Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3768/15.6T8ENT-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual:
.
Sumário: 1 - Uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai;
2 - Sendo o embargado o portador inicial e não tendo o avalista embargante subscrito qualquer pacto de preenchimento, a livrança dada à execução encontra-se no domínio das relações mediatas; por conseguinte, não assiste ao embargante o direito a confrontar o embargado com o alegado preenchimento abusivo da livrança em branco.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3768/15.6T8ENT-A.E1

ACÓRDÃO

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Embargante: (…)

Recorrido / Embargado: Banco (…), SA, Sociedade Aberta

Os presentes autos consistem em embargos de executado deduzidos pelo executado avalista nas livranças dadas à execução, invocando-se o preenchimento abusivo das mesmas livranças, já que inexiste fundamento para o montante aposto nas livranças, nunca tendo sido celebrado qualquer pacto de preenchimento, pelo que os títulos dados à execução carecem de força executória. Mais o embargante alegou que o aval é nulo uma vez que a exequente não invocou ter procedido ao encerramento da conta corrente e à consequente liquidação do saldo bancário da sociedade avalizada.


II – O Objeto do Recurso

Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a oposição à execução por embargos de executado totalmente improcedente, determinando-se o prosseguimento da ação executiva.

Inconformado, o Embargante apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1ª - As três Livranças ora dadas à execução, foram subscritas pelo Embargante, na qualidade de Legal Representante da Empresa (…) – Serviços Arqueológicos, Lda., com sede na Rua (…), Lote (…), Casais (…) – 2200-460 Abrantes avalizando-as no verso para garantia de contrato de crédito em conta corrente da referida Empresa à data de 09.08.2007. Sucede que, quando estas Livranças foram subscritas e avalizadas pelo Oponente, estavam em branco.
2ª - Nessa altura ficou apenas acordado entre a Exequente e o executado que tais livranças serviriam para garantia do contrato de crédito em conta corrente celebrado entre aquela e a Sociedade (…) – Serviços Arqueológicos, Lda., de que este foi sócio-gerente. Ou seja, dois dias depois de a exequente sem o conhecimento ou consentimento do subscritor e dos avalistas destas livranças, as preencherem com as importâncias nelas mencionadas (em numerário e por extenso) e datas de vencimento reputando-se completamente abusivo este preenchimento.
3ª - Impugnando-se os montantes apostos nas três livranças, por não corresponderem sequer aos valores reais do saldo da conta corrente do Contrato de Crédito celebrado entre a devedora principal – (…) – Serviços Arqueológicos, Lda. e a exequente tanto mais que a exequente não junta sequer qualquer documento escrito, assinado pelos executados do qual conste expressamente a necessária autorização de preenchimento destas livranças pois os executados nunca subscreveram tal documento dado nunca terem celebrado com a exequente qualquer pacto de preenchimento.
Termos em que os títulos em que se funda a presente execução carecem de força executória o que se alega para os efeitos do disposto nos Arts. 75º e seguintes da LULL constante da Carta de Confirmação e Ratificação de 21 de Junho de 1934.
4ª - A Exequente não alega na sua petição inicial ter procedido ao encerramento da conta corrente e à consequente liquidação do saldo bancário da Empresa (…) – Serviços Arqueológicos, Lda., a quem os executados deram o seu aval pelo que, também por este motivo não pode a referida Sociedade ou os executados ser sequer considerados devedores conforme dispõe o artigo 348º e seguintes do Código Comercial.
5ª - O aval dado pelos executados é nulo e de nenhum efeito devendo indeferir-se liminarmente o presente requerimento executivo.
6ª - Estes títulos de crédito não contêm os factos constitutivos da relação subjacente, nem estes são alegados no requerimento executivo, pelo que, também por este motivo se deve indeferir o requerimento executivo em causa.
7ª - Ao não decidir assim, violou a decisão recorrida o disposto nos Arts. 75º da LULL, 348º e seguintes do Código Comercial e artigo 703º, c), do CPC.»

