Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
116/17.4YREVR
Relator: FERNANDO RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
JUÍZO LOCAL CRIMINAL E JUÍZO CENTRAL CRIMINAL
TRANSIÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 08/24/2017
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIDA A COMPETÊNCIA
Sumário:
I - Porque o acórdão que operou o cúmulo jurídico de penas, no âmbito de processo comum singular, proferido pelo então Tribunal de Circulo de Vila Franca de Xira, transitou em julgado em 12-01-2010, ou seja, antes da entrada em vigor da nova LOSJ, tratando-se de processo comum singular pendente num tribunal de competência genérica, devia transitar, como transitou, para a respectiva instância local, nos termos do n.º5 do artigo 104.º do DL n.º 49/2014, de 27 de Março, pois a competência do tribunal singular para a tramitação do processo já julgado estava fixada na lei anterior e nenhum ato relevante da competência do tribunal coletivo foi praticado depois da entrada em vigor da nova LOSJ.

II – Por isso, a competência para a tramitação dos subsequentes actos processuais, nomeadamente para a execução da pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, cabe ao juízo local criminal, onde se encontra pendente, e não ao Juízo Central Criminal.
Decisão Texto Integral:
I. Relatório:

Nos autos de processo comum singular n.º 487/07.0GCBNV, do juízo local criminal de Benavente, da comarca de Santarém, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, suscitou a resolução de conflito negativo de competência surgido no âmbito daquele processo quanto à sua tramitação subsequente, porquanto quer a Meritíssima Juíza titular do processo, quer a Meritíssima Juíza do juízo Central Criminal de Santarém se atribuem reciprocamente competência, para o efeito, negando a própria, entendendo o Exmo. Magistrado requerente que a competência para a subsequente tramitação do processo deverá ser atribuída ao Juízo Central Criminal de Santarém.

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, no sentido de que deve atribuir-se a competência para os ulteriores termos do processo ao Juízo Central Criminal de Santarém.

II. Fundamentação:

A) Elementos com relevo para a solução do caso:

1. No âmbito do processo, comum, singular, registado sob o n.º 487/07.0GCBNV, do então 2.º Juízo do Tribunal da comarca de Benavente, o arguido A. foi condenado, por factos ocorridos em 25 de Setembro de 2007 e decisão transitada em julgado en 7 de Julho de 2009, por dois crimes de roubo, na forma consumada, na pena de 20 meses de prisão, por cada um deles, fixando-se a pena única em 24 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.

2. Posteriormente, perante o conhecimento superveniente do concurso daquele crime com outros ilícitos penais, foi proferido, em 21 de Dezembro de 2009 pelo tribunal coletivo, do então Círculo Judicial de Vila Franca de Xira, acórdão de cúmulo jurídico, (transitado em julgado), donde resultou a condenação do arguido acima identificado na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, acompanhada de regime de prova.

3. Por decisão de 11 de Novembro de 2011 foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão.

4. Com data de 21-04-2016 e na sequência de promoção do Ministério Público, a Srª. Juíza, da então Secção Criminal da instância local de Benavente, lavrou o seguinte despacho:

“Compulsados os autos verifica-se que assiste, efectivamente, razão ao Ministério Público, quando na promoção que antecede refere que a competência para a tramitação dos presentes autos passou, em face da entrada em vigor da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) a competir às Secções Criminais da instância central – cf. art. 118.º, n.º1 da LOSJ.

Na verdade, prevê o art. 104.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, que regulamenta a LOSJ, que os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos actuais tribunais, transitam para as secções especializadas das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial.

Assim sendo, porque a competência para os termos subsequentes à decisão proferida pelo Tribunal Colectivo nestes autos é, salvo melhor entendimento, da secção criminal da instância central de Santarém, declara-se este Tribunal incompetente para a tramitação subsequentes destes autos determinando-se, em consequência, a remessa ao tribunal competente em conformidade. (…)”

5. Remetidos os autos à referenciada Secção Criminal da Instância Central de Santarém, foi, em 21-09-2016, proferido despacho nos seguintes termos:

«Por sentença, transitada em julgado em 7 de Julho de 2009, A. foi condenado, perante Juiz Singular, pela prática de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelos artigos 210.º, n.º1 do Código Penal, na pena única, em cúmulo jurídico, de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova (cfr. fls. 206 e ss).

