Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
587/13.8TBTMR-A.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: INCUMPRIMENTO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O montante da prestação cujo pagamento incumbe ao FGADM não pode ser fixado em montante superior ao da pensão de alimentos a que está vinculado o devedor originário.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 587/13.8TBTMR-A.E1 (2ª secção cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


No âmbito dos autos de Incumprimento das Responsabilidades Parentais, a correr termos na Comarca de Santarém Tomar - Instância Central - 2ª Secção, Família e Menores - J2, em que é requerido (…), progenitor do menor (…), tendo sido julgada verificada a situação de incumprimento do requerido reportada a falta de pagamento da prestação alimentícia, foi nessa sequência a impulso do Ministério Público, em representação do menor, proferida decisão, em 04/02/2015, condenando o FGADM (tendo em conta o disposto nos artºs. 1º e 3º, n.º 1, ambos da Lei n.º 75/98, de 19.11 e art. 3º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 2, DL nº 164/99, de 13 de Maio) no pagamento do montante de € 120,00 a título de alimentos a favor da menor, que vive com a mãe (…), em substituição do devedora/progenitor, enquanto não se lograr cobrar deste a pensão de alimentos.
Irresignado, veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. IP, interpor recurso e apresentar alegações, terminando por formular as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho a fls…, de 04/02/2015, proferido nos autos à margem indicados, na parte em que o Mmo. Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tomar – Instância Central, condena o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM), a assegurar a prestação de alimentos, ao menor, (…), no montante mensal de € 120,00 (cento e vinte euros), em substituição do devedor incumpridor, isto é, em montante superior ao fixado ao progenitor incumpridor.
2. Nos termos do preceituado no art.º 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e no art.º 3.º do DL n.º 164/99, de 11 de Maio, para que o FGADM seja chamado a assegurar as prestações de alimentos atribuídas a menores residentes no território nacional é necessário que se verifiquem os pressupostos seguintes:
- que o progenitor esteja judicialmente obrigado a alimentos;
- a impossibilidade de cobrança das prestações em divida nos termos do art.º 189.º da OTM;
- que o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS), nem beneficie de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS;
3. A lei faz depender a obrigação do FGADM da verificação cumulativa dos requisitos previstos nos diplomas que o regulamentam.
4. O sentido e a razão de ser da lei é apenas o de assegurar que, através do FGADM, os menores possam receber os alimentos fixados judicialmente a seu favor, mas apenas estes e após esgotados os meios coercivos previstos no art.º 189.º da OTM.
5. A obrigação do FGADM sendo nova e autónoma, não deixa de revestir natureza subsidiária, substitutiva relativamente à obrigação familiar (a dos progenitores).
6. Verificados os pressupostos para a sua intervenção, o FGADM só assegura a prestação alimentícia do menor, em substituição do devedor incumpridor, enquanto este não iniciar ou reiniciar o cumprimento da sua obrigação.
7. Ao FGADM não cabe substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida ao menor.
8. A prestação paga pelo FGADM é uma prestação reembolsável, conforme resulta do estatuído no art.º 6º, nº 3, da Lei 75/98 e art.º 5.º, n.º 1, do DL 164/99.
9. O valor da prestação de alimentos a suportar pelo FGADM não pode exceder o montante da prestação de alimentos fixada, e incumprida pelo obrigado originário.
10. É prolífera a jurisprudência no sentido que ora se defende.
11. Nos termos do preceituado no art.º 3.º, n.º 3, do DL 164/99, as prestações a pagar pelo FGADM são fixadas pelo tribunal,” devendo o tribunal atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação fixada e as necessidades específicas do menor”, resultando expressamente do referido normativo, que o tribunal terá de atender ao montante da prestação de alimentos fixada ao progenitor incumpridor.
12. Decorre do douto despacho ora recorrido, que por sentença proferida em 11-09-2013 foi fixada uma prestação mensal de € 50,00, a título de alimentos devidos pelo pai, para o sustento do filho.
13. Assim e salvo o devido respeito, não tem qualquer suporte legal fixar-se uma prestação alimentícia a cargo do FGADM, no valor de € 120,00 (cento e vinte euros), isto é, de montante superior à fixada ao progenitor incumpridor.
14. O legislador estabeleceu pressupostos e limites à protecção/garantia de alimentos aos menores, instituindo um Fundo que tem como objectivo assegurar que os menores possam receber os montantes que os obrigados judicialmente não prestaram, isto é, um Fundo que assegura montantes inferiores ou iguais (mas não superiores) aos que foram incumpridos pelo judicialmente obrigado.
15.Sem prescindir, acresce sublinhar que ainda que não se perfilhasse o entendimento ora explanado e subscrito por vasta jurisprudência, no despacho proferido é fixada uma prestação ao FGADM, no montante mensal de € 120,00, isto é, num valor superior ao dobro da prestação de alimentos fixada ao progenitor incumpridor, em 11-09-2013, cerca de um ano e cinco meses depois, sem que se refira no douto despacho ora recorrido, eventual alteração da capitação do agregado familiar em que se insere o menor ou necessidades específicas do menor em causa, que fundamentem o incremento significativo da prestação, ora determinada ao FGADM.
16. Sem prescindir, a fixação de prestação ao FGADM em montante superior ao estabelecido ao progenitor (obrigado originário), e no montante mensal de € 120,00, não apresenta nos termos do despacho ora recorrido e, salvo o devido respeito, substrato ou fundamento.
17. O despacho ora recorrido violou o disposto no art.º 2.º, n.º 2, da Lei 75/98, de 19 de Novembro e art.º 3.º, n.º 5, do DL n.º 164/99, de 13 de Maio.”