Em resposta, o Recorrido pugna pela manutenção da decisão recorrida, invocando que o Recorrente não lhe pode opor a exceção do preenchimento abusivo, sendo irrelevantes as demais questões suscitadas, atenta a circunstância de não ser sujeito da relação contratual subjacente à emissão do título.

Assim, em face das conclusões da alegação do Recorrente, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- do preenchimento abusivo das livranças dadas à execução;
- da falta de alegação, no requerimento executivo, da liquidação do saldo devedor, por encerramento da conta-corrente;
- da nulidade do aval;
- da falta de invocação, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente à emissão dos títulos.


III – Fundamentos

A – Dados a considerar

1 – Foram dadas à execução quatro livranças, conforme segue:
a) Livrança subscrita pela empresa (…), Lda., no valor de € 28.346,62 e com vencimento em 21.01.2015;
b) Livrança subscrita pela empresa (…), Lda., no valor de € 5.675,92 e com vencimento em 21.01.2015;
c) Livrança subscrita pela empresa (…), Lda., no valor de € 1.585,21 e com vencimento em 05.03.2015;
d) Livrança subscrita pela empresa (…), Lda., no valor de € 1.405,74 e com vencimento em 05.03.2015.
2 – Em cada uma das livranças dadas à execução, no verso, sob a menção “Bom para aval” ou “Dou o meu aval à firma subscritora” consta a assinatura do embargante Recorrente.
3 – O requerimento executivo patenteia, tão só, a alegação da subscrição das várias identificadas livranças, indicando-se o montante nelas aposto, o respetivo vencimento e não pagamento, assim como o vencimento de juros de mora vencidos e vincendos – cfr. requerimento executivo.
4 – As livranças foram assinadas em branco – facto admitido por acordo.

B – O Direito

O processo executivo alicerça-se no título executivo, no documento que lhe serve de base (cfr. art. 703.º do CPC), cabendo ao exequente instruir o requerimento executivo com cópia ou o original do título executivo (cfr. art. 724.º, n.º 4, CPC). Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva – art. 10.º, n.º 5, do CPC. «O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão executiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação.»[2]

As espécies de títulos executivos estão enunciadas no art.703.º do CPC. Entre elas, constam os títulos de crédito, ainda que mero quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo – al. c) do n.º 1 do art. 703.º do CPC. Título de crédito é o «documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado», sendo título de crédito em sentido estrito aqueles que incorporam o direito a uma prestação em dinheiro (letras, livranças, cheques).[3] «Não existindo o direito cartular nem a correspondente obrigação cambiária (por exemplo, porque a ação cambiária prescreveu), não se está perante um título de crédito (em sentido próprio), mas sim perante um documento particular despido das caraterísticas da incorporação, literalidade e autonomia, que caraterizam e são essenciais à própria definição de título de crédito.»[4] Neste caso, conforme estatui a norma em apreço[5], a força executiva depende de a relação causal ou subjacente à sua emissão constar do documento ou ser alegada no requerimento executivo.

No caso que temos em mãos, os títulos executivos consistem em quatro livranças em que o embargante se assumiu avalista – a assinatura aposta no verso de cada uma das livranças é-lhe atribuída e tal circunstância não é por ele posta em causa.

A livrança constitui um título de crédito à ordem que consubstancia uma promessa de pagamento pela qual o emitente, subscritor ou sacador se compromete a pagar determinada importância em certa data a certa pessoa. Ao subscritor incumbe assinar a livrança, assumindo a respetiva obrigação (art.º 75.º, n.º 7, da LULL), tornando-se responsável na mesma medida que o aceitante de uma letra (art.º 78.º da LULL). Por conseguinte, assinando a livrança, torna-se um obrigado cambiário que, em primeira linha, responde pelo montante titulado no título: “Com o aceite, o aceitante assume uma obrigação abstrata que nasce exclusivamente do ato formal da sua assinatura.”[6]

