Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
253/14.7PBEVR.E1
Relator: CARLOS BERGUETE COELHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ARBITRAMENTO OFICIOSO DE INDEMNIZAÇÃO A FAVOR DA VÍTIMA
Data do Acordão: 05/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Havendo condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º, do Código Penal, haverá também sempre lugar a condenação do mesmo arguido no pagamento de uma reparação indemnizatória à vítima, quer esta haja formulado o respetivo pedido ou não, pois sempre o tribunal terá de arbitrar oficiosamente uma reparação dos prejuízos sofridos com o crime, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, da Lei nº 112/2009, de 16/09 e 82º-A, do CPP. Só assim não será se a vítima a tal expressamente se opuser.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, da Secção Criminal da Instância Local e Comarca de Évora, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JM, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 4, do Código Penal (CP).

Não foi deduzido pedido de indemnização civil.
O arguido não apresentou contestação, nem arrolou testemunhas.

Realizado julgamento e proferida sentença, decidiu-se condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CP, na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão suspensa na execução por período de igual duração, acompanhada de regime de prova, com base em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP.

Inconformado com tal decisão, na parte em que não se arbitrou indemnização em favor da ofendida, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:

1- O arguido JM foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. p. pelo artº 152º, nº1-b) e c) nº2 do C. Penal, pelo qual se mostrava acusado, na pena de dois anos e 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período e acompanhada de regime de prova, com base em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, bem como no pagamento das custas criminais. Porém, não foi condenado no pagamento de qualquer indemnização a favor da vítima CM, nos termos do disposto nos artºs. 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009 e 82º-A do C. Processo Penal.

2- A ofendida não deduziu pedido cível, nem se opôs expressamente a que lhe fosse atribuída qualquer indemnização.

3- Entendeu o Mmo Juiz a quo que, no caso de condenação pela prática do crime de violência doméstica, não tendo a ofendida deduzido o pedido de indemnização civil, o tribunal somente está obrigado a analisar a situação com vista a verificar se no caso “sub judice” há ou não lugar a condenação no pagamento de indemnização e não a atribuir obrigatoriamente, essa indemnização.

4- No caso presente entendeu ainda o Mmo Juiz a quo que não se verificavam particulares exigências de protecção da ofendida que imponham que lhe seja atribuída uma indemnização.

5- A Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, dispõe no nº2 do seu artº 21º da seguinte forma: «Para efeitos da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artº 82º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vitima a tal expressamente se opuser».

6- Por seu turno, o art. 82º do Cod. Proc. Penal, refere que: «1.- Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação pode arbitrar uma quantia a titulo de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigência de protecção da vitima o imponham. 2- No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.3- A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer do pedido civil de indemnização.»

7- O Mo Juiz a quo fez uma incorrecta interpretação dos arts. 21º, nº 2 da Lei nº 112/2009 e 82º-A do C. Processo Penal, assim os violando.

8- Tal como a grande maioria da jurisprudência tem defendido, entendemos que a lei impõe, nos casos de condenação pela prática de crime de violência doméstica, o obrigatório arbitramento de indemnização a favor da vítima.

9- Pese embora na fundamentação, o tribunal a quo tenha exposto as suas razões jurídicas para entender que não deveria haver lugar a tal arbitramento, em sede de dispositivo nada fez constar a tal propósito, embora se tratasse de questão sobre a qual se teria de pronunciar.

10- Assim, nos termos do nº 1, al. c) do art. 379º do C.P.P. a sentença é nula, no segmento relativo ao arbitramento de indemnização cível à vítima, impondo-se, salvo melhor opinião, o suprimento de tal vício, através da reformulação da sentença, nesta parte.

O recurso foi admitido.

O arguido não apresentou resposta.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido de que se fixe indemnização à ofendida, propondo, por adequado, o montante de € 1000,00 (mil euros).

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada disse.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, da nulidade da sentença, a que alude o art. 379.º, n.º 1, do CPP, e dos vícios da decisão e nulidades que não se considerem sanadas, previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente de acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10 (publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995).

