Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5202/04.8TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
COACÇÃO
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1376.º, 1 A 3; 1377.º C); 1379.º, 1 E 3 DO CC
Sumário: 1 O espírito do legislador, o fim que teve em vista ao conceder aos donos dos prédios encravados o direito de exigirem passagem através dos terrenos dos prédios vizinhos, foi permitir uma exploração económica normal dos prédios, isto é, dar a possibilidade dos prédios poderem ser convenientemente fruídos pêlos seus proprietários.
2. Não é conforme ao fim económico da servidão de passagem em benefício de prédio encravado o seu exercício coactivo e potestativo, não para o benefício do prédio do requerente, com a natureza e destino que então o caracteriza, mas para o converter de prédio rústico em prédio urbano, tendo em vista o cumprimento da exigência administrativa de acesso à via pública (com dimensões largamente excedentes ao do modesto acesso rural) indispensável à aprovação do projecto de construção pela autoridade competente.

3. A servidão não estaria ao serviço da actividade e utilidade do prédio do requerente. Seria apenas um meio de conseguir a transformação de um terreno desvalorizado num prédio urbano, à custa do sacrifício do prédio vizinho, ainda que contra o pagamento de uma indemnização.

4. A admitir-se a constituição de servidão legal em tais hipóteses, tal iria significar que a construção em terrenos encravados poderia ter lugar através da sua aquisição a baixo preço, uma vez que estaria assegurada a obtenção do acesso à via pública pelos prédios confinantes.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal Relação da de Coimbra:

A... e mulher B... intentaram no 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria uma acção declarativa com processo ordinário contra C... e mulher D..., alegando, para tanto, e em síntese, serem donos de determinada parcela de terreno totalmente encravada, por não dispor de qualquer comunicação com a via pública; que pretendendo destiná-la à construção da sua habitação, o respectivo projecto só é aprovado se a parcela dispuser de uma passagem para a via pública, com pelo menos 4 metros de largura, para o trânsito de pessoas e veículos, bem como de tubos de água, gás, electricidade e esgotos, e o mais necessário; que esta via se situa a poente, a uma distância de 31 metros, interpondo-se entre ela e a referida parcela certo prédio rústico dos RR.; que este, de todos os prédios confinantes, é o que menor prejuízo e incómodo sofrerá com a servidão pretendida; que a indemnização a que os RR. têm direito pelo terreno a ocupar é de € 310,00.

Remata pedindo que se declare a constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio dos RR. a favor do prédio dos AA., com o traçado e largura referidos em 13º e 14º da p.i., destinada ao trânsito de pessoas e veículos ligeiros e pesados, tubos de água, esgotos, gás, electricidade e quaisquer outros que se mostrarem necessários aos fins habitacionais do prédio dominante, arbitrando-se aos RR. a indemnização de € 310,00.

Contestando, os RR. defenderam-se por impugnação e excepção, além de terem deduzido reconvenção. Alegam que a doação mediante a qual os AA. adquiriram o imóvel de que se arrogam donos é nula, por dissimular uma compra-e-venda, negócio que daria lugar à preferência dos proprietários confinantes; que, de todo o modo, tal doação é sempre anulável, visto implicar o fraccionamento de um conjunto predial com área inferior à unidade de cultura respectiva; que, enquanto integrada na referida unidade predial, a parcela adquirida pelos AA. sempre teve acesso à via pública pelo lado nascente, através de outros prédios do doador; que há um outro prédio, confinante a norte-poente, com 3.000 m2 em que a implantação da passagem originará menor prejuízo para os seus proprietários; que, a ser declarada a servidão, o prédio dos RR. fica muito prejudicado, ficando sem dimensão para aí ser viabilizada a construção de uma habitação para o respectivo filho; que o valor do metro quadrado do prédio dos RR. é de € 180,00 e não de € 10,00, como dizem os AA.

Terminam com a improcedência da acção. Em reconvenção, pedem que se decida que o acesso ao terreno dos AA. se faça pelos terrenos do doador tal como sucedia antes da doação, ou, assim não se entendendo, pelos terrenos do prédio confinante pertencente aos herdeiros de G..., ou, em último caso, se se concluir que o sacrifício deve incidir no prédio dos RR., que a indemnização a atribuir-lhes não deve ser inferior a € 35.000,00.    