O aval, por sua vez, «é um negócio jurídico cambiário autónomo, que faz nascer uma obrigação materialmente autónoma, dependente da obrigação principal apenas quanto ao aspeto formal.»[7] Nos termos do art. 30.º da LULL, aplicável às livranças ex vi o art. 77.º, o aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores. A função do aval «é uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscrito cambiário, a cobri-la e caucioná-la. (...) O fim próprio do aval, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário; a responsabilidade de garantia é primária».[8] Por via da sua independência e autonomia, a obrigação do avalista, firmada perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente, mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. O que quer que ocorra na relação subjacente não possui a virtualidade de se transmitir à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária.

Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.[9]

Nesta senda, foi lavrado o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2013[10], dele se alcançando, designadamente, o seguinte: «tratando-se de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstração e literalidade, se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma.
O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.
Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado, mas sim perante o titular da letra ou livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância da relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária.
A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal».

Importa ainda atentar no disposto no art. 32.º da LULL, que determina que o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, ou seja, é considerado responsável pelo pagamento da mesma forma que o aceitante. Segundo o mencionado regime, não é estabelecida qualquer distinção entre o aceitante e o avalista, que responderá pelo pagamento da letra solidariamente com os demais subscritores: reza o art. 47.º da LULL que os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador, que tem direito a acionar todas essas pessoas, individual ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.

No caso em apreço, as livranças foram assinadas em branco. Ora, a livrança em branco tem tutela legal, sendo expressamente acolhida a figura por remissão do art. 77.º da LULL para o art. 10.º do mesmo diploma. É, no entanto, essencial, nos termos desses preceitos, a existência de um contrato de preenchimento, mediante o qual as partes ajustem os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, o vencimento, o local de pagamento e a estipulação de juros.[11]

Vem sendo entendido que a letra/livrança em branco constitui já um título de crédito endossável e sujeito ao regime cambiário. A obrigação cambiária quer do aceitante quer do avalista de letra em branco surge desde logo com a aposição da respetiva assinatura nessa qualidade;[12] a letra/livrança em branco é válida, mas só se torna eficaz depois de preenchida de harmonia com o acordo de preenchimento.[13] A aposição de assinatura no título em branco implica na constituição de obrigação cambiária, embora esta não possa ser efetivada senão depois do respetivo preenchimento – Abel Delgado, in LULL, 6.ª edição, p. 76. Mais consigna este autor: «Os aceitantes, ao aporem a sua assinatura na letra, constituem-se em uma obrigação cambiária, desde o início, mas que, como tal, não pode ser efetivada senão depois do preenchimento. Quer isto dizer que a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão, podendo a letra circular por meio do endosso, mesmo que ainda por preencher, desde que tenha já indicado o nome do tomador. A letra, mesmo antes de preenchida, circula, pois, como título cambiário, estando sujeita ao regime cambiário.»[14]. Nas palavras de Vaz Serra[15], «o crédito e a obrigação não surgem somente com o preenchimento, embora este seja necessário para fazer valer os direitos cambiários».

Seguindo de perto o Ac. STJ de 15/05/2013[16], importa salientar que o «Supremo Tribunal de Justiça vem asseverando relativamente à natureza jurídica dos créditos cambiários e das correspondentes obrigações, concluindo que quando se trate de letras ou de livranças sacadas ou subscritas em branco ou em branco avalizadas, o direito de crédito de natureza cartular se constitui simultaneamente com tais atos.
Assim acontece designadamente para efeitos de determinação da anterioridade do crédito que é pressuposto da procedência da ação de impugnação pauliana, nos termos dos arts. 610º, al. a), e 614º do CC (cfr. os Acs. do STJ, de 29-11-11, e de 2-5-12, www.dgsi.pt).
Em tais circunstâncias, a constituição da relação cambiária (maxime a que integra o avalista) ocorre em paralelo com a outorga do pacto de preenchimento que define os termos em que o título poderá ser preenchido no que concerne aos elementos em falta, tais como a data de vencimento ou o montante, correspondendo este à quantia que, de acordo com o relacionamento contratual subjacente, se encontre vencido e seja exigível na data em que o título for preenchido.» É a solução que prevalece na jurisprudência, embora não tenha colhimento unânime na doutrina.[17]

O embargante sustenta que nunca foi celebrado qualquer pacto de preenchimento e impugna os montantes inscritos nas livranças.