Posteriormente, perante o conhecimento superveniente do concurso daquele crime com outros ilícitos penais, foi proferido, em 21 de Dezembro de 2009, pelo tribunal colectivo do então Círculo Judicial de Vila Franca de Xira, acórdão de cúmulo jurídico, transitado em julgado em 12 de Janeiro de 2010 donde resultou a condenação do arguido acima identificado na pena única de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova (cfr. fls. 293 e ss).

Por despacho, proferido em 21 de Abril de 2016, o Mm.º Juiz da Secção de competência criminal da Instância Local de Benavente, da Comarca de Santarém, declarou este tribunal funcional e materialmente incompetente para proceder à tramitação dos presentes autos, ordenando a remessa dos mesmos a esta Instância Central por entender que constitui o tribunal competente para a sua tramitação (cfr. fls. 585 e ss).

O Ministério Público pugnou pela declaração de incompetência desta Instância Central (cfr. fls. 592 e ss).

Cumpre apreciar e decidir.

A Reforma Judiciária que entrou em vigor em no dia 1 de Setembro de 2014 alterou não só o Mapa Judiciário como reestruturou competências.

Refere-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, que: “as instâncias centrais têm, na sua maioria, competência para toda a área geográfica correspondente à comarca e desdobram-se em secções cíveis, que tramitam e julgam, em regra, as questões cíveis de valor superior a (euro) 50 000,00, em secções criminais, destinadas à preparação e julgamento das causas crime da competência do tribunal coletivo ou de júri, e em secções de competência especializada, designadamente, secções de comércio, execução, família e menores, instrução criminal, e do trabalho, que preparam e julgam as matérias cuja competência lhes seja atribuída por lei.

As instâncias locais, que tramitam e julgam as causas não atribuídas à instância central, integram secções de competência genérica e podem desdobrar-se em secções cíveis, secções criminais, secções de pequena criminalidade e secções de proximidade.

As secções de competência genérica tramitam e julgam as causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada (…)”.

Por sua vez a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, estatui que:

“Artigo 118.º - Competência
1 - Compete às secções criminais da instância central proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal colectivo ou do júri (…)”.

“Artigo 130.º - Competência
1 - Compete às secções de competência genérica:
a) Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada; (…)”.

Donde resulta que a Instância Local tem competência genérica, mas residual.

Com a reestruturação ou reforma, os processos das antigas comarcas extintas deveriam transitar para as novas estruturas judiciárias, em conformidade com o estabelecido pelo legislador nos artigos 104.º e 105.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, que constituem normas transitórias.

Presentemente não existem tribunais colectivos a deslocarem-se a instâncias locais para julgarem ou tramitarem processos da competência destas, pois que estas (instâncias locais) apenas têm processos de competência própria do juiz singular. Neste contexto quando o tribunal colectivo se deslocar a um Tribunal de Instância Local será para julgar processo próprio, seu, da Instância Central.

Na anterior organização judiciária (com ressalva das Varas, Criminais, Cíveis ou de Competência Mista) os processos eram todos da competência da respectiva comarca e os juízes de círculo aí se deslocavam para julgar os processos que fossem da competência do tribunal colectivo (os círculos judiciais não funcionavam como um tribunal, apenas se referiam a uma área territorial de competência e não tinham processos próprios).

Face à lei em vigor, os processos da competência do tribunal colectivo correm na Instância Central e aqueles que não devam correr na Instância Central competem à Instância Local.

Deverá o processo transitar para a Secção Criminal da Instância Central de Santarém ou ser extraída apenas certidão para efeitos de execução da pena única aplicada pelos juízes que então integravam o tribunal colectivo do extinto tribunal de círculo de Vila Franca de Xira?

