Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
240/15.8T8OLH-B.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A declaração de encerramento antecipado do incidente de exoneração do passivo restante, antes de completado o período da cessão, tem que ser requerido por alguma das pessoas indicadas no n.º 1 do artigo 243.º do CIRE - não o podendo ser feito ex officio pelo juiz.
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 240/15.8T8OLH-B.E1 – APELAÇÃO (OLHÃO)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Insolvente, agora Apelante, (…), residente no Largo do (…), n.º 4-2.º, Esq., em Olhão, vem, nestes autos de insolvência, por si instaurados e a correrem os seus termos no Juízo de Comércio de Olhão (Juiz 2), interpor recurso do douto despacho proferido em 10 de Março de 2020 (ora a fls. 33 a 36) que lhe decretou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante que havia formulado e que lhe fora admitido liminarmente por despacho de 22 de Fevereiro de 2017 (tendo-se iniciado em 06 de Março seguinte o período da cessão de cinco anos) – com o fundamento aduzido na douta decisão recorrida, para tal cessação, de que “Entendemos que o comportamento da requerente é, no mínimo, caracterizado por negligência grosseira, pois além da não entrega mensal das quantias do rendimento disponível, não houve entrega dos documentos comprovativos dos seus rendimentos atempadamente, mesmo apesar de regularmente notificada pelo Exmo. Fiduciário e pelo Tribunal; (…), mesmo notificada para entregar, em dez dias, as quantias em falta (cerca de € 25,68) e ainda os documentos, só veio fazer a entrega destes últimos muito depois do prazo estipulado para o efeito; da mesma banda, não entregou no prazo previsto à transferência das quantias (mensalmente quando ultrapassa o rendimento indisponível), mesmo depois de ser interpelada pelo Tribunal com data fixa para tal não o fez; mais censurável nisto tudo é a não assunção da sua responsabilidade no incumprimento dos deveres, como ainda na atribuição das culpas a terceiros: o Fiduciário” –, ora intentando a sua revogação e que venha a ser revertida essa douta decisão, para o que vem apresentar alegações que remata com a formulação das seguintes Conclusões:

a. Dão-se aqui por reproduzidos, por uma questão de economia e para não alongar as conclusões, os factos constantes dos artigos supra de 1 a 26.
b. Nos termos do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE a cessação antecipada do procedimento de exoneração envolve a recusa da exoneração pelo juiz, a qual deve ser pedida mediante requerimento apresentado por quem tenha legitimidade, dentro de certo prazo. Para este efeito têm legitimidade, segundo esta mesma disposição legal, qualquer credor, o administrador da insolvência, se ainda estiver em funções e o fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor e exige ainda a lei que o requerimento seja fundamentado, o que significa que o requerente deve invocar e provar as causas justificativas da cessação antecipada do procedimento.
c. Na verdade, nem no relatório anual de fiduciário junto aos autos em 19.12.2019 e 04.02.2020, nem no requerimento datado de 28.02.2020, o Sr. Fiduciário manifesta de forma expressa ou tácita, a intenção de requerer a cessação antecipada da exoneração da insolvente com o fundamento de que tinha ocultado informação relevante sobre os seus rendimentos e/ou não tinha entregue os montantes devidos dos seus rendimentos.
d. Nenhum credor requereu a cessação antecipada da exoneração.
e. O Mmº Juiz a quo não tinha, assim, legitimidade para iniciar o processo de cessação antecipada da exoneração, porque não o pode fazer oficiosamente, como decorre da leitura do artigo 243.º, n.º 1, do CIRE.
f. Pelo que a decisão recorrida terá de ser revogada, porque ilegal.
g. Por outro lado, a insolvente não foi notificada pessoalmente do despacho datado de 09.01.2020 que foi notificado à sua Ilustre Patrona.
h. Entende-se que tal notificação se destinava a chamar a parte para a prática de acto pessoal, nomeadamente a entrega de documentação e como tal deveria também ser expedido, pelo correio, um aviso registado à parte, indicando a data, o local e o fim da comparência (n.º 2 do artigo 147.º do CPC), tanto mais que a notificação de 09.01.2020 referia que caso não justificasse a não entrega dos documentos a sua conduta omissiva seria considerada culposa, e determinaria a cessação antecipada da exoneração.
i. A audição da devedora devia ter sido feita e levada a cabo por forma a confirmar-se que recebia a notificação, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 243.º do CIRE.
j. Nos termos da primeira parte do n.º 3 do artigo 243.º do ClRE, impõe-se ao juiz o dever de ouvir o devedor quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1 (no caso baseou-se na alínea a).
k. E a segunda parte da mesma norma prevê que o juiz possa recusar a exoneração se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou se, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que devia prestá-las.
l. Ora, o despacho para além de não ter sido notificado à devedora não fixava nenhum prazo para a mesma fazer a entrega dos documentos.
m. Pelo que não se entende este segmento da decisão recorrida: "Notificada em 10/1/2020, pelo Tribunal, para entregar as quantias relativas ao rendimento disponível e ainda apresentar os documentos em falta e para vir justificar essa omissão, no prazo de 10 dias".
n. No despacho não é dado à devedora qualquer prazo para apresentar os documentos.
o. Certo é que a mesma entregou os documentos tão depressa quanto lhe foi possível tendo em conta as deslocações ao escritório da sua defensora e tendo em conta que os documentos não estavam na sua posse.
p. Ao não notificar a devedora pessoalmente para um acto pessoal – entrega de documentos – a decisão recorrida violou o disposto no n.º 3 do artigo 243.º do CIRE devendo, por tal, ser revogada.
q. Ainda que não seja declarada ilegal a decisão da cessação antecipada por falta de legitimidade do Mmº Juiz a quo, o que apenas se concede por dever de patrocínio, ainda se dirá que a decisão recorrida violou o previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE.
r. A insolvente exaustivamente tentou demonstrar (artigos 52 a 90 deste recurso) que não incumpriu os deveres a que se obrigou no período de exoneração e que enviou os recibos de vencimento e pagou o montante em dívida quando solicitada para tal.
s. Na carta alegadamente enviada à devedora em 11.05.2017 (que a mesma informou que não recebeu e o recibo comprovativo do registo enviado aos autos pelo Sr. Fiduciário não contém a morada da devedora), a mesma não indica a forma e o prazo como a devedora deverá prestar a informação sobre os seus rendimentos.
t. Aquando da realização do primeiro relatório anual, o Sr. Fiduciário informou que falou telefonicamente com a devedora e que a mesma por auferir o salário mínimo nacional, não procedeu a quaisquer entregas de rendimento disponível (não lhe foi solicitado qualquer recibo de vencimento).
u. Aquando da realização do segundo relatório, o Sr. Fiduciário diz que enviou carta simples a solicitar os recibos de vencimento – carta que a devedora mais uma vez não recebeu.
v. A insolvente apenas teve conhecimento através da sua Ilustre Patrona que deveria fazer a entrega desses documentos quando aquela foi notificada pelo Tribunal para proceder à sua entrega (não se dando qualquer prazo para a devedora os enviar ao Sr. Fiduciário).
