Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2891/17.7T8STB-B.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não faz sentido que o montante protegido seja superior ao próprio rendimento normal do beneficiário, já que tal solução não permitiria salvaguardar minimamente a posição dos credores.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2891/17.7T8STB-B.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Secção de Comércio da Instância Central de Setúbal da Comarca de Setúbal, em que se apresentou à insolvência (…), o qual foi entretanto declarado insolvente, foi por este formulado, na própria petição inicial de apresentação, pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do regime previsto nos artos 235º a 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3. Para tanto alegou preencher todas as condições previstas no citado diploma para beneficiar desse regime, indicando auferir um vencimento ilíquido de 600,00 €, viver com a mãe que recebe uma pensão de sobrevivência de 345,84 €, ter de prestar alimentos a uma filha menor e ter um passivo de 87.088,46 €.

Elaborado relatório pelo Administrador de Insolvência (cfr. fls. 43-51), mencionou este ter o requerente um rendimento mensal líquido de 534,00 € (um vencimento de 600,00 €, deduzido de desconto de 11% para a Segurança Social) e despesas mensais de cerca de 475,00 €, que incluem uma pensão de alimentos a favor da sua filha, no montante de 100,00 €, apresentando um passivo global de 86.801,41 €, ao mesmo tempo que refere viver o requerente com a sua mãe, pessoa doente que aufere pensão insuficiente para as suas despesas, pelo que aquele lhe presta ainda, na medida do possível, algum apoio financeiro. Mais sustentou o Administrador de Insolvência, no termo desse relatório, proposta de concessão de exoneração do passivo restante, com a atribuição de um rendimento ligeiramente superior ao salário mínimo nacional, para poder atender ao apoio de que a mãe do requerente carece.

Sobre esse pedido de exoneração do passivo restante pronunciou-se o tribunal de 1ª instância, por decisão de 27/6/2017 (cfr. fls. 53-60), em termos de considerar verificados os pressupostos legais do seu deferimento, pelo que se determinou, no dispositivo dessa decisão, designadamente que «o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir [durante o período de cessão de 5 anos] se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente à remuneração mínima mensal garantida, doze meses por ano». Para fundamentar essa decisão, sustentou o Tribunal que o regime do salário mínimo nacional visa precisamente garantir um valor estritamente indispensável para satisfazer as necessidades de sobrevivência digna do trabalhador e que, no caso concreto, o montante atribuído significa a necessidade de um esforço do insolvente no sentido de uma reaprendizagem na gestão dos seus gastos.

É apenas em relação ao decidido quanto ao montante do rendimento indisponível fixado em benefício do requerente (i.e., um salário mínimo nacional), que vem interposto pelo insolvente o presente recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso versa a parte do despacho seguinte “…determino que, durante o período de cessão, de cinco anos, contados desde o encerramento do presente processo de insolvência, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere todo cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal correspondente à remuneração mínima mensal garantida, doze meses por ano”, porque [considera] o recorrente que há factos provados que o tribunal deveria ponderar (os factos alegados na petição inicial supra citados e o teor do relatório do Sr. AI não foram objecto de impugnação pelos credores ou pelo Ministério Público) na fixação da referida remuneração e não ponderou, a saber: a prestação de € 100/mês de alimentos à filha menor e o auxílio nas despesas com saúde respeitantes à sua mãe, de 84 anos, a padecer de cancro nos intestinos e auferindo uma reforma de € 354,84 (vide artigos da petição inicial citados no ponto 6 da motivação e os documentos lá mencionados; relatório do administrador – artº 155º CIRE, citado no ponto seguinte – 7);

2. Compulsados os rendimentos do insolvente e da sua mãe, conclui-se que o valor per capita é de € 394,42/mês, bem inferior ao indicado no ac. do Tribunal Constitucional nº 177/2002 (com força obrigatória geral), (salário líquido - € 534 + reforma da mãe - € 354,84 = € 888,84 – alimentos prestados à filha menor - € 100 = € 788,84 * insolvente + mãe = € 394,42/mês);

3. Aliás, o despacho recorrido equaciona a hipótese de existirem menores a cargo ou despesas de saúde que acresçam a tal rendimento, sendo que, apesar das mesmas se verificarem no caso concreto, elas não foram consideradas na fixação da remuneração mínima mensal garantida ao insolvente e devem sê-lo, fixando-se a mesma na totalidade do seu salário.

4. Em consequência, impunha-se uma fundamentação do despacho recorrido mais abrangente, minuciosa e que levasse em consideração todas as circunstâncias que permitem a fixação ao insolvente de uma remuneração mínima mensal garantida pela totalidade do seu salário;

5. O despacho na parte de que se recorre viola os artºs 239º, nº 3, b), i), do CIRE e artºs 9, b), 18, nºs 1 e 2, 24, nº 1, 25º, nº 1, artºs 202, nº 2, e 205, nº 1, todos da CRP e ainda o Ac. Tribunal Constitucional nº 177/2002, os quais devem ser entendidos no sentido de se fixar ao insolvente a remuneração mínima mensal garantida equivalente à totalidade do seu salário;

6. Em consequência, entende o recorrente que o mesmo, na parte afectada pelo presente recurso, deve ser revogado e substituído por outro que fixe ao insolvente a remuneração mínima mensal garantida equivalente à totalidade do seu salário.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do apelante resulta que a matéria a decidir se resume a aferir da justeza da decisão recorrida quanto ao valor do rendimento indisponível fixado em benefício do requerente (ou, dito de outro modo, do montante de rendimento excluído da cessão de rendimento disponível determinada ao abrigo do artº 239º do CIRE, e decorrente da procedência do pedido de exoneração do passivo restante) – ou seja, trata-se de apreciar se esse montante mensal foi adequadamente fixado no valor do «salário mínimo nacional» ou se o mesmo deverá ser mais elevado (até ao limite peticionado pelo requerente de 600,00 €), em atenção à situação familiar e económica do recorrente.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

Estando assentes os elementos de facto descritos no relatório, cabe, pois, com base neles, aferir do acerto do segmento decisório sob recurso.