Ora, a interpretação jurídica constitui a uma actividade intelectual, respeitando esta à determinação da mensagem normativa que emerge de determinado texto legal, devendo concretizar-se numa reconstituição, a partir do texto – e estamos a parafrasear o artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil –, do pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias de elaboração da lei e as condições específicas da sua aplicação.

A modificação do regime jurídico de determinada matéria pode dar origem a um conflito sobre qual a norma aplicável ao facto ou situação concreta que é suposto ambas regularem, seja pela inexistência de disposições transitórias que visem salvaguardar essa dificuldade, seja porque nem sempre o recurso ao princípio lex posteriori derrogat legi priori pode bastar para determinar a lei aplicável ao caso particular. É que, como afirma Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (13.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2001, págs. 219 e ss, a entrada em vigor de uma lei nova ou até de um sistema jurídico inteiramente novo não provoca um corte radical na continuidade da vida social.

Há factos e situações que, tendo-se verificado antes da entrada em vigor da lei nova, tendem a continuar no futuro ou a projetar-se nele. Há situações jurídicas no passado que se prolongam no futuro.

A nova lei constitui uma "intromissão" na vida social marcando o "antes" e o "depois" a partir do qual passa a aplicar-se; não raras vezes a lei nova se depara com situações oriundas do passado, que dele se desprendem projetando-se no futuro.

Para resolver estas situações de transição quanto à lei aplicável e afastar a dúvida sobre se estão sujeitas ao domínio da lei antiga ou se, ao invés, já se encontram sob a autoridade da lei nova a própria lei pode estabelecer disposições transitórias, de ordem material ou formal, solucionando as hipóteses que surgem na delimitação de uma e outra lei (cfr. António Menezes Cordeiro, Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias, in Legislação, Cadernos de Ciência e Legislação, Instituto Nacional de Administração, n.º 7 (Abril/Junho de 1993), pág. 7 e ss, Baptista Machado, ob. cit., pág. 230, e Nuno Sá Gomes, Introdução ao Estudo do Direito, Lex, Lisboa, 2001, pág. 292 e ss).

Na falta desse direito transitório, rege o artigo 12.º do Código Civil, que consagra um princípio geral de Direito, e que, como princípio geral, vale no Direito privado e no Direito público. Aquele preceito legal mostra-se assim redigido:

"Artigo 12.º
Aplicação das leis no tempo. Princípio geral
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor."

A formulação deste preceito é tributária da teoria do facto passado, na enunciação difundida por Ennecerus-Nipperdey, por contraponto à teoria dos direitos adquiridos. Pela primeira, seria retroativa "toda a lei que se aplicasse a factos passados antes do seu início de vigência "; para a segunda, seria retroativa toda a lei que violasse direitos já constituídos (adquiridos); para esta deveria respeitar os direitos adquiridos sob pena de retroatividade; para a primeira, "a lei nova não se aplicaria sob pena de retroatividade a factos passados e aos seus efeitos (só se aplicaria a factos futuros) ".

Nos termos do n.º1 daquela norma, consagra-se o princípio geral da não retroatividade da lei, no sentido de que as leis só se aplicam para o futuro (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, anotação ao artigo 12.º, pág.18), mesmo que se apliquem para o passado, conferindo-se-lhes eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos jurídicos já produzidos.

Trata-se de uma "retroatividade mitigada, traduzida apenas na sua aplicação aos efeitos pendentes e não aos efeitos extintos ou esgotados na vigência da lei antiga e por maioria de razão, com ressalva dos próprios factos.” (cfr. Inocêncio Galvão Teles, Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, (11.ª edição, 2001, pág. 292 e ss).

No caso sub judice, o acórdão que operou o cúmulo jurídico de penas transitou em julgado em 12 de Janeiro de 2010, ou seja, antes da entrada em vigor da nova Lei de Organização do Sistema Judiciário, pelo que, à data da sua entrada em vigor, tratando-se de processo comum singular pendente num tribunal de competência genérica, devia transitar, como transitou, para a respectiva instância local, nos termos do n.º 5 do artigo 104.º, pois a competência do tribunal singular para a tramitação do processo já julgado estava fixada na lei anterior e nenhum ato relevante da competência do tribunal colectivo foi praticado depois da entrada em vigor da nova Lei de Organização do sistema Judiciário.

