Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/05.9TAAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: PROVA
LEITURA EM AUDIÊNCIA
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO
Data do Acordão: 01/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 355º CPP
Sumário: É permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do CPP.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No Tribunal Judicial de Águeda, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, a arguida M..., casada, residente na Rua C…- Trofa, sob imputação, na pronúncia de fls. 301/303, da prática, em autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pela alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro.
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2. “T&J..., Lda.”, constituída assistente, deduziu pedido de indemnização cível, peticionando a condenação da arguida/demandada a pagar-lhe a quantia de € 467,11, acrescida de juros vincendos, sobre o montante do cheque, à taxa de 4%, desde 27-02-2008 até integral pagamento.
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3. Por sentença de 5 de Março de 2009, o tribunal decidiu nos seguintes termos:
1. Condenou a arguida, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do DL n.º 454/91, de 28-12, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 316/97, de 19/11, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);
2. Julgou o pedido de indemnização civil integralmente procedente e, em consequência, condenou a arguida/demandada no pagamento à demandante “T&J..., Lda.” da quantia de € 400,00 (quatrocentos euros).
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4. Inconformada, a arguida/demandada interpôs recurso da sentença, extraindo da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – Dispondo o artigo 32.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito da sentença de condenação”, não é ele que tem de provar os factos que demonstrem a sua inocência, mas é a acusação que tem de provar os factos que demonstrem a sua culpabilidade.
2.ª – Feita a perícia à assinatura constante do cheque incorporado nos autos, a mesma não foi conclusiva.
3.ª – A única testemunha de acusação ouvida em audiência de julgamento em momento algum referiu que a arguida assinou o cheque, nem que a viatura de matrícula 00-00-ZZ (propriedade da arguida) foi abastecida no posto de abastecimento da assistente.
4.ª – A arguida negou os factos que lhe foram imputados na acusação e, por sua vez, também nenhuma testemunha de defesa os admitiu.
5.ª – Mesmo que algum documento contenha a anotação (impressa ou manuscrita) da matrícula 00-00-ZZ, impunha-se averiguar em audiência de julgamento (e isso não foi feito) quem e quando fez tal anotação, bem como o modo como a obteve, ou seja, se visualizou a matrícula, ou se a mesma lhe foi indicada por alguém, designadamente pelo portador do cheque.
6.ª – Da sentença não resulta a razão de se ter dado como provado que a viatura 00-00-ZZ foi abastecida no posto de venda de combustíveis da assistente.
7.ª – De qualquer modo, não se estribou em provas que tivessem sido produzidas ou examinadas em audiência de julgamento, pelo que violou o disposto no artigo 355.º do CPP.
8.ª – Face à prova produzida, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que a arguida manuscreveu o seu nome no cheque constante dos autos e que a viatura 00-00-ZZ foi abastecida no posto da assistente, no interesse da arguida, com o propósito de causar prejuízo à assistente e que sabia que o cheque não havia desaparecido ou sido extraviado.
Termos em que, deverá ser dado provimento ao recurso e, recorrendo ao princípio in dubio pro reo, absolver-se a arguida, assim se fazendo justiça.
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5.1. A assistente/demandante “T&J..., Lda.” rematou a resposta ao recurso nos seguintes termos:
1. Sendo o recurso sobre matéria de facto, a recorrente não cumpre as especificações do disposto no artigo 412.º do CPP, designadamente das alíneas do seu n.º 3, do n.º 4 e 6, isto é, não as faz por referência à acta da audiência como exige o n.º 4 do referido artigo 412.º (em remissão para os termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º do CPP), como não indica as passagens da acta e da transcrição da gravação em que funda a sua impugnação.
2. Tal falha da recorrente não permite que a recorrida possa proceder ao contraditório, nesta sua resposta, nem permite que o Tribunal ad quem possa proceder à audição ou à visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, razão por que, por violação dos referidos normativos do CPP, entende a recorrida que o recurso não deve ser pura e simplesmente admitido (cfr. disposto no n.º 2 do artigo 414.º do CPP).
3. Em data não apurada a recorrente manuscreveu o seu nome no cheque dos autos, no lugar destinado a aposição da assinatura, ou seja, no cheque identificado na acusação e pronúncia, da conta 40016080417, de que era titular, não tendo a prova pericial chegado a conclusão contrária a esta.
4. Não se provou que a assinatura fosse aposta em 07.07.2004, mas provou-se que tal assinatura é da recorrente, e tal não suscitou dúvidas a ninguém no Tribunal, tendo a recorrente apesar disso negado tal assinatura que sabe que era sua.
5. Acresce que o tribunal a quo baseou a sua convicção de ser a assinatura do cheque da autoria da recorrente em vários factos tais como: data da entrega para pagamento e data do escrito dirigido ao Banco para cancelar o cheque (a mesma data); a pertença da viatura a empresa de que a recorrente era sócia gerente; na chamada à colação por recurso ao n.º de um BI de um terceiro que desconhece a recorrente, para além de outros elementos relevantes que constam da fundamentação da matéria de facto.
6. De resto, a acusação conseguiu demonstrar que, no mesmo dia em que o veículo de matrícula 00-00-ZZ, de que a recorrente era gerente (só renunciou em 08.09.2007), foi abastecido nas instalações da recorrida (07.07.2004), a recorrente endereçou comunicação ao Banco (CCAM de Águeda) informando, falsamente, do extravio do cheque e solicitando o seu cancelamento, dizendo em audiência que foi por mera coincidência.
7. Ademais, a recorrente mentiu em audiência, dizendo que havia participado criminalmente por furto, de tal cheque e de outro, o que se provou não ser verdade, mentira de resto reafirmada pela testemunha F..., esposo da recorrente.
8. Considerando-se que a arguida praticou o crime pelo qual foi condenada, deve proceder o pedido de indemnização civil quanto ao mesmo.
9. O tribunal decidiu com base no princípio da livre apreciação das provas, não lhe restando outra solução senão condenar a arguida nos termos em que o fez porque dúvida razoável não se patenteou para valer o alegado princípio in dubio pro reo que por isso deve improceder.
Bem andou, por isso, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu.
Nestes termos, deve manter-se a douta decisão recorrida e, em consequência, ser a arguida condenada nos termos em que o foi, incluindo no pedido de indemnização civil.
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5.2. Em sentido idêntico, ou seja, no da improcedência do recurso, na sua vertente penal, se manifestou o Ministério Público.
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6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida.
Notificada nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do C. P. Penal, a arguida exerceu o seu direito de resposta, reafirmando a posição já antes sustentada na motivação e conclusões do recurso, traduzida na sua absolvição, por imperativo do princípio in dubio pro reo.

Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência uniforme dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Vistas as conclusões da motivação do recurso interposto no âmbito dos presentes autos, a recorrente pugna por diversa valoração da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, em medida tal que, em função da alteração da matéria de facto provada e não provada, seja absolvida do crime que lhe foi imputado no despacho de pronúncia, invocando, ainda, a violação do princípio da presunção de inocência, na vertente processual do princípio in dubio pro reo, e o disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal.


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2. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em data não concretamente apurada, a arguida manuscreveu o seu nome, M…, no local destinado à aposição de assinatura no cheque com o n.° ……………., sacado sobre a conta n.° ………….., de que era titular única desde 26/12/03, na agência de Águeda da CCAM e entregou-o a outrem, cuja identidade não se logrou apurar, para pagamento de combustível.
2. Em 07/07/04, esse outrem, na posse desse cheque e actuando no interesse da arguida, deslocou-se com a viatura de matrícula 00-00-ZZ ao posto de abastecimento da “Repsol”, em Águeda, pertencente à assistente “T&J, Lda.”.
3. Local onde, após ter abastecido aquele veículo, o entregou para o respectivo pagamento, no valor de € 400,00 (quatrocentos euros).
4. Em 07/07/04, a arguida endereçou comunicação escrita à CCAM de Águeda, informando do extravio dos cheques com os n.°s …………., ………… e …………….. e solicitando o seu cancelamento.
5. Apresentado a pagamento pela assistente, veio o cheque a ser devolvido em 13/07/04 pela Câmara de Compensação, constando do seu verso a menção “motivo: extravio”.
6. A arguida sabia que o cheque endereçado à assistente não havia desaparecido ou sido extraviado, sem prejuízo do que deu ordem à entidade sacada nesse sentido, a fim de evitar o seu pagamento.
7. Actuou com o propósito de causar prejuízo económico à assistente, o que conseguiu, pois que aquela ficou privada dos proventos inerentes ao combustível vendido, no montante de € 400,00 (quatrocentos euros), que ainda não se mostra pago.
8. Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
9. Não obstante não deixou de actuar como actuou, agindo de forma livre, deliberada e consciente.
10. A arguida é casada; renunciou à gerência da sociedade “A... -Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, ocasião a partir da qual passou a ser doméstica, não auferindo quaisquer rendimentos próprios; o seu marido encontra-se reformado, auferindo pensão de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros) mensais; habita em casa pertença do filho, menor com nove anos de idade, a quem o casal a doou; completou a 4.ª classe.
11. À arguida não são conhecidos antecedentes criminais.
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Mais se apurou que:
12. Em 19/02/01, foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Águeda a constituição da sociedade “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, sendo seus sócios a arguida e F…, seu filho à data menor, incumbindo a respectiva gerência à primeira e ao seu marido, F....
13. Em 08/09/07, foi objecto de registo na mesma Conservatória a renúncia da arguida à gerência.
14. A arguida não apresentou queixa pelo furto dos cheques.
15. A viatura com a matrícula 00-00-ZZ é utilizada ao serviço da referida sociedade, sendo conduzida, ou pelo marido da arguida, F..., ou por um seu funcionário, B....
16. O n.° do BI que se encontra aposto no verso do cheque pertence a J..., o qual, por virtude de negociações que manteve com a sociedade “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, forneceu ao marido da arguida, F..., cópia do BI e do seu cartão de contribuinte.
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3. E como factos não provados:
A) Que a arguida tivesse aposto a sua assinatura no cheque em 07/07/04.
B) Que a pessoa a quem a arguida entregou esse cheque fosse um funcionário da “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.” e que o mesmo tenha completado o seu preenchimento.
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4. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, tendo tomado em consideração as declarações prestadas pela arguida, os depoimentos das testemunhas inquiridas, os documentos juntos aos autos e o resultado da prova pericial decorrente da análise à caligrafia da autora, cotejada com as regras da experiência.
