Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
92/20.6GCPTM.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: ARTIGO 40.º
N.º 2 DO DL 15/93
CONSUMO PRÓPRIO DO AGENTE
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Entende-se como inultrapassável, para subsumir uma conduta no art.º 40.º, n.º 2 do DL 15/93, que a droga em causa seja destinada ao consumo próprio do agente. É expressamente assim mencionado no n.º 1 de tal normativo (“seu consumo”), bem como no texto do AUJ nº 8/2008 do STJ de 25.06.2008 (DR IA Série, de 05.08.2008), (“consumo próprio”).
Destinar as plantas à companheira (ainda que para efeitos medicinais) nunca poderá ser considerado consumo próprio.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório

No Juízo Local Criminal de … (J3) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 92/20.6GCPTM e, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

“Nos termos expostos, decide-se julgar a acusação parcialmente procedente, por apenas parcialmente provada e, em consequência:

a) absolver o arguido AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º al. a), por referência ao art. 21º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma legal;

b) reconduzir os factos à previsão do art. 40º/2 do D.L. 15/93 de 22.01, por referência à Tabela I-C anexa a esse mesmo diploma legal e condenar o arguido AA pela prática de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa;

c) substituir a pena de 25 dias de multa aplicada ao arguido pela pena de admoestação;

(…)”

Inconformado, o MP interpôs recurso da mesma, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“I - No âmbito dos presentes autos, o arguido AA foi acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º al. a), por referência ao art. 21.º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma.

II - Proferiu o Tribunal a quo douta sentença condenatória e absolutória, na qual decidiu absolver AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º al. a), por referência ao art. 21.º/1, ambos do DL. 15/93 de 22.01, e à Tabelas I-C anexa àquele diploma legal, reconduzindo os factos à previsão do art. 40.º/2 do D.L. 15/93 de 22.01, por referência à Tabela I-C anexa a esse mesmo diploma legal e condenando o arguido AA pela prática de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, previsto e punido pela referida disposição legal, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa, substituída pela pena de admoestação.

III - Considera-se, porém, que, perante os factos dados como provados na sentença, a conduta do arguido configura, efectivamente, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, por se encontrarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos de tal ilícito penal, pelo que deveria ter sido este condenado em conformidade.

IV - O Tribunal considerou, embora sem o explicar, devida e fundamentadamente, que o facto de o arguido cultivar os produtos estupefacientes para consumo da sua companheira não constitui um acto de “cedência”, no sentido consagrado pelo legislador no D.L. 15/93, entendendo também o Tribunal que a mulher do arguido não pode ser tida como “terceiro”, para efeitos de aplicação do mesmo diploma.

V - Não pode o Ministério Público concordar com tal entendimento, desde logo porque os factos não se reconduzem a nenhuma das situações de consumo partilhado e/ou atípico que alguma jurisprudência tem considerado não preencher um crime de tráfico de menor gravidade, mas sim de consumo de estupefacientes.

VI - Tal como decorre expressamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 03/07/2012, que se debruçou sobre o conceito de “consumo partilhado” e da distinção entre partilha e cedência, quando o produto estupefaciente não se destine, na sua totalidade, ao consumo do próprio agente (detentor do produto), deve ter-se por verificado o crime de tráfico de estupefacientes, ainda que de menor gravidade.

VII - Tal resulta, desde logo, quanto a nós, da própria letra da lei, pois que o artigo 40.º/1 do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, refere expressamente que “quem, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV”, prevendo o nº 2 a agravação das penas aplicáveis ao agente nos casos em que a quantidade das plantas cultivadas exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias» e o art. 2.º/1 da mencionada L. 30/2000, dispõe que “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior – a saber, tabelas I a IV anexas ao D.L. 15/93 – constituem contra-ordenação” (s/n), acrescentando o n.º 2 do citado preceito legal que “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

VIII - Ou seja, todas as normas supra citadas fazem menção expressa ao consumo próprio e individual do detentor/consumidor dos produtos estupefacientes, o que significa que nunca poderá ser punido por tal ilícito criminal alguém que não é consumidor, como é o caso do arguido.

