Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1473/10.9TXEVR-N.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: PERDÃO DA PENA
RECLUSO
COVID
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O perdão da pena previsto no art.º 2 n.º 2 da Lei n.º 9/2020 de 10/4 só tem lugar se, concomitantemente:
- a decisão condenatória tiver transitado em julgado antes da entrada em vigor da referida Lei;

- a qualidade de recluso em cumprimento de pena existir à data da entrada em vigor da referida Lei.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

RELATÓRIO

No âmbito do processo 1473/10.9TXEVR-J do tribunal de execução das penas de Évora (Juiz 1) o recluso AA, em 22/2/2022, formulou o seguinte requerimento:

“AA, atualmente detido no Estabelecimento Prisional de Beja, vem, muito respeitosamente, expor e requerer a V. Exa. o seguinte:

1º - O Requerente foi condenado, por Acórdão de 14/05/2020, decisão transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 39/19.2PESTB, na pena de 3 (três) anos de 6 (seis) de prisão efetiva;

2º - O Arguido foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

3º - O Requerente esteve em cumprimento de pena de prisão preventiva, considerando a data de detenção, entre 03/07/2019 e 24/04/2020, num total de 9 (nove) meses e 21 (vinte e um) dias;

4º - Posteriormente, deu entrada no Estabelecimento prisional de Beja, para cumprimento do remanescente da pena de prisão em 13/07/2021;

5º - Assim, o Requerente cumpriu já, 18 (dezoito) meses de prisão faltando cumprir 24 meses, ou seja, dois anos.

6º - A Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, no seu artigo 2º, veio estabelecer que:

1 — São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

2 — São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.

3 — O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única.

7º - O crime pelo qual a Arguida se encontra condenado integra o perdão previsto na Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril.

8º - A Lei n.º 86/202, de 15 de dezembro veio determinar a cessação de vigência do regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia COVID-19, aprovado pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril.

9º - Acontece, porém, que nessa data já o Requerente estava em efetivo cumprimento de pena, sendo certo que, foi detido por crime praticado em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril

10º - Estipula o Artigo 2º, n.º4 do Código Penal que:

“Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.“

11º - Salvo o devido respeito por opinião diversa, a Lei n.º 9/2020, de 10 de abril é um diploma de natureza penal, pelo que, é-lhe aplicado o disposto no artigo 2º, n.º4 da C.R.P.

12º - Por seu lado, estipula o artigo 29º, n.º4 da C.R.P. que:

“Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.”

13º - Considerando os normativos legais acima referidos, estipulou o artigo 2º da Lei n.º 86/2021, de 15 de dezembro que:

“A vigência do regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia COVID – 19, cessa na data da entrada em vigor da presente lei, sem prejuízo da tramitação dos processos em apreciação nessa data.”

14º - Ora, a referência à tramitação dos processos em apreciação nessa data, significa que a lei 9/2020, de 10 de abril, continua a ter que ser aplicada a todos os reclusos que pudessem continuar a beneficiar da mesma, como é o caso do Requerente.

15º - Aquando da entrada em vigor da Lei n.º9/2020, de 10 de abril o Requerente encontrava-se recluso no Estabelecimento Prisional de Beja.

Termos em que se requer a V. Exa. que se digne proferir decisão considerando perdoada o remanescente da pena de prisão em que o arguido foi condenado no âmbito do processo n.º 39/19.2PESTB, que correu termos no Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 1, determinando-se a sua imediata libertação.”

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Tal requerimento foi objecto do seguinte despacho:

“Do perdão de pena (Lei n.º 9/2020 de 10/4)

Para decidir sobre a requerida aplicação do perdão de pena previsto no art.º 2 n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10/4 cumpre ter presente os seguintes aspectos:

1 - O recluso ora requerente foi condenado no Proc. 39/19.2PESTB da Secção Criminal (Juiz 1) da Instância Central de Setúbal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade;

2 - Tal decisão transitou em julgado em 16/6/2021;

3 – Para cumprimento desta pena o requerente deu entrada no Estabelecimento Prisional no dia 13/7/2021.

4 – Na liquidação da pena foi descontado o tempo de detenção/prisão preventiva que o recluso sofrera no mesmo processo, decorrido desde 3/7/2019 a 24/4/2020.

