Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12-E/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
ESTADO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º DA LEI Nº 75/98, DE 19 DE NOVEMBRO, E 2º E 4º, Nº 5, DO DECRETO-LEI Nº 164/99, DE 13 DE MAIO
Sumário: 1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a intenção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e 69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.

2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o de­ver de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.

3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos de­vidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.

4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen-cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col-matar as necessidades do menor.

5) De harmonia com o Acórdão Uniformizador de Ju­risprudência A obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, e 2º e 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

Em 20.06.2008 o Ministério Público, em representação do menor A..., nascido a 23 de Julho de 1998, deduziu incidente de incumprimento da regulação do exercício do Poder Paternal contra B.....

Alegou, em síntese que o requerido não pagou as prestações de alimentos devidas ao menor, desde o mês de Junho de 2007 no total de € 1.134,77.

O requerido foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 181º, nº 2, da OTM e nada disse.

Designou-se data a para a conferência de pais que não se realizou por não ter comparecido o requerido (fls. 39/40).

Foi proferida a fls. 44 decisão a julgar verificado o incumprimento do requerido quanto a alimentos devidos ao seu filho menor, A...., desde o mês de Junho de 2007.

Atendendo aos elementos constantes dos autos não é possível recorrer ao mecanismo previsto no artigo 189º, da OTM.

O Centro Distrital de Segurança Social da Guarda procedeu a inquérito com vista a estabelecer judicialmente o montante da prestação alimentar que deverá ser atribuída ao menor a cargo do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, tendo concluído que os recursos económicos da família são escassos debatendo-se com alguns problemas económicos, sendo a prestação de alimentos importante para minimizar os mesmos.

Foi proferida sentença que fixou em € 87,29 (oitenta e sete euros e nove cêntimos) a prestação a pagar a favor do menor A.... pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, acrescida das prestações vencidas e não pagas pelo requerido desde Junho de 2007 até Maio de 2009, no montante total de € 2.094,96 (dois mil e noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos a pagar à mãe nos termos referidos.

Daí o presente recurso de agravo interposto pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, o qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a decisão em análise e se substitua a mesma por outra onde o apelante seja obrigado a efectuar o pagamento das prestações vincendas apenas a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A decisão ora recorrida interpretou e aplicou de forma errónea, ao caso sub iudice, o artº 1º da Lei 75/98, de 19/11, e o artº 4º nºs 4 e 5 do Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio.

2) Com efeito, o entendimento do meritíssimo Juiz a quo, de que no montante a suportar pelo FGADM devem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pelos progenitores judicialmente obrigados a prestar alimentos) não tem suporte legal.

3) O Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações.

4) No nº 5 do artº 4 do citado diploma, é explicitamente estipulado que “o Centro Regional de Segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal “nada sendo dito quanto às prestações em dívida pelo obrigado a prestar alimentos".

5) Existe uma delimitação temporal expressa que estabelece o momento a partir do qual o Fundo deve prestar alimentos ao menor necessitado.

6) Não foi intenção do legislador dos supra mencionados diplomas legais, impor ao Estado, o pagamento do débito acumulado pelo obrigado a prestar alimentos.

7) Tendo presente o preceituado no artº 9º do Có­digo Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado, apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo Tribunal dentro de determinados parâmetros – artº 3º nº 3 e artº 4º nº 1 do Dec-Lei 164/99, de 13/5, e artº 2º da Lei 75/98, de 19/11.

8) A prestação que recai sobre o Estado é, pois, uma prestação autónoma, que não visa substituir definitivamente a obrigação de alimentos do devedor, mas antes proporcionar aos menores a satisfação de uma ne­cessidade actual de alimentos, que pode ser diversa da que determinou a primitiva prestação.

9) O FGADM não garante o pagamento da prestação de alimentos não satisfeita pela pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, antes assegurando, face à verificação cumulativa de vários requisitos, o pagamento de uma prestação “a forfait” de um montante por regra equivalente – ou menor – ao que fora judicialmente fi­xado.

10) Só ao devedor originário é possível exigir o pagamento das prestações já fixadas, como decorre do disposto no artº 2 006º do CC, constatação que é reforçada no artº 7º do Dec-Lei 164/99 ao estabelecer que a obrigação principal se mantém, mesmo que reembolso haja a favor do Fundo.

11) Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal; a última visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência.

12) Enquanto o artº 2 006º do Código Civil está intimamente ligado ao vínculo familiar – artº 2009º do CC – e daí que quando a acção é proposta, já os alimentos seriam devidos, por um princípio de Direito Natural, o Dec-lei 164/99 “cria” uma obrigação nova, imposta a uma entidade que antes da sentença, não tinha qualquer obrigação de os prestar.