IX - Assim, em nosso entender, é indiscutível que o arguido destinava tal produto à cedência à sua companheira, o que extravasa claramente o sentido da norma do artigo 40º, integrando antes o crime de tráfico de menor gravidade pelo qual o arguido vinha acusado.

X - A nosso ver, a situação de cultivo para consumo de familiares, incluindo da companheira - como é o caso dos autos -, deve ser tratada como a da doação a familiares, que se encontrem, por exemplo e como tantas vezes sucede, em situação de reclusão.

XI - Como refere Rui Cardoso, in “tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias dopantes”, disponível em https://elearning.cej.mj.pt,, «aí, há a entrega de estupefacientes a alguém que não é seu proprietário ou possuidor. É indiferente se esse negócio é oneroso ou gratuito: o resultado é o mesmo. O perigo para o bem jurídico é o mesmo: através da entrega de estupefaciente, vai permitir-se ao receptor do mesmo (donatário) que o consuma (no próprio momento ou mais tarde), ou até que o ceda/venda a terceiros, facto que o doador nunca pode controlar. Tal perigo existe, seja a entrega a um ou a cem ou a mil, seja uma venda ou uma doação.»

XII - Na verdade, e analisando o caso dos autos, mesmo que o arguido viesse a ceder as referidas substâncias à sua companheira, para tratamento da doença de que a mesma padece (como alegou), tal não significa que não pudesse ceder parte das mesmas, simultaneamente ou mais tarde, a outras pessoas fora do núcleo familiar…

XIII - Contudo, mesmo quem considera defensável a exclusão das situações de consumo partilhado ou atípico da tipicidade do crime de tráfico de estupefacientes, entende que tal terá sempre de ser aferido caso a caso.

XIV - Ora, no caso dos autos, não só não estamos perante um “consumo partilhado”, como já se explicou supra, como também não se poderá, em nossa opinião, considerar que os factos dados como provados configuram uma situação de consumo atípico como as mencionadas acima, porque as quantidades detidas pelo arguido excediam manifestamente as necessárias para um consumo médio individual de 3 e de 10 dias.

XV - Com efeito, ficou provado que o arguido detinha 3 plantas de canábis (folhas e sumidades), com o peso líquido total de 38 gramas, correspondendo a 75 doses médias individuais diárias.

XVI - Não nos parece, pois, que, nestas circunstâncias, considerando desde logo a quantidade de estupefaciente detida pelo arguido - suficiente para 75 doses diárias, destinadas totalmente à cedência à sua companheira -, se possa falar num caso de consumo compartilhado e/ou atípico, integrando, por isso, o tipo de ilícito de tráfico de estupefacientes, embora de menor gravidade, atento o facto de a quantidade de estupefaciente detida ser pouca, tratar-se de cannabis, (estupefaciente de menor danosidade), e a cedência (ao que tudo indica) não ser onerosa.

XVII - Assim sendo, e embora se aceite que estamos perante um tráfico de baixa intensidade, consideramos que o arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto no artigo 25.º, al. a), do D.L. nº 15/93, como vinha acusado, devendo, por isso, revogar-se a sentença recorrida, na parte em que absolve o arguido da prática desse ilícito e o condena por um crime de cultivo para consumo de estupefacientes.

XVII - Ainda que se entenda que os factos integram um crime de cultivo para consumo de estupefacientes e que o arguido deverá ser condenado pela prática desse crime, sempre se dirá que a pena concreta aplicada ao mesmo foi excessivamente benevolente.

XVIII - Entendeu o Tribunal substituir a pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa, em que o condenou pela prática do crime de cultivo para consumo de estupefacientes, pela pena de admoestação.