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De acordo com o disposto no art.º 2 n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10/4 (diploma que estabelece um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19), são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

Acrescenta o n.º 7 do referido diploma legal que o perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei, e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada – o sublinhado é nosso.

Perante os termos da legislação enunciada, e sobretudo sempre tendo presente o seu escopo (por via do muito particular contexto em que foi emitida), é nosso entendimento que o perdão de pena ali previsto visa apenas, e só, os indivíduos que, à data da sua entrada em vigor, se encontrassem já recluídos, em cumprimento de pena aplicada por decisão transitada em julgado também em data anterior.

De facto, foi propósito desta lei diminuir o número de reclusos em ambiente carcerário, como forma de prevenir o contágio da doença. Medida que, no entanto, apenas visava aqueles que já reuniam as necessárias condições no momento da entrada em vigor da referida lei.

Isto é, a nosso ver, não foi propósito da Lei n.º 9/2020 de 10/4 impedir novas prisões e novos cumprimentos de pena, ainda que de remanescentes/penas até dois anos se trate.

No sentido do que se vem dizendo pronunciaram-se já os Tribunais da Relação de Évora (Ac. de 24/11/2020 e de 9/2/2021) e de Lisboa (Ac. de 9/12/2020) – acessíveis in IGFEJ – bases jurídico-documentais.

No caso dos autos temos que a decisão condenatória, em pena de prisão de 3 anos e 6 meses, transitou em julgado em data posterior à da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 de 10/4; o crime pelo qual o requerente foi condenado não se encontra excluído do perdão (cfr. n.º 6 do art.º 2 da citada Lei); mas o requerente iniciou o cumprimento da pena apenas em 13/7/2021 (sendo irrelevante, para o efeito, o tempo de prisão preventiva antes sofrido, tempo que, isso sim, releva para efeitos de posterior liquidação da pena – como veio a suceder).

Pelo exposto, e por falta de fundamento legal, indefiro o requerido, considerando não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a aplicação do perdão previsto no art.º 2 n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10/4.”

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Inconformado com tal despacho, dele recorreu o recluso AA, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1º

O presente recurso vem interposto do despacho judicial proferido pela Mm.ª Juiz a quo, do Juízo de Execução das Penas de Évora - Juiz 1, pertencente ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que decidiu não conceder ao Recorrente o perdão do remanescente de pena que lhe cabe cumprir.

A questão que se coloca é a de saber se o regime jurídico da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, exige ou não que o trânsito em julgado da decisão condenatória aplicada ao Arguido já tenha ocorrido à data da sua entrada em vigor, ou seja, a 11/04/2020.

É pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que as medidas de graça, como providência de exceção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Contudo, é de sublinhar que do exame literal do texto do nº 1, do artigo 2º, do diploma legal em análise, não resulta a solução dos problemas de interpretação, desde logo porque o elemento literal, ainda que claro quanto à palavra recluso, não delimita no tempo tal realidade.

O recurso aos demais elementos de interpretação contemplados no artigo 9º, do C.C. apresentam-se como determinantes, havendo, assim, que considerar a interpretação lógico-sistemática, assim como a situação que se verificavam anteriormente à Lei e toda a evolução histórica, bem como a história da génese do preceito e a interpretação teleológica.

Nesta conformidade, interpretando a normal legal em apreço e começando pela sua letra, é de salientar que, segundo a letra da lei, são perdoadas as penas de prisão de reclusos, significando recluso aquele que está preso ou encarcerado.

Na situação sub judice o Arguido esteve em cumprimento de pena de prisão preventiva, considerando a data de detenção, entre 03/07/2019 e 24/04/2020.

Nesta medida, ainda que sujeito nessa altura a prisão preventiva, certo é que o Arguido ingressou, em 13/07/2021, ao E.P. de Beja, desde tal data para iniciar a execução da pena de prisão, que lhe foi posteriormente aplicada, de 3 (três) anos e 6 (seis) meses.

Por seu turno, de conformidade com o espírito da lei e o pensamento legislativo, pretende-se com a Lei em apreço minimizar-se o risco de contágio da doença Covid 19, decorrente da concentração de pessoas no interior dos estabelecimentos prisionais, sendo o seu objetivo retirar daí alguns reclusos de forma a assegurar o afastamento social.

