Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
695/05.9TBLLE.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO RURAL
Data do Acordão: 11/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos termos do disposto no art. 28º, nº 3, do D.L. 385/88, de 25/10 (R.A.R.), deve obstar ao reconhecimento do direito de preferência de um arrendatário, a preferir numa compra e venda ou numa dação em cumprimento, o facto de não continuar ou não estar a destinar o(s) imóvel(is) em causa à actividade agrícola.
Sumário do Relator
Decisão Texto Integral: P.695/05.9TBLLE.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) – Exploração Agrícola do Sul, Lda. intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra (…) e Silva, Lda. e Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda., pedindo que seja reconhecido à Autora o direito de preferência na dação em cumprimento relativamente a 3 prédios urbanos que a 1ª Ré efectuou à 2ª Ré, pelo preço de PTE. 35.000.000$00, nos termos do disposto artigos 47º a 49º do RAU.
A Autora fundamenta tal pretensão na circunstância de ser arrendatária, com base em contratos de arrendamento habitacional e comercial em vigor, dos prédios objecto da dação em cumprimento, os quais sempre utilizou e utiliza com tais fins no âmbito da sua actividade, ou seja, para alojamento de pessoal, para instalação da sua sede e escritórios na fase inicial do contrato, armazenando o produtos da sua actividade comercial e respectivos utensílios e procedia à refinação do sal e respectivo empacotamento, bem como à recolha, selecção e embalamento dos demais produtos hortícolas e de piscicultura que produzia e comercializava, para além de que os Réus não lhes deram prévio conhecimento do projecto de dação em cumprimento, nem das cláusulas do respectivo contrato.
A Ré Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda., pessoal e regularmente citada, deduziu contestação e reconvenção, na qual invoca a excepção de improcedência do pedido pela não junção da totalidade dos contratos de arrendamento nos termos do disposto no artigo 35º, nº 5, do Regime do Arrendamento Rural, a caducidade do direito de acção em virtude da Autora ter tomado conhecimento do negócio pelo menos em meados de 1997 tendo tido conversas com a Ré para aquisição dos prédios em causa, sendo certo que, se não tomou conhecimento dos elementos essenciais do negócio foi porque tal não lhe interessou. Para além disso, tendo a A. tomado conhecimento da alienação sem que manifestasse qualquer interesse na mesma, alegar agora o desconhecimento da venda e pretender exercer a preferência quanto à mesma, é actuar de forma contrária ao que foi o seu comportamento durante largos anos, pelo que com a interposição da presente acção actua em manifesto abuso de direito. Por outro lado, os prédios que adquiriu encontram-se devolutos e completamente degradados, pretendendo a Ré destiná-los ao turismo ecológico, o que só não fez por estar pendente um litígio entre a 1ª Ré e o Estado Português relativamente aos mesmos, aguardando o seu desfecho. A Ré desconhecia a existência de quaisquer dos contratos de arrendamento invocados, para além de que não existe qualquer contrato de arrendamento relativamente aos prédios urbanos por si adquiridos, não havendo qualquer referência aos mesmos nos contratos de arrendamento invocados. Os dois contratos de arrendamento em causa nos autos têm natureza rural e não urbana e os prédios adquiridos pela Ré destinavam-se todos a habitação. Os terrenos de onde foram desanexados os prédios urbanos em causa nos autos não têm qualquer exploração agrícola há mais de 20 anos e as dependências em causa estão, na sua maioria, devolutas e degradadas, não sendo utilizadas ou habitadas há largos anos, pelo que a Autora, caso lhe tivessem sido dadas de arrendamento, nunca cumpriu a obrigação assumida contratualmente de as conservar, o que demonstra que nunca as encarou como parte integrante do contrato de arrendamento, sendo certo que, se os contratos de arrendamento têm natureza rural, não pode o direito de preferência incidir sobre prédios urbanos. Por outro lado, importa referir que, a admitir-se que um armazém está arrendado à Autora, não pode ter lugar direito de preferência sobre 3 prédios.
Por fim, a Ré deduz, a título subsidiário, caso a acção venha a ser julgada procedente, pedido reconvencional com fundamento no facto da Autora invocar que utiliza um armazém pertencente ao artigo 1212º, sendo certo que não há qualquer fundamento que legitime tal ocupação, devendo tal armazém ser desocupado e devendo a Ré ser indemnizada pela ocupação indevida, remetendo o valor para liquidação em execução de sentença.
A Ré (…) e Silva, Lda., pessoal e regularmente citada, deduziu contestação na qual alega que, n âmbito do contrato de arrendamento celebrado com a Autora por escritura pública de 17 de Dezembro de 1974, apenas estão incluídos prédios rústicos, na medida em que a única referência feita a edificações – e não a prédios urbanos- apenas consta da alínea e) da cláusula 1ª e refere-se a “Todas as edificações arramadas para gado, celeiros, palheiro, curral para ovelhas, alpendres para arrecadação de material agrícola e habitações de pessoal e parte da cavalariça”, as quais serviam apenas de apoio à actividade agrícola da Autora e não tinham qualquer autonomia matricial. De facto, todos os prédios urbanos existentes na propriedade da Ré ficaram expressamente excluídos do contrato de arrendamento, tal como resulta do próprio contrato e, por outro lado, resulta expressamente da cláusula terceira do contrato que “os terrenos arrendados destinam-se à exploração agrícola que a segunda contraente considerasse mais adequada, tanto na parte de regadio, como na de sequeiro, e à plantação de árvores de fruto, ou para qualquer outro fim, de modo que esses terrenos sejam aproveitados para o máximo possível de produtividade”. Na verdade, o contrato de arrendamento celebrado pela Autora de 22 de Março de 1979 também não inclui os prédios urbanos em causa e, tendo origem no contrato de arrendamento celebrado em 22 de Fevereiro de 1971, mas não incluiu o mesmo os prédios urbanos em causa nos autos, pelo que a referência dos mesmos como incluídos nos contratos configura manifesta má-fé, sendo a referência aos artigos urbanos apenas com o intuito de identificar o prédio da Ré. Por outro lado os artigos 1203º, 1212º e 1214º, mesmo que estivessem incluídos nos contratos de arrendamento, apenas se destinavam a habitação e não a comércio e, por outo lado, os mesmos não eram utilizados pela Autora no âmbito das suas actividades, as quais apenas eram efectuadas nas edificações acima descritas.