Responderam os AA., negando qualquer simulação na doação, bem como refutando a aplicabilidade ao caso da proibição do emparcelamento. Concluem como na p.i.

A final foi proferida sentença na qual, além se julgar não provada e improcedente a reconvenção, igualmente se julgou a acção procedente por provada, em função do que se declarou a constituição de uma servidão de passagem sobre o prédio pertencente aos RR. a favor do prédio dos AA. nos precisos moldes por estes requeridos, arbitrando-se àqueles a indemnização de € 11,00 por metro quadrado da área ocupada com a servidão.

Inconformados, desta decisão interpuseram recurso os RR., recurso admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Dispensaram-se os vistos.

                                                                            *

           

São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:

A) Consta inscrito na Conservatória do Registo Predial de ..., a favor dos autores, a aquisição por doação de E...e mulher F... do prédio rústico descrito sob o nº ... da freguesia de ..., sito em ..., composto por terra de cultura com a área de 820 m2, e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o número ..., da freguesia de ....

B) O prédio referido em A) confronta a norte com H...; a nascente com I... e E...; a sul com J...; e a poente com C... (Réu marido).

C) Consta inscrito na Conservatória do Registo Predial de ..., a favor dos Réus, a aquisição por sucessão com adjudicação em partilha de herança de L..., do prédio rústico descrito sob o nº ... da freguesia de ..., sito em ..., composto por pinhal e mato com a área de 830 m2, e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o número ..., da freguesia de ....

D) O prédio referido em C) confronta a norte com N...; a nascente com M... ; a sul com J...; e a poente com caminho.

E) Por escritura pública lavrada no 1º Cartório Notarial de ..., a fls 136 a 137 do livro de notas número 103-L, a três de Junho de 2004, E...e esposa F... declararam doar livre de ónus e encargos a A..., que declarou aceitar, o prédio rústico composto por terra de cultura com a área de oitocentos e vinte metros quadrados, sito em ..., freguesia de ..., a confrontar a norte com H..., do nascente com I... e E..., do sul com J... e do poente com C..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1.283, com o valor patrimonial de 35,28 euros, não descrito no Registo Predial.

F) Na escritura referida em E) E...e mulher declararam “não possuem outros terrenos aptos para cultura contíguos ao prédio ora doado.”

G) E...consta inscrito como titular do rendimento referente aos prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos nº ...e ..., sitos em ..., freguesia de ..., que confrontam com o prédio referido em A) e têm respectivamente a área de 450 m2 e 1040 m2.

H) Os Autores pretendem construir a sua casa de habitação no prédio referido em a), razão pela qual têm necessidade de ocupar uma faixa de terreno em um dos prédios contíguos, para aceder à via pública.

I) A via pública mais próxima do prédio referido em a) fica situada a poente, a 31 metros deste.

J) Do todos os prédios confinantes com o prédio dos autores, o referido em c) é o que menor prejuízo, dispêndio e incómodo sofrerá.

L) O prédio referido no ponto anterior tem um solo com textura arenosa, com alguns elementos grosseiros (seixos e areia) de reduzida potencialidade (fertilidade) agrícola.

M) Este prédio encontra-se a mato, tendo o arvoredo existente sofrido corte raso há já diversos anos.

N) Os Autores, para poderem construir no seu terreno, têm necessidade de dispor de um acesso com 4 metros de largura, para lhes ser aprovado o projecto e depois poderem passar os camiões e máquinas com materiais, terras, etc.

O) As redes públicas de abastecimento domiciliário de água, esgotos e gás têm de passar por aquele acesso.

P) A distância entre a via pública e o prédio referido em a) e b) é menor a poente deste, atravessando o prédio referido em c) e d); sendo que a distância mais curta do prédio a) á via pública asfaltada a poente é pelo prédio referido em b), ao longo do seu limite norte.

Q) O prédio referido em c) tem um valor metro quadrado que varia entre 10,00 € e 12,00 €.

R) Os prédios referidos em g) são terrenos de cultura com árvores de fruto.

S) Ao adquirirem o prédio referido em a), os autores sabiam que o mesmo tinha acesso à via pública pelos outros prédios de E... .

T) A faixa de terreno que os Autores pretendem ocupar tem a área de 140 m2, correspondente a 35 metros de comprimento por 4 metros de largura.

U) Os prédios referidos em g) são o local onde E...possui a sua casa de habitação e respectivo logradouro.

                                                                            *

A apelação.