10º

Quer pelo espírito da lei, quer pela sua letra, conclui-se que o perdão parcial da pena deve ser aplicado aos reclusos, sendo estes os que cumprem pena de prisão em estabelecimentos prisionais.

11º

De igual modo, em termos de interpretação lógico-sistemática, merece especial ponderação a circunstância da Lei em apreço ter surgido inserida numa legislação abundante e diversificada, que visou responder a uma situação de emergência, na tentativa de obstar à expansão de determinada doença nos estabelecimentos prisionais durante um determinado período, no âmbito de uma pandemia.

12º

O legislador, em 29/05/2020, veio afirmar que a Lei nº 9/2020 ainda se mantinha em vigor e reiterou a ideia de que os reclusos que se encontrarem nas circunstâncias nelas previstas devem beneficiar de perdão, o que só pode querer significar que a Lei não só se aplica a quem era recluso à data da entrada em vigor da mencionada Lei nº 9/2020.

13º

Não se podendo olvidar assim que enquanto a Lei nº 9/2020 estiver em vigor, será aplicado o perdão a todos os condenados/reclusos que preencham os requisitos para o efeito nela previstos, como é o caso do Arguido.

14º

Há que atender às circunstâncias em que a Lei em apreço foi elaborada e às condições específicas do tempo que nos encontramos a viver, sem paralelo com outros momentos em que foram publicadas leis de amnistia, já que nas últimas décadas nunca a sociedade se deparou com uma situação como aquela que surgiu na sequência da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.

15º

Nesta senda, procurando evitar a disseminação da doença nos estabelecimentos prisionais, é bem claro que a quase totalidade dos governos mundiais visa apenas que os mesmos se destinem a uma criminalidade mais grave, deixando de fora reclusos condenados que tenham cometidos crimes considerados menos graves, quando estejam em causa penas de prisão mais curtas, tendo presentes critérios de manutenção de saúde pública, enquanto se mantiver a pandemia.

16º

Deste modo, ainda que o trânsito em julgado do acórdão condenatório tenha transitado em julgado a 16/06/2021, nada impede que o Arguido viesse a ingressar na vigência da Lei e reunir todos os pressupostos para beneficiar do perdão parcial da pena posteriormente ao trânsito de tal decisão condenatória.

17º

O entendimento adotado pelo Tribunal a quo no sentido de que a Lei nº 9/2020, de 10 de abril, exige que a decisão condenatória se encontre transitada no início da vigência da Lei em apreço não tem qualquer correspondência, quer com a letra da lei, quer com o seu espírito.

18º

Nesta conformidade, não tendo o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo qualquer acolhimento nos elementos de interpretação da lei, o mesmo violou de forma clara o nº 1, do artigo 2º, da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, de conformidade com a última redação que lhe foi atribuída.

19º

Em bom rigor, a condição de reclusão do Recorrente já se encontrava verificada à data da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10 de abril, concretamente, desde o momento em que o mesmo foi detido e lhe foi aplicada a medida mais gravosa de prisão preventiva.

20º

A decisão do tribunal a quo, potencia diferenças de tratamento entre pessoas situadas em posições materialmente idênticas, lesando drasticamente o princípio constitucional da igualdade, decorrente do artigo 13º, da Lei Fundamental.

21º

Bastando pensar na diferença de tratamento que ocorrerá entre um recluso cuja sentença condenatória transite no dia 10/04/2020 (ou seja, antes da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020) e que poderá beneficiar do perdão parcial da pena, confrontada com a situação de outro recluso cuja sentença condenatória transite em julgado no dia 11/04/2020, o qual não poderá beneficiar do perdão parcial da pena.

22º

Ou seja, tal entendimento poderá potenciar uma diferença de tratamento enorme entre reclusos, bastando para tal que decorra apenas um dia, ou seja, bastando apenas que o trânsito em julgado da sentença condenatória ocorra já no período de vigência da Lei nº 9/2020, para que o recluso não possa beneficiar das medidas de flexibilização nela previstas.

23º

Nesta medida, a interpretação do nº 1, do artigo 2º levada a cabo pelo Tribunal a quo, segundo a qual os arguidos que se encontrem já em reclusão, mas a respetiva sentença ou acórdão condenatórios tenham ocorrido em data posterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, não possam beneficiar do perdão de pena por não se encontrarem abrangidos pelo âmbito de aplicação daquela norma, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da igualdade, consagrado constitucionalmente no artigo 13º, da C.R.P.