Trata-se da arguição da exceção do preenchimento abusivo da livrança em branco.

Por via do regime inserto no art. 10.º da LULL, aplicável às livranças ex vi art. 77.º da LULL, coloca-se a questão de saber se ao Recorrente Embargante assiste o direito de invocar tal exceção. Tal norma determina o seguinte: «Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.»

Ora, a livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento»[18]. Consiste no «ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros.»[19] Este acordo, que pode ser expresso ou tácito, reporta-se à obrigação cartular em si mesma, o que pode ou não coincidir com a obrigação que garante e que daquela é causal ou subjacente.

O incumprimento daquilo que foi acordado quanto ao modo de preenchimento do título pode ser invocado no domínio das relações imediatas. «Encontrando-se a livrança no domínio das relações imediatas (na posse do portador principal), o avalista tem legitimidade para excecionar o preenchimento abusivo, caso tenha subscrito também o acordo de preenchimento.»[20] Caso assim não seja, se os avalistas não tiverem subscrito tal acordo, não se apresentam como sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), pelo que não podem apor ao portador da livrança a exceção de preenchimento abusivo.[21]

Importa atentar ainda no disposto no art. 17.º da LULL, aplicável às livranças ex vi art. 77.º da LULL, nos termos do qual «As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as exceções pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor». É que no âmbito das relações mediatas, em que o título é detido por alguém estranho à convenção extra cartular, por já ter entrado em circulação, prevalecem os princípios típicos da relação cambiária que são independentes da causa que deu lugar à sua assunção. Sendo o portador da livrança um terceiro interveniente (a quem a livrança foi endossada diretamente pelo anterior beneficiário ou que se mostre justificada a respetiva posse por uma série ininterrupta de endossos), não poderá ser deduzida qualquer exceção de direito material assente nas relações pessoais dos obrigados com os anteriores sacadores ou portadores, porque, deixando de haver correspondência entre a relação causal e a relação cartular, torna-se essencial para segurança do comércio jurídico, assegurar a validade do título, nas suas dimensões de completa literalidade, abstração e autonomia. Por outro lado, ainda que o portador da livrança seja o portador inicial, o avalista que não interveio no pacto de preenchimento estabelece com aquele uma relação denominada de mediata, pelo que não pode opor-lhe exceções atinentes ao pacto de preenchimento.[22]

Revertendo ao caso em apreço, invocando o Recorrente que não foi celebrado qualquer pacto de preenchimento, é de concluir que não se estabeleceu entre si e o portador de cada uma das livranças uma relação mediata. Donde, não lhe assiste o direito de invocar a inexistência de tal pacto ou de impugnar os montantes apostos em cada uma das livranças.

Invoca ainda o Recorrente a falta de alegação, no requerimento executivo, da liquidação do saldo devedor, por encerramento da conta-corrente, e dos factos constitutivos da relação subjacente à emissão dos títulos.

A matéria atinente à falta de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente constitui matéria nova, não suscitada em sede de oposição deduzida à execução. Na medida em que contende com a falta de causa de pedir, consubstancia matéria de conhecimento oficioso (cfr. arts. 726.º, n.º 1, al. b) e 734.º do CPC), pelo que dela vai tomar-se conhecimento.[23]

Ora vejamos.

