Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
801/14.2TBPBL-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
PARECER
ADMINISTRADOR JUDICIAL
ADMINISTRADOR PROVISÓRIO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: Nº 4 DO ART. 17º-G E ART. 28º DO CIRE E ART. 20º, Nº 1, 4 DA CRP
Sumário: O nº 4 do art. 17º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, caso o AJP emita parecer de que o devedor se encontra em situação de insolvência e requeira essa insolvência, se deve aplicar o art. 28º do CIRE, com as necessárias adaptações, enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio do processo equitativo e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º, nº 1, 4 e 5 da CRP).
Decisão Texto Integral:         
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


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O A..., S.A requereu a insolvência de “ B..., S.A.” em 23 de Maio de 2014.

A devedora deduziu oposição nos termos do art. 30 do CIRE, em 19 de Junho de 2014, invocando como questão prévia a pendência em juízo do processo especial de revitalização em 15 de Junho de 2014, distribuído ao 3º Juízo Cível com o nº 904/14. 3TBPBL.

Foi proferido despacho em 25.6.2014, declarando suspensa a instância até ao encerramento do processo de revitalização, em obediência ao disposto no art. 17º-E, nº 6 do CIRE.

Em 20.3.2015, e na sequência  do parecer que, ao abrigo do art. 17º-G, nº 4 do CIRE, o administrador judicial provisório emitiu no processo especial de revitalização no sentido de que a devedora se encontra em situação de insolvência, o Sr. Juiz proferiu sentença que, com a aplicação do art. 28 do CIRE, com as necessárias adaptações, por força do art. 17º-G, nº 4, decretou a insolvência da devedora.

Não se conformou a insolvente que da sentença veio interpor recurso de apelação, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:

“1. A sentença é nula, por violação das seguintes disposições legais: n.ºs 1 e 5 do artigo 20.° e artigo 204.°, ambos da Constituição da República Portuguesa; artigos 8.°, 30.° e 35.° do CIRE; artigo 3.° e artigos 269.° e ss. do Código de Processo Civil;

2. O presente processo de insolvência encontrava-se suspenso, nos termos do disposto nos artigos 17°-E, n.º 6, do CIRE e 269°, n.º 1, alínea d) do CPC;

3. Por conseguinte, uma vez que estamos perante a causa de suspensão da instância prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 276.° do CPC, a suspensão cessa “quando findar o incidente ou cessar a circunstância a que a lei 20 atribui o efeito suspensivo “- no caso, cessou com a não aprovação do plano de recuperação no âmbito do processo de revitalização.

4. Cessando a suspensão da instância, esta prosseguiria os seus termos.

5. In casu, quando a instância foi suspensa, a Apelante já havia apresentado Oposição ao pedido de declaração de insolvência requerido pelo Credor A... , ao abrigo do disposto no artigo 30.° do CIRE.

6. Tendo a Apelante deduzido Oposição ao pedido de insolvência, teria de ter sempre lugar a audiência de discussão e julgamento, considerando o disposto no artigo 35.° do CIRE, sendo que se trata de um preceito legal imperativo.

7. No caso sub judice - considerando a oposição ao pedido de declaração de Insolvência deduzido pela Apelante - o tribunal, ao não designar data para audiência de discussão e julgamento, violou o disposto no artigo 35.° do CIRE, bem como o regime legal da suspensão da instância, previsto e regulado nos artigos 269.° do CPC, para além de violar o principio do contraditório.

8. O tribunal não podia declarar a insolvência da Apelante, sem mais, ignorando totalmente a oposição ao pedido de insolvência que havia sido oportunamente deduzido.

9. Apesar de existir no CIRE uma disposição referente à suspensão da instância — artigo 8.° , com epigrafe “suspensão da instância e prejudicialidade” — a mesma não regula a situação em análise nestes autos. Pelo que, por força do disposto no artigo 17.° do CIRE, são aplicáveis a disposições referentes à suspensão da instância previstas no CPC.

Acresce que

10. Face aos elementos apurados e constantes destes autos, a insolvência não devia ter sido declarada, sem a audiência prévia dos Devedores;

11. Equiparar o pedido de insolvência do administrador, àquele que parte da iniciativa do devedor, poderá trazer consequências processuais de alguma forma anómalas;

12. Se o devedor inicia um processo especial de revitalização e não apresenta um pedido de insolvência, não poderá um pedido de insolvência que parta do AJP significar que o devedor reconhece a sua situação de insolvência, poderá mesmo, ser contraditório.