24º

A delicada situação de saúde do país e o condicionalismo específico dos estabelecimentos prisionais continuarão a justificar a adoção de cautelas especiais, mantendo-se a necessidade de se observar prudência nos contactos e cautelas com a segurança de todos, desaconselhando a normal densidade de ocupação dos estabelecimentos prisionais.

25º

No mesmo sentido, não se pode descurar ainda que abona em favor do Arguido o princípio da aplicação da lei mais favorável, com consagração expressa no nº 4, do artigo 2º, do C.P.

26º

Em tal caso, tendo sucedido no tempo a Lei nº 9/2020, de 10 de abril, enquanto lei penal mais favorável, aplicável à mesma pessoa ou ao mesmo facto, é esta Lei que prevalece enquanto regime de conteúdo mais benévolo para o Arguido e a que menos restringe os seus direitos, liberdades e garantias.

27º

Destarte, uma vez preenchidos todos os requisitos legais, deve ser concedido ao Arguido o perdão parcial da pena de prisão e determinar-se a emissão de mandado da sua libertação.

28º

Em face do exposto, em virtude da interpretação adotada pelo Tribunal recorrido não ter acolhimento nos elementos que norteiam a interpretação das leis, a que alude o artigo 9º, do C.C., a douta decisão judicial viola o disposto no artigo 2º, n. 1, do supra citado, diploma legal, bem como o princípio constitucional da igualdade e o princípio do tratamento mais favorável ao arguido.

29º

Cumprindo, assim, ser substituída por outra que conceda ao Recorrente o perdão parcial da pena única em que foi condenado e se determine a emissão do respetivo mandado de libertação.

Termos em que se requer a V. Exa. que se digne proferir decisão considerando perdoado o remanescente da pena de prisão em que o arguido foi condenado no âmbito do processo nº 39/19.2PESTB, que correu termos no Juízo Central Criminal de Setúbal – Juiz 1, determinando-se a sua imediata libertação, assim, e como sempre, se fazendo, a necessária e inteira

JUSTIÇA!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1- No âmbito do processo nº 39/19.2PESTB da Instância Central Secção Criminal -JI - da Comarca de Setúbal, AA foi condenado na pena de três anos e seis meses de prisão, par acórdão transitado em julgado em 16-6-2021 ,

2 - A pena em causa encontra-se a ser cumprida em estabelecimento prisional do sistema penitenciário português desde 13-7-2021 , sendo para o caso em análise irrelevante o facto do condenado ter estado sujeito à medida de coacção de prisão preventiva entre 4-7-2019 e 24-4-2020.

3 - Dispõe o artigo 2º nº 1 da Lei n o 9/2020 de 10-4, que "são perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos".

4- Por seu turno, o nº 7 do mesmo normativo preceitua que “O perdão a que se referem os nºs s 1 e 2 é concedido a reclusos cujas decisões tenham transitado em julgado em data anterior à data da entrada em vigor da presente Lei."

5 - Ou seja, são apenas beneficiários desta medida de graça, os condenados que tinham a condição de reclusos, o mesmo é dizer que se encontravam a cumprir pena de prisão (efectiva) em meio prisional, à data da entrada em vigor do citado diploma legal.

6 - Esta é a única interpretação que a Lei consente, na medida em que as Leis de Amnistia ou de Perdão, são providências de excepção donde constam normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem possibilidade de interpretação extensiva, restritiva ou analógica.

7 - O legislador ao circunscrever a aplicação do referido perdão (de pena/remanescente de pena/remanescente de somatório de penas) aos condenados que se encontravam em situação de reclusão à data da entrada em vigor da mencionada Lei, não violou o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP na medida em que tal discriminação tem de considerar-se como razoável, racional e objectivamente fundamentada tendo em conta o manifesto propósito de diminuir a população prisional àquela data, face ao risco sério de disseminação viral e à incapacidade do seu controlo.

8 - Acresce que com a publicação da Lei nº 86/2021 de 15/2012 cessou a vigência do regime excepcional de flexibilização das penas e das medidas de graça aprovada pela Lei nº 9/2020 de 10-4.