Apreciando e decidindo

O objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.
Assim, a questão que importa apreciar cinge-se em saber, se a decisão que condena o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores a pagar a prestação alimentícia a menores pode alterar o montante da prestação até aí fixada ao progenitor faltoso.

Relevam para apreciação da questão os seguintes factos:
1. (…) nasceu em 2 de Março de 2000 (certidão do assento de nascimento deste menino de fls. 4 a 6 do processo de regulação das responsabilidades parentais a que estes autos estão apensos);
2. É filho de (…) e de (…) (certidão do assento de nascimento desta menina de fls. 4 a 6 do processo de regulação das responsabilidades parentais a que estes autos estão apensos);
3. Por sentença proferida em 11 de Setembro de 2013, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais do (…), nos termos da qual, além do mais, este menino ficou confiado à guarda e cuidados da sua mãe, que ficou titular do poder paternal (ata da conferência de pais e sentença proferida na mesma diligência, constante de fls. 24 a 26 do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais a que estes autos estão apensos);
4. Tendo, nessa mesma sentença, sido fixada uma prestação mensal de € 50,00, a título de alimentos devidos pelo pai, para o sustento do filho (ata da conferência de pais e sentença proferida na mesma diligência, constante de fls. 24 a 26 do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais a que estes autos estão apensos);
5. O requerido (…) omitiu o pagamento daquelas importâncias mensais de € 50,00 referentes à prestação de alimentos fixada na sentença mencionada em 3. e 4., quanto às vencidas nos meses de Outubro de 2013 a Janeiro de 2014, num total de € 200,00 (sentença que julgou verificado o incumprimento proferida a fls. 10 dos presentes autos);
6. Por sentença proferida em 7 de Maio de 2014, foi declarado verificado o incumprimento da obrigação de alimentos devidos a (…), nos termos da decisão a que se referem os pontos 3. e 4., imputável ao seu progenitor e o mesmo condenado a pagar ao filho, a quantia de € 200,00, referentes às prestações vencidas e peticionadas, aquando da dedução do incidente de incumprimento (sentença de verificação do incumprimento proferida a fls. 10 dos presentes autos);
7. Não são conhecidos quaisquer bens ou rendimentos ao progenitor (…) susceptíveis de penhora (relatório às condições económicas do requerido de fls. 19 a 21);
8. O (…) vive com a sua mãe (relatório sobre as condições de vida do menor e respectivo agregado familiar de fls. 15 a 18 destes autos);
9. Sendo o agregado familiar do menor constituído por ele, sua mãe e sua irmã, (…), (relatório sobre as condições de vida do menor e respectivo agregado familiar de fls. 15 a 18 destes autos);
10. Tendo como únicos rendimentos globais, os provenientes do trabalho desenvolvido pela irmã, no montante de € 252,50 mensais e o abono de família do (…), no montante de € 35,03 e o subsídio de desemprego da progenitora de € 377,10, correspondendo a um rendimento per capita de € 293,20 (relatório sobre as condições de vida do menor e respectivo agregado familiar de fls. 15 a 18 destes autos).