13. Ainda que com as devidas adaptações o regime previsto para a apresentação à insolvência por parte do devedor” (artigo 28.° do CIRE), às situações em que quem requer a insolvência do devedor é o AJP, nos termos do n.º 4 do artigo 17°-O do CIRE, gera disfunções processuais que alteram o equilíbrio razoável que deve existir entre meios processuais ao dispor das partes, dessa forma saindo violado o direito a um processo equitativo (artigo 20°, n.º 4, da Constituição);

14, A interpretação da norma extraída da conjugação do artigo 17°-G, n.º s 3 e 4 do CIRE, segundo a qual o devedor nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do AJP nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.°-G, n.º s 3 e 4 do CIRE não é citado para, querendo, deduzir oposição tal qualmente prevê o artigo 29.° CIRE, é inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva previstos no artigo 20°, n.º a 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).

15. Pelo que o Juiz não devia ter aplicado a norma extraída dos n.º s 3 e 4 do artigo 17°-G do CIRE, pelo facto da mesma permitir que, nos processos de insolvência que têm a sua génese na emissão do parecer do Administrador Judicial Provisório, frustrada seja a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, não haja lugar à citação do devedor para, querendo, deduzir oposição.

16. Tal norma viola o direito à tutela jurisdicional efectiva, na sua modalidade de direito à defesa, tal como consagrados nos n.º s 1 e 5 do artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).

17. O Juiz devia ter recusado aplicar os n.º s 3 e 4 do artigo 17.° CIRE, pelo facto de tal norma violar a Constituição da República Portuguesa.

18. A sentença viola, assim, o disposto no artigo 204.° da CRP, com a epigrafe “apreciação da inconstitucionalidade “, “segundo qual “os feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”

19. Assim — de uma forma mais evidente nos casos em que o devedor, quando foi ouvido nos termos do n.º 4, do artigo 17º-G.°-G do CIRE, não se pronunciou favoravelmente quanto a ser declarado insolvente, como é o caso dos autos — a norma extraída da conjugação do artigo l7.°-G, nos 3 e 4 do CIRE, segundo a qual o devedor nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do administrador judicial provisório nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.°-G, 0 4, do CIRE não é citado para, querendo, deduzir oposição, é inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 200, n°4, da Constituição.

20. O artigo 17.° G, n.º s 3 e 4 do CIRE colide claramente com o artigo 12.° do CIRE, porquanto o artigo l7°- G, n.°s 3 e 4 do CIRE - que consubstancia, não uma apresentação à insolvência, mas sim uma insolvência requerida por terceiro, no caso, o Administrador Judicial Provisório — permite a declaração de insolvência sem a audiência previa do Devedor.

21. Diferentemente, quando se trata também de uma insolvência requerida por um terceiro, mas que seja credor, o regime legal quanto á audiência prévia do Devedor é outro. Sendo que, nesse caso, a audiência do devedor, só é dispensada em casos excepcionais e restritos, nomeadamente previstos no artigo 12.° do CIRE.

22. O CIRE trata assim de forma diferente duas situações iguais: processo de insolvência requerida por outrem que não o próprio Devedor. Sendo que não há razão alguma que justifique tal diferença de tratamento.”

Contra-alegou o recorrido, pugnando pela manutenção da sentença.

A Sr.ª Juiz sustentou a inexistência de violação do princípio do contraditório.

E deu como provados seguintes factos, que se aceitam:

“1) - A devedora é uma sociedade comercial que tem por objecto social a actividade de construção civil, empreiteiro de obras públicas e particulares, urbanizações, compra e venda de prédios rústicos e urbanos e revenda dos adquiridos para esse fim, fornecimento de materiais de construção civil, fornecimento e produção de betão.

2) O capital social é de €400.000.00.

3) – O Conselho de administração da devedora está atribuído a C... , D... e E... .

4) – Em 15 de Setembro de 2010 foi declarada a insolvência da devedora no proc. nº 1577/10.8TBPBL que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Pombal.

5) – No âmbito desses autos em 10 de Julho de 2012 foi homologado um plano de insolvência.

6) - Quando a devedora se apresentou ao processo especial de revitalização assumiu créditos que ascendem ao valor de €9.644.223,41.