Em síntese, a Autora não era arrendatária dos prédios objecto da escritura pública de dação em cumprimento e, estando em causa um arrendamento rural, não houve dação em cumprimento de qualquer prédio rústico para fins de exploração agrícola arrendado à Autora, sendo certo que, não obstante o disposto no artigo 2º do RAR, o certo é que a caracterização do contrato tem que aferir-se pelos fins próprios de cada um dos tipos de arrendamento, sendo o critério o do fim e destino a que o imóvel se aplica e a função que ele exerce. Ora, as edificações objecto do contrato de arrendamento não têm qualquer autonomia e não descaracterizam o contrato como rural, por ser essa claramente a predominância, pelo que não é aplicável ao caso dos autos o disposto nos artigos 47º e 48º do RAU e, no que concerne ao artigo 28º do RAR, o prédio locado nada tem a ver com os prédios urbanos objecto da preferência, sendo certo que a Ré não tinha de comunicar o contrato de dação em cumprimento à Autora por a mesma não ser titular de qualquer direito de preferência, motivo pelo qual continuou a receber as rendas por parte da Autora. Por fim, uma vez que a Autora tinha perfeito conhecimento de que não é arrendatária dos prédios em causa nos autos e não se coibiu de intentar a presente acção, deve ser condenada como litigante de má-fé.
Na réplica, a Autora pugnou pela improcedência das excepções invocadas pela 2ª Ré, impugnando a factualidade relativa às mesmas, e discordando da qualificação dos contratos, os quais se destinam a outros fins, juntando a escritura pública de arrendamento de 28 Novembro 1972 e impugnando a factualidade do pedido reconvencional, o qual deve ser julgado improcedente.
Foi fixado o valor do pedido reconvencional e foi feito convite ao aperfeiçoamento da contestação da 2ª Ré, a qual esclareceu que o armazém está ocupado com máquinas e material agrícola há pelo menos 8 anos, sem qualquer título válido e sem o conhecimento da Ré, tendo a Autora mantido a posição já veiculada nos autos.
Foi proferido despacho saneador que admitiu o pedido reconvencional, julgou improcedente a excepção da falta de junção dos contratos de arrendamento nos termos do artigo 35º, nº 4, do RAR, por a Autora não fundamentar o pedido no facto de ser arrendatária com base em contratos de arrendamento rural, mas sim com base em contratos de arrendamento comercial, relegando para final o conhecimento das demais excepções de direito material invocadas e seleccionando os factos assentes, bem como os factos controvertidos, estes últimos na base instrutória.
Oportunamente foi realizada a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, tendo sido proferida sentença que decidiu:
a) Julgar improcedente, por não provada, a presente acção e, em consequência, absolver as Rés (…) e Silva, Lda. e Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda. do pedido deduzido pela Autora (…) – Exploração Agrícola do Sul, Lda.;
b) Julgar improcedente, por não provado, o pedido reconvencional deduzido pela Ré Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda. contra a Autora (…) – Exploração Agrícola do Sul, Lda..
c) Absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformada com tal decisão dela apelou a Autora tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
A) A venda a terceiro, de parte ou fracção de prédio, mesmo que urbano, integrado em prédio misto, que está incluída em arrendamento rural, implica e exige a concessão do direito de preferência do arrendatário rural, na esteira da jurisprudência uniformizada pelo Assento nº 5/93 do Supremo Tribunal de Justiça (publicado no D. R. nº 81, Série I-A, de 6 de Abril de 1993);
B) Embora tirado à luz do art. 29º da Lei nº 76/77 de 29 de Setembro, a jurisprudência daquele Assento tem inteira actualidade e cabimento na disciplina do Decreto-Lei nº 385/88 de 25 de Outubro, dada a igual redacção que, quanto ao direito de preferência, vem plasmada no art. 28º, nº 1, deste diploma legal, aplicável ao caso sob recurso;
C) A verificação dos requisitos para a procedência de acção de preferência instaurada por arrendatário rural em Março de 2005, relativamente a prédios (ou parte de prédios) urbanos que, incluídos no respectivo arrendamento, foram transmitidos a terceiro em 29 de Novembro de 1996, sem comunicação para o exercício da preferência ou sem conhecimento dessa transmissão, tem de reportar-se à data da transmissão dos prédios (29 de Novembro de 1996) e não pode considerar a situação que no prédio se verifica à data em que se realiza a audiência de julgamento do processo, cerca de dez anos depois (em 9 de Fevereiro de 2015);
D) Provado que ficou que a Recorrente, no âmbito do contrato de arrendamento rural e da sua actividade agrícola, utilizava em 29 de Novembro de 1996 os prédios (e suas dependências) identificados e abrangidos pelo contrato de arrendamento celebrado em 17 de Dezembro de 1974, para aí “alojar trabalhadores seus”, “armazenar produtos da sua exploração agrícola”, “guardar maquinaria, apetrechos, ferramentas e demais utensílios necessários a essa actividade” e proceder “à recolha, selecção e embalamento dos produtos hortícolas que comercializava”, tem de concluir-se estarem reunidos os requisitos para, em caso de venda ou dação em cumprimento, a Recorrente poder exercer o seu direito de preferência, como arrendatária rural, sobre a transmissão desses prédios;
E) Dado que tais prédios (ou dependências agrícolas) constituíam partes do então prédio misto objecto do arrendamento rural e estavam, para além disso, devidamente identificados no contrato, e atendendo a que esse contrato de arrendamento com a Recorrente tinha mais de três anos de vigência, ao arrendatário rural, a ora Recorrente neste caso, teria de ser concedido o direito de preferência, que abrange a venda (ou dação em cumprimento) de quota ou parte do prédio incluído no arrendamento, por força do Assento 5/93 supra referido e do disposto no nº 1 do art. 28º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro.
