Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1627/20.0PBSTB.E1
Relator: LAURA GOULART MAURÍCIO
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
MOTIVO FÚTIL
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. No homicídio qualificado está em causa uma diferença essencial de grau, devendo o juiz ponderar o contexto da ação e toda a estrutura valorativa envolvente, aferindo a existência de circunstância susceptível de preencher o grupo valorativo dos homicídios especialmente perversos ou censuráveis, previsto no art.º 132º CP.
II. A agravação não opera automaticamente, antes exige a verificação de factos contextualmente reveladores de uma censura superlativa.
III. Pese embora a inexistência de razão válida que autorize a atuação do agente (situação que ocorrerá na quase totalidade dos crimes de homicídio consumado ou tentado), não se nos parece demonstrado ter o arguido atuado única ou aprioristicamente movido pelo ensejo de “castigar” o ofendido face à postura pelo mesmo assumido em plano de negociação contratual de valor económico diminuto, isto na medida em que se deixa demonstrado ter ocorrido, no plano inicial de interação entre ambos, mera atuação/diálogo verbal, inicialmente calmo e progressivamente exaltado (assim o refere o ofendido), gerando-se a ação física do arguido apenas em plano sequencial a disputa passada a assumir em domínio físico, no qual tem também atuação relevante a vítima e em seguimento do desferimento de uma cabeçada por este no arguido (salientando-se mesmo uma primeira ação mais relevante e intensa por banda daquele).
IV. Com efeito, não se vê que a matéria de facto provada, numa ponderação contextual e, avaliando-se o ato e motivações do agente, na sua globalidade, deva ser qualificada pela circunstância agravante qualificativa (motivo fútil) referida, uma vez que, nessa matéria de facto provada, nada de determinante a esse título se definiu.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de Setúbal (J2) no âmbito do Processo 1627/20.0PBSTB foi o arguido AA submetido a julgamento em Processo Comum com intervenção de Tribunal Coletivo.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, por Acórdão de 17 de março de 2022, o Tribunal decidiu:
a) CONDENAR o arguido AA como autor material, na forma tentada, de 1 (um) crime de homicídio, p. e p. pelos artigos 22º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23º e 131º do Código Penal (cedendo a qualificativa a que alude os artigos 132º, n.º 2, alínea e), do Código Penal), na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
b) Suspender a execução da pena indicada em a) pelo período da sua duração (5 anos), subordinando-se a suspensão a regime de prova, a delinear e acompanhar pela DGRSP, com vista a ver trabalhadas as temáticas relativas à incapacidade de lidar com a frustração, inerente impulsividade, ou na criação de empatia face posição do próximo, se necessário for com sujeição do arguido a competente acompanhamento psicológico;
c) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de ressarcimento de despesas hospitalares formulado por “Centro Hospitalar de Setúbal, EPE” e, consequentemente, condenar o arguido/demandado a pagar àquela unidade hospitalar a importância de €1.976,50 (mil novecentos e setenta e seis euros e cinquenta cêntimos), a acrescer de juros moratórios à taxa legal desde citação/notificação do pedido até efetivo e integral pagamento.
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Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
a) Para se determinar se a conduta do arguido é ou não especialmente censurável à luz do Artº 132º do Código Penal e se foi ou não motivada por um motivo fútil, tem que ser considerada desde o início de acordo com os factos que foram considerados provados, não se podendo levar em conta os factos praticados apenas a partir de um determinado momento;
b) Assim, a conduta do arguido teve início no momento em que saiu de casa, depois de ter enviado à vítima mensagens intimidatórias e com o intuito de se encontrar esta a fim de resolver o litígio em torno do pagamento de €12, levando consigo uma faca;
c) Quem deu início à contenda física não foi a vítima, que apenas desferiu uma cabeçada ao arguido depois de ter sido por este empurrada e na sequência da conduta deste que foi sempre agressiva e destinada a forçá-lo a pagar os €12;
d) As facadas desferidas pelo arguido não foram uma resposta à cabeçada que o atingiu, porque não foram desferidas imediatamente após esse acto;
e) Considerada na sua globalidade, a conduta do arguido reveste-se de especial censura porque teve por base o diferendo quanto ao pagamento de €12 e como objectivo obter esse pagamento, persistindo no seu propósito de tirar a vida á vítima quando esta já se encontrava a fugir e de costas para si;
f) A conduta do arguido é a sua reacção à recusa da vítima em pagar a quantia de €12, facto que o enfureceu e que é sem dúvida uma conduta especialmente censurável, revestida de um desvalor especial que a integra na previsão do Artº 132º, nºs 1 e 2, alínea e) do Código Penal;
g) A alteração da qualificação jurídica propugnada pelo Ministério Público implica a alteração da moldura penal abstracta pelo que, considerando a ponderação feita pelo acórdão recorrido dos elementos relevantes para a fixação da medida concreta da pena, esta não poderá ser inferior a 6 anos de prisão o que, nos termos do Artº 50, nº 1 do Código Penal impossibilita a suspensão da respectiva execução;
h) Caso se mantenha a qualificação jurídica efectuada no acórdão recorrido, não há lugar à aplicação do citado Artº 50º, nº 1, uma vez que, obedecendo aos critérios aí determinados, não é possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – constantes do Artº 40º, nº 1 do Código Penal – através da simples censura dos factos e da ameaça de cumprimento de prisão;
i) A ausência de antecedentes criminais, enquanto preenchimento da conduta do arguido anterior aos factos, por si só não é relevante porque se trata do mínimo exigível a qualquer cidadão, especialmente no que respeita a crimes de homicídio;
j) O comportamento do arguido posterior aos factos não permite extrair tal conclusão, já que o mesmo não se assumiu voluntariamente como o respectivo autor, foi privado da liberdade pouco mais de três meses depois da sua prática e não os confessou integralmente e sem reservas, negando a intenção de matar e atribuindo a responsabilidade da sua conduta à própria vítima;
k) A personalidade do arguido, cuja concretização consta nos factos provados com os números, 52) a 55) é um factor que faz perigar os bens jurídicos e que não permite concluir que a simples censura do facto e ameaça de cumprimento de pena de prisão lhes confere protecção suficiente e adequada ou que contribuirá para a reintegração social do arguido;
l) Os factos provados nos números 42) a 49) não permitem concluir que o arguido se encontre pessoal, social e profissionalmente inserido;
m) Não sendo possível afirmar que a ameaça do cumprimento da pena de prisão permite realizar de forma adequada as finalidades da punição, não pode ser aplicado o Artº 50º, nº 1 do Código Penal e a pena de prisão não pode ver a sua execução suspensa;
n) Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos Artºs Artº 132º, nºs 1 e 2, alínea e), 22º, nºs 1 e 2, alínea b) e 23º do Código Penal numa pena não inferior a 6 anos de prisão, ou, mantendo-se a qualificação jurídica feita pelo acórdão recorrido, o revogue na parte em que determina a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão, determinando o seu cumprimento efectivo.