Os apelantes encerram a respectiva alegação com o seguinte conjunto conclusivo:

A) O doador é titular dos prédios inscritos na matriz rústica da freguesia de ... sob os art.°s ...e ..., tendo doado o art.° ... aos AA., os quais são contíguos entre si e constituíam um único prédio.

B) O único elemento que nos indica que o prédio doado se destina à construção é o declarado na escritura, no qual se afirma que se pretende destinar tal prédio à construção.

C) Mais é dado como provado que os AA. pretendem construir no prédio a sua casa de habitação.

D) Certo é que nada mais é alegado quanto a tal intenção, nomeadamente que a mesma é viável, sendo permitida a construção pelas normas do PDM.

E) Assim, constituindo o conjunto dos terrenos do doador um só prédio, a simples menção na escritura da intenção de construir não é suficiente para se poder dar por definitivamente provado o requisito de que o prédio autonomizado se destina a "algum fim que não a cultura" (art.° 1377°, al.ª a) do C. Civil).

F) De realçar que a proibição de fraccionamento se aplica a "todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos" (art.° 1376°, n° 3 C. Civil).

G) E não há dúvida que o doador possui outros terrenos contíguos ao doado, nomeadamente os mencionados art.°s ...e ....

H) Pelo que a doação levada a efeito viola a proibição de fraccionamento contida no art° 1376° C. Civil e art° 20° da lei de emparcelamento.

I) Assim, constituindo a doação do prédio um acto de fraccionamento ilegal, não pode ao prédio reconhecer-se a qualidade de prédio encravado.

J) Mesmo que assim se não entenda, certo é que o acesso ao prédio doado aos AA. sempre se fez pelos restantes prédios do doador.

K) Tais prédios, no seu conjunto, confinam com a via pública.

L) E manifestamente contraditória a resposta ínsita na resposta aos quesitos 14° e 17°, em confronto com a resposta ao quesito 16°.

M) Por um lado, é dado como não provado que os três prédios rústicos do doador, onde se inclui o terreno doado, sempre tenham tido acesso à via pública; mas depois dá-se como provado que ao adquirirem o prédio referido em a) [o prédio doado], os Autores sabiam que o mesmo tinha acesso à via pública pelos outros prédios do E...[o doador] – quesito 16º.

N) Quanto à matéria de facto e no que a este ponto diz respeito, a resposta à matéria quesitada nos pontos 14° e 17° deverá ser "provado".

O) Tendo os AA. conhecimento de que o acesso ao prédio doado se fazia pelos restantes prédios do doador, não se vislumbra agora – porque nenhum facto foi trazido pelos AA. nesse sentido – que haja razões para alterar o local dessa passagem.

P) A considerar-se a existência de encrave, este foi voluntário, pelo que a indemnização a arbitrar aos recorrentes tem de ser agravada.

Q) Ao decidir-se como decidiu, foram violadas, entre outras, as normas contidas nos art°s 1376° e 1377°, ambos do C. Civil; art° 20° do Dec.-Lei 384/88, de 25.10; art.° 1° da Port. 202/70. de 21.04; e art° 1552° C. Civil.

Os apelados contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do sentenciado.

                                                                              *

São as seguintes as questões suscitadas no recurso:

1º - Se há contradição entre as respostas dadas pelo tribunal aos nºs 16, 14 e 17 da base instrutória.

2º - Se a decisão da matéria de facto deve ser alterada no que concerne às respostas dadas aos nºs 14 e 17 da b.i.;

3º - Se não se pode concluir que o prédio dos AA. se destina a outro fim que não a cultura, para o efeito da al.ª a) do art.º 1377 do CC;

4º - Se o encrave resultante para os AA. não é relevante, uma vez que o fraccionamento do conjunto predial dos AA. foi ilegal, considerando-se todo o terreno contíguo do doador;

5º - Se os AA. não têm direito à servidão, dado o acesso ao prédio doado se poder continuar a fazer pelos restantes prédios do doador;

6º - Se, ainda que se entenda que há encrave, este é voluntário, implicando o arbitramento de indemnização agravada a favor dos Réus, recorrentes.

As questões da contradição entre as respostas à matéria de facto e da alteração da decisão de facto.

Pugnam os apelantes para que se reconheça uma contradição entre as respostas de não provado aos nºs 14 e 17 da base instrutória e a resposta ao nº 16 da mesma base (ao adquirirem o prédio referido em a) [o prédio doado], os autores sabiam que o mesmo tinha acesso à via pública pelos outros prédios do E...[o doador].