XIX - A pena de admoestação aplicada ao arguido revela-se desadequada ao caso concreto;

XX - As elevadas necessidades de prevenção geral impõem a efectiva aplicação da pena de multa;

XXI - Na verdade, o tipo de crime em causa, atentas as necessidades ingentes de travar o crescimento da criminalidade e da insegurança na sociedade portuguesa que se verifica e para a qual o tráfico e o consumo de estupefacientes contribuem em larga medida, hodiernamente tem vindo a concitar na sociedade um sentimento generalizado de repúdio, com intensidade semelhante à de crimes como o homicídio, as ofensas graves, a violação, o sequestro ou o roubo;

XXII - São, pois, elevadíssimas as necessidades de prevenção geral positiva ou de integração e reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no direito;

XXIII - Por outro lado, não deve ser valorada para aquele efeito a confissão do arguido da prática dos factos, que nada repara o potencial perigo causado pela sua conduta e também não se poderá menosprezar a postura do arguido em Tribunal, absolutamente reprovável, pois que o mesmo teve de vir detido para ser ouvido, e nunca demonstrou qualquer arrependimento pela sua conduta;

XXIV - Assim sendo e face a todo o supra exposto, entende o Ministério Público que a aplicação da pena de admoestação, in casu, colocaria em causa as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e feriria irreparavelmente o sentimento jurídico da comunidade;

XXV - Conclui-se, deste modo, não ser caso de aplicação da pena de admoestação, antes se devendo ficar pela de multa aplicada, que de resto já se mostra bastante reduzida, tendo sido violado, por errada interpretação, o art.º 60.º, n.º 2, do C. Penal.”

Defendendo, em síntese:

“Termos em deverá ser dado provimento ao recurso e a sentença recorrida ser revogada em conformidade com o exposto.”

Em resposta, o arguido conclui (transcrição):

“1. Vem o presente recurso interposto da decisão que absolveu o arguido AA da prática, em autoria material, de um de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º al. a) do DL 15/93 de 22 de Janeiro, e o condenou pela prático de um crime de cultivo para consumo p e p. pelo art.º 40.º n.º 2 do Dl 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 25 dias de multa, substituída pela pena de admoestação.

2. O Ministério Público interpôs recurso da douta Sentença por entender que o arguido não deveria ter sido absolvido da prática do crime tráfico de menor gravidade, discordando das conclusões retiradas pela Mm.ª Juiz na Sentença, entendendo estarem preenchidos todos os elementos do tipo do crime de tráfico de menor gravidade, pugnando pela condenação do arguido por esse crime, ao invés do pelo qual veio a ser condenado; ou não merecendo provimento o recurso, sempre deverá a pena aplicada ao arguido ser alterada não se aplicando a admoestação, entendendo ter o Tribunal a quo violado o disposto no art.º 60.º n.º 2 do Código Penal.

3. Ora, entende o Recorrido que a douta sentença recorrida não merce qualquer reparo, e a análise do Tribunal a quo do caso concreto e dos factos julgados provados foi a correta.

4. As três plantas de canábis destinavam-se ao consumo da mulher do arguido aqui Recorrido, para fins medicinais, foram por aquela plantadas, embora fossem regadas pelo Recorrido, isto é o que resulta dos factos julgados provados na douta sentença recorrida – vide facto 3 dos factos julgados provados.

5. Portanto, não foi o Recorrido quem plantou as plantas de canábis, foi a sua mulher, para ela própria as consumir.

6. O único ato, praticado pelo Recorrido foi o de regar as plantas, pelo qual foi condenado.

7. Portanto não era o Recorrido que ia ceder qualquer planta à sua mulher; os factos julgados provados não dão nota disso, recorde-se que o que resulta provado foi que a mulher do Recorrido plantou a canábis para as consumir para fins medicinais.

8. Assim, nunca estariam preenchido os requisitos do crime de tráfico de estupefacientes, não existiu qualquer ato de cultivo (plantar/semear), produção, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou ilicitamente deter, produto estupefaciente.

9. Pelo que, deve o recurso interposto pelo Ministério Público improceder, confirmando-se a decisão do Tribunal a quo de subsunção dos factos julgados provados à prática do crime de cultivo p. e p. pelo art.º 40.º n.º 2 do Dl 15/93 de 22 de Janeiro – de resto em consonância com a jurisprudência citada na douta sentença recorrida.