A arguida optou por prestar declarações, o que fez de forma insegura e nervosa, revelando-se as mesmas incongruentes e duvidosas, pelo que não se nos afigurou merecedora de qualquer credibilidade. Negou ter aposto a sua assinatura no cheque em causa nos autos, não a reconhecendo como sua, afirmando que, em ocasião que não logrou precisar, deu pela falta da sua carteira, esta contendo alguns cheques e cartões bancários, em razão do que apresentou queixa e ordenou o seu cancelamento. Disse pertencer a viatura com a matrícula 00-00-ZZ à sociedade “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, da qual foi sócia gerente, tendo, no entanto, renunciado ao exercício dessa gerência, razão pela qual quem assume os destinos societários é o marido, em representação do filho, sendo este último o seu único sócio. Afirmou que quem conduzia habitualmente aquela viatura era o funcionário B...e desconhecer que a mesma tinha sido abastecida no posto de combustível pertença da assistente. Instada, referiu que a circunstância de o dia de tal abastecimento coincidir com o dia em que ordenou o cancelamento do cheque utilizado nesse pagamento constituiu uma mera coincidência. Mencionou não necessitar de recorrer a postos de combustível porquanto dispõe de um depósito em casa, cujo abastecimento é assegurado por uma sociedade de Aveiro. Declarou não conhecer ninguém que desse pelo nome de J....
As duas testemunhas arroladas pela defesa, B… e R..., ambos trabalhadores da “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, depuseram de forma parcial e comprometida, denotando a primeira, inclusivamente, hostilidade perante as instâncias que lhe eram dirigidas. Não mereceram credibilidade. A testemunha B… asseverou que era quem normalmente conduzia a viatura em questão, admitindo que o marido da assistente também a conduzia. Explicou não trabalhar aos fins-de-semana e folgar, durante a semana, em dias incertos. Realçou nunca a ter conduzido ao posto de combustível da assistente, abastecendo-a em “casa” da arguida. A testemunha R… corroborou o recurso ao abastecimento caseiro e abonou o carácter da arguida.
A testemunha F..., cujo depoimento foi tido por este Tribunal como sendo necessário ao apuramento dos factos - tendo determinado a sua inquirição ao abrigo do disposto no art. 340.° do Código de Processo Penal - depôs em moldes, no mínimo, infelizes, sem prejuízo do que, de facto, contribuiu para a descoberta da verdade material. Principiou por afirmações curiosas, quais sejam, “não passei cheque nenhum” e “desapareceram os cheques”, tendo assegurado ter-se deslocado à GNR para apresentar queixa, sem sucesso, porquanto os agentes que o atenderam lhe transmitiram que “não valia a pena”. Tais cheques terão desaparecido em princípios ou meados de 2004, tendo-os “guardados” em cima da secretária no escritório da sociedade, apenas frequentado pelo próprio, pela arguida e por indivíduo de nome “J...”. Instado sobre a circunstância de, em causa, não estar um qualquer cheque da sociedade, mas um cheque em nome pessoal da arguida, limitou-se a dizer que tinha “percebido mal”. Instado sobre o facto de ter mencionado o referido “J...”, excluindo designadamente a possibilidade de trabalhadores da empresa terem acedido ao escritório, respondeu que havia sido um cliente esporádico da “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, tendo-lhe adquirido uma galera e ficado, não almejando esclarecer por que razão, com cópias do seu bilhete de identidade, assim como do da arguida. Confrontado com assinaturas manuscritas pela arguida, constantes dos autos para efeitos de prova pericial, declarou corresponderem à sua caligrafia as de fls. 284 e 285, mas já não as de fls. 286, bem como a inserta no cheque. Instado acerca do facto de todas corresponderem a autógrafos que foram recolhidos à arguida, sendo a assinatura de fls. 290 a aposta na própria procuração forense, deu a conhecer ter estado três dias em coma na cidade de Aveiro, julga que em 2005, motivo pelo qual a sua memória ficou afectada.
A testemunha J... - igualmente inquirida a requerimento da assistente com fundamento no art. 340.° do Código de Processo Penal - depôs de forma simples e peremptória, tendo o seu relato sido percepcionado por este Tribunal como credível. Disse não conhecer a arguida e, em tempos, ter adquirido uma galera à “A... - Comércio de Materiais de Construção, Lda.”, tendo utilizado no seu pagamento uma letra de câmbio e facultado ao marido da arguida cópias do seu bilhete de identidade e cartão de contribuinte.
Em termos documentais, foram considerados a cópia do recibo de abastecimento de fls. 4, a cópia da ordem de cancelamento dos cheques de fls. 21, os elementos bancários de fls. 22 e seguintes, o resultado de exame pericial de fls. 249 e seguintes, o cheque de fls. 257, os manuscritos de fls. 258 e seguintes, o CRC de fls. 324, a certidão de fls. 374 e a certidão da Conservatória do Registo Comercial de Águeda de fls. 378 e seguintes.