Esta questão só se compreende desde que se mantenham aquelas respostas aos nºs 14 e 17, respostas que os recorrentes pretendem ver alteradas.

De qualquer maneira, a contradição é impossível, pois, como tem sido jurisprudência constante, um não provado é um nada factual, que não permite extrair qualquer análise ou ilação.

Intentam os recorrentes ver alteradas as respostas àqueles nºs 14 e 17 para Provado.

Era o seguinte o teor destes pontos de facto:

                                                                        14

O conjunto de prédios referidos em 13° sempre tiveram acesso à via pública?

                                                                       17

O acesso à via pública do prédio referido em a) sempre foi feito através dos prédios do pertença do doador?

Para a modificação das respostas invocam os recorrentes apenas o que teria decorrido do depoimento da testemunha O....

Ouvido integralmente este depoimento dele não resulta que o acesso ao prédio dos AA. se fizesse exclusivamente pelos prédios do doador E.... Com efeito, o que dele emerge é tão só que o doador e a testemunha se serviam de um portão e de um pátio do primeiro para acederem aos seus prédios. Mas nada mais dele resulta, nomeadamente, nada se colhe sobre qual o concreto prédio em que se localizava o tal portão, nem o modo como esse acesso se processaria.

Da restante prova, nomeadamente, testemunhal nada transparece sobre a acessibilidade ao prédio dos AA.

Pelo que são manter as respostas de Não provado àqueles dois pontos da b.i..      

Sobre o destino do prédio adquirido pelos AA.

Entendem os recorrentes que embora em 3 de Junho de 2004 os AA. tenham adquirido a E...e mulher o imóvel identificado nas alíneas A e E dos factos provados, nada permite assegurar que se trata de um terreno apto para construção. A mera declaração dos AA., e mesmo a prova da respectiva intenção, não seriam – segundo os apelantes - suficientes para esse efeito.

Vejamos.

Em causa está a excepção que os AA. oportunamente adversaram, atinente à possibilidade de fraccionamento de terrenos aptos para cultura, com área inferior à unidade de cultura ou de que possa resultar o encrave das parcelas, desde que tal fraccionamento tenha por fim a desintegração para construção, de harmonia com ao art.º 1376, n.ºs 1 a 3 e 1377, alínea c) do CC.

A sentença considerou a proibição de fraccionamento inaplicável pelo facto de os AA. terem intenção de destinar a parcela adquirida à construção de uma habitação, conforme o facto provado em H. 

Que dizer ?

Nos termos do art.º 1376, nºs 1 e 2, do CC, os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País ou quando daí possa resultar o encrave de qualquer das parcelas.

Esta proibição não tem lugar nos casos do art.º 1377 do CC, e, nomeadamente, sempre que o fraccionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção.

O fim construtivo não tem de constar necessariamente dos termos do negócio que concretiza o fraccionamento, tal como não constou efectivamente da escritura de doação feita aos AA.

Como se vê dos nºs 1 e 3 do art.º 1379 do CC, havendo intenção por parte do adquirente do terreno fraccionado de promover a construção na parcela, esta deve ter início no prazo de três anos (nº 1), caducando a acção destinada à anulação do acto (de que derivou o fraccionamento ilegal) ao fim de três anos contados do termo desse prazo.

Ou seja: pode haver a manifestação do propósito do adquirente da fracção de levar a cabo uma construção; mas só não sendo a fracção afecta à construção ao fim de três anos é que o fraccionamento passa a ser ilegal e pode ser atacado por via da acção anulatória. Em boa verdade, só nessa altura se consolida o fim da parcela. Não diz a lei o que é o início da construção, mas tudo leva a crer de que se trata da implantação física da edificação no solo.

De qualquer modo, a única consequência que a lei prevê para esta infracção é a anulação do acto mediante acção a instaurar com esse desiderato, conforme o disposto no art.º 1379 do CC. Não sendo impugnado o acto, designadamente perante os doadores, os seus efeitos permanecem na ordem jurídica.

Portanto, para o que agora interessa, a factualidade apurada permite afirmar a intenção de os AA. levarem a efeito uma construção na parcela e isso será uma indicação suficiente.  