7) - O património imobiliário da devedora é constituído pelos seguintes imóveis: (remete-se nesta parte para a extensa lista de imóveis, que consta da decisão de facto das 1ª instância, nos termos do art. 663, nº 6 do CPC)

8) - A devedora é ainda proprietária de 17 veículos e locatária de três.

9) - A devedora é ainda proprietária de diversos bens móveis

10)- A devedora no âmbito do PER assume que não tem conseguido cumprir as suas obrigações vencidas e tem existido uma diminuição das vendas.

11) -O Sr. AJP no âmbito do PER reconheceu créditos no valor de €13.818.745,58 distribuído por 134 credores.

12)- A devedora no ano de 2013 apresentou um resultado líquido negativo de 1.155.028,43.

13) - A devedora não consegue obter crédito.

14) - O Sr. Administrador no parecer refere que a devedora não dispõe de activo suficiente nem liquidez que lhe permita fazer face às suas obrigações.”

Para além destes factos importa, também, ter em conta as ocorrências processuais que constam do relatório e que aqui se dão por assentes.

O Direito:

Invoca a recorrente que a sentença é nula, por violação dos n.°s 1 e 5 do art. 20° e art. 204°, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP), arts 8°, 30° e 35° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e arts 3° e artigos 269° e ss. do Código de Processo Civil (CPC).

Porém, não será à nulidade da sentença propriamente dita, prevista no art. 615º do CPC, que a recorrente se reportará. A sentença só será nula em consequência da nulidade processual que advém da violação do art. 3º do CPC e que pode dar lugar à anulação da mesma, sendo certo que, também, as outras disposições legais e constitucionais referidas não implicam a nulidade da sentença, mas, porventura, a alteração dela.

Argumenta a recorrente que, tendo o despacho em 25.6.2014 declarado suspensa a instância até ao encerramento do processo de revitalização, se impunha, após esse encerramento (devido à não aprovação do pano de recuperação), a cessação da instância do processo de insolvência, nos termos do art. 276º, nº 1, al d) do CPC, uma vez que já havia oposição nos termos do art. 30º, e o seu prosseguimento com a audiência de discussão e julgamento nos termos do art. 35º do CIRE. Considera, portanto, que o tribunal violou o disposto no art. 35° do CIRE, bem como o regime legal da suspensão da instância, previsto e regulado nos artigos 269º e segs do CPC.

Porém, cremos que não existe violação do art. 35º do CIRE.

Encerrado o processo negocial e o processo especial de revitalização, não se retomam os termos normais do processo de insolvência que ficou suspenso. Não há qualquer prosseguimento do processo de insolvência suspenso com a audiência de discussão de julgamento. Na sequência do requerimento do administrador judicial provisório, decreta-se, apenas, a insolvência, nos termos conjugados do art. 17º-G, nº 4 e a art. 28º do CIRE.

Mas também não se verifica qualquer violação do regime da suspensão da instância nos termos conjugados dos art. 269º, nº 1, al. d) e 276º, nº 1, al d) do CPC. A instância da acção de insolvência, que foi suspensa, cessou. Mas se prosseguir, como o foi o caso, prossegue não com os termos normais (com o julgamento que teria lugar nos termos do art. 35, após a oposição) mas com os termos que resultam do art. 17º-G, nº 4 conjugado com o art. 28º do CIRE. O que não colide com o disposto no art. 12 do CIRE, pois este artigo apenas se reporta às condições da dispensa da “audiência do devedor prevista em qualquer das normas deste Código”, o que não é o caso, pois no art. 17º-G, nº 3 e 4 não se prevê a audiência do devedor.

Refere, ainda, a apelante que a interpretação da norma extraída da conjugação do artigo 17°-G, n.º s 3 e 4 do CIRE, segundo a qual o devedor, nos processos de insolvência resultantes da apresentação de parecer por parte do AJP (administrador judicial provisório) nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17°-G, n.º s 3 e 4 do CIRE, não é citado para, querendo, deduzir oposição talqualmente prevê o artigo 29° do CIRE, é inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva previstos no artigo 20°, n.º 1 e 5 da CRP (Constituição da República Portuguesa), pelo que a Sr.ª Juiz não devia ter aplicado a norma extraída dos n.º s 3 e 4 do artigo 17°-G do CIRE, pelo facto da mesma permitir que, nos processos de insolvência que têm a sua génese na emissão do parecer do AJP, frustrada que seja a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um PER, não haja lugar à citação do devedor para, querendo, deduzir oposição. O que é, sobretudo, evidente nos casos em que o devedor, quando foi ouvido nos termos do n.º 4, do artigo 17°-G do CIRE, não se pronunciou favoravelmente quanto a ser declarado insolvente, como é o caso dos autos (dos quais, assinale-se, não resulta se se pronunciou e, se o fez, em que sentido).