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O arguido respondeu ao recurso interposto pugnando pela respetiva improcedência e concluindo do seguinte modo:
a) Considera o Ministério Público a alteração da qualificação jurídica da conduta do arguido, qualificando esta como um crime de homicídio qualificado na forma tentada,
b) Isto porque, na sua interpretação, o arguido saiu de casa com o intuito de matar a vítima.
c) O que não faz qualquer sentido. Nem sequer a tentativa de justificar a sua interpretação.
d) Ora, justifica o Ministério Público, alegando que no facto de o arguido fazer acompanhar de si uma navalha reside a intenção premeditada de tirar a vida à vítima. O que não logra qualquer sentido, se não vejamos.
e) Arguido e vítima encontraram-se a pedido da vítima, em horário e local escolhido por esta, local este que se trata de um jardim público.
f) O arguido, e tal como mencionado no Acórdão recorrido, declarou que a dita faca servia para auxiliar no seu trabalho, e por isso estava sempre na sua posse.
g) Ora, a alegada intenção de matar a vítima com que o arguido supostamente saíra de casa, não logra qualquer sentido uma vez que ambos se encontraram para conversar pessoalmente sobre o desacordo em que se encontravam relativamente ao negócio que haviam celebrado.
h) Também não faz qualquer sentido o dito nexo causal entre o facto de o arguido sair de casa com a navalha no bolso e o facto de ter proferido golpes na vítima, uma vez que terá sido a vítima a agredir primordialmente o arguido.
i) Neste sentido, e na sequência das conversações que foram escalonando de tom médio para agressivo de ambas as partes como terá declarado a vítima, esta última terá proferido uma cabeçada ao arguido.
j) Ora, se o arguido efetivamente tivesse como sua pretensão tirar a vida à vítima, que sentido faria ter-se encontrado com esta em local público, a meio do dia, em período de férias escolares (o que só por si se considera maior número de transeuntes no parque onde ocorreram os factos), e levando consigo uma faca que é seu instrumento de trabalho e que não possuí mais de 5cm de lâmina??? Fará algum sentido???
k) Então se queria de facto matar a vítima, se já transportava consigo essa intenção, porque não o fez de imediato??? Porque iria discutir com esta sobre o dinheiro que esta teria de lhe pagar, esperar ser agredido, se a sua intenção era de facto tirar-lhe a vida??
l) Até porque se tivermos em consideração as interpretações do Ministério Público, a conduta do arguido é decorrente da sua vontade de fazer cobrar o montante de 12€ à vítima pelas capas que lhe teria vendido.
m) O que não tem sequer cabimento!! O arguido respondeu a uma agressão!!
n) Tendo, inclusive, permanecido no local após as agressões.
o) O que não demonstra, em momento algum, situação de especial censurabilidade ou perversidade, capaz de qualificar o tipo de crime praticado pelo arguido.
p) Quanto à suspensão da execução da pena de prisão efetiva, pugna o Ministério Público pelo cumprimento efetivo da medida da pena aplicada ao arguido pelo Tribunal “a quo”.
q) O que o faz nitidamente ignorando e irrelevando o comportamento do arguido anterior ao crime, a sua situação sociofamiliar e até mesmo o seu comportamento após a prática do crime.
r) O arguido não só confessou integralmente a conduta praticada, como se mostrou veementemente arrependido.
s) Condenou o Tribunal “a quo” o arguido como autor material na forma tentada de um crime de homicídio simples na forma tentada (artigos 22.º, n.º1 e 2º, alínea b), 23.º, 131.º e 132.º, n.º2, alínea e) do Código Penal) na pena de 5 anos de prisão, sujeito à suspensão do cumprimento da pena efetiva
com regime de prova por forma a ser acompanhado pela DGRSP com vista a trabalhar temáticas inerentes à personalidade do arguido.
t) Ora, olvida-se o Ministério Público de considerar a idade do arguido, a conjuntura dos acontecimentos que antecederam a prática do crime, e até mesmo as circunstâncias que despoletaram a conduta do arguido – o facto de este ter sido agredido pela vítima.
u) Olvida-se também de que o cumprimento da pena efetiva teria por fim acautelar o bem jurídico em causa, e para tal, considera o Ministério Público que é o arguido uma ameaça ao mesmo.
v) Ora, se tivermos em consideração a temporalidade que separa a prática do crime e a aplicação da medida de coação OPHVE são mais de 3 meses,
w) Tempo este em que não se notícia qualquer conduta criminosa por parte do arguido, como seria de esperar tendo em conta o seu Registo Criminal.
x) Também é de referir que o arguido cumpriu escrupulosamente a medida de coação aplicada. O que tendo em conta a interpretação do Ministério Público, seria o bastante para provocar frustração no arguido, logo, praticaria um novo crime.
y) Estamos perante um facto isolado e a pena aplicada pelo Tribunal “a quo” mostra-se o bastante para proteger os bens jurídicos em causa, bem como pautar pela ressocialização do indivíduo, sendo suficiente para acautelar as finalidades da punição.
z) Pelo exposto, não se compreende a pretensão da alteração jurídica do facto típico praticado pelo arguido, como não se entende como pugna o Ministério Público pelo cumprimento efetivo da pena de 5 anos.
aa) Assim, os objetivos da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão efetiva subordinada ao regime de prova com vista a ver trabalhadas as temáticas relativas à incapacidade de lidar com a frustração através da sujeição a acompanhamento psicológico especializado, parece-nos o bastante para garantir a paz e a ordem pública e a garantia de proteção dos bens jurídicos.
Motivo pela qual entendemos que a decisão do Acórdão recorrido deverá ser mantida nos exatos termos em que foi decidida, não devendo o recurso apresentado pelo Ministério Público ter provimento.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art. 417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer emitido pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice as questões suscitadas pelo recorrente são:
- qualificação jurídica dos factos;
- medida da pena;
- não suspensão da execução da pena.
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Da decisão da matéria de facto e motivação (transcrição):
“III. DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Factos Provados:
Do julgamento da causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
Resultantes da acusação pública:
1) Em data não concretamente apurada e através de troca de mensagens, mas poucos dias antes de dia 24 de dezembro de 2020, o arguido acordou com BB a venda de capas de telemóvel.
2) Na sequência dessas mensagens, antes da referida data, BB dirigiu-se a casa do arguido e trouxe três capas de telemóvel, que adquiriu pelo valor de €12,00 (doze euros).