Quanto ao problema do encrave incidir sobre uma parcela e esta se achar inserida numa área abrangendo vários prédios contíguos do mesmo dono.

Esta questão prendia-se directamente com a intervenção do critério plasmado no nº 3 do art.º 1376 do CC para a definição de terreno não fraccionável com base na unidade de cultura (nº 1) ou no encrave de qualquer das parcelas (nº 2).

Para o funcionamento do aludido critério importava que se provasse que, enquanto sob o domínio dos doadores, e, por conseguinte, antes da doação, o prédio dos AA. – art.º ... – formava um conjunto (um todo contíguo ou uma unidade) com ambos (ou algum) dos prédios correspondentes aos art.ºs ...e ... da freguesia de ..., concelho de ....

No entanto, a matéria que continha essa factualidade – o nº 13 da b.i[1] – não se provou.

Em tal contingência a questão suscitada pelos recorrentes não tem o necessário suporte.

           

A questão do direito à servidão com fundamento no encrave do prédio dos AA.

Mediante a presente acção os AA. exercitam o direito potestativo previsto no nº 1 do art.º 1550 do CC.

À luz deste normativo, "Os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos."

Tratando-se de prédio encravado, configura a lei o direito a uma servidão coactiva (art.ºs 1550 e seguintes). Ao respectivo proprietário é reconhecida a faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem sobre o prédio vizinho. A servidão pode então ser coactivamente imposta, mas nada obsta à sua constituição voluntária, por via contratual, entre os proprietários respectivos.

 

A noção de prédio encravado é hoje muito ampla. O art.º 1550 do CC permite a passagem através de prédios rústicos. Mas o art.º 1551 mostra que também se pode fazer por logradouros de prédios urbanos. Porém, nesse caso os proprietários desses prédios podem subtrair-se ao encargo, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor.

"A lei permite impor a constituição de servidão de passagem sobre prédio circundante em três casos (art.º 1550):

1) quando um prédio não tem comunicação com a via pública (encrave absoluto).

2) quando um prédio não tem condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio.

3) quando um prédio tem comunicação insuficiente com a via pública, por terreno próprio ou alheio.

A existência de um grande desnível entre o prédio e a via pública representa uma típica ocorrência da segunda hipótese " (O. Ascensão, Direito Civil, Reais, 5ª edição, p. 507).

    
Equipara-se, pois, a prédio encravado, no sentido de encrave absoluto, que não tem comunicação com a via pública, o prédio que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo). E, se a verificação do encrave absoluto é normalmente fácil de fazer, já o mesmo não sucederá em relação ao encrave relativo, em que o proprietário só pode obter a desejada comunicação “com excessivo incómodo ou dispêndio”, tendo a lei importado estes dois termos do Código italiano.
Costumando citar-se, a propósito do “
excessivo incómodo”, o exemplo de um grande desnível entre o prédio e a via pública, que só poderia ser suprido com uma passagem muitíssimo íngreme; dando-se como exemplo do “excessivo dispêndio”, a construção de uma ponte sobre um grande rio para ligar o prédio (relativamente) encravado à outra margem, por onde passe uma estrada. Sendo certo que se deverá sempre ter em conta para a apreciação de tal “excesso” o valor económico do prédio, de harmonia com a sua natureza e utilização ordinária.
O excessivo incómodo ou dispêndio, bem como o valor económico do prédio, a sua natureza e utilização ordinária são elementos integrantes do direito potestativo que os respectivos proprietários se arrogam, sendo, assim, estes que têm o ónus da prova dos respectivos factos constitutivos (art. 342.º, n.º 1, do CC), e não os proprietários dos prédios cuja oneração se pretende.
Sendo certo que, não conseguindo o proprietário do prédio (relativamente) encravado demonstrar tais pressupostos, terá de ver a dúvida daí resultante ser decidida contra ele (art. 516.º), ou seja, no sentido de não se verificarem preenchidos os requisitos legais da constituição da pretendida servidão de passagem.

E que temos nós então na ponderação global e interactiva da materialidade apurada?

Não há dúvida de que o imóvel adquirido pelos AA. (o art.º ...), per se, não dispõe de qualquer comunicação com a via pública. Esse imóvel encontra-se agora, portanto, na situação dita de encrave absoluto. O que não significa que isso acontecesse antes da doação aos AA. em 3/06/2004. É possível que, antes da doação, a comunicação do prédio com a via pública o colocasse em situação de não encrave ou de mero encrave relativo, atenta a interposição de outro ou outros prédios dos doadores e a via pública.