F) A desanexação desses prédios urbanos compreendidos no arrendamento rural, efectuada em 23 de Fevereiro de 1996 (após 22 anos de vigência desse arrendamento rural), para conferir-lhes autonomia económica com vista à sua transmissão a terceiros, não pode ter por consequência a sua subtracção ao arrendamento rural onde estavam incluídos nem dele retirar-lhe as partes ou dependências eminentemente agrícolas nele identificadas, só porque foram incluídas naqueles prédios desanexados e definidos como para fins habitacionais.
G) Por isso, mesmo com essas desanexações posteriores à data de celebração do contrato de arrendamento rural, mantendo-se este vigente, há mais de três anos consecutivos, na data da transmissão desses prédios e ou das dependências abrangidas no arrendamento, tem a Recorrente, como arrendatária rural, o direito de preferência nessa transmissão.
H) O facto de, actualmente (2015), a Recorrente não utilizar com efectividade a totalidade das partes urbanas incluídas no arrendamento, mas continuar a manter a disponibilidade de utilização das mesmas, não lhe retira aquele direito de preferência nem pode fazer com que a sua pretensão de preferência seja, a essa luz, tida como abuso de direito, quando também quedou provado que, à data da transmissão dos prédios (29 de Novembro de 1996) a utilização dessas partes urbanas era plena e relacionada com a actividade agrícola desenvolvida pela Recorrente.
I) Ao ter entendido e julgado como entendeu e julgou, o Tribunal “a quo” fez um desajustado exame e análise dos factos que deu como provados, e uma incorrecta subsunção e errada interpretação das normas jurídicas que aplicou, com violação da jurisprudência fixada pelo Assento nº 5/93 do Supremo Tribunal de Justiça e do disposto no art. 28º, nº 1, do Decreto-Lei 385/88, de 25 de Outubro e no art. 607º, nº 3, do Código de Processo Civil.
J) Termos em que deverá a sentença assim proferida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido da Recorrente, reconhecendo-lhe o direito de preferência que invocou, assim se fazendo Justiça.

Pela Ré Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda. foram apresentadas contra alegações, nas quais pugna pela manutenção da sentença recorrida e, tendo por base o disposto no nº 1 do art. 636º do C.P.C., veio requerer a ampliação do âmbito do recurso em relação aos fundamentos de defesa em que decaiu, nomeadamente no que respeita à falta de prova sobre a manutenção dos arrendamentos em crise e correspondência dos mesmos com as rendas pagas e ainda quanto à matéria da reconvenção formulada.
Para o efeito apresentou a mencionada Ré as seguintes conclusões:
- Considera a Recorrente que a presente acção teria sempre de ser considerada totalmente improcedente, por falta de prova que respeite ao contrato de arrendamento datado de 1974 – nomeadamente relativamente à vigência do mesmo.
- Nada indica, que o mesmo se mantenha ainda em vigor apenas tendo ficado provado que a Recorrente utiliza 3 dependências do prédio com o artigo (…).
- Nomeadamente não se provando se a Ré paga, efectivamente, alguma quantia monetária em relação a tal utilização, tendo apenas apresentado em juízo, de acordo com o facto assente GG), prova de um pagamento que não se sabe a que prédio pertence, pois foram trazidos aos autos pela Recorrente apenas recibos de renda relativas a propriedades denominadas de “(…)”, “(…)”, e “(…)”, o que, salvo o devido respeito, nada conclui em relação ao presente pleito e, conduziu a um salto interpretativo que o Tribunal a quo, com todo o respeito, não poderia ter efectuado (§ 114 a 122 das contra-alegações).
- A acrescer a tal facto, verifica-se que foi intenção da Ré (…) e Silva terminar com alguns dos contratos de arrendamento (cfr. facto assente ZZ)), pelo que seria expectável que pudesse ter terminado com outros contratos, designadamente, o contrato de 1974, tendo aliás tal facto resultado ainda do depoimento da testemunha …, (testemunha que tinha conhecimento directo dos factos em causa, por ser “filho do feitor da casa principal em causa nos autos”, cf. douta Sentença, fls. 18, e sempre ter habitado naquele local), tendo a mesma referido que essa era a intenção da gerente da Ré (…) e Silva – veja-se, para tanto, a nota de rodapé 30 feita ao artigo 124 das presentes Alegações (§ 123 a 124 das contra-alegações).
- Nestes termos, considera a ora Recorrida que nunca poderia ser dado vencimento à Autora / Recorrente, devendo V. Exas. considerar a presente acção como improcedente, por não provada, por ter faltado a prova de um elemento essencial: a manutenção do contrato de arrendamento de 1974 entre Autora e Ré (…) e Silva.
- Por último, caso V. Exas. não atendam o argumento invocado supra, e considerem efectivamente que à Autora deve ser concedido uma preferência na aquisição de determinadas dependências do prédio nº (…), pretende então a ora Recorrida que seja apreciado o seu pedido reconvencional, no qual requereu:
a) O pagamento do valor das dependências do prédio, calculado em montante proporcional ao da divisão, acrescido das despesas com sisa e emolumentos notariais pagos pela Recorrida e,
b) Uma indemnização pela ocupação de uma dependência, propriedade da Recorrida.
- O primeiro pedido resulta directamente do facto assente N), conforme referido nos artigos 117 e seguintes das presentes alegações, acrescendo a tal montante (Esc. 272.000$00) o valor rateado da venda do prédio com o artigo 1212, correspondente ao proporcional das dependências ora em crise.
- Quanto ao segundo pedido, reitera-se o referido no facto assente T), na medida em que, tendo a utilização do armazém propriedade da ora Recorrida sido utilizado pela Recorrente, deverá ser atribuído à ora Recorrida o pagamento da respectiva contrapartida monetária pela sua utilização.
- Termos em que, e caso V. Exas. entendam conceder direito preferência à Recorrente, em relação a algumas dependências do artigo (…), devem ser pagos à Recorrida, para além do valor de venda do prédio (calculado em montante proporcional ao da divisão), as despesas com sisa e, igualmente, os valores correspondentes às rendas que se reportam à utilização do armazém, desde 1997 até à presente data, em montante a calcular em incidente de liquidação, ao abrigo do disposto no artigo 358.º e seguintes do CPC, caso V. Exas. considerem não ter elementos suficientes para atribuir tal montante à Recorrida.

