Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2112/16.0T8EVR-A.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Justifica-se o levantamento do sigilo das comunicações, autorizando as operadoras de telecomunicações móveis a prestarem o fornecimento da morada do cliente, nos termos do artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi do disposto no artigo 519.º, n.º 4 do CPC quando a informação solicitada é necessária para o correcto andamento do processo, para efeitos de citação, evitando assim o recurso à citação edital.
II – Nesse caso não há qualquer intromissão na vida privada da referida cliente e executada ou qualquer violação de outro direito consagrado e por isso a divulgação dessa informação, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada e o interesse na boa administração da justiça apresenta-se, na situação concreta, superior ao decorrente do dever de confidencialidade e mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito.
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:


1 – Relatório:

BB (A), casado, contribuinte fiscal n.º …, residente na Rua …, n.º …, 3.° esquerdo, Montemor-o-Novo, intentou contra CC (R), casada, com residência no Algarve, morada desconhecida, acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Perante a impossibilidade de citação da R por estar ausente em parte incerta, determinou, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 236.° do Código de Processo Civil, a solicitação junto das operadoras móveis nacionais, de informação sobre a respectiva residência.
Veio a Vodafone Portugal Comunicações Pessoais, S.A. responder ao solicitado, informando que a R é sua cliente, mas apresentando pedido de escusa na prestação da informação solicitada, uma vez que a cliente solicitou confidencialidade dos seus dados aquando da subscrição do serviço. Invoca o sigilo das comunicações, nos termos do disposto nos artigos 34.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 4.°, n.º 1 da Lei n.º 4/2004, de 18/08, alterada pela lei n.º 46/2012, de 29/08.
A 1.ª instância solicitou a quebra do sigilo invocado pela Vodafone Portugal Comunicações Pessoais, S.A., bem como a determinação de satisfação da informação que lhe foi solicitada no âmbito dos autos, por a obtenção da informação em causa ser de extrema importância para os presentes autos - por representar a diferença entre a citação pessoal e a citação edital, sendo esta última a que menos garante a segurança e certezas jurídicas e o efectivo exercício dos direitos processuais da R.


2. Questão a decidir.

Apreciar se estão reunidos os requisitos para determinar o levantamento do sigilo das comunicações, autorizando as operadoras de telecomunicações móveis a prestarem as informações, nos termos do artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi do disposto no artigo 519.º, n.º 4 do CPC.