Conforme decorre do disposto no art. 703.º, n.º 1, al. c), do CPC, impõe-se que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo desde que o título executivo consista em título de crédito que valha como mero quirógrafo (documento particular assinado pelo seu autor[24]). Valendo, no entanto, como título de crédito, assumem relevância os princípios da incorporação, da literalidade e da abstração desses títulos, prescindindo da alegação dos factos constitutivos da relação que esteve na base da emissão dele.

Em consonância com tal regime, o art. 724.º, n.º 1, al. e), do CPC estabelece que, no requerimento executivo, o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. O regime legal vigente traduz a afirmação de que, no âmbito da ação executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo.

É certo que era entendido e sustentado, à luz dos preceitos legais originários insertos no CPC nesta matéria e quando os títulos executivos eram maioritariamente de natureza cambiária e, por isso, abstratos (cheques, letras e livranças), que a causa de pedir numa ação executiva era consubstanciada pelo próprio título executivo.[25] Atualmente, porém, temos por certo que a causa de pedir na ação executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração.[26]

Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c), e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai.[27]

Assim sendo, o exequente, dando à execução quatro livranças com a natureza de títulos de crédito, não estava adstrito a alegar, no requerimento executivo, os factos constitutivos da relação subjacente, designadamente o apuramento do saldo devedor por encerramento da conta corrente, pelo que não se verifica a exceção dilatória da falta de causa de pedir.

O Recorrente invocou ainda a nulidade do aval. Não invocou, no entanto, qualquer fundamento que sustente a referida nulidade, nem se alcança que exista.

Termos em que se conclui improcederem integralmente as conclusões da alegação do recurso.

As custas recaem sobre o Recorrente – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 26 de Outubro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Vítor Sequinho dos Santos

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[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, p. 33.
[3] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, p. 3, 4, 13 e 14.\
[4] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. II, 2014, p. 185.
[5] Tomando posição pela corrente que era já maioritariamente defendida pela jurisprudência em face do regime legal decorrente da reforma operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
[6] Ac. TRL de 30.03.62, in Jur. Rel., 8.º, 289 e Pereira Coelho, Lições de Direito Comercial, 3.º, 9.
[7] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III, Universidade de Coimbra, 1975, p. 215.
[8] Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 7.ª edição, p. 167.
[9] Vaz Serra, R.L.J, Ano 113, p. 186, nota 2; entre muitos outros, Ac. STJ de 19/6/2006, CJ. Ac. STJ, XV, 2º, 118.
[10] Ac. STJ de 11/12/2012.
[11] Cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, 1994, p. 28.
[12] Cfr. Ac. STJ de 28/02/2008 (Alves Velho).
[13] Cfr. Ac. TRP de 31/10/2006, entre muitos outros.
[14] Ob. cit, p. 76.
[15] BMJ 61.º-264.
[16] Relatado por Abrantes Geraldes.
[17] Cfr. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, p. 145; Pereira Coelho, RLJ, 92.º-232.
[18] Ac. TRL de 04/06/2009 (Ana Luísa Geraldes).
[19] Ac. STJ de 03/05/2005 (Azevedo Ramos).
[20] Ac. TRP de 28/06/2007 (Amaral Ferreira); neste sentido, Ac. STJ de 14/12/2006, Acs. TRP Tribunal de 14/11/2006 e de 23/4/2007.
[21] Ac. STJ de 11/11/2004 (Ferreira de Almeida).
[22] Cfr. Ac. STJ de 28/02/2008 (Alves Velho).
[23] De outra forma, não cabia a este Tribunal pronunciar-se, pois o recurso não pode ter por objeto questões que não foram suscitadas na instância recorrida.
[24] Cfr. Ac. STJ de 18/10/2012 (Álvaro Rodrigues).
[25] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol. I, p. 98; Lopes Cardoso, Manual da Ação Executiva, p. 23 e 29.
[26] Cfr., entre outros, Ac. STJ de 15/05/2003 (Salvador da Costa).
[27] Cfr. Ac. STJ citado e Ac. TRP de 10/02/2015 (Rui Moreira)