Atenta a não complexidade das questões a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que as recorrentes rematam a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável às recorrentes (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação das recorrentes, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela Autora, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, na sua qualidade de arrendatária, se verificam os requisitos legais para que lhe seja reconhecido o direito de preferência em relação aos prédios que foram objecto de dação em cumprimento entre a 1ª Ré e a 2ª Ré.
Por sua vez, no que tange à ampliação do objecto do recurso requerido pela 2ª Ré pretende esta, subsidiariamente (só no caso de procedência do recurso da Autora), que sejam apreciadas as questões de saber, por um lado, se não foi feita prova nos autos sobre a manutenção dos arrendamentos em crise e correspondência dos mesmos com as rendas pagas e, por outro, se a matéria da reconvenção formulada devia ter sido julgada procedente (devendo a Ré obter o pagamento das rendas pela utilização das dependências por parte da Autora, para além do montante correspondente à venda de tais prédios).

No presente recurso a matéria de facto dada como assente na 1ª instância não foi impugnada pela apelante, nem se impõe qualquer alteração por parte desta Relação, pelo que, de imediato, passamos a transcrever a referida factualidade:
A) A A. é uma sociedade comercial por quotas que centra a sua actividade comercial na produção e comercialização agro-pecuária exploração de sal marinho e piscicultura, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº. (…)/720606 (Alínea A) dos Factos Assentes).
B) Em 22 de Fevereiro de 1971, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Olhão e exarada a fls. 53 verso a 59 do Livro (…) de Notas para Escrituras Diversas, a R. (…) e Silva, Lda. declarou dar de arrendamento a (…), (…) e sua mulher (…) as salinas e tejos, já existentes, em plena produtividade, três parcelas de terrenos salgados e incultos da sua propriedade denominada “(…)”, sita na freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº. (…), a fls. 68 verso do livro B-25 e inscrita na respectiva matriz da freguesia de Almancil sob o artigo (…) (Alínea B) dos Factos Assentes).
C) Em 28 de Novembro de 1972, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Olhão e exarada a fls. 62 a 68 verso do Livro (…) de Notas para Escrituras Diversas, a R. (…) e Silva, Lda. declarou dar de arrendamento à A. os terrenos salgados e incultos das partes números três e quatro que fazem parte da sua propriedade denominada “(…)”, freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrita na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº. (…) a fls. 98 verso do Livro (…) e inscrita na respectiva matriz sob o artigo rústico nº. (…) e sob os artigos urbanos (…), (…), (…) e (…) (Alínea C) dos Factos Assentes).
D) Tais prédios urbanos integram um prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o nº. (…), a fls. 98 verso do livro (…) (Alínea D) dos Factos Assentes).
E) Em 17 de Dezembro de 1974, no Cartório Notarial de Olhão, por escritura pública exarada de fls. 98 verso a fls. 100 do Livro (…) e a fls. 1 verso a 4 do Livro (…), ambos de Notas para Escrituras Diversas, a R. (…) e Silva, Lda. declarou dar de arrendamento à sociedade (…) – Exploração Agrícola do Sul, Limitada, os prédios rústicos e urbanos abaixo identificados que fazem parte da sua propriedade denominada “(…)”, sita na freguesia de Almancil, concelho de Loulé, descrita na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o nº. (…), a fls. 98 verso do Livro (…) e inscrita na respectiva matriz da freguesia de Almancil sob os artigos (…) (rústico) e (…), (…), (…), (…), (…), (…) e (…) (urbanos): a) Horta das (…), com tanque, poço e motor Hartz com bomba; b) Terrenos do (…) nº. 2, que é constituído por terras de cultivo de sequeiro e regadio, pastagens e salgadiços, dentro do respectivo perímetro dois poços e tanque com engenho em ferro para irrigações, limitados a Norte pelo dique do (…), de cima terras do (…), (…) e outros, a Sul pelo dique A.B, a Nascente pela Herdade do (…) e outros e a Poente pela vala real da Horta da (…); c) Terrenos do (…) número um “(…)” que é constituído por terras de cultivo e sequeiro, pastagens e salgadiços, limitada a Norte pelo dique da “(…) Velha”, a Sul pelo dique de “(…)”, a Nascente por terras altas da propriedade Hortas da (…) e Santo (…) e a Poente pela Herdade dos (…); d) Terrenos conhecidos por Terras (…), com pinheiros, eucaliptos, sobreiros, alfarrobeiras, oliveiras, amendoeiras e mato, limitados a Norte pela estrada alcatroada municipal de (…), a Sul pelo monte da propriedade, a Nascente pela Horta da (…) e pomar novo da segunda contraente, e a Poente por terrenos dos herdeiros do Sr. Capitão (…); e) Todas as edificações aramadas para gado, celeiros, palheiro, curral para ovelhas, alpendres para arrecadação de material agrícola e habitações de pessoal e parte da cavalariça (Alínea E) dos Factos Assentes).
F) Consta da cláusula segunda deste acordo que ficam excluídos do arrendamento: a) a casa de habitação da gerente da primeira contraente e o conjunto de casas de habitação constituído pela habitação do feitor, casa de visitas (hóspedes), casa de arrecadações, escritório e dois quartos para motoristas, conjunto este conhecido pela “correnteza”; b) Galinheiros, pocilgas, garagem, parte da cavalariça, jardim e horta do lado poente, junto à parte das habitações excluídas deste arrendamento, bem como um lote de amendoeiras entre a eira e os caminhos para a Horta da (…); c) As terras de cultivo, pastagens e salgadiços, com casa de habitação, aramadas para gado, palheiro e forno, conjunto este conhecido por “(…)” e que fica situado no lado poente da propriedade (…); d) Duas parcelas de terreno situadas do lado Nascente da estrada para a Praia de (…), vedação do aeroporto e estrada municipal; Uma parcela de terreno na parte alta da propriedade a delimitar pelos contraentes, junto ao tanque do pomar novo com cerca de um hectare (Alínea F) dos Factos Assentes).