9 - Assim o Tribunal "a quo" efectuou uma correcta e adequada aplicação do direito, ao indeferir o requerirnento de aplicação do perdão formulado pelo condenado

Nesta conforrmidade, deverão V.as Ex.as negar provimento ao recurso e confirmar o despacho recorrido, sendo assim feita justiça.”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, tendo o recorrente respondido com reiteração do anteriormente alegado na motivação de recurso, incluindo quanto à única decisão jurisprudencial que invocou em favor da sua tese.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa resolver no presente recurso é a de se saber se o recorrente pode beneficiar do perdão da pena previsto na Lei 9/2020 de 10/4.

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Importa ter em conta o seguinte:

- o recorrente esteve em prisão preventiva de 3/7/2019 a 24/4/2020;

- a referida Lei 9/2020 de 10/4 entrou em vigor em 11/4/2020, ou seja, quando o recorrente se encontrava ainda em prisão preventiva;

- por decisão transitada em julgado em 16/6/2021 o recorrente foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade;

- o recorrente deu entrada no E.P. para cumprimento da referida pena em 13/7/2021.

Em primeiro lugar há que esclarecer que quer no despacho recorrido, quer na motivação de recurso, quer na resposta ao recurso, alude-se sempre ao perdão previsto no nº 1 do artº 2º da L. 9/2020 de 10/4.

Embora para o caso seja indiferente (por força do nº 7 do referido artº 2º, como adiante se verá), o que é certo é que o que se trata não é da eventual aplicação do perdão previsto no nº 1 do referido artº 2º, mas sim do perdão previsto no nº 2 desse mesmo artº 2º.

É que a pena em que o recorrente foi condenado é superior a 2 anos, pelo que não tem aplicação o referido nº 1. Para penas superiores a 2 anos o que importa é o nº 2 que prevê o perdão do remanescente, nas condições aí previstas.

Feito este esclarecimento, temos que à data da entrada em vigor da referida Lei (11/4/2020) o recorrente encontrava-se em prisão preventiva, a qual cessou 13 dias depois dessa entrada em vigor.

Ao contrário do que por vezes parece resultar da motivação de recurso, designadamente com a inclusão nos “reclusos” também dos presos preventivamente, a aplicação do perdão tem que ver apenas com condenados (não importa agora saber se com decisão transitada antes ou também depois da entrada em vigor da lei).

É que para os casos de prisão preventiva, regia o artº 7º da referida Lei nos seguintes termos:

Artigo 7.º

Prisão preventiva e reclusos especialmente vulneráveis

1 - O juiz deve proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva independentemente do decurso dos três meses referidos no artigo 213.º do Código de Processo Penal, sobretudo quando os arguidos estiverem em alguma das situações descritas no n.º 1 do artigo 3.º, de modo a reponderar a necessidade da medida, avaliando, nomeadamente, a efetiva subsistência dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º daquele Código.

2 - Nos termos do artigo 193.º do Código de Processo Penal, a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem manifestamente inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.

Isto parece óbvio: para haver perdão da pena, tem que haver pena, ou seja, tem que haver condenação. É por isso que a expressão “pena de prisão preventiva” utilizada na conclusão 7ª da motivação de recurso, não faz qualquer sentido, sendo, com o devido respeito, completamente destituída de rigor técnico-jurídico.

Posto isto, parecia que tudo estava em saber se o perdão previsto no nº 2 do referido artº 2º (e se fosse o do nº 1 era a mesma coisa) é de aplicar apenas a quem está recluso, em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei, ou se pode ser aplicado também a quem assume essa condição (recluso para cumprimento de pena) depois dessa entrada em vigor.

E escreveu-se “parecia” porque há uma questão prévia: nos termos do nº 7 da referida Lei há uma condição (para além de outras) que necessariamente tem que estar preenchida - a decisão condenatória tem que ter transitado antes da entrada em vigor da Lei.

Ora, no caso dos autos isso não aconteceu, uma vez que a decisão condenatória só transitou em 16/6/2021, ou seja, mais de um ano depois da entrada em vigor da Lei.

No despacho recorrido alude-se a este nº 7 do artº 2º, mas na motivação de recurso não há uma única referência a ele.