13) A obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM (autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal) não decorre automaticamente da Lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.

14) Se é diferente a natureza das duas prestações, diferente é também o momento a partir do qual se começam a vencer.

15) A prestação de alimentos, visto haver norma substantiva que o prevê, começa a vencer-se a partir da propositura da acção que fixou o quantitativo a satisfazer pelos progenitores do menor;

16) Já a prestação a satisfazer pelo FGADM começa a vencer-se no mês seguinte ao da notificação da decisão judicial que fixa o seu montante.

17) Não colhe o argumento de que o menor não pode ficar à mercê das contingências do processo e seu arrastamento pelos Tribunais, porquanto, como é do co­nhecimento geral, no entretanto, e enquanto o processo se encontra pendente do Tribunal, a verdade é que al­guém tem de alimentar o menor, sob pena de este não sobreviver.

18) O pagamento das prestações relativas ao período anterior não visaria propriamente satisfazer as necessidades presentes de alimentos a menor, constituindo, antes, um crédito de quem, na ausência do requerido, custeou unilateralmente (ao longo do anos) a satisfação dessas necessidades.

19) O Estado substituiu-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida por este, mas para assegurar os alimentos de que o menor necessita; para que este não volte a ter frio, não volte a ter fome (e não, para evitar que ele tivesse frio ou fome, pois tal é impossível. Já passou. É tarde de mais).

20) Daí a necessidade de produção de prova sobre os elementos constantes da Lei nº 75/98, de 19 de No­vembro e do Dec-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, que o Tribunal deve considerar na fixação da prestação a efectuar pelo Estado, prestação essa que não é necessariamente equivalente à que estava em dívida pelo progenitor.

21) Há ainda que salientar, que as atribuições de cariz social do Estado não se esgotam no FGADM, o qual constitui uma ínfima parte das mesmas, sendo certo que a todas o Estado tem de dar satisfação.

22) Não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do artº 2006º, dada a diversa natureza das prestações alimentares.

23) O FGADM somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas, a partir do mês seguinte ao da notificação da respectiva decisão judicial, e não pelo pagamento do débito acumulado dos obrigados.

24) O que se entende facilmente se atentarmos na finalidade da criação do regime instituído pelos supra citados diplomas legais, que é o de assegurar (garantir) os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

Com interesse para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. O menor A.... nasceu a 9 de Novembro de 1999, constando do seu assento de nascimento que é filho de C... e de B.....

2.1.2. Por sentença, datada de 24 de Abril de 2002, transitada em julgado, ficou o requerido obrigado ao pagamento da quantia mensal 87,29, a título de alimentos devidos ao menor, até ao primeiro dia do mês a que dissesse respeito.

2.1.3. O requerido não procedeu ao pagamento das prestações de alimentos a que estava obrigado a partir do mês de Junho de 2007, inclusive.

2.1.4. O menor vive com a mãe, com o irmão de dez anos de idade (Hugo Rafael Fonseca Bernardo) e companheiro da mãe (Paulo Jorge da Silva Duarte).

2.1.5. Até Março de 2009 a mãe frequentou um curso de formação profissional “Assistente de Serviços Pessoais e Apoio à Comunidade”, no âmbito do Rendimento Social de Inserção, auferindo o valor de € 419,22.

2.1.6. Actualmente a mãe do menor está desempregada e dependente da prestação do Rendimento Social de Inserção.

2.1.7. O companheiro da mãe efectua alguns trabalhos pontuais no ramo da construção civil, auferindo a importância mensal de cerca de cem euros.

2.1.8. O casal tem apoio ao nível de géneros alimentares no Programa Comunitário de Apoio Alimentar a Carenciados e em termos de vestuário através da Caritas.

2.1.9. Não foi possível obter o pagamento das prestações de alimentos fixadas e vencidas através do recurso aos meios previstos no artigo 189º da OTM.

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2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a meno­res suporta as prestações devidas desde a data da sen­tença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de nº 12/2009, de 07-07-2009.

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2.2.1. O Fundo de Garantia de Alimentos devidos a meno­res suporta as prestações devidas desde a data da sen­tença que fixa a sua contribuição ou desde a data da entrada do pedido em Juízo?

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de nº 12/2009, de 07-07-2009.

                     

A sentença apelada considerou verificado o incumprimento da prestação de alimentos ao menor A... desde Junho de 2007 até Maio de 2009 data do aresto em crise, condenando o Fundo de Garantia de Alimentos a Menores a pagar à mãe do menor importância de € 2. 094,96.