É, no fundo, o princípio do contraditório (na sua vertente de princípio legal e de sub-princípio constitucional) que está aqui em causa e a inerente questão de saber se pode o juiz decretar a insolvência, sem audiência do devedor.

Nos termos do art. 17º-G, nº 4 do CIRE, em caso de emitir parecer no sentido de que o devedor se encontra em situação de insolvência, compete ao AJP requerer a insolvência do devedor, “aplicando-se o disposto no art. 28º, com as necessárias adaptações, e sendo o processo especial de revitalização apenso ao processo de insolvência”. Ora, o art. 28 dispõe, por sua vez, que “a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento. Ou seja: equipara-se o pedido de insolvência do administrador do processo especial de revitalização ao pedido de insolvência por parte do devedor, que não se pode pronunciar, no entanto, sobre o pedido do administrador.

Carvalho Fernandes e João Labareda, no seu CIRE anotado 2ª edição, pág. 178, depois de assinalarem que a exigência legal de que, previamente à emissão do seu parecer, o administrador deve ouvir o devedor e os credores dispensa formalismos “que seriam contrários ao espírito que parece presidir às competências do administrador, que intenta, em linha com a filosofia geral do CIRE, antecipar, quanto possível, o desencadeamento dos mecanismos legais vocacionados para responder à efectiva situação de insolvência do devedor” entendem que não há neste caso “lesão definitiva dos interesses tutelados visto que, no quadro das regras gerais, a sentença declaratória estará sempre sujeita a impugnação, tanto por via de embargos como de recurso, nos termos consagrados nos art. 40º e 42º”.

Também Ana Prata e outros, no CIRE anotado, edição de 2013, depois de referirem que, caso o devedor esteja em situação de insolvência à data do encerramento do processo de revitalização, se seguirá a imediata declaração de insolvência neste novo processo, ponderam: “ Tal solução parece justificar-se pela maior celeridade na declaração desta insolvência do que a que decorreria do prosseguimento do processo de insolvência já existente (que se presume ser um processo requerido por terceiro, ou seja, onde teria que ser discutida a existência da situação de insolvência)” (pág. 70).

Mas são Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, no “PER – O Processo Especial de Revitalização, quem, a págs. 164 a 167, mais detalhadamente, se pronunciam sobre o assunto:

“ (…) caso o administrador judicial provisório conclua que o devedor se encontra insolvente, deverá aquele requerer a insolvência do devedor. À luz da remissão para o artigo 28°, o requerimento do administrador judicial provisório implicará o reconhecimento da situação de insolvência do devedor, cabendo ao tribunal declará-la. O processo especial de revitalização ficará apenso ao processo de insolvência.

Compreende-se o regime legal. Se o devedor está insolvente - sendo isso atestado por alguém especialmente qualificado e conhecedor da situação económica do devedor - então não faz sentido que o devedor, especialmente depois de já ter beneficiado de um “stand still” generalizado, possa ainda dispor de património até que um credor consiga obter a declaração judicial da insolvência.

Contudo, afigura-se discutível a admissibilidade e até mesmo a constitucionalidade da interpretação segundo a qual o administrador judicial provisório poderá – depois de ouvidos os credores e o devedor – requerer a insolvência do devedor, com os mesmos efeitos que teria se fosse o devedor a apresentar-se voluntariamente à insolvência. Com efeito, ,poderá suceder que, por um lado, o devedor entenda que se encontra solvente, mas, por outro lado, o administrador judicial provisório considere, erradamente, todavia, que o devedor está insolvente. Nesta circunstância, será admissível que o administrador judicial provisório requeira a insolvência com os mesmos efeitos (aceitação e reconhecimento da situação da insolvência) que teria se a insolvência fosse requerida pelo próprio devedor?