3) O arguido combinou com BB que o pagamento seria feito posteriormente.
4) Porém, e porque BB alegava que duas das capas se encontravam danificadas, desentenderam-se a propósito do pagamento.
5) O arguido trocou então várias mensagens com BB, em que lhe dizia que as capas se encontravam em bom estado quando lhas entregou e este mantinha a sua posição.
6) Durante essa troca de mensagens, no dia 24 de dezembro de 2020, o arguido enviou a BB textos com o seguinte teor: “vou-te fazer gastar mais que 12 Euros”, “se não dares o meu kumbu vás pagar de outro jeito” e “Aviso dado”.
7) O arguido remeteu ainda uma mensagem em que dizia “Não vou falar muita coisa, ou vc dá os 12 Euros” seguida de uma outra que apagou em seguida.
8) Em momento não concretamente apurado, mas cerca das 15h do dia 24 de dezembro, e depois da troca de mensagens em cima mencionada, o arguido e BB discutiram novamente a propósito do pagamento das capas, desta feita através de uma chamada de voz.
9) No decurso dessa discussão, BB disse ao arguido que lhe devolveria as capas e que viesse ao seu encontro no Parque ... em ....
10) No dia 24 de dezembro de 2020, cerca das 15h, BB encontrava-se no Parque ... em ..., acompanhado por CC, DD e EE.
11) O arguido, depois da referida discussão através do telefone, dirigiu-se ao encontro de BB, acompanhado por um irmão e desconhecendo que aquele não estava sozinho.
12) Encontrando-se todos no Parque ... em ..., o arguido e BB desentenderam-se mais uma vez a propósito do pagamento do valor em questão.
13) A dado momento, e face à postura assumida pelo ofendido BB (contrária ao pagamento integral do preço antes acordado – explicitado em 2), o arguido disse-lhe que pagaria mais do que as capas.
14) A dada altura o AA, colocou as duas mãos nos ombros de BB e empurrando-o.
15) Perante tal ação, BB desferiu-lhe uma cabeçada que o atingiu na cara causando-lhe um ferimento num lábio.
16) Após, o arguido e BB, encontrando-se de frente um para o outro, agarraram-se mutuamente pelas camisolas e assim permaneceram durante alguns momentos.
17) Subitamente, o arguido empunhou uma faca com a qual desferiu um golpe que atingiu BB nas costas.
18) Após, e já depois de ter sido atingido pelo primeiro golpe, BB soltou-se, tendo o arguido persistido no propósito de o golpear com a faca, desferindo dois golpes que o atingiram no antebraço esquerdo.
19) Perante a conduta do arguido, BB reagiu voltando as costas e começando a correr, assim se pondo em fuga.
20) O arguido foi em sua perseguição empunhando a faca e gritando “vou-te matar”.
21) Quando conseguiu alcançar BB, o arguido desferiu-lhe mais um golpe que o atingiu, na base do pescoço.
22) O arguido apenas cessou as agressões por ter sido agarrado pelo irmão, e por este o ter persuadido a fugir, o que o mesmo fez.
23) Em consequência da conduta do arguido BB sofreu uma ferida penetrante na parede posterior do hemitorax direito que provocou hemopneumotorax à direita, uma ferida perfurante na base do pescoço e duas feridas no antebraço esquerdo.
24) Na sequência do hemopneumotorax sofrido pela vítima, foi o mesmo drenado com saída de 1100cm3 de sangue do pulmão direito.
25) No dia 25 de maio de 2021, BB apresentava uma cicatriz com 1cm ao nível da C2, uma cicatriz infra-axilar direita com 3cm a uma distância de 15cm da axila, uma cicatriz abaixo da axila direita com 2cm e uma cicatriz com 3cm no hemitorax direito posterior;
26) A vítima apresentava ainda uma cicatriz no terço médio da face externa do antebraço esquerdo, oblíqua, linear e medindo 3cm.
27) As referidas lesões causaram perigo para a vida da vítima e eram aptas a causar-lhe a morte o que só não aconteceu em virtude da atempada intervenção médica.
28) Ao atuar do modo descrito quis o arguido tirar a vida a BB, o que só não fez, em virtude da intervenção de terceiros e da atempada intervenção médica.
29) Sabia o arguido que a sua conduta é proibida por lei e, ainda assim, atuou do modo descrito.
Do pedido de ressarcimento de despesas hospitalares:
30) O “Centro Hospitalar de Setúbal, EPE” prestou cuidados de saúde e assistência médica ao ofendido, debelativos das lesões que o mesmo evidenciava, causadas por ação do arguido;
31) A prestação de tais cuidados e assistência médicas importou para a aqui demandante o valor global de €1.976,50 (mil novecentos e setenta e seis euros e cinquenta cêntimos);
32) Valor esse que ainda não foi devidamente pago àquela instituição;
Do enquadramento vivencial e aspetos de personalidade do arguido:
33) AA é o mais velho de uma fratria de dois irmãos germanos, tendo ainda, onze irmãos mais velhos nascidos no âmbito de relacionamentos anteriores dos progenitores.
34) O seu processo de desenvolvimento decorreu em ..., junto da sua família de origem, detentora de uma situação económica favorável, decorrentes da atividade laboral dos pais (o pai piloto da T... e a mãe ...).
35) Na história familiar destaca-se a doença do progenitor, quando o arguido tinha vinte e dois anos de idade, episódio que determinou a vinda dos progenitores para Portugal para obterem melhor assistência médica, ficando o arguido e os irmãos no país de origem.
36) O crescimento do arguido decorreu num clima familiar caracterizado pelo ajustamento às normas sociais, e pela existência de sentimentos de coesão e entreajuda entre os membros da família.
37) No decurso da sua trajetória no país de origem, o arguido manteve-se afastado de grupo de pares associados a práticas criminais, não mantendo contactos com o sistema da justiça.
38) O percurso escolar de AA decorreu em ..., onde concluiu aos 21 anos de idade a Licenciatura em ..., no Instituto Superior Politécnico ....
39) Principiou então procura de trabalho dentro da referida área, porém, em virtude do sector ... se apresentar com pouco impacto no fornecimento de emprego, passou a lecionar em colégios particulares, com contratos de trabalho.
40) Em Portugal, a progenitora do arguido passou a desempenhar exclusivamente a função de cuidadora do cônjuge, beneficiando de apoio económico da embaixada de ....
41) Na sequência da emissão de alta médica administrativa compulsiva, o governo ... declinou a responsabilidade de suportar as despesas da estadia do casal em Portugal, situação que gerou elevada conturbação familiar a nível económico.
42) Em consequência das fracas condições económicas dos progenitores, aos 24 anos, AA veio para Portugal (em período anterior um dos irmãos já tinha se agregado aos progenitores), com o intuito de os apoiar economicamente e de adquirir melhores condições de trabalho.
