicidade da responsabilidade criminal impõe um entendimento que sendo válido o titulo, ou reconhecido, neste caso, porque válido já não estava à data, reconhecido em Portugal e estando caducado há menos de cinco anos, deve ser subsumido ao artigo 130.° número 7 do Código da Estrada, independentemente da forma, requisitos ou procedimento administrativo para a sua substituição.

Reportando ao caso em concreto, o titulo emitido no Brasil foi reconhecido em Portugal por efeito de Convenção vinculativa de ambos os Estados, daí têm de ser retiradas todas as consequências inerentes a tal reconhecimento pois que nada impedia que fosse revalidado no país de origem e substituído em Portugal dentro do respetivo prazo, assim o vem entendendo a jurisprudência e se antes existe de facto entendimento diverso, também na jurisprudência, e respeitando o raciocínio que se pretende fazer, compaginando uma série de normas do Código da Estrada para alcançar a conclusão de que a lógica contraordenacional só se aplica a títulos que não ultrapassar o respetivo prazo de validade, cremos que o princípio da legalidade e da tipicidade criminal é claro o bastante e basta-se com esta leitura do artigo 130.° número 5 do Código da Estrada, não cabendo ao intérprete distinguir onde o legislador não o fez e não cabendo também ao intérprete distinguir entre nacionalidades de artigos e na dúvida sempre em favor do arguido, inclusive nestes casos, onde na dúvida entre a responsabilidade contraordenacional e a responsabilidade criminal, irrelevante também se torna que a carta de condução esteja também apreendida noutros autos, pois que vimos que estava meramente apreendida justamente por essa questão da caducidade e assim sendo, uma vez que o titulo em causa, reconhecido em Portugal, está caducado à menos de cinco anos, atendendo â data dos factos, passível de revalidação no pais de origem e como tal, de substituição em Portugal, a conduta passa a ser sancionada como mera contraordenação, impondo-se a absolvição do arguido pelo crime pelo qual vinha acusado.”

2 - Fundamentação.

A - Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – A conduta do arguido subsume-se ou não ao crime de que vem acusado.

2.ª questão – Modificabilidade da decisão recorrida.

B. Decidindo.

1.ª questão – A conduta do arguido subsume-se ou não ao crime de que vem acusado.

O título de condução de que o arguido era possuidor à data da prática dos factos (18.10.2020) não era válido, uma vez que a sua validade expirou em 04.04.2020.

Será, em primeiro lugar, que o arguido poderá beneficiar do regime constante do art.º 130.º, n.ºs 1 a 6 do Código da Estrada?

Vejamos. Como se pode ler no Acórdão deste TR de 22.10.2019 (1), “…não vislumbramos outra conclusão lógica possível senão que o regime de caducidade e cancelamento previsto nos nºs 1 a 6 do art. 130º do CE só se aplica aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, pelo que a coima cominada no nº 7 do mesmo artigo é também privativa dessa categoria de títulos. Pelo contrário, o título de condução emitido por Estado estrangeiro, que tenha habilitado o seu portador à condução de veículos em Portugal, ao abrigo do disposto nas als. c) e d) do nº 1 do art. 125º do CE, uma vez ultrapassado o respectivo prazo de validade, deixa irremediavelmente de ser passível de substituição por carta de condução portuguesa ou sequer de permitir a emissão a partir dele de um documento desta natureza, sem necessidade de aguardar o prazo de 5 anos previsto na al. d) do nº 3 do art. 130º do CE. Nesta ordem de ideias, a detenção pelo arguido, aquando da prática dos factos por que responde, de um título de condução brasileiro, caducado há menos de cinco anos, é inócua para o efeito de afastar a tipicidade do art. 3º do DL nº 2/98 de 3/1.” Com efeito, atento o disposto no art.º 128.º do Código da Estrada, a carta de condução pode ser obtida por troca de título estrangeiro válido que não se encontre apreendido ou tenha sido cassado ou cancelado por determinação de um outro Estado. Considerando que, em 18.10.2020, o arguido não era possuidor de título estrangeiro válido (a validade do seu título havia terminado em 04.04.2020) e nem sequer, nessas circunstâncias, podia legalmente pedir a respectiva troca por carta de condução portuguesa, estava-lhe vedada, de acordo com a lei, a condução de veículos em Portugal.