Não existirá uma injustificável restrição ao direito de propriedade e ao direito de liberdade empresarial do devedor, a atribuir-se ao administrador judicial provisório o poder de confessar a situação de insolvência do devedor contra a vontade deste último? Por que motivo ficará a decisão de assumir a situação de insolvência nas mãos do administrador judicial provisório, quando não é o titular do património do devedor?

Para assegurar o legítimo direito de defesa do devedor, e obstar à eventual inconstitucionalidade da norma, ter-se-á de admitir que o devedor possa deduzir embargos contra a sentença ou recorrer da mesma. Essa solução é conciliável com o elemento literal do artigo 17°-G. Assim, o administrador judicial provisório deverá requerer a insolvência do devedor - se concluir, claro está, que este se encontra insolvente -, devendo o tribunal decretá-la sem audição e contraditório do devedor e no prazo legalmente fixado. Porém, o devedor poderá deduzir embargos ou recorrer nos termos do disposto nos artigos 40º e 42º” (págs. 165 e 166).

E prosseguem: ”… para assegurar a constitucionalidade do regime deve interpretar-se analogicamente a alínea a), do número 1, do art.º 40 -que estabelece que o devedor em situação de revelia absoluta que não tenha sido citado pessoalmente pode deduzir embargos à sentença declaratória da insolvência (ou recorrer da mesma nos termos do disposto no art.º 42) no sentido de a aplicar ao caso em que o administrador judicial provisório requer a insolvência do devedor e esta é imediatamente declarada

Com efeito, a alínea a) do n.º 1, do art.º 40, visa conceder ao devedor arredado do processo (por se encontrar em revelia absoluta, não tendo sido citado pessoalmente) a oportunidade de se opor à declaração de insolvência. Ora, no caso que agora nos ocupa, o efeito prático é o mesmo – o devedor também fica arredado do processo, na medida em que e atribui ao administrador judicial provisório a competência, que em condições normais competiria ao devedor, para a apresentação à insolvência, com os efeitos previstos no art. 28. É certo que  a lei diz que o devedor deve ser ouvido antes de o administrador judicial provisório tomar a decisão final de requerer a insolvência. Porém, bem vistas as coisas, esse direito de audição não permite dizer que o devedor não foi, efectivamente, não foi efectivamente afastado do processo, pois quem tomará a decisão final sobre se está ou não insolvente é o administrador judicial provisório e não o devedor, como seria em circunstâncias normais.

 Assim verifica-se uma situação análoga entre os casos em confronto, pelo que é de aplicar por analogia o art.º 40, nº 1, alínea a), por forma a assegurar a possibilidade de o devedor deduzir embargos ou recorrer da sentença de declaração da insolvência, por remissão do artigo 42, n.º 1. Todos os outros casos de embargo e recurso são, evidentemente, aplicáveis, nos termos do disposto nos artigos 40º e 42º “

Ou seja: admitem a interpretação dos art.s 17º -G, n.º 4 e 28º do CIRE no sentido de que o legislador equiparou o parecer do AJP, de que o devedor está em situação de insolvência, à apresentação do devedor à insolvência, com a consequente dispensa da sua audição, o que colide com o direito de defesa do devedor.

E o direito de defesa está consagrado na lei, no art. 3º do CPC.

No entanto, não nos parece que haja aqui violação do princípio do contraditório, consagrado no art. 3º do CPC, como principio que enforma o processo civil e tem aqui aplicação subsidiária (cfr. art. 17º do CIRE). É que é o próprio CIRE a excluir a audiência do devedor, na situação prevista no art. 17º-G, nº 4. Se o parecer do administrador é equiparado à apresentação do devedor à insolvência, com o consequente reconhecimento por este da sua situação de insolvência, parece haver um propósito do legislador de dispensar o contraditório, o que não deixa de ser legal (cfr. art. 3º, nº 2 do CPC). Embora a regra seja a da audiência (cfr. arts 12º, 29º e 30º do CIRE), o que prevê aqui é um caso excepcional.

E, por isso, não se comunga do entendimento de que a interpretação dos citados art. 17º-G, n.º 4 e 28º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do AJP de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, apenas é legalmente admissível, atenta a unidade do sistema jurídico e em conformidade com o referido princípio do direito de defesa, quando do PER decorra que o devedor aceita que está em situação de insolvência (neste sentido, o Ac. R.P. de 26.3.2015, Leonel Serôdio, em www.dgsi.pt).