43) Em Portugal, o arguido integrou o agregado familiar de origem, residente num bairro socialmente problemático em ... e passou a trabalhar genericamente na área da ... sem vinculo contratual, em virtude de não possuir autorização de residência em Portugal.
44) O arguido diligenciou pelo agendamento de atendimento junto do SEF para a regularização da sua permanência em Portugal, contudo, este foi sucessivamente cancelado atendendo à situação pandémica do COVID 19.
45) Desde dezembro de 2020, e até à data dos factos que originaram o presente processo, passou a desempenhar funções de ... para a empresa de ... A..., assegurando o ... situadas na localidade da ....
46) Segundo a progenitora, AA veio a estabelecer relações de amizade com alguns jovens da sua área residencial, conotados com comportamentos socialmente desviantes.
47) No contexto familiar, foi revelando uma atitude de oposição às orientações e conselhos da progenitora, não conseguindo esta fazer valer a sua autoridade nem desenvolver estratégias de controlo que revertessem a situação.
48) Foram ainda reportados incidentes de vandalização da habitação familiar, alegadamente protagonizados por jovens residentes nas proximidades, na sequência de desentendimentos com o arguido, situação que deu origem a participação junto dos órgãos de polícia criminal em data anterior aos factos que originaram o presente processo judicial.
49) No plano afetivo, AA está noivo de uma jovem residente em ..., com a qual pretende vir a contrair matrimónio.
50) À data dos factos em julgamento, AA residia com os progenitores, o irmão mais novo e um sobrinho de 13 anos de idade, num bairro de ... caracterizado por diversas problemáticas sociais.
51) Este núcleo familiar detinha/detém dificuldades financeiras, decorrentes da inatividade profissional dos progenitores.
52) Em termos das suas características/funcionamento, o arguido revela dificuldades de resistência à frustração, de gestão/controlo das suas emoções e de resolução de problemas de natureza conflitual, atuando de forma impulsiva/reativa nas situações em que se sente provocado e/ou perceciona que os seus direitos/necessidades foram prejudicados, sem antecipar as consequências dos seus atos
53) Ainda que assuma um funcionamento pessoal pouco assertivo em situações de tensão emocional, o arguido mostra-se ambivalente quanto aos factos que deram origem ao presente processo, ora atribuindo a responsabilidade a terceiros, assumindo-se como vítima das circunstâncias, ora mostrando arrependimento pela sua conduta.
54) Reconhece a censurabilidade social dirigida ao tipo de crime em causa, mas enquadra a sua ação em lógica reativa.
55) Esta apreciação/análise pessoal contém uma autoavaliação muito superficial da responsabilidade do próprio e não incluiu qualquer referência relativa ao papel/direitos da vítima, evidenciando o arguido uma tendência para a vitimização própria.
56) AA ficou sujeito, em 30 de abril de 2021, à medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (OPHVE).
57) O arguido está confinado à habitação 24 horas diárias, não tendo sido autorizado a trabalhar, situação que condicionou a condição financeira familiar.
58) Os rendimentos mensais disponíveis são provenientes da mínima reforma de invalidez do progenitor, do Rendimento Social de Inserção (RSI) e de algum apoio da família alargada residente em ..., sendo necessário recorrer a apoio alimentar diário fornecido pela Paróquia ....
59) Durante a execução da OPHVE, o arguido tem manifestado um comportamento cumpridor e de respeito pelas condições e regras da medida, bem como uma atitude cordial com os técnicos desta equipa.
60) Em meio familiar, destaca-se a evidenciação, pelo arguido, de um quadro de ansiedade e alteração comportamental, aparentando na atualidade um estado depressivo.
61) Caso seja condenado numa pena comunitária, pretende dar continuidade ao seu trabalho, contrair matrimónio com a sua noiva e manter-se a residir em Portugal, de forma a apoiar os progenitores.
Do passado criminal do arguido:
62) O arguido não apresenta passado criminal.
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Factos não provados:
Não resultou demonstrada a seguinte factualidade:
Resultante da acusação pública:
A) Que o arguido tivesse verbalizado a BB, no contexto explicitado em 13), que já não queria o dinheiro (importância de €12,00 acordada para a venda de capas de telemóveis).
B) Que, no circunstancialismo mencionado em 14), o arguido houvesse encostado o seu corpo ao corpo de BB.
C) Que o arguido houvesse sido motivado, no comportamento por si assumido, por despeito e em virtude do desentendimento ocorrido entre si e a vítima em torno do pagamento da quantia de €12,00 (doze euros).
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Desconsiderou-se da seleção factual supra a alusão a qualquer estado emotivo dos envolvidos (referência a postura ou conduta agressivas do arguido), designadamente firmada nos pontos 13º e 15º da acusação pública, por encerrar a mesma a formulação de juízo opinativo/conclusivo.
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IV. MOTIVAÇÃO:
O Tribunal fundou a sua convicção na prova carreada para os autos, destacando:
- No plano documental:
- autos de notícia (e aditamento) de fls. 9 a 16;
- mapeamento geográfico de fls. 20 e 21;
- fotografias (de troca de mensagens Whatsapp) de fls. 29 a 33;
- Documentação clínica/hospitalar de fls. 25, 38 a 60 e 256 a 296;
- fotografias (evidenciadoras de lesões/marcas físicas) constantes de fls. 66 e 67;
- Fatura hospitalar de fls. 364;
- Relatório social (constante de fls. 476 a 479); - CRC.
- Prova pericial:
- Exame médico-legal de fls. 225 a 227, 315v a 316 e 392 a 394; - No domínio declaracional:
- declarações de arguido;
- prova testemunhal produzida.
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Os elementos probatórios supra careceram de ser interpretados sob perspetiva de juízo crítico e complementar entre si, com natural apelo às regras da experiência comum, de acordo com a livre convicção do julgador, em observância ao disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal. Efetivamente, o artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objetiva quando a lei assim o determinar; outra também objetiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjetiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjetivos, embora explicitados para serem objeto de compreensão (neste sentido, acórdão do STJ de 18/1/2001, Proc. nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88). Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, a pág 131 “(…) a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objetividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objetiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objetivos.
Também a este propósito, refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade” -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , a pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "(...) uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ."- Cfr., Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, a págs. 203 a 205.
Noutro plano, a referida tarefa de apreciação crítica assumirá a sua natural consagração face ao princípio da oralidade e da imediação da prova, no plano da audiência de discussão e julgamento. O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto direto, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais". - In Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, a págs. 233 a 234.
Merecendo, no complemento face às regras da experiência comum, o entendimento infra:
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Declarações de arguido:
O arguido AA optou por prestar declarações, as quais se assumiram em grande medida confessórias, aduzindo pois ao relato factual firmado na acusação pública pontuais reservas.