G) Consta da cláusula terceira deste acordo que: os terrenos arrendados destinam-se à exploração agrícola que a segunda contraente considere mais adequada, tanto na parte de regadio, como na de sequeiro, e à plantação de árvores de fruto, ou para qualquer outro fim, de modo que esses terrenos sejam aproveitados para o máximo possível de produtividade (Alínea G) dos Factos Assentes).
H) Os acordos referidos em C) e E) foram celebrados pelo prazo de 18 anos com início em 01.01.1973, o primeiro, e pelo prazo de 15 anos com início em 01.01.1075, o segundo (Alínea H) dos Factos Assentes).
I) Em 22 de Março de 1979, no Cartório Notarial de Olhão, a fls. 96 verso a fls. 98 do Livro (…) de Notas para Escrituras Diversas, a Ré (…) e Silva, Lda. e a A. outorgaram escritura de “Alterações de Arrendamentos”, onde relativamente às rendas e prazos de arrendamento de 28 de Novembro de 1972, a A. e 1ª. R. alteraram a renda e prorrogaram o seu prazo inicial até 31 de Dezembro de 1995 (Alínea I) dos Factos Assentes).
J) Os prédios urbanos objecto dos acordos referidos em C) e E), designadamente os inscritos na matriz sob os artigos (…), (…) e (…), no que se refere às dependências que os integravam, sempre estiveram destinados a habitação (Alínea J) dos Factos Assentes).
K) A R. (…) e Silva, Lda., em Dezembro de 1996, assumiu ser devedora para com a R. Clube da (…) – Administração de Propriedades, Lda. da quantia de Esc. 35.000.000$00 (Alínea K) dos Factos Assentes).
L) Para pagamento integral desta dívida efectuou a dação à R. Clube da (…) de 3 prédios urbanos sitos no (…) ou Muro do (…), Freguesia de Almancil, Concelho de Loulé:
- O prédio urbano descrito na ficha (…) da Conservatória do Registo Predial de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…), a que atribuíram o valor de Esc. 10.000.000$00;
- O prédio urbano descrito na ficha (…) da Conservatória do Registo Predial de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…), a que atribuíram o valor de Esc. 15.000.000$00;
- O prédio urbano descrito na ficha (…) da Conservatória do Registo Predial de Loulé, inscrito na matriz sob o artigo (…), a que atribuíram o valor de Esc. 10.000.000$00, tal como resulta da escritura pública de 29-11-1996 de fls. 57 a 62, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (Alínea L) dos Factos Assentes).
M) Para a venda destes prédios haviam sido feitas as respectivas desanexações da descrição nº (…), a fls. 98 verso do Livro (…) da Conservatória do Registo Predial de Loulé, através do averbamento 17 decorrente da Apresentação nº. (…)/230296 (Alínea M) dos Factos Assentes).
N) A sisa paga pela R. Clube da (…), Lda. foi de Esc. 272.000$00 (Alínea N) dos Factos Assentes).
O) O prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Almancil, concelho de Loulé sob o artigo (…) é constituído por uma moradia de casas térreas com 5 compartimentos e 3 dependências, servindo este prédio de residência dos proprietários, duas dependências ficam fora do prédio lado nascente com um alpendre (Alínea O) dos Factos Assentes).
P) O prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Almancil, concelho de Loulé sob o artigo (…) é constituído por uma moradia de casas térreas com 6 compartimentos e 15 dependências, em que parte do prédio era ocupado pelo caseiro da propriedade. Todas as dependências ficam em frente do prédio lado Nascente. Tem ramadas e alpendre (Alínea P) dos Factos Assentes).
Q) O prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Almancil, concelho de Loulé sob o artigo (…) é constituído por uma moradia de casas térreas para habitação do moiral com dois compartimentos (Alínea Q) dos Factos Assentes).
R) A A. adquiriu, em 1982, à 1ª. R. os prédios desanexados e registados na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob os nº. (…) e (…) (Alínea R) dos Factos Assentes).
S) O prédio registado sob o nº (…) é composto por 7 prédios urbanos, com os artigos matriciais nº. (…), (…), (…), (…), (…) e (…) (Alínea S) dos Factos Assentes)
T) A A. utiliza, há 8 anos, um armazém pertencente ao prédio urbano com o artigo matricial (…) para guardar máquinas e ferramentas (Alínea T) dos Factos Assentes).
U) Os prédios referidos em L) foram desanexados do prédio mãe em 23 de Fevereiro de 1996, com o consequente registo da desanexação, tendo a transmissão da propriedade sido registada em 15 de Janeiro de 1997 (Alínea U) dos Factos Assentes).
V) Até ao ano de 2000, a A. era dona dos prédios referidos em R) quase confinantes com os prédios propriedade da 2ª. R., desanexados do prédio (…) de onde foram desanexados também os prédios propriedade da 2ª. R. (Alínea V) dos Factos Assentes).
W) As construções identificadas no acordo referido em E) e cedidas à Autora (parte da cavalariça, celeiro e palheiro, curral para ovelhas, armazém, armazém para secagem de figo, alpendre/arrecadação, habitação para pessoal e ramadas id. a fls. 813) fazem parte do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), o qual compreende ainda o conjunto de casas de habitação constituído pela habitação do feitor, casa de visitas (hóspedes), casa de arrecadações, escritório e dois quartos para motoristas, conjunto este conhecido pela “correnteza” e ainda parte da cavalariça, galinheiro, pocilgas e garagem id. a fls. 813 (Artigo 1º da Base Instrutória).
X) As parcelas de terreno objecto do acordo referidos em C) destinavam-se à actividade de extracção e comercialização de sal ou exploração de peixes de água salgada e ameijoas (Artigo 2º da Base Instrutória).
Y) Os prédios objecto do acordo referidos em E) destinavam-se à exploração agrícola pela Autora (Artigo 3º da Base Instrutória).
Z) Nos prédios inscritos na matriz sob os artigos (…) e (…) a Autora alojava trabalhadores seus (Artigo 4º da Base Instrutória).
AA) A Autora instalou os seus escritórios comerciais e sede até data anterior a 1996, por empréstimo da gerente da 1ª Ré, em dependências que faziam parte do artigo … (correnteza id. a fls. 813) – (Artigo 5º da Base Instrutória).