No que à prova pericial concerne, temos por relevante salientar que, salvo melhor opinião, o teor da sua conclusão, no sentido de que as escritas fornecidas “não permitem obter resultados conclusivos”, não preclude ao Tribunal a ilação de que a escrita suspeita pertence, de facto, à arguida, se a demais prova assim o suportar. Na verdade, o que o LPC atesta é que, perante o material enviado, não almejou concluir se aquela escrita teria sido produzida pelo punho da arguida, o mesmo é dizer, tanto o pode ter sido, como não. Ora, o Tribunal dispõe de outros elementos de prova - por definição e natureza, insusceptíveis de ponderação pelo LPC - que, no caso concreto, legitimam a conclusão de que foi a arguida quem manuscreveu a assinatura no cheque em crise.
Note-se, por outro lado, constarem do relatório pericial asserções que cumpre não menosprezar. Aí se consigna que as escritas “se assemelham, quanto às características de aspecto geral, no grau de evolução e na linha de base desordenada”, diferindo “na dimensão e no espaçamento”, e, do mesmo passo, que um dos motivos que conduz à existência de resultados inconclusivos se prende com “a grande variabilidade e forma irregular e retocada dos autógrafos remetidos”. Sendo certo que o LPC se encontra adstrito a determinadas regras para efeitos de aferição das assinaturas, já o Tribunal, conforme explanámos acima, dispõe de uma mais alargada margem de elementos passíveis de ponderação, em ordem a integrar o resultado pericial - que, afinal, é como que um “não resultado” - num universo probatório mais vasto. Donde, e para além de depoimentos e documentos, pode - e deve - o Tribunal socorrer-se das regras da experiência, as quais, não raras vezes, assumem um papel determinante na formação da convicção judicial. Nesta esteira, não podemos deixar de realçar ser desejável que, à perícia do LPC, sejam submetidas a escrita suspeita e outras já existentes e suas contemporâneas, e não, conforme sucedeu in casu, escritas que foram produzidas propositadamente para análise comparativa. Facilmente se depreende, quanto a nós, o porquê. Na realidade, as escritas assim produzidas perdem a sua espontaneidade e naturalidade, ciente que o suspeito está do seu destino; logo, procurará, sendo caso, introduzir-lhes adulterações, por forma a impedir, precisamente, um resultado pericial conclusivo. No caso sub judice, considerou o LPC distinguirem-se as escritas “na dimensão e no espaçamento” e “a grande variabilidade e forma irregular e retocada dos autógrafos remetidos”, afigurando-se-nos evidente que o suspeito a quem são recolhidos autógrafos para perícia recorrerá, desde logo, à alteração do tamanho da letra e do espaçamento que introduz na escrita; por outro lado, procurará inserir cambiantes que dificultem a comparação, casos paradigmáticos da variação e da irregularidade. Temos para nós que corresponderia à normalidade uma colecção de autógrafos que primasse pelo inverso, uma vez que é incontornável a circunstância de todos terem sido produzidos pela mesma pessoa, e nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar. Por fim, note-se ser o LPC quem qualifica a “forma retocada” dos autógrafos remetidos.
No que contende com o cotejo das premissas vindas de referir com a demais prova, testemunhal e documental, somos a crer pela autoria da arguida com relação à assinatura aposta no cheque. Assim, atente-se nas datas da sua entrega para pagamento e do escrito dirigido à instituição bancária para o respectivo cancelamento; na pertença da viatura que abasteceu combustível à sociedade - digamos que “familiar” - de que a arguida era, à data, sócia gerente; na chamada à colação, por recurso ao n.° de BI, de um terceiro, que inclusivamente desconhece a arguida, apenas tendo adquirido uma galera, em momento muito anterior ao da factualidade em apreço, à sociedade; no mais completo desinteresse que esse terceiro teria na prática dos factos; na postura de vida, no mínimo questionável, assumida pela arguida, a própria tendo admitido viver com o marido e o filho em casa pertença deste, que conta com apenas nove anos de idade, e atestando a certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial relativamente à sociedade a sua estrutura e composição. Releve-se, por fim, o depoimento de F..., marido da arguida, o qual, até ter sido alertado para o facto de em discussão estar um cheque pessoal da mulher, se sucedeu em explicações sobre o extravio de um cheque que seria da sociedade, nomeadamente pretendendo implicar J… nesse desaparecimento, para além do que afirmou - e reafirmou, aliás à semelhança da arguida, ter sido apresentada queixa pelo extravio do cheque, apenas quando confrontado com o teor da certidão que atesta a inexistência de qualquer participação pela mulher, e estando ao seu alcance alegar que essa certidão não se referia a ele próprio, se atreveu a sustentar que a autoridade policial recusou a presentação da queixa informando-o de que “não valeria a pena”. Tudo, sob juramento.
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5. Do mérito do recurso:

5.1. Violação do artigo 355.º do Código de Processo Penal:

Atendo-nos à disciplina da produção de prova em audiência de julgamento, deparamos com o disposto no artigo 355.º, n. 1, do CPP, segundo o qual não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, princípio que tem implícita a tutela dos princípios da oralidade, publicidade, contraditório e concentração.

No caso dos autos, toda a prova considerada na motivação da decisão de facto da sentença recorrida foi produzida nas diversas sessões de julgamento.

Cingindo-nos à diversa prova documental valorada na decisão, ressalvam-se do disposto no número n.º 1 do artigo 355.º do CPP as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2 do mesmo artigo).

Assim, de acordo com a jurisprudência quase unânime do STJ, que trilhou a orientação de Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado, 7.ª Edição, pág. 521., «valem em julgamento, independentemente da sua leitura em audiência, as provas contidas em actos processuais cuja leitura é permitida», nos termos dos artigos 356.º e 357.º do CPP.

Ora, precisamente, «é permitida a leitura em audiência de autos...de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas» [art. 356.º, n.º 1, al. a)].

Decorre da conjugação das referidas normas que é permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser, como foi no caso concreto, objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do CPP Vide, a título meramente exemplificativo, os Acs. do STJ de 23-02-2005, CJ/STJ, XIII, tomo I, pág. 50, e de 31-05-2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt..

Este entendimento não obsta a que os sujeitos processuais participem na produção da prova, contribuindo para esclarecer todos os elementos necessários à descoberta da verdade material. Porém, estando em causa documentos que existem no processo desde o inquérito ou instrução, teve a arguida todas as possibilidades de os questionar, podendo ter solicitado, na própria audiência de julgamento, a sua reapreciação individualizada, tendente ao esclarecimento de qualquer ponto relevante para a sua defesa, pedindo, inclusive, a leitura do dito documento.

Pelo exposto, não violou o tribunal a quo, como invoca o recorrente, a norma do art. 355.º, n.º 1, do CPP.


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5.2. Alterabilidade da matéria de facto:

Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos factos que reputa incorrectamente provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 do referido artigo -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no artigo 364.º, do CPP, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4 do mesmo artigo 412.º).

Lendo as conclusões de recurso interposto pelo arguida/demandada M..., e embora a mesma não seja particularmente rigorosa na indicação, por referência à matéria de facto provada, dos factos concretamente impugnados, colhe-se da globalidade da petição recursória que estão questionados os factos provados alusivos: à aposição, pela arguida, no cheque em causa, da sua assinatura (ponto 1), destinando-se o título ao abastecimento de combustível, no estabelecimento da assistente/demandante, da viatura automóvel de matrícula 00-00-ZZ referenciada no ponto n.º 2; ao conhecimento pela arguida de que o cheque endereçado à assistente não havia desaparecido ou sido extraviado (ponto 6); ao propósito ínsito na actuação da arguida - provocar prejuízo económico à assistente (ponto 7).

Contudo, a recorrente não individualiza, em toda a extensão exigida pela alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, as provas que, na sua perspectiva, imporiam diverso julgamento dos pontos de facto supra assinalados.

Assim, quer na motivação quer nas conclusões, a arguida apenas faz apelo às suas próprias declarações, e bem assim ao depoimento da testemunha J…. Quanto à demais prova oralmente prestada no decurso das sessões de julgamento, omite a identidade das testemunhas, cfr. se colhe dos n.ºs 5. e 7. da motivação e III. das respectivas conclusões.

Neste contexto, não passamos sem acrescentar que a referência da recorrente ao suporte probatório decorrente do depoimento da testemunha L… é de todo em todo despropositada, porquanto tal testemunha nenhuma relevância teve e poderia ter na formação da convicção do julgador de 1.ª instância, pela simples razão de não ter sido ouvida em audiência de julgamento, em função dos motivos expressos nas actas de fls. 338/340 e 256/360 e elementos de fls. 341/347 e 361/365, alusivos às diligências, infrutíferas, para localização e notificação da testemunha.