Porém, do que agora se trata é de um encrave absoluto.

De acordo com o art.º 1553 do CC, a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo e pelo modo e lugar e menos inconveniente para o prédio onerado.

Importaria assim averiguar, de entre os diversos prédios confinantes, qual deles comportaria menor gravame com a oneração decorrente da concessão da passagem da via pública para o prédio dos AA..

Ao pretendente à servidão não basta alegar que de todos os prédios confinantes é o do réu aquele que menor prejuízo sofrerá com o encargo. Cumpre-lhe discriminar a natureza e características de cada um desses prédios para, de posse desses elementos, o tribunal poder formular o crucial juízo de valor de que é o prédio do réu aquele que se encontra nessa particular situação.

Deflui do exposto que a resposta ao quesito terceiro, atento o conteúdo valorativo que incorpora, tem de ser considerada não escrita.

 

Relativamente a este aspecto, temos que relativamente ao prédio dos RR., confinando com o dos AA., se trata de um prédio com uma área de 830 m2, de solo árido, com muito cascalho, pedra, pouco propício à agricultura, permitindo a ligação do prédio dos AA. à via pública, em 31 metros, a poente. E quanto às demais alternativas, como, desde logo, aquela que poderia consistir no acesso através de outro ou outros prédios dos doadores E... e mulher ?[2]. Sobre esta hipótese de servidão os AA. nada disseram, sendo certo que até se veio a provar – alegado pelos RR. – que estes, ao adquirirem o prédio referido em a) sabiam que o mesmo tinha acesso à via pública pelos outros prédios de E...(doador) – cfr. o facto provado em S.

Ora se havia acesso por outros prédios dos doadores - ainda que só um deles confinasse com o dos AA. - haveriam estes de demonstrar o maior prejuízo para eles adveniente da devassa ocasionada pela almejada servidão. O seu silêncio a tal propósito redunda na não demonstração do quadro global dos requisitos constitutivos do direito potestativo de que lançaram mão. Por aqui, a acção teria, evidentemente, de naufragar.

Mas, se bem pensamos, não só por esse motivo. 

 

O já mencionado nº 2 do art.º 1376 do CC ilustra bem a aversão do legislador ao encrave dos terrenos[3]. Mas este posicionamento não foi ao ponto de o fazer declarar que as parcelas encravadas por fraccionamento estariam impedidas de beneficiar de servidão legal de passagem.

Todavia, o que não é manifestamente conforme ao fim económico da servidão de passagem em benefício de prédio encravado é o seu exercício coactivo e potestativo, não para o benefício do prédio do requerente, com a natureza e destino que então o caracteriza, mas para o converter de prédio rústico em prédio urbano, tendo em vista o cumprimento da exigência administrativa de acesso à via pública (com dimensões largamente excedentes ao do modesto acesso rural) indispensável à aprovação do projecto de construção pela autoridade competente. A servidão não estaria ao serviço da actividade e utilidade do prédio do requerente. Seria apenas um meio de conseguir a transformação de um terreno desvalorizado num prédio urbano, à custa do sacrifício do prédio vizinho, ainda que contra o pagamento de uma indemnização. A admitir-se a constituição de servidão legal em tais hipóteses, tal iria significar que a construção em terrenos encravados poderia ter lugar através da sua aquisição a baixo preço, uma vez que estaria assegurada a obtenção do acesso à via pública pelos prédios confinantes. Estaria descoberta a forma de criar acessos à via pública de terrenos isolados e imprestáveis para a cultura, à custa da desvalorização dos prédios de terceiros, que para isso em nada contribuíram, vendo-se obrigados a ceder faixas de terreno com as dimensões adequadas às finalidades urbanísticas. 

É o que se passa no caso vertente.

Na verdade, os AA. não deixam de referir no art.º 15º da p.i. que A Câmara Municipal de ..., para aprovar o projecto de construção da moradia dos AA., exige que o seu terreno tenha um acesso com pelo menos 4 metros.

Isto é, o que os AA. visam é dotar o seu prédio de um elemento estrutural que lhe confira a natureza jurídica de um terreno para construção, e, portanto, de um prédio urbano.

Com efeito, o prédio doado aos AA. foi um mero prédio rústico, descrito como uma terra de semeadura.