3. O Direito.

Decorre do art.º 34.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, sendo, “proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
Importa, por isso, saber se a informação sobre a residência da R, utilizadora dos serviços em causa, integra a violação do sigilo a que está obrigada a operadora.
A Lei n.º 91/97, de 1 de Agosto, que instituiu a nova Lei de Bases das Telecomunicações, revogando a Lei n.º 88/89, de 11 de Setembro, consagrou os princípios da liberdade de estabelecimento e da prestação de serviços de telecomunicações – artigos 7.º e 11.º e o art.º 17.º do citado diploma legal, estabelece o sigilo das comunicações.
Por outro lado, a Lei n.º 69/98, de 20.10, veio regular o tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das comunicações, consignando o seu art.º 11.º que:
“1 - Os dados pessoais inseridos em listas impressas ou electrónicas de assinantes acessíveis ao público ou que se possam obter através de serviços de informações telefónicas devem limitar-se ao estritamente necessário para identificar um determinado assinante, a menos que este tenha consentido inequivocamente na publicação de dados pessoais suplementares.
2 - O assinante tem o direito de, a seu pedido e gratuitamente: a) Não figurar em determinada lista, impressa ou electrónica; b) Opor-se a que os seus dados pessoais sejam utilizados para fins de marketing directo; c) Solicitar que o seu endereço seja omitido total ou parcialmente; d) Não constar nenhuma referência reveladora do seu sexo.
3 - Os direitos a que se refere o n° 2 são conferidos aos assinantes que sejam pessoas singulares ou pessoas colectivas sem fim lucrativo.”
Não se pondo em causa o dever de sigilo quanto à divulgação dos dados pessoais da R enquanto sua cliente, o que se pretende nos presentes autos é, tão-só, a indicação da morada da mesma (dados base) para efeitos de citação, evitando assim o recurso à citação edital.
Como tem vindo a ser entendimento da jurisprudência e doutrina, nestas situações, não obstante a confidencialidade, os dados poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias, por força do disposto nos artigos 519.°, n.º 4 do Código de Processo Civil e 135.° do Código de Processo Penal, dado que "o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse pessoal do utilizador e não contende com a respectiva esfera privada intima." Acórdão do TRL de 20.06.2013 proferido no processo n.º 746/05.2TJLSB.L8 (www.dgsi.pt).
Também neste sentido, vide o Acórdão do TRL de 29.06.2006, proferido no processo n.º 4949/2006-6 (www.dgsi.pt), onde se pode ler o seguinte:
“há que distinguir entre o dever de sigilo propriamente dito e a simples confidencialidade de certos dados, ligados exclusivamente, à "esfera pessoal simples dos cidadãos", isto é, aqueles dados que dizem respeito à identificação, residência, profissão, entidade empregadora, situação patrimonial.
Aqui, o carácter sigiloso deriva, apenas, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação, relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima.
Portanto, o fornecimento da morada do cliente pela V, embora determine a violação de um sigilo profissional, não importará, qualquer intromissão na vida privada da referida cliente ou qualquer violação de outro direito consagrado.
Donde se conclui que a divulgação dessas informações, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.
Nesse caso, deve prevalecer o interesse público fundamental subjacente ao dever de cooperação com a administração da justiça.
Ora, face a esta colisão de direitos/deveres, deve prevalecer o direito que socialmente, se situe num patamar de interesse superior, sendo certo que a superioridade do dever de colaboração com a administração da justiça e o direito da Exequente em ser ressarcida do seu crédito revelam-se como claramente superiores.”
Aliás, no próprio parecer do Conselho Consultivo da PGR invocado pela operadora no seu pedido de escusa (n.º 2112000, D.R., II série, de 8/8/2000), se consigna tal entendimento, referindo que "(. . .) Em relação aos dados de base, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse pessoal do utilizador que não contende com a respectiva esfera privada intima, os correspondentes elementos de informação poderão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária (. . .).".
Também a doutrina se pronuncia neste sentido, sendo disso exemplo Paulo Pinto de Albuquerque, ao referir no Comentário do Código de Processo Penal, anotação ao artigo 189.°, que "[a] obtenção dos dados de base, isto é, dos dados de conexão à rede, tais como a identidade do titular do telefone, a sua morada e o número de telefone, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, obedece ao regime do artigo 135.º do CPP. Estes elementos estão a coberto do sigilo profissional das operadoras telefónicas, mas não contendem com a privacidade dos titulares, pelo que podem ser comunicados a pedido de qualquer autoridade judiciária, aplicando-se correspondentemente, quando tenha sido deduzida escusa, o regime processual do incidente previsto no artigo 135º do CPP.
No caso dos autos justifica-se a quebra do sigilo até no interesse da cliente, pelo que o fornecimento da morada do cliente, embora determine a violação de um sigilo profissional, não importará, qualquer intromissão na vida privada da referida cliente e executada ou qualquer violação de outro direito consagrado e por isso a divulgação dessa informação, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.
O interesse na boa administração da justiça apresenta-se, na situação concreta, superior ao decorrente do dever de confidencialidade e a informação solicitada é necessária para o correcto andamento do processo, mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito.
A propósito de um caso semelhante foi emitido Parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (Actual CNPD) n.º 29/98, de 16.04.98, no âmbito da Acção Sumária n.º 644/96 da 1.ª secção do 7.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, que admitindo a quebra do sigilo, conclui do seguinte modo:
A) A tutela constitucional do sigilo da correspondência e das telecomunicações, objecto do art.º 34.º nºs 1 e 4 da Const. Rep. Port. abrange quer o denominado "tráfego" da comunicaçao, quer o conteúdo desta;
B) O dado pessoal "morada", isoladamente considerado e fornecido pelo assinante à TMN, a título confidencial, quando da contratualização do respectivo serviço telefónico, não se integra no âmbito daquele direito constitucional;
C) Mas antes no dever de sigilo profissional, quer na vertente dos profissionais das telecomunicações, quer na da protecção de dados pessoais informatizados, uma vez que o mesmo existe em ficheiro informatizado - artºs 4º nº 2 do Reg. aprovado pelo D.L. 240/97, de 18/09 e 32º da Lei 10/91;
D) Ainda que como tal possa ser integra do, tal direito admite restrições, quer decorrentes e, expressamente, no âmbito do processo criminal, quer os resultantes da lei, nos termos do Artº 18º nº 2 e 3 da Const.Rep.Port.;
E) Os referidos sigilos, quando em colisão com o também constitucionalmente garantido "acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva", na vertente do "direito a acção", devem ceder e dar a primazia a este, atenta a sua vertente pública, no sentido de garantir a "paz social", contrastando com o interesse privado daqueles;
F) Sobretudo quando, decorridos dois anos após a propositura de competente acção cível, seja o único meio ao dispor do Tribunal para se apurar a morada do Réu, possibilitando, assim a sua citação;
G) Considerando-se nula a danosidade social resultante da comunicação de tal morada, perante e em confronto com a resultante da violação daquele direito a acção, constituindo mesmo medida equilibrada e proporcionada
H) Já que garantida está a mínima utilização de tal informação, limitada e apenas "na medida indispensável a realização" do fim a que se destina - a citação do Réu - "não podendo sequer ser injustificadamente divulgada nem constituir objecto de ficheiro de informações nominativas" - Artº 519º-A nº 2 do CPC.
I) Sendo também esse o critério da ponderação dos interesses em colisão para que remete o Artº 135º nº 3 do CPP, relativamente à decisão sobre o pedido de escusa referido.»
Deve pois ser levantado o sigilo.

Sumário:
I - Justifica-se o levantamento do sigilo das comunicações, autorizando as operadoras de telecomunicações móveis a prestarem o fornecimento da morada do cliente, nos termos do artigo 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi do disposto no artigo 519.º, n.º 4 do CPC quando a informação solicitada é necessária para o correcto andamento do processo, para efeitos de citação, evitando assim o recurso à citação edital.
II – Nesse caso não há qualquer intromissão na vida privada da referida cliente e executada ou qualquer violação de outro direito consagrado e por isso a divulgação dessa informação, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada e o interesse na boa administração da justiça apresenta-se, na situação concreta, superior ao decorrente do dever de confidencialidade e mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito.


3 – Dispositivo:

Pelo exposto, tudo visto e ponderado, o Tribunal da Relação de Évora concede a dispensa do dever de sigilo da Vodafone Portugal Comunicações Pessoais, S.A. para prestar a informação sobre a residência da ré, informação que, consequentemente, deve ser prestada.
Sem custas.

12.04.2018
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite
Silva Rato