Discute-se muito na motivação de recurso quem é que se deve entender como sendo recluso, tal como a data em que se assume essa qualidade, mas tudo sem referência ao referido nº 7 do artº 2º que prevê o prévio trânsito em julgado da decisão condenatória.

São duas questões diferentes:

- saber se quem assume a qualidade de recluso em cumprimento de pena depois da entrada em vigor da Lei também deve beneficiar do perdão;

- saber se a decisão condenatória transitar depois da entrada em vigor da Lei, caso em que necessariamente a qualidade de recluso para cumprimento de pena só é assumida depois da entrada em vigor da Lei, ainda assim o recluso pode beneficiar do perdão.

Por força do nº 7 do artº 2º referido, entendemos que necessariamente a decisão condenatória tem que ter transitado antes da entrada em vigor da Lei, o que não acontece no caso dos autos.

Logo por aqui está a aplicação do perdão excluída no caso concreto.

Mas mesmo que assim não fosse, entendemos também que a qualidade de recluso em cumprimento de pena tem que se verificar à data da entrada em vigor da Lei, com de forma quase unânime tem sido entendido pela jurisprudência. Tanto assim é que que o recorrente se limita a invocar um acórdão da relação de Coimbra.

No sentido aqui defendido:

- ac. da rel. de Évora de 22/9/2020 (relatado pelo Exmº Desembargador Gomes de Sousa)

1 - Como é claro e resulta expresso no nº 7, do artigo 2º da Lei nº 9/2020, o perdão aí referido é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da lei e sob condição resolutiva, o que não é o caso destes autos aos quais a dita lei não é aplicável directamente.

- ac. da rel. de Évora de 8/6/2021 (relatado pela Exmª Desembargadora Fátima Bernardes):

O perdão de penas, previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado, em data anterior à da entrada em vigor da mesma Lei.

Não podem beneficiar desse perdão os condenados que, embora a decisão condenatória, à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, já tenha transitado em julgado, não tenham, a essa data, ingressado no estabelecimento prisional, ou seja, que não tenham a condição de reclusos.

- ac. da rel. de Évora de 24/11/2020 (relatado pelo Exmº Desembargador Moreira das Neves)

I. O perdão de penas de prisão concedido pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, é aplicável apenas a condenados reclusos, que na data da sua entrada em vigor reunissem as condições nela previstas, quer estivessem a cumprir prisão aplicada a título principal ou da sequência de revogação de pena de substituição.

- ac. da rel. de Évora de 9/2/2021 (relatado pelo Exmº Desembargador Alberto Borges)

O perdão condicional de penas previsto no art.º 2 n.º 7 da Lei 9/2020, de 10/04 tem (teve) como destinatários apenas condenados em cumprimento de pena (reclusos) na data da sua entrada em vigor: quer estivessem a cumprir pena de prisão aplicada a título principal (n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 2), quer o estivessem na sequência de revogação de pena de substituição (n.ºs 3 e 5 do artigo 2), pois só assim se compreende que, por um lado, a lei fale sempre em reclusos (e não em condenados), por outro, que atribua competência aos tribunais de execução de penas para “emitir os respetivos mandados com caráter urgente”, emissão (urgente) de mandados que só faz sentido se respeitar a reclusos que se encontrem em cumprimento de pena à data da entrada em vigor daquela lei, sendo certo que, por um lado, não pode ser considerado pelo intérprete “o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, por outro, que “na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (art.º 9 n.ºs 2 e 3 do Código Civil).

- ac. da rel. de Lisboa de 22/4/2021 (relatado pelo Exmº Desembargador Fernando Estrela):

(…) Logo e ao contrário do estabelecido na Lei 29/99, de 12/5, o perdão (bem como o regime especial de indulto, o regime extraordinário de licença de saída administrativa e a antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional), só tem como destinatários reclusos condenados, por decisão transitada em julgado anterior à sua entrada em vigor;

- ac. da rel. de Coimbra de 7/4/2021 (relatado pelo Exmº Desembargador João Novais):

I – O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando, consequentemente, excluídos da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado em estabelecimento prisional.

II – Esta interpretação normativa não viola o princípio constitucional da igualdade decorrente do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.