Assim, salvaguardado o devido respeito, das disposições transitórias prevenidas no artigo 104.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, e sua conjugação com o artigo 12.º do Código Civil, entendemos que a secção de competência criminal da Instância Local de Benavente continua a ser competente para a tramitação do processo comum singular que lhe foi distribuído. Nestes termos, julgo o presente tribunal material e funcionalmente incompetente para a subsequente tramitação processual dos presentes dos presentes autos e determino a remessa dos mesmos para a Secção Criminal da Instância Local de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

Notifique.
Após trânsito, remeta os autos à Secção Criminal da Instância Local de Benavente do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

Em face de todo o exposto fica prejudicada a questão da rectificação da errada distribuição do presente processo comum singular sob a espécie de “comum colectivo”.»

5. Os despachos em conflito transitaram em julgado.

B) Cumpre decidir:

O núcleo do diferendo existente entre as Exmªs Juízas conflituantes consiste em determinar, à luz da nova Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, com as alterações entretanto introduzidas pela Lei n.º 40-A/2016, de 24 de Dezembro -, em que juízo do tribunal da comarca de Santarém deve correr termos o processo inicialmente tramitado, na vigência da antiga lei da Organização Judiciária, sob a alçada de tribunal singular, no qual foi imposta ao arguido determinada pena, tendo, posteriormente, em razão de do conhecimento superveniente de infrações em concurso, sido submetido à alçada do tribunal colectivo do então circulo de Vila Franca de Xira, onde, após julgamento, foi fixada uma pena única de 2 anos e 9 meses de prisão; se no Juízo Central Criminal – ou, diversamente, no Juízo local criminal de Benavente.

A resposta para esta questão há-de ser encontrada no âmbito da LOSJ e do respectivo regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, entretanto alterado pelo DL 86/2016, de 27 de Dezembro, bem como no regime pré-vigente a este.

Sobre questão similar já se pronunciou o mesmo relator na decisão singular proferida em 10-05-2016, citada pela Exma. Senhora Procuradora da República junto do Juízo Central Criminal de Santarém, no processo de conflito negativo de competência com o n.º 44/16.0YREVR, acessível in www.dgsi.pt, da qual foram extraídos excertos pela Exma. Juíza do Juízo Central Criminal de Santarém, ainda que sem menção da fonte.

Referiu-se ali que:
«A Reforma Judiciária que entrou em vigor em no dia 1 de Setembro de 2014 alterou não só o Mapa Judiciário como reestruturou competências.

Refere-se no preâmbulo do DL n.º 49/2014, de 27 de Março, que:

“As instâncias centrais têm, na sua maioria, competência para toda a área geográfica correspondente à comarca e desdobram-se em secções cíveis, que tramitam e julgam, em regra, as questões cíveis de valor superior a (euro) 50 000,00, em secções criminais, destinadas à preparação e julgamento das causas crime da competência do tribunal coletivo ou de júri, e em secções de competência especializada, designadamente, secções de comércio, execução, família e menores, instrução criminal, e do trabalho, que preparam e julgam as matérias cuja competência lhes seja atribuída por lei.

As instâncias locais, que tramitam e julgam as causas não atribuídas à instância central, integram secções de competência genérica e podem desdobrar-se em secções cíveis, secções criminais, secções de pequena criminalidade e secções de proximidade,

As secções de competência genérica tramitam e julgam as causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada …” (sublinhados nossos).
Por sua vez a Lei n.º 62/2013, de 26-08, estatui:

“Artigo 118.º - Competência
1 - Compete às secções criminais da instância central proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri.
2-…”.

“Artigo 130.º - Competência
1 - Compete às secções de competência genérica:

a) Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada; …”.

Donde resulta que a Instância Local tem competência genérica, mas residual.