Assim, concedeu por verídica a ocorrência de uma negociação conducente à venda, pelo declarante ao ofendido BB, de capas de proteção de telemóvel, pelo valor de €12,00, valor cuja entrega não ocorreu no momento de cedência ao comprador dos itens acordados vender.
Igualmente concede ter ocorrido entre ambos conversação conducente à regularização da situação, isto em face de ter o ofendido apontado para o defeito de alguns dos itens adquiridos, o que o arguido sempre enjeitou ocorrer, insistindo na concretização do pagamento acordado.
É pois em tal contexto que concede ocorrerem as conversações verbais e por mensagem aludidas na acusação (a que correspondem os registos mais completos evidenciados a fls. 29 a 33), bem como o agendamento de um encontro pessoal, por proposta de BB, e em local físico sugerido por este último.
Referindo aceitar um tal encontro, e afirmando pretender no mesmo ver-se ressarcido do que entendia ser-lhe devido, admite vivenciar já em tal momento exaltamento pessoal face ao impasse criado, porém enjeitando ter então criado já um desígnio de conflito físico ou de outra índole face ao ofendido.
Assim, e neste tocante precisou:
- serem as mensagens escritas enviadas ao ofendido (com maior evidência nas transcritas no libelo acusatório) ditas “da boca para fora”, não tendo correspondência face à sua pretensão no momento do respetivo envio;
- não curar o mesmo de transportar intencionalmente para o local uma faca, afirmando nesse tocante ser o canivete utilizado nos factos, habitualmente destinado ao corte de fita de isolamento colocada nos trabalhos de pintura de construção civil, se encontrava já no bolso do casaco que envergava, sem que o declarante o houvesse detetado até ao momento do conflito vindo a gerar.
Assim, e à luz das reservas atrás indicadas, afirma ter comparecido no local combinado, na companhia do irmão, vendo ali a deparar-se com o ofendido acompanhado da testemunha CC (que já conhecia) e de outros dois indivíduos (cuja identidade refere até ali não conhecer).
Procurando ali, num primeiro momento, solucionar a questão de disputa por convencimento verbal, refere ter contado em tal tarefa com a “resistência” de BB, o qual descreveu com indivíduo calmo, mas que admitiu poder estar já alterado face à ingestão de bebidas alcoólicas (declarando ter visto garrafas de cerveja e whisky junto ao grupo que este integrava).
Declarando traduzir-se tal alteração na adoção de um tom de voz mais alto e na postura de aproximação física face ao declarante, afirma ter, a dado momento, e por via da aproximação mencionada, afastado o corpo de BB, colocando ambas as suas mãos nos ombros daquele, e empurrando-o, ação a que refere ter o interpelado retorquido com o desferimento de uma cabeçada, que o atingiu na zona da boca, provocando imediato sangramento no lábio superior.
Afirma ter-se ali gerado o imediato envolvimento de ambos, agarrando-se mutuamente pelas camisolas, procurando BB projetá-lo para o chão, momento esse aproveitado pelo arguido para retirar do bolso do casaco a faca que então ali percecionou encontrar-se, cuja pronta abertura assegurou, desferindo com a mesma um primeiro golpe nas costas (parte superior), colocando para tanto o seu braço por cima do corpo do visado.
Referindo terem-se mantido continuadamente enleados/agarrados, admite o desferimento de mais três golpes, todos desferidos na parte superior do corpo de BB, segundo refere sob o propósito de possibilitar o seu afastamento, enjeitando, todavia, que tais golpes hajam sido desferidos no momento em que este último, tendo já virado costas, procurava afastar-se dele próprio.
Não obstante, é reconhecedor de que, após tal tentativa de abandono, procurou ainda ir atrás do ofendido, admitindo até que procurava atingi-lo novamente com tal objeto (afirmando encontrar-se então de “cabeça perdida/fora de si”), do que foi demovido por ação dos amigos de BB, os quais nesse momento se aproximaram de si, ostentando as garrafas de bebidas que se encontravam a ingerir.
Afirma ter então optado por fugir do local, segundo refere receoso das reações que o tivessem por alvo.
Enjeitando que, em qualquer momento, haja verbalizado perante BB o ensejo de lhe retirar a vida (de o matar), admite, em todo o caso, ter prontamente assumido a perceção de que a ação por si assumida, e os golpes desferidos na vítima, na zona superior do corpo, poderiam ter o risco de ditar o seu perecimento, percecionando prontamente que “fizera uma asneira” (sic.), da qual se declarou em julgamento arrependido.
Após aquele momento, afirma ter largado o canivete utilizado na fuga do local, deslocando-se a unidade hospitalar para obter tratamento da ferida sangrante no lábio, procurando após realizar contacto telefónico com familiar do ofendido (com o qual refere nunca ter voltado a falar diretamente), no sentido de se inteirar do estado de saúde daquele.
Instado a esclarecer como conciliar tal postura com a ausência de entrega voluntária às autoridades (evidenciando os autos que a sua detenção ocorre mais de 3 meses depois, e apenas no contexto da ação investigatória e emissão de mandados de detenção), afirma ter criado a perceção de que seria inevitavelmente detido, aguardando pois pela ação policial que o concretizasse.
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Prova testemunhal:
No domínio da prova testemunhal, produziu-se, em plano de relevância primordial, o depoimento da vítima BB, o qual se viu após complementado/enquadrado face ao contributo testemunhal de CC.
Neste enquadramento, e quanto ao depoimento de BB, feito incidir em especial quanto aos pontos de reserva do arguido face ao texto acusatório, o mesmo declarou:
Conhecer já, antes dos factos, o arguido, com o qual mantinha uma relação de proximidade, sem registo de quaisquer desavenças.
Quanto ao dia dos factos (24 de dezembro de 2020), corrobora ter ocorrido a troca de mensagens/conversações alusivas a um negócio de venda de capas de telemóvel, para cuja resolução foi agendado um encontro presencial no Parque ..., em ....
Encontrando-se o declarante naquele local na presença de amigos, e admitido encontrarem-se os mesmos a beber, em festejo do período festivo do Natal (encontrando-se o próprio já algo influenciado por tal consumo), refere ter ali acorrido o arguido, devidamente acompanhado do irmão, tendo o declarante questionado o primeiro sobre o que pretendia fazer relativamente às capas objeto de negociação.
Afirmando evidenciar o interpelado (arguido), inicialmente, aparente calma (“não parecia zangado” – sic.), refere ter-se gerado progressivamente na conversação gerada o seu exaltamento “zangou-se” – sic.), verbalizando-lhe então “vais pagar mais do que as capas” e “vais ver”.