Assim, quanto à questão de saber se, nessas circunstâncias, a subsunção deve ou não ocorrer, dir-se-á:

Nos termos do art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, (n.º 1) quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, sendo que (n.º 2) se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

Considerando que o arguido conduziu um veículo ligeiro de mercadorias na via pública sem estar habilitado por qualquer título (nacional ou estrangeiro) e que o fez livre, voluntária e conscientemente, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos daquele tipo legal de crime.

2.ª questão – Modificabilidade da decisão recorrida.

Mostrando-se assente a prática do crime, importa escolher e determinar a pena.

Assim:

O crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal é, in casu, punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias (o recorrente labora em lapso manifesto quando refere a moldura punitiva prevista no n.º 1, quando a conduta se mostra prevista no n.º 2, uma vez que o arguido conduziu um automóvel ligeiro de mercadorias). (2)

Da escolha da pena.

Importa, uma vez que o tipo legal em análise admite a aplicação, em alternativa, de pena de prisão ou de pena de multa, atender ao critério da escolha da pena, previsto no art.º 70.º do Código Penal, ou seja, devemos optar pela pena de multa caso esta se mostre adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição, o que é indiscutivelmente o caso, considerando, nuclearmente, a ausência de antecedentes criminais do arguido e, como tal, as menores exigências de prevenção especial.

B. Da medida concreta da pena.

De acordo com o art.º 71.º, n.º 1 do C. Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

''A redacção dada ao nº 1 harmonizou esta norma com a do novo art.º 40.º: o texto anterior podia sugerir que se atribuía à culpa um papel preponderante na determinação da medida da pena, possibilitaria mesmo, contra a filosofia que era já a do Código, uma leitura que apontasse no sentido da afirmação da retribuição como fim das penas; poderia ser entendido como atribuindo às exigências de prevenção um papel secundário, meramente adjuvante, naquela determinação, que não é, de modo algum, o que agora expressamente se lhes assinala.'' (3)

Deste modo, resulta expressamente do normativo citado a necessidade da consideração da díade culpa / prevenção na determinação do quantum punitivo.

Relativamente à culpa, entende-se como inequívoco que se trata de um conceito chave do Código Penal de 1982, constando do ponto 2 do respetivo Preâmbulo que “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta”. A eleição legal de um verdadeiro princípio da culpa cinde-se em duas realidades diferentes, a saber, a culpa como fundamento da pena e a culpa como fundamento da medida da pena (4), sendo desta última que agora nos ocuparemos.

De que forma pode a culpa determinar a medida concreta da pena, articulando-se harmoniosamente nessa função com as citadas exigências de prevenção?

A jurisprudência alemã (5) desenvolveu a chamada “teoria do espaço livre”: segundo esta, não é possível determinar-se de modo exato uma pena adequada à culpa, sendo apenas possível delimitar uma zona dentro da qual deve situar-se a pena para que não possa falhar a sua função de levar a cabo uma justa compensação da culpabilidade do autor; esta relação imprecisa entre a culpa e a pena pode ser aproveitada pelo tribunal para a prevenção especial, fixando a sanção entre o limite inferior e superior do “espaço livre” da culpa, de acordo com os efeitos que possam esperar-se daquela para a integração social do autor do ilícito. (6)

Para Jorge de Figueiredo Dias (7), a finalidade primordial visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo de medida da pena. Tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (prevenção geral positiva ou prevenção de integração). Esta ideia traduz a convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena visa alcançar. Porém, tal como na anteriormente aludida “teoria do espaço livre”, esta medida ótima de prevenção geral positiva também não fornece ao juiz um quantum exato de pena. Assim, de acordo com este entendimento é a prevenção geral positiva (não a culpa) que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial de socialização.

Quer consideremos a “teoria do espaço livre”, quer a teoria da “moldura de prevenção” (o texto do n.º 1 do art.º 71.º, quanto a este aspeto, é de uma desdogmatização normativa exemplar, sem que se possa apontar uma preferência legal por qualquer das teorias), existe algum consenso no sentido de que, dentro dos limites mínimo e máximo de tais sub-molduras punitivas, são considerações relativas à chamada prevenção especial que operam no último estádio hermenêutico que leva à concretização exata de uma dada pena.

“Dentro da “moldura de prevenção” (…) actuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que que devem aqui ser valorados todos os factores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza; seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou de inocuização.” (8)

Quanto às exigências de prevenção “pode-se distinguir entre prevenção especial negativa e positiva. A primeira traduz-se na intimidação do agente em concreto. A prevenção especial positiva é representada pela ressocialização.” (9)

Em concreto, que circunstâncias devemos valorar para definir exatamente a pena?