BB) A Autora armazenava nas dependências existentes no artigo (…) não destinadas a habitação, os produtos da sua actividade de salinas e de exploração agrícola (Artigo 6º da Base Instrutória).
CC) A Autora guardava as maquinarias, apetrechos, ferramentas e demais utensílios necessários à sua actividade em dependências existentes no artigo (…) não habitacionais (Artigo 7º da Base Instrutória).
DD) Ainda noutras dependências existentes no artigo (…) a A. procedia à primeira refinação de sal e respectivo empacotamento, à recolha, selecção e embalamento dos demais produtos hortícolas e de piscicultura que produzia e comercializava (Artigo 8º da Base Instrutória).
EE) A Autora actualmente utiliza 3 dependências (armazém, armazém para secagem de figo e habitação do pessoal id a fls. 813) do prédio sob o artigo (…), não obstante o seu estado de degradação avançado e na sequência da sua actividade de exploração de salinas, não exercendo qualquer actividade agrícola (Artigo 9º da Base Instrutória).
FF) A Autora, em 29 de Novembro de 1996, utilizava algumas dependências existentes no artigo (…) nos termos descritos de Z) a DD) – (Artigo 10º da Base Instrutória).
GG) A A. pagava as rendas acordadas à representante da R. (…) e Silva, Lda. que lhe emitia os recibos e, a partir de Maio de 2000, por indicação da mesma, por depósito em conta bancária no (…) conta nº (…), no montante de € 748,20 (Artigo 11º da Base Instrutória).
HH) A R. (…) e Silva, Lda. nunca disse à A. que vendeu os prédios referidos em J) à R. Clube da (…), Lda. (Artigo 12º da Base Instrutória).
II) Nem depois da venda informou a A. da mesma, do preço da venda ou condições e prazo de pagamento do mesmo, identificação do adquirente (Artigo 13º da Base Instrutória).
JJ) Nunca a R. Clube da (…), Lda. disse à A. que tinha adquirido os prédios referidos em J) – (Artigo 14º da Base Instrutória).
KK) Em 28 de Setembro de 2004, a A. recebeu uma carta da Srª. Dr.ª (…), na qualidade de administradora judicial da empresa “(…) dos Santos Gomes, Lda., datada de 21.09.2004, onde refere ter tomado conhecimento ser a A. arrendatária da Ré (…) e Silva, Lda. e solicitando informação sobre se subsistia ainda a situação (Artigo 15º da Base Instrutória).
LL) A carta referida em KK) vinha acompanhada duma cópia da escritura de “Confissão de Dívida e Dação em Cumprimento” referidas em H) e I) e de fotocópia de certidão do Registo Predial (Artigo 16º da Base Instrutória).
MM) As casas que compõem os prédios referidos em J) estão há muito desabitadas, com excepção das dependências utilizadas pela Autora do artigo (…), e todas muito degradadas (Artigo 18º da Base Instrutória).
NN) A “casa de habitação da gerente da primeira contraente” referida em F) corresponde ao prédio referido em O) – (Artigo 19º da Base Instrutória).
OO) O “conjunto das casas de habitação constituído pela “habitação do feitor”, galinheiros, pocilgas, garagem e cavalariça referidas em F) corresponde ao prédio referido em P) – (Artigo 20º da Base Instrutória).
PP) A utilização referida em T) é feita pela A. sem o consentimento da 2ª. R. (Artigo 22º da Base Instrutória).
QQ) A 2ª R. só soube desta utilização aquando da propositura da presente acção (Artigo 23º da Base Instrutória).
RR) A A. sempre procedeu à exploração agrícola dos prédios referidos em R), tendo sido em 1999 concedida autorização para instalação de um campo de golf nessa mesma propriedade (Artigo 24º da Base Instrutória).
SS) Nunca foi pela A. referida à 2ª. R. a existência dos acordos referidos em C) e E) – (Artigo 26º da base instrutória).
TT) A 2ª. R. pretende, de futuro, explorar os referidos prédios, destinando-os a turismo ecológico (Artigo 27º da base instrutória).
UU) A Autora procedeu ao depósito da quantia de € 177.432,32 à ordem dos autos.
VV) Do acordo referido em B) consta ainda que o arrendamento abrange “uma parte alta de terreno com cerca de sete hectares que é aproveitável para exploração agrícola. Os segundos contraentes obrigam-se a, no primeiro ano de duração deste contrato proceder ao seu aproveitamento “horta” ficando a seu cargo todas as despesas a fazer com o amanho do terreno com a exploração e água pelo processo de furo artesiano e ainda as relacionadas com todas as obras necessárias para a perfeita irrigação da citada área”, tal como resulta de fls. 18 a 30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
WW) Do acordo referido em C) está ainda incluída a “exploração de pesca de peixe de água salgada e amêijoas nas albufeiras existentes nos citados pauis”, tal como resulta de fls. 539 a 553, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
XX) O acordo referido em E) sofreu aditamentos por escritura pública de 13-09-1982 e da sua cláusula sexta consta que a Autora “obriga-se a conservar e reparar todas as edificações que por este contrato lhe são dadas de arrendamento, mandando proceder à sua caiação e reconstrução e às obras, conservação e reparação dos telhados dessas edificações e caiação dos tanques”, tal como resulta de fls. 31 a 41, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
YY) Para além do referido em I), a Autora assumiu a qualidade de arrendatária relativamente ao arrendamento de 28 de Novembro de 1972 e a Autora e a 1ª Ré celebraram ainda novo contrato de arrendamento tendo por objecto os prédios identificados na escritura pública referida em B), tal como resulta de fls. 42 a 46, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
ZZ) A Ré (…) e Silva, Lda. remeteu cartas a denunciar o contrato de arrendamento de 22-03-1979 e 28-11-1972 para o dia 31-12-1996, tendo a Autora contestado a possibilidade de denúncia, tal como resulta de fls. 877 a 882, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
AAA) A presente acção foi intentada em 7 de Março de 2005.

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela A., ora apelante – saber se, na sua qualidade de arrendatária, se verificam os requisitos legais para que lhe seja reconhecido o direito de preferência em relação aos prédios que foram objecto de dação em cumprimento entre a 1ª Ré e a 2ª Ré – importa, desde já, referir a tal propósito que o arrendamento relativo aos prédios em causa definia objectivamente qual o fim do contrato, ou seja, que se destinavam à exploração agrícola pela A. – cfr. E), G) e Y) dos factos provados.