Afirma ter igualmente começado a empurrar o declarante e a “dar-lhe toques”, em face do que admite ter ele próprio desferido uma cabeçada no arguido (ato que descreveu como de 1ª agressão ocorrida), provocando o imediato sangramento daquele.
Após tal ato, e em face do mesmo, relata ter o arguido verbalizado “aleijaste-me”, que complementou com a expressão “agora vou-te matar”.
Nesse contexto, refere ter agarrado o arguido, procurando deitá-lo ao chão através de rasteira (manobra da arte marcial jujitsu que referiu ter sido praticante), segurando-o apenas pela roupa (casaco/camisa), porém nunca lhe prendendo plenamente os braços.
Teria sido no momento em que o arguido se procurava furtar de tal manietação que teria visto o manuseio, pelo mesmo, de uma faca (cujas características revelou dificuldade em elucidar, e cuja origem referiu admitir, sem maior certeza, poder o mesmo antes acondicionar numa das mangas), concedendo ser, nesse momento, o contexto do desferimento de um primeiro golpe (que refere não ter logo então sentido).
Procurando, de imediato, afastar-se do agressor, ainda de frente para o mesmo, viu tal afastamento anulado pela manobra de aproximação do arguido, a que ainda procurou obstar com o desferimento de um pontapé, sem sucesso, gerando-se novo golpe, o qual procurou obstar com aposição do braço em defesa corporal, sendo ali atingido.
Após, refere ter virado costas ao agressor, procurando fugir do mesmo, sendo perseguido pelo arguido, e sentindo então uma nova picada na parte posterior do pescoço, isto em momento no qual o arguido reiterava a verbalização de que o iria matar.
Instado a esclarecer qual a reação das demais pessoas presentes no local, afirma estar em crer não terem aqueles atentado, no imediato, para os contornos da situação, o que apenas fizeram quando o declarante, já em fuga, gritou “ele tem uma faca”, sendo aí solicitada por um dos amigos (EE) a ação do irmão do arguido, e acabando este último por agarrar o arguido, demovendo-o de uma maior atuação.
CC, por seu turno, esclareceu (no que ao episódio conflitual respeita):
Encontrar-se na companhia do ofendido, em grupo pelo mesmo integrado.
Ter ali comparecido o arguido, gerando-se uma discussão, no âmbito da qual BB afiançava que as capas de telemóvel se encontravam danificadas e o arguido acusava o primeiro de ser aquele o responsável pela sua danificação.
Alheando-se por momentos de tal interação, refere ter a dado momento voltado a fixar atenção no arguido e ofendido, os quais viu já fisicamente envolvidos, percecionando BB a desferir uma cabeçada em AA.
Afirma ter-se então registado afastamento de ambos, começando o ofendido BB a correr em sentido apto a afastar-se do arguido, o qual afirmava ter na sua posse uma faca.
Perante tal ação, refere ter o arguido AA ido atrás do ofendido, dizendo que o iria matar, sendo-lhe então visível ostentar este último uma faca (cujas características em pormenor já não atentou), e visualizando então gestos físicos que interpretou como os de desferimento de golpes no indivíduo perseguido (sem que lograsse, todavia, atentar na(s) zona(s) corporal(is) atingida(s)). Afirmando ter, a dado momento, caído ao chão o BB, mais acrescenta ter sido o arguido demovido da perduração de tal ação por intervenção apaziguadora do irmão daquele.
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Em perspetiva de análise crítica:
Produzida nos termos supra a prova declaracional passível de elucidar o Tribunal quanto à ocorrência e dinâmica dos factos, dirá o Tribunal ser a adveniência da prova dos factos sustentada, em sua grande medida, pela confissão do arguido, o qual admitiu ter desferido em BB um total de 4 (quatro) golpes com recurso a uma faca, isto em contexto no qual se encontravam ambos aqueles indivíduos envolvidos fisicamente entre si.
Tal ação, de resto, foi também corroborada pelo depoimento de BB e, de forma complementar (embora sem maior rigor ou precisão) de CC, cujos contributos, todavia, apontam para uma sequência de ação diversa da aventada pelo arguido.
Assim, o depoimento do ofendido é clarividente na afirmação de que apenas no momento do primeiro golpe estariam ainda aquele e o arguido agarrados entre si, o mesmo já não sucedendo nos restantes golpes, desferidos já em contexto no qual BB se procurava afastar do local e da pessoa do agressor.
E tal cenário, ainda que sem mais precisa visualização, é também aventado pelo depoimento da testemunha CC, o qual não só refere ter visto o arguido a deslocar-se no encalce do ofendido, com vislumbra ter ali visto movimentos braçais compatíveis com o golpeamento daquele, em ação física complementada com a verbalização “vou-te matar”.
De resto, ainda que o arguido não faça ele próprio alusão a esta dinâmica (física e verbal), acaba por admitir, no plano do exaltamento e descontrolo que então vivenciava, ter procurado ir no encalce do mesmo com vista a nele desferir outros golpes, o que se crê ter efetivamente verificado sob o relato clarividente prestado por BB.
Noutro prisma, ainda que o arguido coloque em plano de reserva o assentimento de que visava e pretendia então ocasionar a morte da vítima, o mesmo foi prontamente reconhecedor que a forma, repetição e ação da agressão a que deu azo, e a zona corporal atingida (parte superior do tronco), se revelava apta a poder ditar um tal desfecho, do que se veio pois a revelar ciente.
Nesta medida, a única reserva aduzida pelo discurso do arguido, à qual se entende conceder crédito, por desprovida de atividade probatória que a invalidasse, prende-se com a ausência de “premeditação” ou reflexão em redor de uma ação aprioristicamente destinada a um tal desfecho (morte do ofendido), isto não obstante o arguido se revelar já munido de um instrumento cortante aquando da deslocação ao encontro de BB.
Neste domínio, e pese embora se coloque manifestas reservas quanto à credibilidade da afirmação do desconhecimento da existência de um tal objeto, a sua existência ou disponibilidade assumida pelo arguido não encerra, por si só, e em si mesmo, a criação da decisão do seu uso ou do alcance do mesmo.
Efetivamente, a prova produzida em julgamento, designadamente pelo contributo probatório do ofendido, evidencia a ocorrência de uma primeira interação verbal dos envolvidos, em aparente calma, sendo o apossamento e uso de faca pelo arguido apenas despoletada por um envolvimento físico, no qual também o ofendido se viu a dado momento como agressor.
Ora, nesta lógica, a assunção, ab initio, de um desígnio de ajuste de contas, com previsão e desejo do resultado morte no interpelado, seria certamente mais compaginável com a exibição e uso de tal objeto logo numa fase inicial dos factos.