- ac. da Rel. de Coimbra de 30/9/2020 (relatado pela Exmª Desembargadora Maria José Nogueira e curiosamente com a mesma data do acórdão invocado pelo recorrente, também da relação de Coimbra)

O perdão de penas consagrado no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, só é concedido a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado em data anterior à da entrada em vigor daquele diploma legal, ficando excluídos, consequentemente, da medida de graça referida os condenados que não tenham ingressado fisicamente em estabelecimento prisional.

Com efeito, o que se pretendeu foi “esvaziar” rapidamente as prisões, não sendo tal objectivo contrariado pela “prorrogação” introduzida pela alteração ao artº 10º da Lei 9/2020 de 10/4 pela Lei 16/2020 de 29/5 (apenas 1 mês e 19 dias depois da entrada em vigor daquela).

Esta última Lei 16/2020 de 29/5 não “revogou” qualquer preceito legal contido na L. 9/2020 de 10/4, designadamente o seu claríssimo nº 7 do artº 2º no que diz respeito à necessidade de prévio (por referência à entrada em vigor da Lei) trânsito em julgado da decisão condenatória.

O que já pode não ser tão claro (o que para o caso dos autos é indiferente uma vez que, repete-se, não há prévio trânsito em julgado da decisão condenatória) é qual o momento relevante da assunpção da qualidade de recluso (antes ou também depois da entrada em vigor da Lei) quando a sentença condenatória transitou antes da entrada em vigor da Lei.

No caso não se põe a questão, mas, repetindo também, é nosso entendimento que essa qualidade tem que ocorrer na data da entrada em vigor da Lei.

E para se analisar isso, o que manifestamente não se pode considerar é que a qualidade de preso preventivo na data da entrada em vigor da Lei (como aqui ocorreu) é relevante sob pena de, aqui sim, se “transformar” a prisão preventiva em cumprimento (antecipado) de uma pena.

Como nos parece evidente, não ocorre qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da C.R.P., uma vez que é tratado de forma igual aquilo que é igual: beneficiam do perdão todos os reclusos que estejam em cumprimento de pena à data da entrada em vigor da Lei e se estão em cumprimento de pena é porque a decisão condenatória necessariamente já tinha transitado em julgado antes dessa entrada em vigor.

Entendeu-se ser relevante a data do trânsito em julgado porque alguma data haveria que ter de servir de “fronteira” entre o que é abrangido pelo perdão e o que não é. E pretendendo-se libertar quem já estava na prisão, não podia deixar de ser desta forma.

Não pode, pois, o recorrente beneficiar de qualquer perdão.

Mas mesmo que assim não fosse, nunca o recorrente poderia beneficiar do perdão, pelo menos na data em que formulou o seu requerimento, na data em que foi proferido o despacho que o apreciou e na data de hoje.

Repete-se: o recorrente foi condenado numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão, iniciou o cumprimento da pena em 13/7/2021 e tinha cumprido anteriormente 9 meses e 21 dias de prisão preventiva.

Significa isto que à data da formulação do seu requerimento (22/2/2022) e à data do despacho que o apreciou (15/3/2022), o recorrente ainda não cumpriu metade da pena, pois que, conforme liquidação feita nos autos, tal meio da pena só ocorre em 22/6/2022 (aliás, no artº 5º do seu requerimento o recorrente alega que já cumpriu 18 meses e que faltam cumprir 24 meses, donde resulta que não cumpriu metade da pena).

Trata-se de questão indiferente face à anterior posição assumida e esta referência serve apenas para concluir que mesmo na tese do recorrente, não poderia ele (ainda) beneficiar do perdão.

É evidente que na sua tese, poderia esperar pelo preenchimento do requisito temporal referido para beneficiar do perdão, mas, e por aqui também se vê que essa sua tese não tem qualquer razão de ser, como poderia beneficiar se, entretanto, a L. 86/2021 de 15/12, determinou a revogação da L. 9/2020 de 10/4?

Mais uma vez com o devido respeito pelo esforço argumentativo do recorrente, entende-se que não tem cabimento a aplicação do artº 2º, nº 4, do Cód. Penal, pois que se tratou de uma lei especial para resolver uma situação inédita e nada tem que ver com disposições penais, tal como se prevê no indicado preceito.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Atento o decaimento, deverá o recorrente suportar as custas com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

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Évora, 21 de Junho de 2022

Nuno Garcia

Edgar Valente

Gilberto da Cunha