w. O tempo que demorou a recolher os documentos e entregar foi o necessário tendo em conta que trabalha e sai do trabalho já depois das 18 horas, não tendo como deslocar-se ao escritório da sua Ilustre Patrona, e, por outro lado, não tinha os recibos de vencimento na sua posse, pelo que teve que os solicitar à contabilidade da empresa.
x. A insolvente é nacional da Guiné e apenas tem a antiga 4ª classe como escolaridade, pelo que pode não ter entendido exactamente o que o Sr. Fiduciário pretendia, e como no 1º ano de cessão nenhum recibo lhe foi solicitado e telefonicamente o Sr. Fiduciário disse-lhe que como auferia o salário mínimo não tinha entregas a fazer, a insolvente acreditou, como continuou a receber o salário mínimo, que nada tinha a entregar à massa insolvente.
y. Se tivesse sido notificada para tal teria entregue os recibos e transferido de imediato o montante de € 25,68 em dívida, ainda assim, tão depressa quanto lhe foi possível fez a entrega dos recibos à sua Patrona que os enviou de imediato, por email, ao Sr. Fiduciário.
z. Certo é que a devedora sempre que foi notificada procedeu conforme: quer enviando os recibos de rendimentos, quer procedendo ao depósito do valor em dívida.
aa. A sua Ilustre Patrona respondeu ao Tribunal quando para tal foi solicitada esclarecendo a realidade dos factos.
ab. E enviou o recibo do mês de Janeiro por email, não tendo recebido nenhuma resposta do Sr. Fiduciário a dizer que não tinha recebido ou que se tinha enganado no recibo enviado.
ac. A devedora nunca pretendeu esconder os seus recibos de rendimentos e não os entregou mais cedo porque não ficou esclarecida de que o deveria fazer e qual o prazo para o fazer.
ad. Certo também que quando foi decidida a cessão antecipada (10.03.2020) já a devedora tinha procedido, há mais de um mês, à entrega dos recibos e já havia procedido ao pagamento do valor em dívida (com excepção dos € 0,68).
ae. A devedora nunca enjeitou as suas responsabilidades e tal é patente quando, mesmo que não notificada pessoalmente para o fazer, fez a entrega dos recibos por email, ao Sr. Fiduciário e procedeu ao pagamento no mesmo dia em que recebeu a carta do Sr. Fiduciário com a indicação do valor em dívida e com o IBAN da conta da massa insolvente.
af. De notar que o Banco e respectivo IBAN da conta na massa insolvente foi alterado de 2017 para 2020, pelo que era imprescindível comunicar à insolvente a nova conta, o que foi feito, pelo Sr. Fiduciário, em carta enviada à insolvente em 06.02.2020.
ag. Nunca pretendeu a insolvente transferir a responsabilidade para terceiros e muito menos para o Sr. Fiduciário.
ah. Concerteza que, por mero lapso, vem a decisão recorrida dizer: "Como já se disse, mesmo notificada para entregar, em dez dias, as quantias em falta (cerca de € 25,68) e ainda os documentos, só veio fazer a entrega estes últimos muito depois do prazo estipulado para o efeito. Da mesma banda não entregou no prazo previsto à transferência das quantias (mensalmente quando ultrapassa o rendimento indisponível), mesmo depois de ser interpelada pelo Tribunal com data fixa para tal, não o fez”.
ai. Ora, o Despacho do Mmº Juiz a quo foi o seguinte: "notifique a devedora para justificar a não entrega dos valores a título de cessão de rendimentos e a não junção da documentação (…)".
aj. A verificação da violação da condição prevista no artigo 239.º, n.º 4, als. a) e c), do CIRE, só por si, não conduz ao preenchimento do requisito constante do n.º 1, al. a), do artigo 243.º do CIRE, pois é exigido que o devedor tenha actuado com dolo ou negligência grave e, por esse facto, tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
ak. A decisão recorrida fundamenta a decisão da cessação antecipada da exoneração na violação pela devedora do estipulado do disposto no artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
al. Ora, "o mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso e que tenha causado prejuízo aos credores, não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada prevenida naquele segmento normativo".
am. Ainda que se considere que existiu violação, pela insolvente, de tais deveres de colaboração e informação, para que esta violação conduza ao preenchimento da situação prevista no artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, torna-se imprescindível que essa infracção tenha sido cometida com dolo ou grave negligência e que esse facto tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
an. Não se mostra demonstrado na decisão recorrida que o comportamento da insolvente, recorrente, tenha sido voluntariamente encetado, no sentido de ter querido violar as imposições que lhe foram impostas e, consequentemente, violar a norma legal; e também não se mostra demonstrado que a insolvente o tenha feito, voluntária e conscientemente com a intenção de prejudicar os credores.
ao. Na verdade, na decisão recorrida, nenhuma alusão se faz ao prejuízo que teria resultado para os créditos da insolvência em virtude daquele incumprimento.
ap. Ainda que tivesse havido algum incumprimento por parte da insolvente, não se prova nem demonstra nos autos que do mesmo resultou prejuízo para os créditos sobre a insolvência, não podendo, assim, ser declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, como se fez na decisão recorrida.
aq. Pelo que se impõe a revogação do decidido pela 1.ª instância.