Com a reestruturação ou reforma, os processos das antigas comarcas extintas deveriam transitar para as novas estruturas judiciárias, em conformidade com o estabelecido pelo legislador nos artigos 104.º e 105.º do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, que constituem normas transitórias.

Atualmente não existem tribunais coletivos a deslocarem-se a instâncias locais para julgarem ou tramitarem processos da competência destas, pois que estas (instâncias locais) apenas têm processos de competência própria do juiz singular. Atualmente quando o tribunal coletivo se deslocar a um Tribunal de Instância Local será para julgar processo próprio, seu, da Instância Central.

Na anterior organização judiciária (com ressalva das Varas, Criminais, Cíveis ou de Competência Mista [1]) os processos eram todos da competência da respetiva comarca e os juízes de círculo aí se deslocavam para julgar os processos que fossem da competência do tribunal coletivo (os círculos judiciais não funcionavam como um tribunal, apenas se referiam a uma área territorial de competência e, não tinham processos próprios).

Face à lei em vigor, os processos da competência do tribunal coletivo correm na Instância Central e aqueles que não devam correr na Instância Central competem à Instância Local.»

Entretanto, entrou em vigor a Lei n.º 40-A/2016, de 24 de Dezembro, que alterou a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), e que visou reabrir alguns tribunais que tinham sido fechados em 2013, alterar a nomenclatura judiciária, proceder a alguns aperfeiçoamentos da LOSJ e introduzir algumas alterações ao regime estabelecido.

Em vez de instâncias locais e centrais, os tribunais judiciais de comarca passaram a integrar juízos de competência especializada (nestes se englobando, no que ao caso releva, os juízos centrais criminais e os juízos locais criminais, que passam a ser desdobramentos do tribunal de comarca)

O artigo 118.º da LOSJ passou a ter a redação que segue:

1 - Compete aos juízos centrais criminais proferir despachos nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri.

2 - Os juízos centrais criminais de Lisboa e do Porto têm competência para o julgamento de crimes estritamente militares, nos termos do Código de Justiça Militar.

Por sua vez, o artigo 130.º do mesmo diploma, sob a epígrafe “competência” passou a ter a seguinte redação:

1 - Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.

2 - Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem ainda competência para:

a) Proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver juízo de instrução criminal ou juiz de instrução criminal;

b) Fora dos municípios onde estejam instalados juízos de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por esse juízo especializado;

c) Exercer, no âmbito do processo de execução, as competências previstas no Código de Processo Civil, onde não houver juízo de execução ou outro juízo ou tribunal de competência especializada competente;

d) Julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os recursos expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada;

e) Cumprir os mandados, cartas, ofícios e comunicações que lhes sejam dirigidos pelos tribunais ou autoridades competentes;

f) Exercer as demais competências conferidas por lei.

3 - Nas situações a que se reporta a alínea b) do número anterior, o Conselho Superior da Magistratura define, detalhadamente, os atos jurisdicionais a praticar por cada um dos juízos locais e juízos de competência genérica.
4- (…)
5- (…)
6- (…).

Os juízos locais criminais, os juízos locais de pequena criminalidade e os juízos locais de competência genérica têm a mesma competência residual, que já constavam da versão originária do artigo 130.º da LOSJ – vide também os artigos 132.º, n.º2 e 134.º do mesmo diploma.

Deverá o processo transitar para o Juízo Central Criminal de Santarém, como sustentam a Sr.ª Juíza do Juízo Local Criminal de Benavente e o MP junto desse juízo, ou manter-se no Juízo onde tem corrido os seus trâmites?

Como já referi na decisão proferida em 10-05-2016, “…não secundamos o decidido, em sede de conflitos de competência, pelo Tribunal da Relação de Coimbra [2] para situações verificadas no âmbito da antiga Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

A interpretação jurídica constitui a uma atividade intelectual, respeitando esta à determinação da mensagem normativa que emerge de determinado texto legal, devendo concretizar-se numa reconstituição, a partir do texto – e estamos a parafrasear o artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil –, do pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias de elaboração da lei e as condições específicas da sua aplicação.