A lei não exige, no caso, a audiência do devedor. O que não impede que concordemos com a asserção de que, quando no PER se constata que o devedor discorda do parecer do AJP no sentido de que está em situação de insolvência, lhe deve ser concedido o direito de se defender e provar a sua solvência, atento o disposto no art. 30º n.º 4 do CIRE ou, ainda, provar que o activo é superior ao passivo, segundo os critérios do art. 3º n.º 3 do CIRE (Ac. R.P. de 26.3.2015).

Mas isso gera não um problema de ilegalidade, antes coloca a questão de conformidade da lei com a Constituição. O que sai violado não é princípio legal do contraditório expresso no CPC ou no CIRE (que também aqui não é princípio absoluto), é o direito a um processo equitativo em que o direito de defesa esteja assegurado. Com efeito, não nos parece admissível que, numa situação em que o devedor não aceita o pedido de insolvência e, portanto, não confessa a sua situação de insolvência, se interprete os artigos 17º-G, n.º 4 e 28º do CIRE, como o devedor estando, por força do parecer do AJP, a confessar essa situação de insolvência.

Nem pode colher aqui o argumento de que a recorrente bem sabia que a declaração da insolvência, em consonância com os n.ºs 3 e 4 do art.º 17º-G, era consequência do malogro do processo de revitalização em razão da ocorrência da situação prevista no n.º 1 do mesmo artigo. Não basta estar prevenido quanto às consequências do possível malogro do processo de revitalização. É que, dependendo a declaração de insolvência do parecer do AJP, não é justo que se recuse à recorrente o direito de se opor a esse parecer, sem o qual sai ferido o princípio do contraditório e o direito a um processo equitativo. As exigências de celeridade não podem prejudicar o direito a um processo equitativo, com o inerente direito à defesa.

Mas será que esse direito de defesa se garante mediante a possibilidade de o devedor deduzir embargos ou recorrer nos termos do disposto nos art.ºs 40º e 42º do CIRE?

Cremos que não.

Como, justamente, se observa no Ac. R.P. de 26.3.2015, acima citado, o direito de recorrer não se confunde com o direito ao contraditório, que é anterior e tem de assegurar o direito da parte de expor as suas razões antes do tribunal decidir e não depois. Na verdade, o recurso apenas incide sobre os “elementos apurados” (art. 42º, nº 1 do CIRE) e nesse apuramento não interveio o devedor. Aliás, é até duvidoso, acrescentamos nós, que, ficcionando-se legalmente que o devedor reconhece a sua situação de insolvência, este tenha legitimidade para interpor recurso sustentando o contrário (art. 631º do CPC).

Mas o direito de defesa também não está assegurado através do recurso aos embargos. É que não se verifica, em nosso entender, e ao invés do que propugna Salazar Casanova e David Dinis na obra acima citada, uma situação análoga à da alínea a) do art. 40º (que reconhece o direito de opor embargos ao devedor em situação de revelia absoluta, se não tiver sido pessoalmente citado), por remissão do artigo 42º, n.º 1.

Se, no caso, procedem as razões justificativas do direito do devedor em situação de revelia absoluta, pois o devedor, requerente do PER, também não foi ouvido (pelo Juiz) sobre o pedido do administrador provisório, essas razões já não subsistem quando, diferentemente do devedor em situação de revelia absoluta, que não foi pessoalmente citado e não reconheceu qualquer insolvência, se atribui ao devedor, que reconheceu a sua situação de insolvência por força do parecer e requerimento do AJP, o direito de embargar para sustentar que está, afinal, solvente. Ao conferir-se ao insolvente, nos termos do art. 40º, n.º 1, al. a) e 42º, nº 1 do CIRE, o direito de embargar, alegando factos que afastem os fundamentos da insolvência, quando antes se presumiu que confessou a sua insolvência, não se pode deixar de se incorrer em manifesta contradição (neste sentido, o Ac. R.P. de 26.3.2015, vindo de citar).

De todo o modo, não se acompanha a solução (do citado aresto) de que, no caso em que o devedor não aceita a sua situação de insolvência, após o requerimento de insolvência apresentado pelo AJP, nos termos do art. 17º-G n.º 4 do CIRE, se adapte o processado, previsto no art. 28º, como expressamente prevê o n.º 4 do art. 17º-G, ordenando-se a citação do devedor, nos termos do art. 29º, seguindo-se os termos do art. 35º, caso este deduza oposição.