10. No que se refere à escolha e determinação da medida da pena, entende o Recorrido que a pena aplicada se mostra adequada às necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto exige, e consonante com a factualidade julgada provada não merecendo qualquer reparo a douta sentença recorrida.

11. O Tribunal a quo atendeu e bem às declarações prestadas pelo arguido, às suas motivações, às suas condições pessoais, pelo que a pena aplicada é adequada.

12. A pena aplicada ao Recorrente salvaguarda a proteção de bens jurídicos e a reintegração do arguido na sociedade (art.º 40.º nº 1 do Código Penal), de resto em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º nº 2).

13. Os pressupostos de que o art.º 60.º Código Penal faz depender a possibilidade (e obrigatoriedade) da aplicação ao arguido da pena de admoestação, são os seguintes:

- um pressuposto formal, ou seja, que a pena concreta aplicada seja de multa não superior a 240 dias;

- que haja reparação do dano;

- que decorrente de um favorável juízo de prognose, com a admoestação seja razoável concluir pela realização bastante das finalidades punitivas.

-inexistência, em princípio, de anterior condenação em qualquer pena.

14. Ora, na opinião do Recorrente tais pressupostos mostram-se preenchidos.

15. No que à reparação do dano respeita, desde logos e dirá que com a apreensão das plantas, o dano que seria previsível foi reparado.

16. Pelo que, deve o recurso interposto pelo Ministério Público improceder, confirmando- se a decisão do Tribunal a quo de absolvição do arguido.”

Pugnando, a final:

“Por todo o exposto, entende-se deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a decisão recorrida.”

A Exm.ª PGA neste Tribunal da Relação emitiu o seguinte parecer:

“O recurso versa apenas matéria de direito pelo que deverá ter-se por fixada a matéria de fato.

Isto porque algumas questões ficam sem resposta.

Na verdade, não se compreende que a ter sido a esposa do arguido a plantar a cannabis, mesmo que para consumo esta não tenha sido acusada. E quando se diz para fins medicinais, tal é uma conclusão de onde nada se retira, nem sequer a dose diária porque o que a Lei prevê são as doses de consumo diário normal aditivo…

Tal como o recorrente alega parece-nos estarmos perante um crime de tráfico e não perante uma contra-ordenação, desde logo regar faz parte do processo de cultivo e sendo a quantidade manifestamente superior as doses de consumo permitido…

Mas sobretudo porque o arguido porque não consta da matéria de fato dada como provada que o arguido ia consumir mas proporcionar a outrem - a esposa.

Agora, é preciso atender à situação especial do caso e aos fins que mal ou bem foram fixados na sentença e que em nosso entender justificarão plenamente uma atenuação especial da pena.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II. FACTOS PROVADOS

Da discussão da matéria de facto, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 28.08.2020, cerca das 14:30, junto à residência de AA, sita em …, …, …, em …, encontravam-se plantadas, no solo, 3 plantas de canábis (folhas e sumidades).

2. Ao aperceber-se da presença de elementos da GNR no local, o arguido arrancou as ditas 3 plantas, com o peso líquido total de 38 grama, correspondendo a 75 doses médias individuais diárias.

3. As plantas referidas em 1. destinavam-se ao consumo pela mulher do arguido, BB, para efeitos medicinais, dado que se encontra bastante doente, tendo sido por aquela plantadas, embora fossem regadas por este.

4. Conhecia o arguido as características estupefacientes das plantas que cultivava.

5. Sabia que a sua detenção ou cedência eram proibidas e punidas por lei.

6. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, tendo a liberdade necessária para se determinar de acordo com tal avaliação.