O regime da exoneração do passivo restante, e em particular a criação da figura da cessão de rendimento disponível, procura estabelecer um equilíbrio, certamente difícil, entre as chamadas função interna do património (relativa ao sustento do devedor) e função externa do património (respeitante à garantia geral dos credores) – sobre estes conceitos, cfr. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2013, pp. 905-906. Cabe ao tribunal definir, em cada caso, o que se deve entender por sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, de forma a encontrar uma solução que ainda acautele satisfatoriamente o interesse dos credores sem afectar essas condições mínimas de sobrevivência digna.

No caso dos autos, esse equilíbrio foi encontrado pelo tribunal a quo através da reserva, em benefício do insolvente, de quantia correspondente a um salário mínimo nacional. Em conformidade com o Decreto-Lei nº 86-B/2016, de 29/12, o valor da retribuição mínima mensal garantida (na expressão legal mais precisa), desde 1/1/2017, é de 557,00 €, sendo esse o montante salvaguardado pela decisão recorrida. Trata-se agora, então, de saber se esse montante assegura o sustento minimamente digno do insolvente que o CIRE pretende acautelar, como entendeu o tribunal recorrido – ou se, para cumprir essa função, esse valor deve ser aumentado (e em que medida).

Estamos seguramente a lidar com valores muito baixos, que se situam próximo de um limiar de sobrevivência. Porém, também não se pode olvidar que o insolvente tem um passivo global de 86.801,41 € e que os credores não têm de suportar desrazoavelmente o incumprimento dos devedores.

Na determinação do montante de rendimento protegido, alguns parâmetros têm de ser considerados. Desde logo, não faz sentido que tal montante seja superior ao próprio rendimento normal do beneficiário, já que tal solução não permitiria salvaguardar minimamente a posição dos credores; e, além disso, o respectivo diferencial (e que corresponderá ao rendimento disponível, a ser cedido ao fiduciário, o qual acautelará tanto quanto possível a satisfação dos créditos devidos) também não deve ser insignificante, a ponto de tornar quase virtualmente irrecuperáveis para os credores os valores em dívida. E acresce que não pode deixar de se atender, igualmente, a outras circunstâncias, como sejam, por um lado, a censurabilidade de uma conduta que transfira para os credores as consequências de uma menor prudência na gestão da vida económica pessoal e/ou familiar pregressa e, por outro lado, a necessidade de que a recuperação do equilíbrio da economia doméstica se faça com um esforço adequado a uma maior responsabilização futura na referida gestão.

No caso presente, todos os aspectos supra referidos têm de ser analisados em contraponto com as condições particulares do insolvente e das pessoas a quem presta apoio: uma filha, a quem paga pensão de alimentos de 100,00 €, e a mãe, pessoa doente que aufere pensão modesta e insuficiente para as suas necessidades. É certo que se poderá dizer, perante a especificação de despesas indicadas pelo Administrador de Insolvência (que incluem despesas com alimentação, vestuário e calçado, electricidade, água, saúde, TV, Internet e telefone, e transportes), que haverá despesas que poderão ser geridas ainda com maior frugalidade, e sem um esforço totalmente incomportável (e que não terão de ocorrer todos os meses, como sejam as de vestuário e calçado) ou despesas que não serão absolutamente indispensáveis, no plano da sobrevivência, como sejam, ao menos em parte, as de telecomunicações. Mas, ainda assim, sem deixar de reconhecer, como se disse, que este caso envolve valores que se situam já muito próximo daquele núcleo irredutível delimitado em função do conceito de dignidade da existência.

Em todo o caso, no confronto dos interesses em presença, afigura-se-nos que o montante fixado é razoavelmente equilibrado e equitativo, tendo o tribunal de 1ª instância decidido com acerto e ponderação.

Note-se que não é razoável fixar o rendimento indisponível em valor idêntico ao próprio rendimento auferido, na medida em que isso não permite salvaguardar minimamente, quer a posição dos credores, quer o propósito da lei no sentido de gerar uma maior responsabilização futura na gestão da vida económica do insolvente. Além disso, no caso concreto, o diferencial entre o rendimento auferido (600,00 €) e o rendimento protegido (557,00 €) é já ele pouco significativo (43,00 €), cumprindo já pouco satisfatoriamente aqueles desideratos. Acresce que se atentarmos no valor efectivamente recebido, tanto quanto informa o Administrador de Insolvência (apenas 534,00 € de rendimento líquido), verifica-se que esse montante até será inferior ao que se declara como protegido – pelo que sobra mesmo a dúvida sobre o alcance prático do presente recurso.

Não se vislumbra, pois, razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

Em suma: o tribunal a quo não violou qualquer disposição legal, pelo que se concorda com o juízo decisório pelo mesmo formulado, não merecendo censura a decisão sob recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela massa insolvente (artos 304º e 303º, este com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, ambos do CIRE).

Évora, 12 / 10 / 2017
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)