Conhecendo da questão
A questão posta não tem tido unanimidade na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (v. por todos Acs. do STJ de 04/06/2009 no processo 91/03.2TQPDL.S1 e de 29/05/2014 no processo 257/06.3TBORQ-B.E1).
Em face das posições divergentes sobre tal matéria, veio recentemente a ser proferido acórdão uniformizador de jurisprudência no sentido pôr cobro à incerteza que naturalmente as diversas opiniões (pelo menos duas) sobre a mesma matéria, conduzem.
Assim, no Acórdão do STJ de 19/03/2015, publicado no DR, 1ª série de 04/05/2015, uniformizou-se a jurisprudência nos seguintes termos:
Nos termos do disposto no artº 2º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3º, n.º 3, do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da pensão de alimentos a que está vinculado o devedor originário.
Em face deste entendimento, não podia o Julgador, no caso concreto, ter fixado uma pensão a pagar pelo fundo que fosse superior a uma prestação mensal de € 50,00, quantitativo este anteriormente fixado ao progenitor incumpridor.
Se bem que aos acórdãos uniformizadores de jurisprudência não possa ser reconhecida a validade de Lei Jurisprudencial, como anteriormente era considerada no âmbito dos Assentos, isto antes da jurisprudência constitucional ter quebrado a sua força vinculativa genérica, [1] não poderão os mesmos deixar de ser reconhecidos como parâmetros a seguir, cujas directivas deverão ser acatadas pelos tribunais inferiores, no âmbito da hierarquia existente nos tribunais judiciais, pois, de outra forma, estaria desprovida de sentido a figura jurídica da Uniformização de Jurisprudência.
“Se assim não valessem não haveria uniformização alguma de jurisprudência, tudo redundaria em desperdício de esforço humano e em esbanjamento de meio técnicos e económicos por entre a fantasia incongruente da uniformização pregada e a variabilidade jurisprudencial imposta”. [2]
O Tribunal Constitucional no Acórdão [3] que considerou inconstitucional o então artº 2º do Cód. Civil, que se referia aos assentos, por entender que estes se “apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de quaisquer outras normas do sistema, revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral” impondo-se aos tribunais e a toda a comunidade jurídica em geral, também, vincou a sua posição no sentido de considerar constitucional, não conflituante com o disposto no artº 115º, n.º 5, da CRP o entendimento que os tribunais podem fixar doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada.
Foi este entendimento que parece ter dado a orientação para na reforma do Processo Civil inserta no Dec. Lei 329-A/95, de 12/12, se terem consignado no Cód. Proc. Civil os artºs 732º-A e 732º-B, cuja redacção passou para os artºs 686ºe 687º do nCPC que tratam da uniformização da jurisprudência.
A orientação jurisprudencial consignada em Acórdão Uniformizador, porque dominante, revela que a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da pensão de alimentos a que está vinculado o devedor originário. Interpretação esta, que mantém, para além do caso concreto do qual emergiu, força vinculativa na ordem jurisdicional, [4] enquanto a norma interpretada não for alterada pelo legislador ou a jurisprudência não for modificada por outro acórdão uniformizador, [5] da qual é dada publicidade relevante do seu carácter vinculativo aos tribunais judiciais através da publicação obrigatória na 1ª série do Diário da República, [6] local onde figura a publicitação dos diplomas de carácter geral e abstracto com dignidade no âmbito legislativo.
Nestes termos, entendemos ter existido, por parte do julgador a quo, violação na interpretação do disposto no artº 2º da Lei n.º 75/98, de 19/11 e no artº 3º, nº 3, do DL n.º 164/99, de 13/05, ao seguir a orientação de que a prestação a suportar pelo FGADM pode ser superior ao da prestação judicialmente fixada e não satisfeita pelo progenitor obrigado, pelo que se impõe a revogação da decisão no sentido propugnado pelo recorrente, em conformidade com a posição que fez vencimento no acórdão uniformizador de jurisprudência.
Relevam, assim, as conclusões do recurso sendo de julgar procedente o mesmo.
*

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida determinando-se que o Estado, através do FGADM, em substituição do progenitor do menor, preste a este, apenas, a importância mensal de € 50,00, a título de alimentos.
Sem custas.
Évora, 09 de Julho de 2015
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Rui Machado e Moura
__________________________________________________
[1] - Acordão com força obrigatória geral de 28/05/1996.
[2] - v. Ac. STJ de 18/02/1999 in BMJ 484º, 327.
[3] - Ac. n.º 743/96 de 28/05/1996, publicado na 1ª série do DR em 18/07/1996.
[4] - Força esta, comprovada pelo disposto no artº 678º n.º 6 do Cód. Proc. Civil no qual se prevê sempre a admissibilidade de recurso de decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada.
[5] - v. por todos, Ac. STJ de 15/06/2004 in http://www.dgsi.pt/jstj
[6] -cfr. Artº 732º-B n.º 4 do Cód. Proc. Civil.