A modificação do regime jurídico de determinada matéria pode dar origem a um conflito sobre qual a norma aplicável ao facto ou situação concreta que é suposto ambas regularem, seja pela inexistência de disposições transitórias que visem salvaguardar essa dificuldade, seja porque nem sempre o recurso ao principio lex posteriori derrogat legi priori pode bastar para determinar a lei aplicável ao caso particular[[3]]. É que, como afirma Baptista Machado [[4]], a entrada em vigor de uma lei nova ou até de um sistema jurídico inteiramente novo não provoca um corte radical na continuidade da vida social. Há factos e situações que, tendo-se verificado antes da entrada em vigor da lei nova, tendem a continuar no futuro ou a projetar-se nele. Há situações jurídicas no passado que se prolongam no futuro.

A nova lei constitui uma "intromissão" na vida social marcando o "antes" e o "depois" a partir do qual passa a aplicar-se; não raras vezes a lei nova se depara com situações oriundas do passado, que dele se desprendem projetando-se no futuro.

Para resolver estas situações de transição quanto à lei aplicável e afastar a dúvida sobre se estão sujeitas ao domínio da lei antiga ou se, ao invés, já se encontram sob a autoridade da lei nova a própria lei pode estabelecer disposições transitórias, de ordem material ou formal[[5]], solucionando as hipóteses que surgem na delimitação de uma e outra lei.

Na falta desse direito transitório, rege o artigo 12.º do Código Civil, que consagra um princípio geral de Direito, e que, como princípio geral, vale no Direito privado e no Direito público. Aquele preceito legal mostra-se assim redigido:

"Artigo 12.º
Aplicação das leis no tempo. Princípio geral

1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor."

A formulação deste preceito é tributária da teoria do facto passado, na enunciação difundida por Ennecerus-Nipperdey, por contraponto à teoria dos direitos adquiridos. Pela primeira, seria retroativa "toda a lei que se aplicasse a factos passados antes do seu início de vigência "; para a segunda, seria retroativa toda a lei que violasse direitos já constituídos (adquiridos); para esta deveria respeitar os direitos adquiridos sob pena de retroatividade; para a primeira, "a lei nova não se aplicaria sob pena de retroatividade a factos passados e aos seus efeitos (só se aplicaria a factos futuros) ".

Nos termos do n.º1 daquela norma, consagra-se o princípio geral da não retroatividade da lei, no sentido de que as leis só se aplicam para o futuro[[6]]; mesmo que se apliquem para o passado, conferindo-se-lhes eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos jurídicos já produzidos.

Trata-se de uma "retroatividade mitigada, traduzida apenas na sua aplicação aos efeitos pendentes e não aos efeitos extintos ou esgotados na vigência da lei antiga e por maioria de razão, com ressalva dos próprios factos.”[[7]]

O acórdão que operou o cúmulo jurídico de penas, no processo comum singular n.º 487/07.0GCBNV, ora pendente no juízo local criminal de Benavente, transitou em julgado antes da entrada em vigor da nova LOSJ, pelo que, à data da sua entrada em vigor, tratando-se de processo comum singular pendente num tribunal de competência genérica, devia transitar, como transitou, para a respectiva instância local (ora juízo local criminal de Benavente), nos termos do n.º5 do artigo 104.º, pois a competência material e territorial do tribunal singular para a tramitação do processo já julgado estava fixada na lei anterior e nenhum ato relevante da competência do tribunal coletivo foi praticado depois da entrada em vigor da nova LOSJ.

Assim, salvaguardado o devido respeito, das disposições transitórias prevenidas no artigo 104.º do DL 49/2014, de 27 de Março, e sua conjugação com o artigo 12.º do Código Civil, entendemos que o juízo local criminal de Benavente continua a ser o materialmente competente para a tramitação do processo comum singular que lhe foi distribuído.

Admitir o contrário seria contribuir para “empanturrar” os juízos centrais criminais com processos comuns singulares já decididos, o que, por certo, não esteve no pensamento do legislador ao criar disposições transitórias para regular a transferência dos processos pendentes dos juízos extintos para os novos tribunais.