Reconduz-se, então, a apreciar da nulidade da sentença e suas consequências, suscitada relativamente ao não arbitramento de indemnização em favor da ofendida, vítima do crime de violência doméstica perpetrado pelo arguido.

No que ora releva, consta da sentença recorrida:

Factos provados:
1. O arguido JM e a ofendida CM casaram um com o outro no dia 24 de Dezembro de 1978;

2. NM, MM e AM, nascidos respectivamente a 2 de Julho de 1979, 5 de Agosto de 1982 e 18 de Janeiro de 1988, encontram-se registados como filhos do arguido e da ofendida;

3. Desde que se casaram um com o outro, o arguido e a ofendida viveram juntos em diversas localidades dos Distritos de Portalegre e de Évora, pela seguinte ordem cronológica: Vale do Freixo, concelho de Sousel, Cano, concelho de Sousel, Vale do Freixo, concelho de Sousel, Estremoz e Évora;

4. Deixaram de viver juntos no dia 12 de Dezembro de 2013, sendo que nessa data viviam numa residência sita na Rua…, em Évora;

5. Em data não concretamente apurada, mas quando MM tinha 10 ou 11 anos de idade, no interior da residência do casal, o arguido deu um murro na nuca da ofendida, o que fez com que esta perdesse os sentidos, o que foi presenciado por MM;

6. No dia 30 de Julho de 2005, dia do casamento de NM, o arguido, durante o copo-de-água, dirigiu as seguintes expressões à ofendida: «Puta, és uma puta, andas é farta de foder»;

7. No dia seguinte, 31 de Julho de 2005, na casa do casal, quando a ofendida se encontrava deitada, o arguido, que tinha estado a ingerir bebidas alcoólicas, começou a discutir com aquela e a bater-lhe na cara com as mãos;

8. Nessa sequência, uma vez que a própria e o seu irmão AM não conseguiam controlar o seu pai, MM viu-se obrigada a telefonar à sua irmã NM, pedindo auxílio;

9. NM dirigiu-se então juntamente com o seu recém-marido a casa dos pais, tendo conseguido acalmar o seu pai, que então se ausentou do local;

10. No entanto, com medo do que o seu pai pudesse fazer à sua mãe, NM ficou nessa noite a dormir em casa dos seus pais, tendo o seu marido regressado a casa;

11. No dia seguinte, 1 de Agosto de 2005, cerca das 07h00m, o arguido entrou em casa aos gritos, referindo que a ofendida era uma «puta»;

12. Todas as descritas condutas do arguido humilharam e rebaixaram a ofendida e causaram-lhe grande sofrimento físico e moral;

13. No dia 7 de Dezembro de 2013, Sábado, à hora do almoço, na residência referida no ponto 3 dos factos provados, o arguido discutiu com a ofendida e em tom exaltado disse-lhe «dou-te um tiro nos cornos, mato-te a ti e ao teu genro».

14. A ofendida teve medo que o arguido lhe fizesse mal e a matasse;

15. Por esse motivo, no dia 12 de Dezembro de 2013 saiu de casa e foi viver em casa da sua filha NM, em Casa Branca, Sousel, separando-se do arguido;

16. Deixou em casa roupas suas e outros bens pessoais;

17. Ao dirigir aquela expressão à ofendida, bem sabia o arguido que o fazia de modo exaltado e que lhe causava medo, sendo tal expressão meio idóneo para tanto;

18. No dia 16 de Março de 2014, cerca das 15h00m, a ofendida, acompanhada da sua filha MM, dirigiu-se à residência referida no ponto 3 dos factos provados, com o propósito de ir buscar roupas e outros bens pessoais que lhe pertenciam e de que necessitava;

19. Nessa altura, encontrando-se a ofendida no interior da residência, o arguido agrediu-a com força, desferindo murros sobre ela, que a atingiram no rosto, no peito, nos braços, na coxa esquerda e por onde a apanhava;