As circunstâncias que, nuclearmente, devem ser levadas em conta são as que dizem respeito ao facto ilícito praticado: ‘os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos, em suma, o “efeito externo”, determinam então para o juiz, no momento da fixação da pena, o significado do facto para a ordem jurídica violada.'' (10)

Tais efeitos externos dos factos ilícitos encontram correspondência legal nos fatores de determinação da medida da pena previstos nas primeiras alíneas do n.º 2 do art.º 72.º do C. Penal.

Atento o acime mencionado, o efeito externo do facto ilícito é, aqui, muitíssimo atenuado, pois, apesar de legalmente, o arguido não ter habilitação legal para conduzir, efectivamente já havia sido titular de habilitação (no Brasil), tendo (apenas e tão-só) a respectiva validade expirado. Acresce a sua postura colaborante em audiência, confessando livre integralmente e sem reservas os factos. Por último, resta valorar, ainda no que respeita à prevenção especial, a já mencionada ausência de antecedentes criminais.

Importa, pois, fixar a pena perto do seu mínimo legal (11), ou seja, em 15 dias de multa à taxa diária, atenta a sua situação económica (12), de € 6,00, o que perfaz a multa global de € 90,00.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente:

condenar o arguido, pela prática do crime de condução sem habilitação legal p. e p. p. art.º 3.º, números 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 15 (quinze) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 90,00 (noventa euros).

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 8 de Novembro de 2022

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1 Proferido no processo 126/18.4GBPTM.E1 (relator Sérgio Corvacho). No mesmo sentido, vide o Acórdão do mesmo TR de 07.01.2016 proferido no processo 651/13.3PAPTM.E1 (mesmo relator e colectivo), a que naquele se faz referência expressa e o Acórdão do TRL de 20.10.2020 proferido no processo 872/18.2SISLB.L1-5 (Relator Artur Vargues), todos disponíveis em www.dgsi.pt

2 Art.º 3.º do DL 2/98: 1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.

3 José Gonçalves da Costa, Revisão do Código Penal - Implicações Judiciárias mais Relevantes da Revisão da Parte Geral, CEJ, Lisboa, 1996, página 29.

4 Sobre esta distinção fundamental, pode ver-se Claus Roxin in Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, Madrid, 1997, páginas 813 e 814, onde se afirma que a culpa como fundamento da pena diz respeito à imputabilidade ou capacidade de culpa, bem como à possibilidade de conhecimento da proibição, sendo que a culpa como fundamento da medida da pena é uma realidade suscetível de fixação em concreto através da consideração de circunstâncias (cfr. o n.º 2 do art.º 71.º do C. Penal).

5 A norma do C. Penal Alemão equivalente ao art.º 71º do Código Penal Português tem a seguinte estrutura: o § 46 I daquele diploma contém o enunciado de que na individualização da pena se devem tomar em consideração os fins da mesma e no nº II enumeram-se as circunstâncias que, em benefício ou em prejuízo do autor, devem ser levadas em consideração para o aludido desiderato.

6 Assim, Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend in Tratado de Derecho Penal – tradução da 5.ª Edição do ''Lehrbuch des Strafrechts, All. Teil'' - Comares, Granada, Dezembro de 2002, páginas 948 e 949. Sabemos que Eduardo Correia (com a concordância da Comissão Revisora) defendia, nas suas linhas essenciais, este conceito, ao afirmar ''é claro que que, em absoluto, a medida da pena é uma certa; simplesmente, qual ela seja exactamente é coisa que não poderá determinar-se, tendo, pois, o aplicador de remeter-se a uma aproximação que, só ela, justifica aquele ''spielraum'', dentro do qual podem ser decisivas considerações derivadas da pena prevenção.'' (BMJ n.º 149, página 72).

7 Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, páginas 105 a 107.

8 Acórdão do STJ de 24.05.1995 in CJ, ASTJ, Ano III, tomo 2, página 214.

9 Anabela Miranda Rodrigues in A Determinação Concreta da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1995, página 323.

10 Anabela Miranda Rodrigues idem, página 481.

11 10 dias, cfr. art.º 47.º, n.º 1 do CP.

12 Cfr. art.º 47.º, n.º 2 do CP.