Por isso, estamos com a Julgadora “a quo” quando refere na sentença recorrida que não parece haver qualquer dúvida que o fim visado com a cedência dos terrenos à Autora é a exploração agrícola, pelo que claramente se está perante um contrato de arrendamento rural e não de qualquer contrato de arrendamento para indústria ou comércio ou habitação – sublinhado nosso.
Por outro lado, a dação que foi efectuada entre a 1ª R. e a 2ª R. (por conta de uma dívida daquela para com esta) foi celebrada por escritura datada de 29/11/1996 – cfr. alíneas K) e L) dos factos provados.
Assim sendo, deverá ser aplicado, “in casu”, o regime jurídico dos arrendamentos rurais, mais concretamente o D.L. 385/88, de 25/10, por força do disposto no seu art.36º, o qual estipula que aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime nela prescrito.
A determinação de tal regime como aplicável aos presentes autos é essencial para a análise da questão suscitada pela recorrente, uma vez que o mesmo contém um regime especialíssimo em relação a direitos de preferência legais, o qual não se verifica em quaisquer outros regimes.
Com efeito, o art.28º do referido diploma legal, com as alterações constantes do D.L.524/99, de 10/12, estipula que:
1. No caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, aos respectivos arrendatários com, pelo menos, três anos de vigência do contrato assiste o direito de preferirem na transmissão.
(…)
3. Sempre que o arrendatário exerça o direito de preferência referido no presente artigo, tem de cultivar o prédio directamente, como seu proprietário, durante, pelo menos, cinco anos, salvo caso de força maior, devidamente comprovado – sublinhado nosso.
Do exposto, resulta claro que o arrendatário que pretenda exercer o direito de preferência, terá de alegar na sua petição, entre outros, factos tendentes a demonstrar que o seu objectivo – com o exercício de tal direito – será o de explorar o prédio, por si, ou como proprietário, durante um período mínimo de cinco anos, apenas se ressalvando a verificação comprovada de caso de força maior para o não fazer.
Como é afirmado no Ac. do STJ de 17/10/2006, disponível in www.dgsi.pt (proc. 06A2630), a razão da consagração legal deste tipo de preferência não se prende com o evitar a fragmentação ou dispersão da propriedade ou fomentar o emparcelamento, antes visando proporcionar a quem vem cultivando um prédio, por vezes dele obtendo os rendimentos de subsistência, a oportunidade de o poder fazer seu e continuar a sua exploração.
Por isso, estando este direito de preferência essencialmente ligado à pessoa e ao modo de vida e actividade económica do preferente, que não às características, localização e dimensão do prédio alienado, bem se compreende que sobre o rendeiro preferente se mantenha a obrigação de continuar a usar o prédio, como o vinha fazendo, isto é, cultivando-o directamente nos termos do contrato de arrendamento que firmara, do mesmo passo que o legislador estabeleceu um prazo razoável para o preferente, agora como proprietário, demonstrar que a razão do exercício do direito foi prosseguir a sua actividade agrícola, pois é esse o escopo da lei ao conferir-lhe a faculdade de preterir o novo adquirente.
Deste modo, forçoso é concluir que o exercício do direito de preferência visa, essencialmente, o interesse dos arrendatários rurais ao acesso à propriedade da terra por eles trabalhada, bem como o interesse colectivo e da comunidade em geral no fomento da sua exploração por profissionais da agricultura (sejam eles pessoas singulares ou colectivas), evitando-se assim que a preferência venha a ter na sua base “meros interesses” de especulação imobiliária.
Por isso, apenas deve obstar ao reconhecimento do direito de preferência de um arrendatário, a preferir numa compra e venda ou numa dação em cumprimento, o facto de não continuar ou não estar a destinar o(s) imóvel(is) em causa à actividade agrícola.
Na verdade, seria de todo inverosímil que o arrendatário rural que já não desenvolve actividade agrícola no(s) prédio(s) locado(s) pudesse vir a beneficiar da preferência para obter para si a propriedade do(s) mesmo(s).

Voltando agora ao caso em apreço, constata-se que a A., ora apelante, não fez qualquer prova nos autos de que tinha um interesse real e efectivo na continuação da exploração dos prédios em causa para fins agrícolas.
Com efeito, para se poder mostrar preenchido um dos requisitos para o exercício do direito de preferência sobre tais prédios tinha a recorrente de continuar a cultivá-los, pelo menos durante cinco anos a contar da data em que lhe fosse reconhecido tal direito – sublinhado nosso.
No entanto, apurou-se nos autos que:
- Os prédios objecto do acordo referidos em E) destinavam-se à exploração agrícola pela Autora – cfr. alínea Y dos factos provados.
- A Autora actualmente utiliza 3 dependências do prédio sob o artigo (…), não obstante o seu estado de degradação avançado e na sequência da sua actividade de exploração de salinas, não exercendo qualquer actividade agrícola – cfr. alínea EE) dos factos provados (sublinhado nosso).
- A Autora, a 29 de Novembro de 1996 utilizava algumas dependências existentes no artigo (…) nos termos descritos de Z) a DD) – cfr. alínea FF) dos factos provados.
Da factualidade supra referida constata-se que, não obstante a recorrente, na sua qualidade de arrendatária, pretender exercer o seu direito de preferência sobre os prédios em causa, a verdade é que a mesma já aí não exerce qualquer actividade agrícola (sendo certo que a acção foi instaurada em 2005).
Por isso, não faz qualquer sentido pretender usar o direito de preferência para continuar a exercer uma actividade (“in casu” a agricultura) que, afinal, de todo, já não existe… (sublinhado nosso).
Aliás, do relatório pericial junto a fls. 807 e segs. e dos esclarecimentos prestados pelos peritos em julgamento – os quais se deslocaram, “in loco” aos prédios em questão – resulta claro o estado de degradação e de abandono das dependências agrícolas que são utilizadas pela A., tendo algumas delas bens no seu interior, mas com aspecto de estarem totalmente abandonados e que já não são utilizados.