20. Como consequência directa e necessária de tal agressão, resultaram para a ofendida uma equimose na zona periorbitária direita, uma equimose no flanco esquerdo, duas equimoses no membro superior direito, uma equimose no membro superior esquerdo e uma equimose na coxa esquerda, lesões que lhe determinaram 10 (dez) dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho;

21. Nessa ocasião, tal como na referida nos pontos 5 e 7 dos factos provados, o arguido quis molestar fisicamente a ofendida e quis causar-lhe as lesões por ela sofridas;

22. Ao agredir a ofendida no dia 16 de Março de 2014 e nas ocasiões referidas nos pontos 5 e 7 dos factos provados, ao dirigir-lhe as expressões ofensivas da sua honra e consideração, ao dizer-lhe que lhe dava um tiro e que a matava, sempre quis o arguido atingi-la na sua dignidade, humilhá-la, rebaixá-la e atingi-la na sua integridade física e moral, causando-lhe sofrimento físico e psíquico e medo, levando-a a sair da residência do casal;

23. O arguido sabia que tinha para com a ofendida, com quem era (e é) casado, especiais deveres de respeito e solidariedade, revelando no entanto as suas descritas condutas grande insensibilidade e falta de respeito para com aquela;

24. O arguido teve tais comportamentos na presença dos filhos e na residência em comum;

25. O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que lhe eram proibidas tais condutas;

26. O arguido encontra-se desempregado, auferindo subsídio de desemprego no montante mensal de € 377;

27. O centro de emprego colocou-o a exercer funções de assistente operacional num estabelecimento escolar, o que terminará em Janeiro de 2016;

28. O arguido vive sozinho, em casa arrendada, não pagando a renda desde Fevereiro de 2014;

29. Tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;

30. Por sentença proferida no âmbito dos autos de processo comum singular nº ---/05.6GAAVS, do Tribunal Judicial da Comarca de Avis, datada de 5 de Julho de 2006 e transitada em julgado a 21 de Fevereiro de 2007, o arguido foi condenado numa pena de 120 dias de multa, pela prática, em 30 de Novembro de 2005, de um crime de dano simples, encontrando-se tal pena extinta;

31. Por sentença proferida no âmbito dos autos de processo comum singular nº ---/05.6GBARL, do Tribunal Judicial da Comarca de Arraiolos, datada de 12 de Dezembro de 2007 e transitada em julgado a 22 de Janeiro de 2008, o arguido foi condenado numa pena única de 150 dias de multa, pela prática, em Novembro de 2005, de um crime de ameaça e de um crime de injúria, encontrando-se tal pena extinta;

32. Por sentença proferida no âmbito dos autos de processo comum singular nº ---/08.4GAAVS, do Tribunal Judicial da Comarca de Avis, datada de 5 de Janeiro de 2010 e transitada em julgado a 15 de Fevereiro de 2010, o arguido foi condenado numa pena única de 230 dias de multa, pela prática, em 5 de Julho de 2008, de um crime de furto qualificado e de um crime de dano simples, encontrando-se tal pena extinta.

Eventual atribuição de indemnização à ofendida/vítima:

A Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, diploma que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, dispõe no nº 2 do seu art. 21º da seguinte forma: «Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser».

Por seu turno, o art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal, reza do seguinte modo:
«1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».

A esmagadora maioria da jurisprudência tem interpretado tais normas no sentido de que nas situações de violência doméstica, quando a vítima não tenha deduzido pedido de indemnização civil, o tribunal se encontra sempre obrigado a arbitrar-lhe uma indemnização, desde que a vítima a tal não se oponha expressamente (neste sentido, veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Abril de 2015 e de 19 de Maio de 2015, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Abril de 2015 e de 16 de Setembro de 2015 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Maio de 2014 e de 2 de Julho de 2014, respetivamente Proc. 65/11.0GEARL.E1, Proc. 150/11.8GAVNO, Proc. 303/13.4PPLSB.L1-3, Proc. 67/14.42S2LSB.L1-3, Proc. 232/12.9GEACB.C1 e Proc. 245/13.3PBFIG.C1, todos in www.dgsi.pt).