Por todos os motivos supra expostos, o presente recurso deve ser julgado procedente, com todas as devidas e legais consequências, nomeadamente ser substituída a decisão recorrida por outra que mantenha a exoneração do passivo restante. Assim se fazendo JUSTIÇA.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Vem dada por provada a seguinte factualidade:

1) Por douto despacho datado de 22 de Fevereiro de 2017, foi deferido o pedido de exoneração do passivo apresentado pela insolvente e logo iniciado o respectivo período de exoneração em 06 de Março de 2017 (correspondente à data do encerramento do processo).
2) A insolvente não veio comunicar qualquer alteração da sua morada.
3) No relatório anual do Sr. Fiduciário, este deu nota de que a devedora, ao longo do período, apesar de notificada para informar e demonstrar os seus rendimentos, nada fez, sendo certo que também não entregou qualquer quantia a título de rendimento disponível (vide fls. 2 verso e 5 verso dos autos).
4) Em 09 de Janeiro de 2020, o tribunal determinou a sua audição, em 10 dias, para que justificasse os comportamentos omissivos (vide fls. 3 dos autos).
5) Tendo sido notificada na pessoa da sua patrona em 10 de Janeiro de 2020 (aparece como recebido e lido na consulta do citius) – (vide, também, fls. 4 dos autos).
6) A devedora, em 03 de Fevereiro de 2020 (vide fls. 22 verso), enviou por mail os recibos em falta (conforme fls. 10 verso a 22), mas não a quantia que excedeu o seu rendimento indisponível, que se apurou ser de € 25,68 (vinte e cinco euros e sessenta e oito cêntimos), repartidos pelos vários meses do ano de 2019, tudo conforme fls. 6 dos autos.
7) E em 06 de Fevereiro de 2020 foi notificada novamente para entregar a quantia de € 25,68 (vinte e cinco euros, sessenta e oito cêntimos), conforme fls. 25 verso dos autos, mas só depois transferiu € 25,00 (vinte e cinco euros).

Acrescenta-se-lhe:

8) No douto despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, em 22 de Fevereiro de 2017, determinou-se, como valor do rendimento disponível a entregar aos credores, o montante que excedesse dois salários mínimos nacionais, por mês.
9) No douto despacho referido supra no ponto 4) – datado de 9 de Janeiro de 2020 – foi cominado à Insolvente a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, caso não cumprisse o ali determinado (vide fls. 3 dos autos).
10) A Insolvente trabalha por conta de outrem, como hortelã, auferindo o vencimento mensal que ronda os € 609,00 (seiscentos e nove euros), ilíquidos, acrescido dos respectivos subsídios (vide os recibos de fls. 10 verso a 22).
*

Vejamos, então, a questão que demanda a apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem, e que passa por saber se o Tribunal a quo apreciou bem o comportamento da insolvente – e se, sequer, o poderia fazer – relativamente ao cumprimento dos deveres que legalmente se lhe impunham por força de se encontrar no período de cinco anos em que tinha que ceder os seus rendimentos ao fiduciário, em vista, no final, da exoneração do seu passivo restante, rectius se a decisão recorrida da 1ª instância foi bem ou mal feita, de acordo ou ao arrepio dos factos e das normas legais que a deviam ter informado. É isso o que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado, e que supra já se deixaram transcritas para facilidade de percepção.
Pois, como é sobejamente conhecido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (vide artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), naturalmente sem prejuízo das questões cujo conhecimento ex officio se imponha (vide o artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, desse Código).

Mas passemos ao enquadramento legal da situação apresentada.