O objectivo do legislador não foi, por certo, levar a adaptação do disposto no art. 28º do CIRE ao ponto de permitir a citação do devedor nos termos do art. 29º do CIRE e, em caso de oposição, os subsequentes termos do art. 35º, pois, se assim fosse, tê-lo-ia dito claramente.

Em síntese, não existe violação do princípio do contraditório expresso no art. 3º do CPC, nem é possível qualquer interpretação (correctiva) do art. 17º-G, nº 3 e 4, adaptando-o a tal princípio.

Aliás, a haver violação do princípio do contraditório, sempre se estaria perante uma nulidade processual que teria de ser arguida pela recorrente no prazo de 10 dias, nos termos conjugados dos art. 199º e 149º do CPC (cfr. Ac. STJ de 13.1.2005, Araújo de Barros, em www.dgsi.pt). Ora, a recorrente invocou a “nulidade” da sentença, por violação do art. 3 do CPC, já para além do prazo legal de 10 dias, pois o que consta dos autos é que as alegações apenas deram entrada com a multa correspondente ao 1ª dia útil depois do prazo legal de 15 dias para o recurso.

         Isso não significa, no entanto, que o nº 4 do art. 17º-G, com a interpretação que lhe foi dada na sentença recorrida (e que é a única admissível, em nosso entender) não padeça de inconstitucionalidade, nos termos do art. 20º, nº 1, 4 e 5 da CRP, por violação do princípio do acesso ao direito e do princípio do direito a um processo equitativo (inconstitucionalidade também arguida pela recorrente na conclusão 19) e do acesso à tutela jurisdicional efectiva, a que se reporta o nº5. e a epígrafe do artigo. O direito de acesso ao direito previsto no nº 1 do art. 20º da CRP inclui o direito de acção e o direito de defesa, que se efectivam através de um processo equitativo (nº 4). Ora, o significado básico da exigência de um processo equitativo é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva. E, no que agora importa, essa conformação só se alcança através de outro princípio como o direito de defesa e o direito ao contraditório, traduzido, fundamentalmente, na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito e de oferecer provas (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, Volume I, 4ª edição, pág. 425).

Assim, revertendo ao caso “sub judice”, verifica-se que o nº 4 do art. 17º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, caso o AJP emita parecer de que o devedor se encontra em situação de insolvência e requeira essa insolvência, se deve aplicar o art. 28º do CIRE, com as necessárias adaptações, enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio do processo equitativo - no que este princípio implica de direito à defesa e de direito ao contraditório, quer no plano da alegação quer no plano da prova - e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º, nº 1, 4 e 5 da CRP).

No termos do art. 204º da CRP, não pode o tribunal aplicar esta norma, o que implica a inexistência de lei expressa para o caso e a existência de uma lacuna a carecer de integração, integração essa que pode ser feita por analogia.

Com efeito, deixando o requerimento do AJP de valer como confissão de insolvência por parte do devedor, cremos que, agora sim, se justificará, atendendo, sobretudo, ao princípio do contraditório, a aplicação, por analogia, das regras do art. 30º e 35º do CIRE (art. 10º, nº 2 do Cód. Civil).

Pelo exposto acordam os Juízes deste Tribunal em:

a) recusar por inconstitucionalidade material, por violação do art. 20º, nº 1, 4 da CRP que consagra o direito a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efectiva, a aplicação do disposto no nº 4 do art. 17º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, requerida a insolvência do devedor pelo administrador judicial provisório, se deve aplicar, de imediato, o disposto no art. 28º, com as necessárias adaptações, isto é, que o requerimento do administrador judicial provisório pedindo a insolvência do devedor deve implicar o reconhecimento por este da sua situação de insolvência e a dispensa da sua audiência;

b) revogar a sentença recorrida, ordenando-se a citação da devedora, ora apelante, para, no prazo de dez dias, deduzir oposição nos termos do art. 30º do CIRE, seguindo-se, se houver oposição, audiência de discussão e julgamento nos termos do art. 35º do CIRE.

Custas pela apelada.


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Coimbra, 8 de Julho de 2015

António Magalhães (Relator)

Ferreira Lopes

Freitas Neto