Deste modo, não estando a A. a desenvolver qualquer actividade agrícola nos prédios objecto do direito de preferência aqui peticionado (o que a mesma reconhece), a qual, de todo, não veio sequer a ser retomada quando da propositura da presente acção, forçoso é concluir que já decorreram muito mais do que os 5 anos legalmente previstos no nº 3 do art. 28º do D.L. 385/88, como condição para que a A. pudesse exercer o seu direito, isto é, para continuar a dedicar-se à actividade agrícola em tais prédios e suas dependências (“continuação” essa que – não será demais repetir – não se poderá verificar, pois pressupunha o desenvolver de uma actividade agrícola que, de todo, inexiste…) – sublinhado nosso.
Ora, se o regime do arrendamento rural exige que o preferente esteja com um contrato válido nos últimos 3 anos – já que tem como escopo o estar a cultivar os terrenos para aqueles fins – e que continue a cultivar os terrenos durante os 5 anos posteriores, a ratio do citado nº 3 do art. 28º só poderá ser efectivamente cumprida se este se aplicar, por uma questão de equidade, a situações onde o arrendatário esteja efectivamente a exercer essa actividade, pelo menos, no momento em que tem conhecimento da celebração do negócio objecto da preferência, o que, no caso em apreço, como vimos, inexoravelmente, não ocorria com a A., sendo certo que esta abandonou a actividade agrícola em tais prédios por sua livre e espontânea vontade, já que não resultou apurado nos autos qualquer outra razão plausível para essa sua omissão…
Nestes termos, forçoso é concluir que o exercício da preferência não asseguraria a continuidade na exploração agrícola pela A. - que é, afinal, o escopo do preceito legal supra referido e aqui em análise - estando por isso a recorrente a desconsiderar totalmente o propósito que o regime jurídico em causa pretendeu acautelar, abusando mesmo desse seu hipotético direito e tentando frustrar, dessa forma, a própria metodologia racional e sistemático-legislativa que presidiu à consagração da norma em causa (art. 28º, nº 3, do D.L. 385/88) – sublinhado nosso.

Por isso, estamos com a Julgadora “a quo” quando, a dado passo, afirma o seguinte na sentença recorrida:
- Nos autos desde logo levanta-se a questão de saber se há direito de preferência de uma parte de um prédio urbano quando o escopo da Lei é permitir a manutenção no mesmo cultivador do terreno agrícola, tanto mais que o tem que explorar directamente, como seu proprietário, durante, pelo menos, 5 anos, sob pena de ficar sem efeito o seu direito de preferência, tal como resulta do supra transcrito artigo 28º, n.os 3 e 4, do DL 385/88, de 25 de Outubro.
A própria Autora fundamenta todo o seu pedido na existência de um direito de preferência com fundamento num arrendamento urbano e, apesar da questão da qualificação do contrato como rural ter sido desde logo invocada pela 2ª Ré na sua contestação, manteve a sua posição, nem sequer invocando que tais dependências eram essenciais para a sua actividade agrícola, o que aliás não se pode considerar provado, uma vez que se apurou que o mesmo apenas utiliza as mesmas na sequência da exploração de salinas que efectua com base noutros contratos de arrendamento, estes de indústria, que mantém com a 1ª Ré, tal como resulta da alínea EE) dos factos provados, não exercendo actualmente qualquer actividade agrícola nos terrenos objecto do contrato de arrendamento de 17 de Dezembro de 1974.
Assim sendo, ofende a teleologia da norma em causa permitir que a Autora exerça um direito de preferência sobre um prédio urbano e sobre o qual não se podem cumprir os requisitos legais de exigir a manutenção da exploração agrícola por determinado prazo.
Aliás, basta atentar que a Autora, apesar de obrigada contratualmente a conservar e a arranjar as dependências que era arrendatária, deixou que as mesmas se degradassem e abandonou uma parte que não é utilizada, pelo que que se entendesse que havia lugar ao direito de preferência, o mesmo configuraria uma situação de abuso de direito, por violação dos ditames da boa fé, nos termos do artigo 334º do Código Civil, o qual dispõe que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
São alheios ao conceito de abuso do direito consagrado no artigo 334º do Código Civil factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido, estando consagrada uma concepção objectiva. Neste sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, Coimbra, 4ª edição, 1987, p. 298.
Assim sendo, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico, exigindo-se, contudo, que o titular do direito tenha excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício.
O instituto do abuso de direito surge, deste modo, como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo, por um lado, como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e, por outro lado, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo. Neste sentido, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 6ª edição, 1994, pp. 62 a 71.
Em síntese, tal como refere VAZ SERRA (“Abuso do Direito”, BMJ. 85º-253), há abuso de direito quando ocorre uma “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” ou, nas palavras de PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, Coimbra, 4ª edição, 1987, p. 300), quando há “(…) utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
Ora, não há qualquer dúvida que, admitindo-se o direito de preferência do arrendatário rural sobre um prédio urbano acerca do qual apenas lhe estavam arrendadas umas dependências sem autonomia económica configura uma situação de abuso de direito, por violação do fim social e económico visado com tal preferência legal – sublinhados nossos.

Assim sendo, resulta claro que não se verificam os requisitos legais para o exercício do direito de preferência peticionado pela A.
Porém, se eventualmente tal direito fosse reconhecido à A., sempre o mesmo configurava uma situação de abuso de direito, (cfr. art. 334º, do Cód. Civil), sendo que esta figura “paralisava”, de todo, o exercício do referido direito de preferir.
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões, entendemos que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões de recurso formuladas pela A., ora apelante, não tendo sido violados os preceitos legais por ela indicados.
Uma vez que, como vimos, o recurso interposto pela A. não pode ser julgado procedente, sempre fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela 2ª R., na ampliação do âmbito de tal recurso (efectuada nas suas contra alegações, ao abrigo do disposto no art. 636º do C.P.C.).

***

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pela A., confirmando-se a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pela A., ora apelante.
Évora, 05 de Novembro de 2015
Rui Manuel Machado e Moura
Maria da Conceição Ferreira
Mário António Mendes Serrano

__________________________________________________
[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).