A servidão requerida – com quatro metros de largura – vai muito para além do que seriam as previsíveis utilidades e necessidades de um tal imóvel. Quatro metros de largura é a dimensão de muitas estradas municipais.

Quem pretende construir deve adquirir o terreno dotado do respectivo acesso à via pública, o que naturalmente lhe poderá acarretar o desembolso do valor inerente a esse fim.

Sucede, porém, que a faculdade de o proprietário de prédio encravado exigir a constituição de servidão de passagem corresponde a uma função económica e sobretudo social desse mecanismo excepcional. Excepcional porque se traduz num dever de sujeição irresistível para o proprietário onerado.

Ainda na vigência do art.º 2309 do Código de Seabra, e a pretexto da polémica sobre a possibilidade de imposição da servidão de passagem nos casos de encrave relativo, que não estava – como hoje está - contemplado na letra da norma, escreveu Gonçalves Rodrigues, na sua obra Da servidão legal de passagem[4] :

"... Consequentemente, as servidões do artigo 2309 não são só de interesse privado, mas também de interesse público, pois não convém à comunidade a existência de terrenos estéreis por falta absoluta de acesso, nem tão-pouco a existência de terrenos incompletamente aproveitados por deficiências de acesso que impossibilitem ou dificultem um contacto apropriado dos proprietários com os terrenos, de tal modo que não seja possível uma exploração económica normal.

Sem dúvida que o espírito do legislador, o fim que teve em vista ao conceder aos donos dos prédios encravados o direito de exigirem passagem através dos terrenos dos prédios vizinhos, foi permitir uma exploração económica normal dos prédios, isto é, dar a possibilidade dos prédios poderem ser convenientemente fruídos pêlos seus proprietários '. Ensinam-nos, a este propósito, os Profs. PLANIOL e RlPERT, in ob. ap., tomo III, pág. 860: «A servidão de passagem é estabelecida pela lei em vista da exploração dos prédios: a sua existência, da mesma forma que sua extensão, encontram-se subordinadas as necessidades desta exploração». 

Deste modo, o exercício do direito potestativo que os AA. objectivam pela presente acção representaria um exercício ilegítimo na medida em que iria contrariar o fim social (e económico) desse direito. Daí que, além do mais, os AA. também incorram em abuso do direito, nos termos do art.º 334 do CC, excepção do conhecimento ex officio deste tribunal, obstando à procedência da acção.

Está assim prejudicada a apreciação da última das questões do recurso.

Pelo exposto, na procedência da apelação, julgam a acção improcedente por não provada, absolvendo os RR. de todos os pedidos contra eles formulados.

Custas pelos apelantes.


Freitas Neto (Relator)
Carlos Barreira
Barateiro Martins


[1]              Cujo teor, decalcado do alegado em 14 da contestação, era o seguinte: "O terreno referido em a) juntamente com os prédios referidos em g) formavam um prédio único, destinando-se à agricultura e exploração de árvores de fruto?".
[2]              Note-se que os RR. contrapuseram o menor prejuízo para um prédio sito a norte/poente do dos AA., pertencente à herança de G..., com a área de 3.000 metros quadrados, igualmente susceptível de proporcionar acesso à via pública (cfr. o art.º 20 da contestação), com menor sacrifício, e que, sobre este ponto, foi elaborado o nº 15 da b.i., que mereceu resposta não provado.
[3]              Citando o Parecer da Câmara Corporativa nº 26/v de 30 Janeiro de 1952 (Diário das Sessões, nº 131, de 1 de Março de 1952), P. de Lima e A. Varela, em anotação ao nº 2 do art.º 1376 (C.C. Anotado, V. III, p.238), recordam a justificação do preceito: " [...] «O prédio encravado desvaloriza-se, pela dificuldade do acesso, que raramente será tão cómodo como o de via pública, e pela necessidade de devassamento de terrenos alheios, que se a alguns agrada, desagrada a outros. Os terrenos servientes desvalorizam-se também, sujeitos a esse devassamento constante, e algumas vezes de exploração mais difícil pelo alongamento do percurso, se é necessário rodear o terreno encravado [...]. «Os donos de pequenos retalhos encravados, que frequentemente se sucedem contínuos, cada um serviente do seguinte e dominante do anterior, vêem, não raro, cerceada a sua iniciativa agrícola [...]".   
[4]              Almedina, 1962, p. 203 e seguintes.