*

Provaram-se, ainda, os seguintes factos relativos à situação pessoal do arguido, com relevo para a determinação da sanção:

7. O arguido é distribuidor de pão, trabalha por conta de outrem e aufere mensalmente cerca de 800,00.

8. Reside com a esposa, doente, e dois filhos, de 9 e 18 anos, em casa própria.

9. Suporta uma prestação mensal no valor de € 250,00 relativa ao empréstimo contraído para aquisição de habitação.

10. No mais, suporta as despesas normais do agregado familiar.

11. Estudou até ao 12º ano.

12. Não regista antecedentes criminais.

*

III. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram quaisquer outros factos, sendo certo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º, n.º 1 do CPP (1)), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no recurso são as seguintes:

I – Os factos provados integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), por referência ao art.º 21.º, n.º 1, ambos do DL. 15/93, ou de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40.º, n.º 2 do mesmo diploma?

II – Deve ou não ser substituída a pena de multa por admoestação?

B. Decidindo.

I – Os factos provados integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, al. a), por referência ao art.º 21.º, n.º 1, ambos do DL. 15/93, ou de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40.º, n.º 2 do mesmo diploma?

Vejamos, antes de mais, o quadro normativo em questão:

Artigo 25.º (2)

Tráfico de menor gravidade

Se, nos casos dos artigos 21.º2 e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

Artigo 40.º Consumo

(revogado pela Lei n.º 30/2000, 29 de Novembro, excepto quanto ao cultivo (3) previsto no n.º 2)

1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.

2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

3 - No caso do n.º 1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.

Considerando a redacção do art.º 21.º, n.º 1 do DL 15/93, de que o art.º 25.º é expressa e normativamente tributário (4), que traduz “uma configuração típica de largo espectro, de tal modo que qualquer contacto ou proximidade com o produto estupefaciente permite, por si só, integrar por inteiro a tipicidade”(5) e a redução típica do mencionado art.º 40.º, n.º 2 efectuada pelo referido AUJ, em termos puramente literais, é possível a subsunção da conduta do arguido nos dois tipos legais de crime: com efeito, é indiscutível que o arguido, com conhecimento e vontade, pelo menos detinha as plantas em causa (e por isso as arrancou), em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (6), ou seja, estamos perante uma detenção prevista nos dois normativos em causa (7).

Deverá, pois, encontrar-se um critério normativo que permita uma indiscutível subsunção num dos dois tipos de crime, com exclusão do outro.

A este propósito, importa salientar que “(…) a lei não estabelece[.] qualquer fronteira quantitativa para distinguir o consumo do tráfico, (…) sendo cada caso um caso, quando o arguido detiver uma quantidade de droga superior ao necessário para o seu consumo durante dez dias, deverá apurar-se o concreto circunstancialismo que rodeia tal facto em ordem à percepção, se a destina realmente ao seu consumo (art.º 40.º) ou ao tráfico (art.ºs 21.º, 25.º ou 26.º), permitindo-se assim a contra prova do perigo (abstracto) típico e respeitando-se o princípio da culpa.” (8)

No caso dos autos, em face da prova de que as “plantas referidas (…) destinavam-se ao consumo pela mulher do arguido, BB, para efeitos medicinais, dado que se encontra bastante doente”, entendemos que não restarão quaisquer dúvidas quanto ao escopo consumo da conduta típica.

Contudo, esse consumo não é, nem pode ser considerado, como próprio.

Segundo o recorrente, tal significa que o arguido nunca poderá ser punido pelo art.º 40.º, n.º 2 do DL 15/93, uma vez que “não é consumidor”.

Na sentença recorrida afirma-se que “[f]ace ao vínculo existente entre AA e a mulher, que vivem em total comunhão de mesa, cama e habitação, não pode o Tribunal considerar que o facto de as plantas cultivadas pelo arguido se destinarem ao consumo por BB, no seio da vida comum, constitua um acto de “cedência” no sentido consagrado pelo legislador no D.L. 15/93. Também é nossa firme convicção que não se poderá, em momento algum, entender que a mulher do arguido seja tida como “terceiro” para efeitos de aplicação do mesmo diploma.”

Salvo o devido respeito, cremos que a questão subsuntiva não se pode reconduzir à qualificação do destino das plantas como cedência à companheira do arguido ou a qualificação desta como “terceiro”. Com efeito, entendemos como inultrapassável, para subsumir uma conduta no art.º 40.º, n.º 2 do DL 15/93, que a droga em causa seja destinada ao consumo próprio do agente. É expressamente assim mencionado no n.º 1 de tal normativo (9) (“seu consumo”), bem como no texto do mencionado AUJ (“consumo próprio”). Destinar as plantas à companheira (ainda que para efeitos medicinais) nunca poderá ser considerado consumo próprio.