E assim não sucedeu, sendo a ação verbal e física conducente a adotar um tal cenário volitivo relegada para um segundo momento, despoletado por uma ação física mais intensa por banda da vítima.
Nesse enquadramento, o que se nos afigura ficar demonstrado pela prova é a circunstância de ser o encontro entre arguido e ofendido destinado a solucionar uma disputa em curso, o que primeiramente se tentou, sem sucesso, por via do diálogo, gerando-se em consequência confrontação física.
Neste domínio, o que se poderá admitir, no limite, é que o arguido (e, cremos, também ofendido) se revelariam já cientes da possibilidade do diálogo verbal a assumir poder evidenciar, manter ou mesmo intensificar as divergências que eram já patentes entre ambos, conjeturando-se pois a iminência ou inevitabilidade de um confronto físico entre ambos.
E poderá ser aí enquadrável a opção pela disponibilidade de uma faca a cargo do arguido.
De resto, e no que à posse consciente de um tal objeto, não se poderá conceder maior verosimilhança ou crédito ao discurso do arguido, apontado para a ausência de uma tal perceção e concedendo à mesma uso em domínio laboral, isto na medida em que, por um lado, a natureza, volume, dimensão e inerente peso de um tal objeto se revela facilmente detetável (sobretudo quando o arguido refere ter dormido com o casaco em que a mesma era transportado vestido), como dificilmente se torna crível o uso habitual apontado para o mesmo, que de resto parece afastado face ao teor do relatório social, na medida em que ali se destaca o exercício laboral do arguido no domínio do ..., ao invés do desempenho de funções de pintor naquele setor de atividade.
Noutro prisma, não obstante se enquadrar, num primeiro segmento, tal conduta do arguido num desígnio de possível ajuste de contas, se necessário em componente física (as próprias expressões/mensagens enviadas pelo arguido assim poderão denotar), tal é já, clara e inequivocamente, ultrapassado no momento em que o arguido se vê surpreendido e agredido pelo ofendido, momento em que verbaliza, interioriza e exterioriza um desígnio mais intenso, apto já a fazer perigar a própria vida do interpelado.
Neste enquadramento, e com especial enfoque para a subsunção jurídica da conduta do agressor, temos que a atuação ilícita do arguido, nos termos objeto de imputação, se assume conexionada e despoletada pelo envolvimento físico gerado e não reconduzida, de antemão, à resolução inicial da questão deixada sob disputa negocial (ainda que a génese da interação verbal aludida se reporte àquele evento).
Quanto à definição das lesões sofridas pelo assistente, a apreciação do Tribunal sedimentou-se na análise conjugada e complementar da documentação clínica/hospitalar de fls. 25, 38 a 60 e 256 a 296, dos registos fotográficos fotografias de lesões/marcas físicas) constantes de fls. 66 e 67, vistos à luz da apreciação técnica firmada no relatório médico-legal de fls. 225 a 227, 315v a 316 e 392 a 394. Deste último evidencia-se, por clara, a aferição da causalidade das lesões ali reconhecidas face à ação comportamental do arguido, sendo igualmente apontada a aptidão do meio atuacional para o desfecho morte (por inerência às zonas atingidas, meio de agressão e profundidade das lesões), bem como a inerente criação de perigo concreto para a vida de BB, ali inequivocamente reconhecida.
Assim, e em síntese, do cotejo da prova produzida ou examinada em julgamento, analisada critica e conjugadamente nos termos supra, crê-se demonstrada a factualidade inserta em 1) a 29).
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No domínio indemnizatório conexo, permite-se igualmente inferir, da análise dos elementos documentais/periciais elencados, vistos sob complemento da faturação junta a fls. 364, a existência da prestação de auxílio clínico à vítima, por inerência e reporte às lesões a que deu o arguido (aqui demandado) causa, cujo ressarcimento não se mostra até ao momento demonstrado (opção de prova dos factos 30) a 32).
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No que à opção pela não prova, a mesma sedimenta-se na ausência de prova que a permitisse sequenciar e/ou pela contraditoriedade da prova que sobre os factos correspetivos veio a versar, sendo em plano cimeiro (e com relevo para a ulterior subsunção jurídica) a circunstância de se demonstrar ter a ação do arguido sido despoletada pelo conflito físico gerado entre aquele e o arguido, e não singela ou primordialmente ocasionado pelo desentendimento (contratual) que os mesmos vinham já evidenciando (isto pese embora tenha sido tal realidade a contribuir para um extremar de posições).
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Para elucidação do percurso de vida e condições vivenciais do arguido, atendeu-se ao relatório social elaborado pela DGRSP, constante de fls. 476 a 479 (factos 33) a 61)).
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Por último, no que respeita aos antecedentes criminais do arguido, considerou-se o CRC junto aos autos – prova do facto 62)).”
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Apreciando

- Da qualificação jurídica dos factos
O recorrente/Ministério Público, não pondo em causa a matéria de facto assente, pugna, no entanto, por diverso enquadramento jurídico-penal, alegando nas conclusões e) e f) que: “e) Considerada na sua globalidade, a conduta do arguido reveste-se de especial censura porque teve por base o diferendo quanto ao pagamento de €12 e como objectivo obter esse pagamento, persistindo no seu propósito de tirar a vida á vítima quando esta já se encontrava a fugir e de costas para si;
f) A conduta do arguido é a sua reacção à recusa da vítima em pagar a quantia de €12, facto que o enfureceu e que é sem dúvida uma conduta especialmente censurável, revestida de um desvalor especial que a integra na previsão do Artº 132º, nºs 1 e 2, alínea e) do Código Penal”.
Vejamos, então, se, perante a alegação do recorrente, é possível, face à matéria de facto apurada, enquadrar a mesma no conceito de “motivo fútil”, a propósito da motivação do agente, no caso.
Culpa é a censurabilidade do facto dirigida ao agente por ter não se ter determinado de acordo com os valores ético jurídicos contidos na previsão típica, podendo e devendo tê-lo feito.
Assente que o homicídio revela só por si, enquanto lesão de um bem jurídico fundamental como é a vida, um elevado grau de perversidade ou de censurabilidade do agente perante o desprezo pela vida humana, dir-se-á que a razão da qualificação reside numa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada.
No art.º 132º CP prevê-se essa especial censurabilidade desde que “as circunstâncias em que a morte se produziu sejam de tal modo graves que reflictam uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma dada determinação tida por normal de acordo com os valores” (Fernanda Palma Direito Penal 1983- parte especial- Crimes contra as pessoas, 44 e ss.).
“I - No art. 132.º do CP o legislador utilizou a chamada técnica dos exemplos padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27, e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.