Discordando do decidido agrava o IGFSS sustentando que as importâncias a pagar pelo aludido Fundo em substituição do primitivo obrigado só abrangem as que se vencerem decorrido que seja um mês sobre a data da sentença que as fixa.

Vejamos:

O artigo 2º da Lei Fundamental refere que a Repú­blica Portuguesa é um Estado de direito demo­crático baseado na soberania popular, no pluralismo de expres­são e organização política democráticas, no res­peito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fun­damentais e na separação e interdependên­cia de pode­res, visando a realização da democracia eco­nómica, so­cial e cultural e o aprofundamento da demo­cracia par­ticipa­tiva". Este princípio genérico é em seguida con­creti­zado nos artigos 63º nº 3 e 69º nº 2 da Constitui­ção da República onde é cometida ao Estado a protecção dos cidadãos no que toca à falta ou diminuição dos meios de subsistência assegu­rando nomeadamente especial protec­ção às crianças órfãs, abandonadas ou por qual­quer forma privadas de um ambiente familiar normal.

No desenvolvimento da ideia programática de Estado social, consagra a Constituição vários direitos dessa índole no título III, sob a epígrafe de Direitos e Deve­res económicos sociais e culturais; no elenco dos direitos e deveres sociais, ali se patenteia todo um conjunto de princípios ordenadores votado a uma cober­tura protectora daqueles direitos de que são exemplos as medidas a tomar no campo da saúde – artigo 64º, habitação e urbanismo – artigo 65º, ambiente e quali­dade de vida – 66º, famí­lia, paternidade e maternidade, infância, juventude e terceira idade – artigos 69º a 72º. No que toca a alimentos, nomeadamente devidos a menores (e que são objecto da nossa análise), esse di­reito aparece claramente consagrado no artigo 63º nº 2 e 69º nº 2 do Diploma Fundamental como uma obrigação do Estado em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência; existe nestes casos um direito origi­nário a prestações[1]; o Estado tem aqui o dever de criar os pressupostos mate­riais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos. Não se trata na verdade aqui de sugerir um objectivo; muito embora reconhecendo ao legislador ordinário liberdade na esco­lha de meios com vista à realização do programa social neste domínio, a Constituição compromete os poderes públicos na consecu­ção dos seus objectivos, mau grado considerando os con­dicionalismos econó­micos que rodeiam a respectiva con­cretização[2]. A ausên­cia de legislação neste domínio é mesmo susceptível de enqua­drar "incons­titucionalidade por omissão". Na verdade e nos termos do preceituado no artigo 293º da CRP "o Tribunal Cons­titu­cional aprecia e verifica o não cumprimento da Consti­tuição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exe­quíveis as normas constitu­cionais.

2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente".

A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a inten­ção programática fixada na Lei Fundamental.

Do artigo 1º da referida Lei ressalta a função primária do Fundo i.e. de suprir as necessidades do me­nor quando não for possível obter alimentos da pessoa judicialmente obrigada a tal pelas formas a que alude o artigo 187º do DL 314/78 de 27 de Outubro e o menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional; Por seu turno, o DL 164/99 de 13 de Maio, veio no artigo 3º nº 1 alínea a), a acrescentar um ou­tro pressuposto da intervenção estadual "não benefi­ciar [o menor] de rendimentos de outrem a cuja guarda se encon­tre, superiores ao salário mínimo nacional". Exige-se ainda para que o Fundo intervenha, a falta de pagamento voluntário e que tenham resultado infrutífe­ros os esforços envidados para obter o pagamento, no âmbito de um processo de incumprimento a que alude o artigo 189º da Organização Tutelar de Menores.

À semelhança do que sucede nos ordenamentos jurídi­cos europeus congéneres e nomeadamente o alemão, como frisámos, também a lei veio sub-rogar o Fundo no lugar em todos os direitos do menor a quem sejam atri­buídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.

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A questão que nos ocupa não vem expressamente regu­lamentada em qualquer dos Diplomas que regulam a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menor, pelo que não é possível recolher através do ele­mento literal da Lei nº 75/98 de 19 de Novembro ou do DL nº 164/99 de 13 de Maio, a solução que se pretende; tal só será viável através da interpretação teleológica das normas em causa com inserção no sistema de que fazem parte.