Assim, não sendo possível subsumir a conduta do arguido no art.º 40.º, n.º 2 do normativo citado, resta a imputação do acusado art.º 25.º, n.º 1 do mesmo.

Em síntese, procede o recurso quanto a esta primeira questão.

II – Deve ou não ser substituída a pena de multa por admoestação?

Curiosamente, o recorrente apenas coloca em causa esta substituição caso a conduta do arguido ser integrada no art.º 40.º, n.º 2 do normativo referido, ou seja, em caso de improcedência da sua primeira pretensão, nada dizendo quanto à medida da pena caso a sua pretensão viesse a ser atendida e, consequentemente, a conduta seja de integrar no art.º 25.º, n.º 1 daquele diploma.

Apenas a Exm.ª Sr.ª PGA nesta instância se pronuncia no sentido de, como vimos, se dever atender “à situação especial do caso e aos fins que mal ou bem foram fixados na sentença e que em nosso entender justificarão plenamente uma atenuação especial da pena.”

Considerando que, como acima mencionámos, entendemos que o art.º 25.º do mencionado diploma consubstancia uma forma de atenuação especial da pena, resta averiguar se será admissível fazer funcionar uma dupla atenuação especial, ou seja, a decorrente do art.º 25.º e, após, a decorrente do art.º 72.º do C. Penal.

Parece-nos evidente que a mesma circunstância que poderá fazer funcionar a atenuação especial do art.º 25.º não poderá, simultânea ou sucessivamente, fazer operar a atenuação especial “geral” do art.º 72.º do C. Penal.

No entanto, caso estejamos perante circunstâncias diversas, “pode haver cumulação de atenuações especiais resultantes da parte geral do CP e de outros diplomas” (10).

Como vimos, a atenuação especial do art.º 25.º ocorre quando a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

No caso dos autos, o “número de pessoas identificadas como consumidores [uma], os montantes pecuniários e lucros envolvidos [inexistentes], o tipo de organização [inexistente] e logística [rudimentar]” (11), bem como o tipo e a quantidade de droga em causa [droga leve e quantidade pouco expressiva] determinam que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída.

Por seu turno, segundo o art.º 72.º do C. Penal: 1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.

Considerando que as plantas em causa se destinavam ao consumo pela mulher do arguido, BB, para efeitos medicinais, dado que se encontra bastante doente, entendemos que estão comprovadas circunstâncias que efectivamente diminuem por forma acentuada a ilicitude do facto e a culpa do agente, uma vez que a amplitude dos potenciais danos (disseminação do estupefaciente) se mostra muito restrita e o seu relevo negativo pessoal e social é extremamente limitado. Deste modo, aplicando à moldura punitiva do art.º 25.º, n.º 1, as regras do art.º 73.º do C. Penal, teremos: Limite máximo – 8 (oito) meses de prisão (1 ano - 1/3); Limite mínimo – 1 (um) mês de prisão (mínimo legal – art.º 41.º, n.º 1 do C. Penal). As circunstâncias levadas em conta na decisão recorrida para determinação da medida da pena foram as seguintes: “No que concerne às exigências de prevenção geral, revelam-se as mesmas prementes, atentas as consequências sociais e as proporções que o flagelo da droga assumiu na sociedade actual, quer ao nível do tráfico, do próprio consumo e da criminalidade com ele conexa a que, em regra, se associam actos de violência, quer pela erosão de valores que acarreta e os reflexos que provoca na saúde e vida do consumidor e na respectiva família e comunidade.

É reduzida a ilicitude dos factos, em face da escassa relevância e quantidade das plantas cultivadas pelo arguido, e do respectivo peso, sugerindo que eram pés de pequena dimensão.