São no essencial dois os argumentos utilizados em tais arestos para defender a referida posição: em primeiro lugar, que o advérbio sempre utilizado no supra citado art. 21º, nº 2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, significa que há sempre lugar à aplicação de indemnização nos termos do art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal; em segundo lugar, que a lei presume que existem particulares exigências de protecção das vítimas do crime de violência doméstica, muitas vezes dependentes do agressor/arguido dos pontos de vista monetário e/ou psicológico.

Salvo o devido respeito, a tese da obrigatoriedade da atribuição de indemnização à vítima de violência doméstica não encontra respaldo nas referidas normas.

Com efeito, o nº 2 do art. 21º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, não determina que o tribunal arbitre sempre indemnização à vítima de crime de violência doméstica, mas antes diz que o tribunal se encontra sempre obrigado a ponderar a sua atribuição, nos termos previstos no art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal (se assim não fosse, a referida norma limitar-se-ia a estatuir, de forma muito mais simples, que no caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, à vítima é sempre arbitrada indemnização, sendo certo que «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» – art. 9º, nº 3, do Cód. Civil).

A tal acresce que o entendimento de que se presume que as vítimas de tais crimes se encontrarão numa situação de dependência económica ou psicológica em relação ao agressor, tem o problema de muitas vezes esbarrar com a realidade apurada nos processos concretos (aliás, no caso dos autos, até seria o arguido quem ultimamente estaria economicamente dependente da ofendida).

Finalmente, não olvidando que o crime de violência doméstica constitui um verdadeiro flagelo social, caso tivesse sido intenção do legislador estabelecer a obrigatoriedade de atribuição de indemnização às vítimas de crime de violência doméstica, independentemente de terem deduzido pedido nesse sentido (entendimento que, repete-se, entendemos não ter correspondência com a letra da lei), tal violaria o princípio da igualdade, ferindo a respectiva norma de inconstitucionalidade material, pois são variadíssimos os crimes previstos na legislação penal, alguns dos quais muito mais graves do que o crime de violência doméstica, em que não existe qualquer obrigatoriedade de arbitramento de indemnização a favor das vítimas.

Em suma, tal como no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Junho de 2015, entendemos que no caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, não tendo a ofendida deduzido pedido de indemnização civil, o tribunal está obrigado a analisar a situação com vista a verificar se no caso “sub judice” há ou não lugar a condenação no pagamento de indemnização (in www.dgsi.pt – Proc. 94/12.6GAACB.C1).

Esse é o verdadeiro sentido da aplicação imperativa do art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal nos casos de violência doméstica, já que tal norma refere-se precisamente à possibilidade de atribuição de indemnização e não à sua obrigatoriedade.
Ora, no caso dos autos, ponderados os critérios estabelecidos no referido art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal, não se vislumbra que existam particulares exigências de protecção da ofendida que imponham que lhe seja arbitrada indemnização, pelo que a mesma não lhe será atribuída.

Apreciando:
O recorrente aponta à sentença o vício de nulidade, decorrente, na sua perspectiva, de omissão de pronúncia acerca da questão da indemnização a arbitrar em favor da ofendida, ao abrigo do art. 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por efeito de que, por interpretação incorrecta dos arts. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16.09, e 82.º-A do CPP, nada se fez constar, a esse propósito, em sede de dispositivo da mesma.

Com efeito, a oficiosidade da apreciação e do conhecimento de todas as questões que são pertinentes à decisão da causa resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de opções fundamentais de política criminal, que o julgador não pode olvidar, sendo certo que a própria letra da lei, ao usar a expressão «devesse» nesse normativo, com o significado literal de injunção, outro sentido não consente (acórdão do STJ de 07.12.1999, in CJ, ACS. STJ ano VII, tomo III, pág. 234).