III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, atribuo ao juízo local criminal de Benavente a competência para a tramitação do processo comum singular n.º487/07.0GCBNV.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no artigo 36.º, n.º 3, do CPP.

Dê-se também conhecimento do teor deste despacho ao Sr. Juiz Presidente do Tribunal da Comarca de Santarém.

(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da Secção Criminal do TRE)

Évora, 2017-08-24


Fernando Ribeiro Cardoso

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[1] - De facto, as antigas Varas eram, como agora são os Juízos Centrais, juízos de competência específica e, conforme agora refere o artigo 118.º da lei 62/2013, referia também o artigo 98.º da lei nº 3/99, com epigrafe “Varas criminais” - [revogado - Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto]:

1 - Compete às varas criminais proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri”.

E nas Comarcas onde existiam Varas Criminais, processos que houvessem de ser julgados em Coletivo transitavam para as Varas e aí eram julgados e tramitados posteriormente, como processos próprios.

[2] - Decisões de 28-01-2015 e 25-03-2015, ambas acessíveis em www.dgsi.pt.

A decisão de 25-02-2015, do mesmo TRC, reporta-se a situação diversa, pois está em causa a necessidade de efetuar um cúmulo jurídico de penas, para o qual é competente o tribunal colectivo, surgida já vigência da LOSJ, e pretendia-se saber qual o Tribunal competente para a tramitação processual subsequente, resultante da necessidade de efetivação de audiência de cúmulo jurídico por tribunal diferente daquele onde corria o processo, vindo a entender-se que a competência do Tribunal Singular se mantinha, exceto para proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do Tribunal Coletivo, como é o caso previsto no artigo 471.º do CPP. Aqui a intervenção do Juízo Central Criminal não é suscitada para qualquer julgamento, mas antes para a execução de uma pena única de 2 anos e 9 meses de prisão aplicada na vigência da antiga LOFTJ.

[3] - Com efeito, as questões da revogação da lei e da aplicação da lei no tempo, embora conexas, não se confundem. A inexistência de dúvida sobre a revogação de determinado diploma legal não significa que aquela não se suscite sobre qual a lei, nova ou antiga, que deve regular certas situações jurídicas originadas no passado, que se prolongam no futuro e às quais se questiona qual a lei aplicável.

[4] - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, (13.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2001, págs. 219 e ss. Sobre a aplicação da lei no tempo é abundante a elaboração doutrinária, ao longo dos anos. António Menezes Cordeiro, Da aplicação da lei no tempo e das disposições transitórias, in Legislação, Cadernos de Ciência e Legislação, Instituto Nacional de Administração, n.º 7 (Abril/Junho de 1993), pág. 7 e ss; Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, volume I, 6.ª edição, reimpressão de 1973, pág. 199 e ss..; Nuno Sá Gomes, Introdução ao Estudo do Direito, Lex, Lisboa, 2001, págs. 291 e ss.; Quanto à solução adotada no artigo 12.º do Código Civil, veja-se Manuel a. Domingues de Andrade, Fontes de Direito, Vigência, Interpretação e Aplicação da Lei, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 102, pág. 141 e ss, especialmente o ponto 9, pág. 152.

[5] - O direito transitório é material quando corresponda a regras jurídicas especialmente concebidas para reger aquelas situações que tenham sido, em simultâneo, tocadas pela lei nova e pela lei antiga; é formal quando seja um direito de conflitos, quando em vez de regular diretamente os casos concretos abrangidos pela lei nova e pela lei antiga, se limite a dispor qual das duas leis é a aplicável ao caso. A opção por um ou por outro pertence ao legislador. Cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit. na nota anterior, pág. 20. No mesmo sentido, Baptista Machado, ob. cit., pág. 230, e Nuno Sá Gomes, ob. cit., pág. 292.

[6] - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1967, anotação ao artigo 12.º, pág.18.

[7] - Inocêncio Galvão Teles, ob. cit., pág. 292.