Sobretudo, a recorrente omite em absoluto, quer na motivação quer nas conclusões, as referências que o n.º 4 do artigo 412.º do CPP impõem seja feitas. Explicitando: não concretiza as passagens das declarações e dos depoimentos em que funda a impugnação, com recurso, para o efeito, aos registos de gravação da prova, em conformidade com o normativo citado supra, se limitando a considerações subjectivas e, de qualquer modo, vagas, genéricas e imprecisas sobre o conteúdo da prova produzida no julgamento realizado no âmbito do presente processo.

As menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionam com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando a recorrente se limita, como no caso sub judice, a generalizações que não permitem alcançar todas as concretas provas determinantes da modificação, pelo Tribunal da Relação, dos concretos pontos de facto apontados como incorrectamente julgados e as passagens da prova oralmente produzida em audiência com que o impugnante alicerça a sua discordância para com a matéria de facto provada.

Como se escreveu no douto Acórdão do STJ de 24/10/2002 Processo n.º 2124/2002, in www.dgsi.pt. «(...) o labor do Tribunal da 2.ª instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida [art. 412.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP] .. .

Se o recorrente não cumpre aqueles deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência às provas e respectivos suportes».

E como reiteradamente vem acentuando o Supremo Tribunal de Justiça, o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido V.g., Acs. de 04-10-2006, proc. n.º 812/06-3.ª; 08-03-2006, proc. 185/06-3.ª; 04-01-2007, proc. n.º 4093-3.ª; e de 10-01-2007, proc. 3518/06-3.ª.. Daí que o artigo 417.º, n.º 3 do Código de Processo Penal imponha o dever de convite tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.

Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite.
Como adverte o Tribunal Constitucional, em considerações que, se devidamente adaptadas, se mostram actuais, não obstante se reportarem à antiga redacção do artigo 412.º do CPP, «(...) não está aqui em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo (...) recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada.
Antes a indicação exigida pela al. b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP - repete-se, das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do T.C. não pode retirar-se (...) uma exigência constitucional de convite ao aperfeiçoamento sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b) e 4, do CPP, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. Aliás, o modo de especificação por referência aos suportes técnicos é deixado em aberto pelo n.º 4 do art. 412.º do CPP (...)» Ac. n.º 140/2004, de 10-03-2004 (proc. n.º 565/2003) - DR, II Série de 17-04-2004..
O despacho de aperfeiçoamento neste caso «equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso» Ac. n.º 259/2002, de 18-06-2002 (proc. n.º 101/02) - DR, II Série de 13-12-2002. .
Como assim, não pode este tribunal ad quem sindicar a matéria de facto provada e não provada fora do quadro dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, os quais não estão invocados nas conclusões do recurso nem, num plano de oficiosidade, se verificam.


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5.3. Destituída de fundamento se apresenta também a residual alusão ao princípio processual do in dubio pro reo, já que, de todo, não se antolha da fundamentação da decisão de facto – supra transcrita – qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento da arguida, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou.
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5.4. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão da recorrente, de ser absolvida do crime de emissão de cheque sem provisão que lhe está imputado, assenta apenas na sugerida, e não aceite - pelas razões acima expostas -, alteração da matéria de facto provada.
Pelo que, mantendo-se os pressupostos de facto que determinaram a condenação da arguida, soçobra, sem mais, o recurso.
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6. Responsabilidade pelas custas:
Face à improcedência do recurso, a recorrente é responsável pelo pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais.
Tendo em conta a relativa simplicidade do recurso e a condição económica da visada, fixa-se, de taxa de justiça, o valor de 2 UC.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Taxa de justiça pelo recorrente, cujo quantitativo se fixa em 2 UC.

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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o 1.º signatário)

Coimbra, 6 de Janeiro de 2010

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)