Por outro lado, não poderemos esquecer o fim a que os mesmos se destinavam, exclusivamente medicinal.

A culpa do arguido revela-se considerável porquanto o resultado alcançado foi previsto e querido, tendo este actuado de forma livre, voluntária e consciente, conhecedor que era da natureza do produto estupefaciente em causa e da proibição do seu cultivo e detenção, ainda que para consumo.

São diminutas as exigências de prevenção especial. Com efeito, o arguido não regista antecedentes criminais, está perfeitamente integrado e confessou os factos.”

Entende-se como essencialmente adequada a valoração de tais circunstâncias, com exclusão das que já foram consideradas na dupla atenuação efectuada supra, revelando-se como correcta a fixação de uma pena de 2 (dois) meses de prisão. Tal pena, considerando que não é exigida a sua execução pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (atenta, desde logo, a circunstância de o arguido ser primário), será substituída por pena de multa, que, de acordo com o disposto no art.º 71.º, n.º 1 do C. Penal (12), se fixa em 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária, atenta a sua situação económica e financeira e os seus encargos pessoais (constantes dos factos provados 7 a 10, que indicam acentuadas dificuldades), de € 5,00, o que perfaz a multa global de € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros).

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida e condenar o arguido AA da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, alínea a), por referência ao art.º 21.º, n.º 1, ambos do DL 15/93 de 22.01 e à Tabela I-C anexa àquele diploma legal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a multa global de € 375,00 (trezentos e setenta e cinco euros).

Sem custas. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP a contrario)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

Évora, 13 de Julho de 2022

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativa ulteriores sem indicação diversa.

2 Segundo este normativo: 1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. 2 - Quem, agindo em contrário de autorização concedida nos termos do capítulo II, ilicitamente ceder, introduzir ou diligenciar por que outrem introduza no comércio plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos. 3 - Na pena prevista no número anterior incorre aquele que cultivar plantas, produzir ou fabricar substâncias ou preparações diversas das que constam do título de autorização. 4 - Se se tratar de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV, a pena é a de prisão de um a cinco anos.

3 Segundo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n.º 8/2008 do STJ de 25.06.2008 (DR IA Série, de 05.08.2008), não obstante a derrogação operada pelo art.º 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2 do DL n.º 15/93, de 22.01, mantem-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente a aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. (itálico e negrito da nossa autoria)

4 Constituindo, tão-só, uma forma de atenuação especial da pena, à semelhança da prevista no art.º 72.º do C. Penal.

5 Pedro Patto in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Universidade Católica Editora, Volume 2, Lisboa, 2011, página 487.

6 Cfr. art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03.

7 Isto independentemente de se considerar que a rega das plantas em causa também integra o conceito de “cultivo”, como acertadamente se menciona na sentença recorrida:

“Muito embora não se tenha provado que foi o arguido quem plantou as mencionadas plantas, este confessou, em julgamento, tê-las regado e, logo, cuidado das mesmas.

A este respeito, veja-se o Ac. da Relação de [Coimbra] 23.11.2011. (Proc. 10/08.0GALRA.C1, disponível in www.dgsi.pt), que decidiu que “o simples facto de o arguido ter cuidado das plantas de cannabis, regando-as, constitui só por si um acto de cultivo de plantas estupefacientes, sendo que “cultivar” não se confunde com os actos de plantar ou semear, termos que têm o seu alcance limitado a um acto específico, o de colocar as plantas na terra para que cresçam ou lançar as sementes ao solo para que germinem”.

8 Fernando Gama Lobo in Droga, Legislação, Notas, Doutrina, Jurisprudência, Quid Juris Sociedade Editora, 2.ª edição, 2010, página 147.

9 Que é o referencial do n.º 2.

10 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2021, página 396.

11 Pedro Patto in op. cit., página 509.

12 E atento o disposto no AUJ do STJ n.º 8/2013, de onde se pode inferir que em regra, os dias de multa de substituição devem ter maior dimensão do que os dias de prisão que substituem. (assim, Paulo Pinto de Albuquerque in Ob. cit., páginas 313 e 316.