Todavia, em concreto, é manifesto que o tribunal não descurou a necessidade, oficiosa, de se pronunciar quanto à indemnização em causa, por referência ao disposto no mencionado art. 21.º. n.º 2, da Lei n.º 112/2009 e apoio em jurisprudência que citou (“Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Junho de 2015”, no “Proc. 94/12.6GAACB.C1”), tendo fundamentado as razões por que entendeu que não seria de atribuir indemnização à ofendida.

Explicitou a sua interpretação, no sentido, em síntese, de que “tal norma (art. 82.º-A do CPP) refere-se precisamente à possibilidade de atribuição de indemnização e não à sua obrigatoriedade”, não obstante a previsão daquele art. 21.º, n.º 2, dessa Lei, e que “no caso dos autos, ponderados os critérios estabelecidos no referido art. 82º-A do Cód. de Proc. Penal, não se vislumbra que existam particulares exigências de protecção da ofendida que imponham que lhe seja arbitrada indemnização, pelo que a mesma não lhe será atribuída”.

Já se vê, pois, que, sem prejuízo da bondade da restante argumentação do recorrente que adiante se analisará, não se está em presença da invocada nulidade da sentença, sendo certo que a ausência de menção à indemnização no seu dispositivo é lógica consequência da fundamentação estabelecida.

Não obstante, afigura-se que a interpretação subjacente a esta fundamentação não terá sido a mais correcta, apesar do cuidado posto na explicitação das razões para o efeito, inerente, aliás, ao reconhecimento de que a posição tomada seja contrariada, como se refere na sentença, pela “esmagadora maioria da jurisprudência”.

Vejamos.

Acerca da questão em apreço, já o acórdão desta Relação de 22.09.2015, no proc. n.º 671/14.0PBFAR.E1, in www.dgsi.pt, com os aqui relator e adjunto, a abordou, nos seguintes termos:

«Nos autos, não foi deduzido pedido de indemnização civil.

Todavia, nos termos do art. 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09:

1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.

O art. 82.º-A do CPP, no seu n.º 1, prevê o arbitramento de quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham, devendo ser, nos termos do seu n.º 2, assegurado o respeito pelo contraditório.

Da conjugação de tais preceitos, decorre actualmente, não existindo pedido civil, a obrigatoriedade de fixação de indemnização em caso de condenação por crime de violência doméstica, desde que a vítima a tal se não oponha, conforme acórdãos da Relação de Coimbra de 28.05.2014, no proc. n.º 232/12.9GEACB.C1, e de 02.07.2014, no proc. n.º 245/13.3PBFIG.C1, in www.dgsi.pt: e acórdão da Relação de Guimarães de 22.04.2013, sumariado in CJ, ano XXXVIII, tomo II, pág. 313; e acórdão desta Relação de Évora de 21.04.2015, no proc. n.º 65/11.0GEALR.E1, in www.dgsi.pt».

Não se descortina fundamento que infirme tal asserção de obrigatoriedade de fixação de indemnização em caso de condenação por crime de violência doméstica, desde que a vítima a tal se não oponha, apesar dos argumentos utilizados na sentença.

Na verdade, se esse art. 82.º-A do CPP já permite o arbitramento oficioso de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham, o que é válido para qualquer tipo de crime, não se compreenderia que o legislador, com aquele art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, tivesse, ainda, previsto que há sempre lugar à aplicação do primeiro, quanto a vítimas de violência doméstica, se a sua intenção não fosse a de impor, nestes casos. essa reparação.

Tal como o Digno Procurador-Geral Adjunto sublinha no seu parecer, caso tal norma não existisse, a possibilidade de aplicação do disposto no artº 82º-A do CPP, sempre se imporia, pese embora com o poder, esse decorrente do artº 21º, nº 2, da Lei 112/2009, de a Vítima se poder opor a que lhe fosse arbitrada indemnização. O que esta norma visa em particular é, justamente, retirar do artº 82º-A a mera possibilidade de fixação da indemnização, tornando-a imperativa.