II - Assim sendo, é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelem a referida especial censurabilidade ou perversidade; e, por outro lado, mesmo quando a descrição dos factos provados aponte para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132.º do CP, não é só por isso que o crime de homicídio deverá ter-se logo por qualificado. A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu com “efeito de indício” (expressão de Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 126), interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado.
III- É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente, «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil» – al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP, agora vazada na al. e) do mesmo normativo, com a Lei 59/2007, de 04-09.
IV- «“Qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» – cf. Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, § 13, pág. 32.
V - Motivo fútil é «um motivo sem relevo, sem importância mínima ou manifestamente desproporcionado segundo as concepções da comunidade, incapaz portanto de razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta» – cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado e comentado, 18.ª ed., pág. 515.
VI- Motivo fútil é o móbil da actuação despropositada do agente sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente.
VII- A inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo.” Pelas mesmas razões, fica prejudicado o conhecimento no presente recurso da questão da impugnação ampla da matéria de facto, que apenas poderia conduzir à modificação do julgamento de facto nos termos exercidos, e não o seu complemento ou ampliação.” (cfr. Ac. do STJ, de 10-12-2008, in www.dgsi.pt).
No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art.º 132º ao caso concreto após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de circunstância susceptível de preencher o grupo valorativo de homicídios especialmente perversos ou censuráveis.
Ao tipo simples do crime, tendencialmente “descolorido” ( no que se refere à ausência de uma censurabilidade especialmente acentuada ou diminuída), representando o crime-base, haverá que intensificar ou esbater a coloração em função das circunstâncias que se considerem a propósito da culpa do agente e que sejam exteriores ao referido tipo-base.
Há que ponderar toda a estrutura valorativa envolvente. A valoração global do facto é que há-de determinar se predomina no caso um especial juízo de censura. (cfr. Ac. do TRL de 21-04-2009).
Com efeito, como expresso no Ac. do STJ de 15-01-2019, acessível in www.dgsi.pt: “1. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal (CP) constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração não exaustiva dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.
2. A determinação da verificação da circunstância de o agente ser determinado por “qualquer motivo torpe ou fútil” (al. e) do n.º 2 do artigo 132.º do CP) requer a ponderação de elementos de contextualização sociocultural da acção do arguido, para se poder concluir se esta foi determinada por um motivo gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante.”
Ora, atenta a matéria de facto assente como provada sob os nºs 1 a 23 e 27 a 29, não pode deixar de concluir-se, como bem faz o Acórdão recorrido, que “ (…)considerando a ação descrita do agente, e permitida dar por assente, agiu o mesmo com uso de meio agressório corto perfurante, utilizado em repetição de ação agressória, desferindo pois, 4 golpes na parte superior do corpo do assistente.
E se de tal realidade emerge, por si só, o risco inerente à sua atuação, tal risco é tanto mais potenciado quando se constata terem sido as zonas atingidas reveladoras de especial risco para a esfera do destinatário, atingindo-se, entre outras, o tórax e pescoço, ditando mesmo lesão do pulmão direito, isto é, atingindo órgão vital.
Assim, concluímos que, tendo em conta a(s) zona(s) atingida(s) e sobretudo a gravidade e multiplicidade das lesões ocasionadas, da agressão sofrida, poderia resultar, em condições ditas normais, a morte da vítima.
Ora, assim sendo, resulta evidente que quem atua do modo como o arguido atuou, necessariamente conjetura o ocasionar de lesão grave, apta a ditar o perecimento da vítima, o qual só não ocorreu por circunstâncias a que foi alheio, designadamente relacionadas com a existência de esboço defensório do ofendido (colocando o braço em posição de defesa) e, admite-se, o pronto socorro que lhe foi prestado. Por outro lado, a verbalização assumida pelo arguido em plano contemporâneo ao da sua atuação física, reforça a sedimentação de tal desígnio volitivo.
Agiu pois o arguido em vertente dolosa da vontade, afastando-se a existência de um qualquer quadro justificador da sua ação, designadamente no plano do exercício de direito defensório ou em legítima defesa, agindo no limite o arguido em plano de retorsão face à ação física assumida pelo ofendido.
Vejamos agora, subsumida que se mostra a conduta do arguido ao núcleo incriminatório geral, quanto à (não) verificação da circunstância agravativa imputadas em acusação pública, a saber, a prevista nos artigos 132º, n.º 2, alínea e) do Código Penal.

- Da circunstância agravativa prevista no artigo 132º, n.º 2, alínea e) do Código Penal:
Damos por reproduzidas neste momento as considerações doutrinárias e jurisprudenciais já atrás elencadas.
Dito isto, e para a verificação efetiva da agravativa da alínea e) do n.º 2 do artigo 132º exigir-se-á que o contexto da atuação do agente se revele em plano motivador de juízo de especial censura ou perversidade, aí se englobando a atuação por motivo frívolo, leviano, ou irrelevante.
Ora, assente que está na doutrina e jurisprudência, nos termos elencados, que a agravação não operará automaticamente, necessário se torna que existam factos dos quais se permita extrair tal contextualismo ou censura.
Ora, no caso em apreço, pese embora a inexistência de razão válida que autorize a atuação do agente (situação que ocorrerá na quase totalidade dos crimes de homicídio consumado ou tentado), não se nos parece demonstrado ter o arguido atuado única ou aprioristicamente movido pelo ensejo de “castigar” o ofendido face à postura pelo mesmo assumido em plano de negociação contratual de valor económico diminuto, isto na medida em que se deixa demonstrado ter ocorrido, no plano inicial de interação entre ambos, mera atuação/diálogo verbal, inicialmente calmo e progressivamente exaltado (assim o refere o ofendido), gerando-se a ação física do arguido apenas em plano sequencial a disputa passada a assumir em domínio físico, no qual tem também atuação relevante BB, e em seguimento do desferimento de uma cabeçada no arguido (salientando-se mesmo uma primeira ação mais relevante e intensa por banda deste).
Nessa medida, entende-se não demonstrada a circunstância agravativa em referência, o que não deixa de acarretar a subsunção à norma geral do artigo 131º do Código Penal.
Concluímos pois na subsunção da conduta do arguido à previsão legal contida nos artigos 22º, 23º e 131º do Código Penal.”
Com efeito, não se vê que a matéria de facto provada, numa ponderação contextual e, avaliando-se o ato e motivações do agente, na sua globalidade, deva ser qualificada pela circunstância agravante qualificativa (motivo fútil) referida, uma vez que, nessa matéria de facto provada, nada de determinante a esse título se definiu.
Termos em que, neste particular, o recurso é improcedente.
Por conseguinte, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pelo recorrente no presente recurso.
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Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
- Sem custas.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 13 de julho de 2022
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares
Maria Fernanda Palma