Na previsão do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante C.I.R.E.), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado no Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto e, ultimamente, também pela Lei 16/2012, de 20 Abril e Decreto-lei n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro – “Integram o rendimento disponível [a ser cedido naturalmente para a satisfação dos débitos] todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
E a intenção do legislador, ao criar este instituto jurídico da exoneração do passivo restante (afinal, tão inovador no nosso sistema), só poderá ter sido a de que, verificado ter o devedor feito um significativo esforço durante um certo tempo para pagar o que deve – e pague mesmo –, permitir que volte a ‘levantar a cabeça’ e possa regressar à actividade económica, também a bem do País, sem o referido ‘passivo restante’ a entorpecer-lhe decisivamente tal recomeço (o que não aproveitaria a ninguém).
E daí que se trate realmente de um perdão, mas de um ‘passivo restante’, do que resta, não de todas as dívidas de quem não se apresenta a fazer esforço algum para as pagar ou atenuar. Doutra maneira, quase que se daria aqui, então, cobertura a uma fraude, pois se não poderá esquecer que este mecanismo legal funciona sempre em favor dos devedores e sempre contra os credores (e não se pretende que ele se erija num prémio a quem não cumpre ou num incentivo ao acumular das dívidas).
Por isso que a lei se rodeou de especiais cautelas na sua aplicação, que o intérprete não pode deixar de conferir nos casos concretos que se lhe coloquem.
E conferi-lo rigorosamente.
Nesse sentido, prevê o artigo 243.º do CIRE uma série de situações a que o devedor insolvente poderá vir a ter de sujeitar-se no período da cessão, face ao seu comportamento, interessando, aqui, a previsão dos seus seguintes pontos:
1 Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; (…)
3 Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las”.

[Vide Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, da ‘Quid Juris’, 2009, anotação 6 àquele artigo 243.º, a páginas 798: “Em princípio, o juiz, atendendo aos elementos de que disponha, tanto pode decidir no sentido de determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, como no sentido contrário, e, consequentemente, recusar ou não a exoneração. Todavia, a segunda parte do n.º 3 determina que a exoneração será sempre recusada se o devedor, tendo-lhe sido determinado que preste informações sobre o cumprimento das suas obrigações, ou convocado para as prestar em audiência, não as fornecer no prazo que lhe for estabelecido, ou faltar a essa audiência, sem invocar, em qualquer dos casos, motivo razoável. A recusa da exoneração constitui, quando se verifiquem estas situações, sanção para o comportamento indevido do devedor”.]
[Vide, também, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06 de Março de 2018:O comportamento passivo do devedor insolvente, que ao longo dos 5 anos previstos no n.º 2 do artigo 239.º do CIRE não demonstra qualquer interesse no procedimento destinado à exoneração do passivo restante; não cumprindo despachos que lhe são notificados; não dando conta que mudou de residência; de nada informando o fiduciário durante todo o tempo, apesar de notificado por este para esse efeito; não provando que diligenciou activamente pela procura de emprego e apenas se inscrevendo no Serviço de Emprego do IEFP depois de notificado para justificar o motivo pelo qual não entregou qualquer valor durante o período de cessão, é sintomático do manifesto desinteresse do requerente e constitui motivo bastante para ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, por negligência grave resultante do incumprimento dos deveres legais impostos pelo artigo 239.º, n.º 4, alíneas b) e d), do CIRE”.]

E dispõe, justamente, o mencionado n.º 4 do artigo 239.º do CIRE:
Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; (…)
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego”.