Por seu lado, surge, neste aspecto, como consentâneo com o direito a obter uma decisão de indemnização, consagrado no n.º 1 desse mesmo art. 21.º.

Ainda, note-se, da prevista excepção relativamente à oposição da vítima, mais transparece que o legislador enveredou por solução específica, que vai para além do disposto nesse art. 82.º-A.

Afigura-se, contrariamente ao fundamentado, que a letra da lei não afasta esta interpretação e, ao invés, é a que se reputa como lógica e racional, sem descurar, pois, que a violência doméstica se insere na criminalidade violenta, de acordo com a definição do art. 1.º, alínea j), do CPP, o que se justifica por atingir dimensões insuportáveis e pôr em causa bens jurídicos da maior relevância estritamente associados à essencial dignidade da pessoa humana e, por isso, também, carente de adequada protecção da vítima, a que o legislador se tem revelado cada vez mais sensível.

Conforme, também, decorre de “Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno” (Manual Pluridisciplinar), Caderno Especial do CEJ de Abril de 2016, «havendo condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, do CP, haverá também sempre lugar a condenação do mesmo arguido no pagamento de uma reparação indemnizatória à vítima, quer esta haja formulado o respetivo pedido ou não, pois sempre o tribunal terá de arbitrar oficiosamente uma reparação dos prejuízos sofridos com o crime, nos termos das disposições conjugadas dos arts 21º, da Lei nº 112/2009, de 16/09 e 82º-A, do CPP, presumindo-se iure et iure a existência de particulares exigências de proteção da vítima para tal efeito. Só assim não será se a vítima a tal expressamente se opuser».

As exigências de particular protecção da vítima estão reflectidas, designadamente, nesse art. 21.º, n.º 2, embora, como resulta da sentença, seja discutível a solução por que o legislador enveredou.

Todavia, esta não comporta violação do princípio da igualdade (art. 13.º da Constituição), uma vez que não representa senão discriminação positiva imposta pelas necessidades de protecção das vítimas desse tipo de crime, não denotando discricionariedade ou arbítrio nessa consagração.

Deste modo, apesar do tribunal ter apreciado a questão, deveria, atendendo à ausência de oposição da ofendida, ter arbitrado indemnização em favor desta, pelo que, ao recorrente, assiste razão.

Nada impede, pois, antes pelo contrário, que a indemnização seja ora fixada.

Para o efeito, dúvida não há de que estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil do arguido por factos ilícitos, por referência aos arts. 129.º do CP e 483.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

Tem-se, ainda, em conta o disposto nos arts. 562.º e 566.º do CC, sendo que, no caso, relevam os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, merecedores, pela sua gravidade, da tutela do direito, cujo montante indemnizatório será fixado por apelo à equidade, atentando no grau de culpabilidade do arguido, na situação económica deste e da lesada e outras circunstâncias pertinentes (art. 496.º do CC), entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, ponderando-se ainda os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência.

Assim, em concreto, à luz dos factos provados, o arguido denotou culpabilidade não reduzida, através de actos claramente atentatórios da dignidade da ofendida, sob diferentes vertentes (injúrias, ameaças e ofensas à integridade física), tendentes a humilhar e rebaixar a ofendida, causando-lhe grande sofrimento físico e psíquico, incluindo medo, e levando-a a sair da residência do casal, não se abstendo de os praticado na presença dos filhos.

Ainda, o arguido, já separado da ofendida, vive só e apresenta situação económica muito precária.

Analisados todos os factores disponíveis, crê-se que a atribuição de indemnização no montante de € 1.200,00 é proporcional e justa.

Em conformidade, ao arguido se impõe o seu pagamento em favor da vítima.

3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:

- conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência,

- alterando o dispositivo da sentença recorrida, condenar o arguido, para além do aí consignado, por via do disposto no art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, no pagamento da indemnização à vítima, CM, no montante de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).

Sem custas.

Processado e revisto pelo relator.

Évora, 24 de Maio de 2016

Carlos Jorge Berguete

João Gomes de Sousa