Vínhamos entendendo e procurando justificar que muito embora não competisse ao Fundo asse­gurar as prestações que antes da propositura da acção eventualmente estejam em dívida, a intervenção daquela entidade teria lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo atra­vés do requeri­mento que ia desencadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pre­tende adequada a colmatar as necessida­des do menor. Seria na verdade incomportável para o Estado colmatar carências pretéri­tas do menor, bem como pedagogicamente inadequado subs­tituir o originário obrigado a alimentos no seu inalie­nável dever de prover ao sustento e educação do menor a seu cargo. Tal incen­tivaria o desleixo do obrigado, sa­bendo o mesmo a priori que o Estado supriria as suas faltas. Tratar-se-ia tão só de ponderar o pagamento de retroactivos reportados à data do pedido de intervenção do Fundo de Garantia, os quais visam colmatar uma ne­cessidade actual e cujos fundamentos se pretende que sejam de averiguação célere. Esta posição que se enquadrava aliás numa das correntes jurisprudenciais suscitadas face ao silêncio da lei, tinha nesta parte como contrapolo a que vinha entendendo que o Fundo só suportaria as quantias que se fossem vencendo posteriormente à prolação da sentença que as fixa.

Colocando termo às divergências sobre esta matéria, foi recentemente proferido em 7 de Julho de 2009 (DR fixando Jurisprudência (embora com vários votos de vencido) no sentido de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, e 2º e 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores".

Nesta conformidade prescindindo de quaisquer ou­tras considerações, porque supérfluas terá de concluir-se que a solução a dar a este caso passa pelo provimento do agravo com a revogação do despacho em crise, condenando o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Me­nores no pagamento nas prestações que se vencerem decorrido que seja um mês sobre a data da decisão em primeira instância.

Do exposto poderá concluir-se o seguinte:

1) A Lei nº 75/98 de 19 de Novembro que criou Fundo de Garantia de Alimentos devidos a menores e o DL nº 164/99 de 13 de Maio que a regulamenta surgem-nos como a primeira tentativa de concretizar na prática a intenção programática fixada nos artigos 2º, 63º nº 3 e 69º nº 2 da Lei Fundamental quanto à efectiva protecção de crianças em situação de carência.

2) Em situações de falta ou diminuição de meios de subsistência por parte de um menor, o Estado tem o de­ver de criar os pressupostos materiais indispensáveis ao exercício do direito a alimentos.

3) A criação do Fundo de Garantia de Alimentos de­vidos a Menores insere-se no escopo de concretização na prática do imperativo constitucional nesta matéria.

4) A intervenção daquela entidade só tem lugar quando a carência do beneficiário a alimentos é feita sentir em juízo através do requerimento que vai desen-cadear o processo em ordem à fixação de uma prestação mensal a cargo do Fundo que se pretende adequada a col-matar as necessidades do menor.

5) De harmonia com o Acórdão Uniformizador de Ju­risprudência A obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, e 2º e 4º, nº 5, do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.

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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar provido o agravo e revogando nessa medida o despacho agravado decide-se que as prestações € 87,29 (setenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos) mensais a pagar a favor do me­nor A.... pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, à mãe do mesmo reporta-se apenas as que se vencerem a partir do mês seguinte à notificação da decisão que as fixou em primeira instância.

Sem custas.


[1] Cfr. implicações do direito originário a prestações in Gomes Canotilho "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", Almedina, Coimbra 5ª Edição pags. 473 ss.
[2] O direito a uma vida digna não se encontra constitucionalmente contemplado em todos os ordenamentos jurídicos; assim em Espanha este direito só indirectamente se reconhece; sirva de exemplo também naquele País o reconhecimento do direito ao trabalho, de onde, no dizer de Jordi Ribot Igualada o direito que apreciamos se pode inferir – cfr. A. citado "Alimentos entre Parientes e Subsidiariedade de la Proteccion Social" Tirant lo Blanch 1999, pags. 21 ss. No que concerne à Alemanha, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado mesmo na ausência de lei específica sobre a constitucionalidade daquele direito; Apud Ribot Igualada ob. cit. pags. 22. Na senda desta tomada de posição somos em crer que no que toca aos alimentos concernentes a menores face ao Estado, o respectivo direito poderá até do artigo 6º nsº 1 e 4º da Constituição Alemã, onde se refere expressamente que "Ehe und Familie stehen unter dem besonderen Schutze der staatlichen Ordnung" e "Den unehelichen Kindern sind durch die Gesetzgebung die gleichen Bedingungen für ihre leibliche und seelische Entwicklung und ihre Stellung in der Gesellschaft zu schaffen wie den ehelichen Kindern" ou seja em tradução nossa: "casamento e família devem estar debaixo da protecção da ordem estatal; e aos filhos ilegítimos deverão proporcionar-se legalmente as mesmas condições para o seu desenvolvimento físico e psíquico e sua inserção na sociedade como se filhos legítimos se tratassem".