Dessarte, volvendo já ao caso sub judice, temos que o douto despacho em apreço terá virtualmente decidido bem a questão, vindo a determinar a cessação imediata e antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Pois que outra solução lhe não restaria, face àquele quadro legal acima enunciado e às circunstâncias de facto que teve por provadas, demonstrativas do desinteresse da interessada pelo cumprimento dos deveres a que bem sabia estar sujeita e que sobre ela impendiam enquanto estivesse sob a alçada do período da cessão dos seus rendimentos aos credores, antes de finalmente poder usufruir da exoneração do passivo restante, findo aquele prazo da cessão por cinco anos.
Veja-se que ficou provado que a insolvente não entregou ao sr. Fiduciário – no tempo próprio – quaisquer quantias e, bem assim, os comprovativos dos seus rendimentos, para se poder aferir dos valores que deveria entregar (tendo-lhe sido ordenado que o fizesse, e até advertida de que seria antecipadamente cessado o período de exoneração do passivo restante, consequência a que alude o n.º 3 do artigo 243.º do CIRE).
E foi assim enquadrada que decidiu a 1ª instância, acabando por tomar a decisão que se lhe impunha tomar, face às circunstâncias envolventes.

O único problema é que ninguém requereu isso ao Tribunal e este não o poderia fazer oficiosamente.

Com efeito, o artigo 243.º, n.º 1, do CIRE, acima transcrito, é muito claro na exigência de que “Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor” (sublinhado nosso). E só no n.º 4 do preceito é que se permite a declaração de encerramento antecipado do incidente – “oficiosamente ou a requerimento” –, mas só se se mostrarem satisfeitos integralmente todos os créditos da insolvência, o que é compreensível, pois não há, então, mais motivo para prolongar o período da cessão até aos cinco anos previstos na lei, pois não há mais dívidas a solver – e aí, sim, o Tribunal o poderá, então, fazer ex officio.
Fora disso o regime pressupõe a iniciativa das pessoas que a lei enumera: ‘algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor’.
O que tem a sua lógica, pois estando no domínio dos direitos disponíveis (qualquer credor pode renunciar ou perdoar os seus créditos), poderá acontecer que ninguém esteja interessado em levantar o incidente da cessação antecipada, e temos que respeitar isso – mormente em casos, como o presente, em que estão em causa valores de pequena monta (€ 26,00 de pagamentos disponíveis no ano inteiro) e os credores já nem sequer estarão a contar reaver o que quer que seja.

E foi justamente o que esteve em causa no caso sub judicio, em que o sr. Fiduciário apresentou o relatório anual do estado da cessão (do artigo 240.º, n.º 2, do CIRE), onde reportou as vicissitudes ocorridas nesse ano – do que deu boa conta aos credores da insolvência –, mas ninguém tomou a iniciativa de pedir ao juiz a cessação antecipada da situação de exoneração do passivo restante [o que teria que ocorrer, de resto, no prazo estabelecido no n.º 2 do citado artigo 243.º, que reza: “O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova”].
Mas tal não foi feito, nem expressa, nem tacitamente, pois o relatório anual elaborado limita-se a cumprir a obrigação do sr. Fiduciário de relatar os factos ocorridos – e daí se não podendo extrapolar mais nada.
E essa iniciativa de apresentar tal requerimento é que era, aqui, decisiva –pois seria sempre falacioso vir argumentar com os baixos valores envolvidos (e de que, por isso, nem o prejuízo para os credores seria significativo), pois sendo isso verdade, não é o que mais releva numa apreciação deste tipo, antes que o comportamento desleixado da visada, que não paga nada (muito ou pouco), nem responde ao que se lhe pergunta sobre isso. A ser assim, sempre que os valores fossem pequenos, nunca se pagava nada e não se poderia fazer antecipadamente cessar a situação de exoneração do passivo restante, ao contrário do que está subjacente à sua própria criação: um comportamento sério e curial de alguém que entrou em situação de insolvência, mas é honesto e paga ainda o que pode (não de quem nada paga, nem quer pagar, só quer o perdão das dívidas, a final).
Mas esse requerimento a dar início ao procedimento não foi apresentado.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que retirar da ordem jurídica a douta decisão da 1ª instância que assim decidiu oficiosamente, e procedendo o presente recurso de Apelação.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder provimento ao recurso e revogar o douto despacho recorrido.
Não são devidas custas.
Registe e notifique.
Évora, 04 de Junho de 2020
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral