Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98-A/99
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: SIMULAÇÃO
COMODATO
DOAÇÃO
USUFRUTO
ESBULHO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 240.º, N.º 1; 241.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGOS 944.º; 1129;
Sumário: 1. O usufruto não é dissimulável.
2. Deve classificar-se como comodato e não como doação de usufruto o contrato celebrado por documento particular em que as partes estabelecem que “se rege pelas cláusulas seguintes:
1.ª A primeira contratante é proprietária do prédio sito em Tomar, na Rua da Saboaria, nº 13, 13 A e 15, inscrito na matriz predial sob o artigo nº 101 da freguesia de S. João Baptista de Tomar.
2ª– Pelo presente contrato a 1ª contratante entrega aos 2ºs, gratuitamente, até à morte do último sobrevivente destes, a loja correspondente ao número de polícia 13-A da Rua da Saboaria, em Tomar.
3ª– Os 2ºs contratantes ficam autorizados a dar à loja o destino que bem entenderem desde que legalmente permitido e a fazerem seus os rendimentos resultantes da actividade que ali se exercer.
4ª– A 1ª contratante expressamente autoriza que os 2ºs contratantes cedam a terceiros o uso e exploração da loja objecto do presente contrato, ainda que a título oneroso.
5ª- Os 2ºs contratantes assumem todos os encargos inerentes às despesas de conservação e boa utilização da loja objecto do presente contrato, sem direito a qualquer reembolso.
6ª– Os 2ºs contratantes ficam desde já autorizados a realizarem na loja as obras que entenderem necessárias para a sua adaptação aos fins a que se destinar, as quais não darão lugar a qualquer indemnização ou reembolso.
7ª– O presente contrato vigorará até ao óbito do último sobrevivente dos 2ºs contratantes, data em que caducará».
3. Tendo os réus esbulhado os comodatários AA da exploração da loja objecto do comodato em vigor, os AA têm o direito à sua restituição, ainda que os actuais proprietários sejam os réus e comodante tenha sido o anteproprietário;
4. O esbulho é facto ilícito mas não implica o dever de indemnizar na falta de prova da existência de dano.
Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I- Relatório:

A.., B... e C.. intentaram aos 14-4-99 a presente acção sumária contra D.. pedindo que os réus sejam condenados a:
a) Respeitar os direitos dos AA., decorrentes do contrato de comodato cele­brado em 15-6-95;
b) Entregar-lhes a loja sita no nº 13-A da Rua da Saboaria em Tomar;
c) Pagar-lhes uma indemnização desde 3-3-99 até à entrega da loja à razão de 60 000$00 por mês, a liquidar em execução de sentença.
Baseiam-se em suma em que: celebraram em 15-6-95 um contrato de comodato com Irene Assunção das Neves, pelo qual esta, gratuitamente, lhes entregou aquela loja sita no prédio nºs 13 a 15 da Rua da Saboaria, para a usarem e explorarem até à morte do último dos como­datários, nos termos do documento particular junto a fl. 16; a mesma Irene legou ao réu, seu sobrinho por afinidade, o prédio no qual se situa tal loja, por testamento de 4-10-79 e a testadora veio a fale­cer em 24-01-98, encontrando-se o prédio registado a favor do réu em virtude de legado; o réu, alegando pretender fazer obras no prédio, pediu as chaves da loja aos AA. e estes, por razões de amizade, cederam-lhas; porém, quando os AA. lhe pediram as chaves, o réu não lhas restituiu, arrogando-se dono; daí a notificação judicial avulsa do réu, realizada aos 3-3-99 a pedido dos AA., para que ele reco­nhecesse os direitos destes, decorrentes do contrato de comodato, e se abstivesse de obstar à ocupação e utilização da loja pelos AA. (v. certidão a fl. 26).

O réu contestou, alegando além do mais que houve um “dissimulado usu­fruto” e o contrato é nulo por falta de forma legal, e reconveio pedindo:
a) Deve considerar-se tratar-se de contrato de usufruto e assim declarar-se a sua nulidade por falta de forma legal;
b) Deve declarar-se que Irene estava incapacitada para ler e assinar esse doc, não sendo a sua assinatura verdadeira, o que torna o contrato inexistente;
c) Deve declarar-se que Irene estava incapacitada para conhecer o sentido da declaração e compreender o seu conteúdo, o que torna o contrato ineficaz;
d) Se se considerar o contrato existente e válido, deve declarar-se que os AA não cumpriram os encargos de conservação e de boa utilização da loja, que visavam endossar essas suas obrigações para o reconvinte, o que configura abuso de direito e incumprimento de obrigações contratuais, declarando-se a resolução do contrato por justa causa.

Após os articulados, foi elaborado despacho saneador e foram redigidos os factos assentes A) a M) e os quesitos 1º a 25º da base instrutória.
O R. recorreu do saneador, na parte em que se declarou que inexistiam nulidades ou excepções dilatórias a conhecer, apresentando alegação na qual conclui em suma que o tribunal, ao não conhecer das excepções deduzidas nem do mérito da causa, violou o disposto nos art. 510º, nº 1 al. a) e b), e 668º, nº 1 al. c) e d), do CPC. Mais especificamente concluiu assim a sua alegação:
1.- O Réu, ora Recorrente, defendeu-se por excepção [de falta de forma - nulidade do contrato; de falsidade da assinatura - inexistência do contrato; impossibilidade do conhecimento do sentido da declaração, sua ineficácia e abuso de direito—cf. alegação] na sua contestação e o A., ora Recorrido, efectivou tempestivamente resposta.
2.- Mas, no douto despacho saneador de fls. a M.mª Juíz “a quo” deixou consignado que “não existem quaisquer excepções dilatórias … de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa”.
3.- Pelo que, a M.mª Juíz “a quo” não conheceu das deduzidas excepções, como lhe impunha o disposto no Artº 510º nº 1 a) do C.P.C., o que implica que o douto despacho saneador seja nulo ex vi do disposto no Artº 665º nº 1, d) do C.P.C.
4.- Mas, a M.mª Juíz “a quo” também não quis conhecer imediatamente do mérito da causa e tal omissão ao disposto no Artº 510º 1 b) do C.P.C. determina a nulidade do douto despacho saneador, por violação do disposto no Artº 668º nº 1 d) do C.P.C.
Termos em que e nos melhores de Direito, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, se deve julgar procedente por provado o presente recurso, declarando-se a nulidade do despacho saneador por violação do disposto nos Artºs 510º nº 1 a) e b e do Artº 668º nº 1 c) e d) do C.P.C. e ordenando-se seja proferido novo despacho saneador em conformidade com o atrás exposto e no estrito cumprimento da lei processual, com todas as legais consequências.

Os AA. contra-alegaram, concluindo pela correcção do saneador.
Foi sustentada a decisão recorrida.

Realizou-se a audiência de julgamento, que culminou nas respostas à base instrutória constantes de fls. 403 ss.
Na sentença (fls. 407 a 419) o tribunal, considerando em suma que o acordo documentado a fl. 16 e assinado por Irene e pelos AA. configura uma «doação ou constituição de usufruto» e é nulo por falta da forma legal (escritura pública), deci­diu na parte dispositiva:
- Julgar a acção parcialmente procedente, declarando nulo o acordo e con­denando o réu a entregar aos AA. os objectos que deixaram na loja quando em Janeiro de 1999 lhe entregaram a chave;
- Julgar a reconvenção não provada e improcedente.
Da sentença recorreram os AA., concluindo a sua alegação:

A) – As partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir as cláusulas que lhes aprouver (artº 405º nº 1 do Código Civil);

B) – No exercício dos poderes conferidos pela lei, as partes (Irene Assunção Neves, irmã de Pedro de Assunção Neves, pai dos AA ora Rtes e estes), celebraram em 15 de Junho de 1995 o contrato de comodato junto aos autos com a petição inicial;
C) – Por virtude do aludido contrato de 15 de Junho de 1995 a então proprietária do imóvel, Irene Assunção Neves, entregou aos Rtes a loja correspondente ao número de polícia 13-A da Rua da Saboaria, em Tomar, gratuitamente, até à morte do último sobrevivente destes (vide doc citado, cláusula segunda);
D) – Contrato de comodato que vigorará até ao óbito do último sobrevivente dos segundos contratantes, os ora Rtes, data em que caducará (doc de 15/06/1995, cláusula sétima) (artº 1141º do C. Civil);
E) – Encontra-se expressamente fixado que os segundos contratantes (os ora Rtes) ficam autorizados a dar à loja o destino que bem entenderem desde que legalmente permitido (doc de 15/06/1995, cláusula terceira), pelo que o uso se encontra expressamente determinado (artº 1131º do C. Civil), por clara vontade das partes;
F) – Foi também acordado, expressamente, que os Rtes, nos termos do disposto nos artºs 1132º e 1135º, alínea f) do C. Civil), poderiam ceder a terceiros o uso e exploração da loja e fazer seus os rendimentos resultantes da actividade que ali se exercer (contrato de 15 de Junho de 1995, cláusulas terceira e quarta);
G)A declaração emitida vale de acordo com a vontade real do declarante (artº 236º nº 2 e 217º nº 1 ambos do Cód. Civil), vontade expressamente manifestada, por escrito, pela comodante (Irene Assunção Neves);
H) – O contrato de comodato foi subscrito por Irene de Assunção Neves em 15/06/1995, na presença de terceiros, tendo a comodante percebido o conteúdo desse acordo, encontrando-se a sua assinatura reconhecida por notário (vide factos provados);
I) – As cláusulas contratuais, constantes do acordo de 15/06/1995, respeitam o disposto nos artigos 1.129º a 1141º do Código Civil, sendo então a comodante proprietária da loja em causa, dispondo por conseguinte de total liberdade para lhe dar o destino que bem entendesse (vide factos provados), pelo que o contrato é válido e eficaz;
J)Consequentemente, encontrando-se determinado nas cláusulas terceira e sétima o uso a dar pelos AA, ora Rtes, à loja que lhes foi entregue em comodato por Irene Assunção Neves, não pode o R. exigir a sua entrega enquanto o prazo se não concluir, ou seja, enquanto não sobrevier a morte do último dos AA, data em que caducará (cl. 7ª)(artº 1129º, 1131º e 1137º do CC);
L) – Os AA têm direito a exigir do R a entrega da loja, nos termos do disposto no artº 1133º nº 2 do Cód. Civil;
M) – Tendo sido fixado no contrato prazo para a entrega da loja (o óbito do último dos AA) e encontrando-se determinado, com clareza por escrito, o uso da loja, também não poderá o R. exigir a restituição, nos termos do nº 2 do artº 1136º do Cód. Civil.
N) – O R obteve dos AA a cedência das chaves, a título temporário, com a justificação da necessidade de fazer obras no prédio e, voluntária e conscientemente, recusou a restituição da loja, logo que concluídas as obras, não obstante várias vezes pedida a chave, pese embora não ignorar que esta lhes havia sido entregue por Irene Assunção Neves, a título gratuito, até ao fim da vida do último deles (alínea J) da Matéria Assente, resposta aos quesitos 1º, 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º da Base Instrutória).
O) – Ao pedir aos AA as chaves com uma justificação (obras) mas com a velada intenção de não restituir a loja (que queria para seu uso pessoal), o R., agiu intencionalmente no sentido de lesar os Rtes, sendo responsável pelos danos decorrentes da sua conduta (artº 483º nº 1 e 1133º nº 2 do CC) e estando obrigado a indemnizar (artº 562º do CC)
P) – Os AA não aceitaram ceder a exploração da loja por 60.000$00 porque pretendiam retirar dela maiores rendimentos, sendo pois indiscutível que poderiam estar, querendo, a receber mensalmente, no mínimo, tal quantia; Ora,
Q) - Estando os AA privados do uso da loja pelo R., que a ocupou com negócio próprio, há danos resultantes não só da privação do uso como ainda da impossibilidade de ali exercer qualquer outra actividade ou de ceder a exploração a terceiro, que, no mínimo se computam em 60.000$00 mensais, quantia que poderiam estar a receber, caso mantivessem a utilização / exploração do espaço em causa (artº 564º, 566º do CC);
R) – Está pois o R. a obter, sem justificação, rendimentos da utilização de um bem à custa dos AA, que se vêem assim espoliados da loja que, no mínimo, vinha sendo utilizada como armazém (artº 473º e segs. do Cód. Civil);
S) – Verificado o dano e na impossibilidade de averiguar o seu valor exacto (artº 566º nº 3 do CC), deveria o tribunal julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados ou quando muito deveria relegar-se para execução de sentença a liquidação dos prejuízos sofridos pelos AA. (artº 564º nº 3 do CC).
T) Decidindo em contrário, a Mª Juiz a quo fez errada aplicação da lei, violando o disposto nos artºs 217º nº 1, 236º nº 2, 405º nº 1, 406º nº 1, 473º e sgs., 483º nº 1, 562º, 564º e 566º, 1129º, 1132º, 1133º nº 2, 1131º, 1135º, 1136º nº 2, 1137º, 1141º, todos do Código Civil.
Nestes termos (...deve decidir-se...) revogando a douta sentença e substituindo-a por outra que:
- reconheça a validade e eficácia do contrato de 15/06/95 nos precisos termos em que foi celebrado;
- condene o R na entrega imediata da loja aos AA. comodatada (sita na Rua da Saboaria nº 13-A, Tomar);
- condene o R. a indemnizar os AA pela ocupação da loja desde Janeiro de 1999 até à sua entrega aos Rtes, livre e devoluta, no mínimo, à razão de 60.000$00 (299,28 €) mensais.

Da sentença também recorreu o réu, subordinadamente, concluindo a sua alegação:
1.- O ora Recorrente deduziu pedido reconvencional para que (além do mais) fosse declarada a nulidade do contrato (acordo) subscrito em 15 de Julho de 1995 por Irene Assunção Neves e os ora recorridos, tendo por objecto a cedência de uma loja identificada nos autos, por falta de forma.
2.- Na sua douta sentença em apreço a M.mª Juíz “a quo” declarou nulo e de nenhum efeito o antecitado acordo, absolvendo o ora recorrente do pedido dele decorrente.
3.- Mesmo assim e apesar disso, a M.mª Juíz “a quo” julgou improcedente por não provada a reconvenção deduzida pelo ora recorrente, absolvendo os autores do pedido reconvencional .
4.- Ora existe contradição entre as partes decisórias da sentença (pedido inicial e reconvenção), o que implica a sua parcial revogação, para que seja proferida decisão uniforme dando pleno cumprimento ao decidido e, assim, julgando a reconvenção procedente por provada, em cumprimento dos normativos processuais que o impõem.
5.- Assim não tendo decidido a M.Mª Juíz “a quo” violou os normativos legais que invoca na douta decisão em apreço, o que implica a revogação da sentença na parte decisória respeitante à reconvenção.
Termos em que e nos melhores de Direito, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, se deve julgar procedente por provado o presente recurso, mantendo-se a decisão no que respeita à declaração da nulidade do acordo e consequente absolvição do ora recorrente do pedido, mas, no que à reconvenção concerne, revogando-se a douta sentença nessa parte e substituindo-a por douta decisão que julgue a reconvenção procedente por provada com os mesmos fundamentos conducentes à absolvição do ora recorrente do pedido, condenando-se os ora recorridos, com as legais consequências.

Os AA. contra-alegaram, concluindo:

1 – A eventual procedência do pedido assenta nos factos alegados pela parte na causa de pedir e dados por provados (art. 659º nº 2 do CPC); Ora,
2 – O R., ora Rte não conseguiu provar a cegueira, nem a incapacidade para ler e entender da Irene Neves e menos ainda o abandono da loja, nem o usufruto, atenta a inexistência de possibilidade de trespasse; Assim,
3 - Nenhum dos factos alegados pelo R., ora Rte, como causa de pedir, foram dados por provados;
4 – Não há qualquer contradição entre as partes decisórias da sentença que considerou nulo o contrato de comodato por razões diversas das defendidas pelo R.;
5 - Logo, não pode proceder o pedido reconvencional deduzido pelo R.
6 – O Rte não indica as normas violadas, nem aquelas que, em seu entender, deveriam ter interpretação diferente [art. 690º nº 2, alíneas a) e b) do CPC];
7 – Assim sendo, improcedem todas as conclusões do R., ora Rte.

Correram os vistos legais.
Nada obsta ao conhecimento do objecto dos recursos.

II- Fundamentos:

De facto:
Vêm provados os seguintes factos, acrescentando-se porém a enumeração:
1. Em 15 de Junho de 1995, foi subscrito um acordo, do qual consta que Irene Assunção Neves entrega aos autores, sem qualquer contrapartida monetária ( A expressão antecedente não reproduz com fidelidade os dizeres do contrato dactilografado, nem o alegado, embora equivalha ao termo “gratuitamente” ali utilizado.) e até à morte do último sobrevivente destes, a loja correspondente ao número de polícia 13-A da Rua da Saboaria, em Tomar (alínea A) da matéria assente).
2. Da cláusula 3ª do mesmo acordo ( A instância recorrida terá tido alguma reserva em utilizar o termo “contrato”, quiçá como se no caso se suscitasse questão de direito a esse respeito. Porém, “contrato” é o termo utilizado no texto respectivo (e na petição), termo que é utilizado comummente e a cujo respeito as partes não suscitam qualquer questão (de o documento de fl. 16 consubstanciar ou não um contrato).) consta que os autores ficam autoriza­dos a dar à loja o destino que bem entenderem, desde que permitido por lei e a fazerem seus os rendimentos resultantes da actividade que ali se exercer (al. B).
3. Diz a cláusula 4ª do acordo que Irene Assunção Neves autoriza os autores a ceder a terceiros o uso e exploração da loja referida em A) (alínea C).
4. Por seu turno, as cláusulas 5ª e 6ª do mesmo acordo dizem que os autores ficam incumbidos das despesas de conservação e utilização da loja e autorizados a realizar as obras que entenderem necessárias para a sua adaptação aos fins a que se destinar, sem quaisquer reembolsos (alínea D).
5. Nesse acordo encontram-se as assinaturas com os nomes de Irene Assunção Neves e dos autores José Manuel Reis Neves, Luís Filipe Reis Neves e Lucinda Maria Reis Neves (alínea E).
6. A assinatura constante do acordo a que se referem as alíneas A) a E), com o nome de Irene da Assunção Neves, foi aposta por esta (resposta ao nº 22 da base instrutória).
7. Na presença de terceiros (resposta ao n° 23 da base).
8. E tal assinatura foi reconhecida pelo Notário (resposta ao n° 24 da base).
9. E tendo Irene de Assunção Neves percebido o conteúdo desse acordo (resposta ao nº 25 da base).
10. A loja referida em A) faz parte de um prédio urbano sito na Rua da Saboaria, nºs 13, 15 e 15-A ( Não é lapso, à face do que consta do registo. Como se vê da certidão de fls. 23 e ss, o prédio está descrito no registo como correspondente aos nºs 13, 15 e 15-A. Na caderneta predial (a fls. 19 ss), consta como localizado sob os nºs «13 a 15-A» da rua indicada. No testamento (fl. 18), vem declarado por Irene legar ao ora réu, seu sobrinho por afinidade, «o prédio urbano, com o seu recheio, sito na Rua da Saboaria, nºs 13 e 15, de polícia, freguesia de São João Baptista». Embora desses documentos não conste a menção do 13-A, não foi e não vem suscitada qualquer questão a esse respeito.), composto de casa de habitação de rés-do-chão amplo, 1° andar e sótão, com a área de 104 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Tomar sob o nº 01996/200516 e ali inscrito sob o art. 101 ( A referência ao «ali inscrito» enferma de lapso evidente. O que consta da descrição predial é «artigo: 101», o que indica o artigo de inscrição na matriz (no caso urbana) da dita freguesia e não a inscrição do registo predial, inscrição esta que não se subordina a artigos.), em nome de Irene Assunção Neves (alínea F).
11. Tal prédio encontra-se inscrito naquela Conservatória de Registo Predial em nome do réu D.. desde 20 de Agosto de 1998 (alínea G).
12. No dia 24 de Janeiro de 1998 faleceu Irene de Assunção Neves (al. H).
13. No dia 4 de Outubro de 1979, no Cartório Notarial de Tomar, Irene de Assunção Neves declarou deixar, por sua morte ( Mais uma vez a instância recorrida evitou, sem razão, utilizar o termo utilizado no documento de fl. 18, não impugnado, (e utilizado na petição): «lega a seu sobrinho por afinidade...», quando a esse respeito não foi suscitada alguma questão. Acresce a equivocidade: deixar por morte poderia referir-se a doação por morte ou a instituição testamentária de herdeiro...), a D.. o prédio descrito em F) (alínea I).
14. Os autores entregaram ao réu as chaves da loja mencionada em A), em Janeiro de 1999 (alínea J).
15. Os autores entregaram a chave da loja referida em A) ao réu, a pedido deste (resposta ao nº 1 da base instrutória).
16. E a título temporário (resposta ao nº 2 da base).
17. Tendo o réu invocado pretender realizar obras no prédio descrito em F) (resposta ao n° 3 da base).
18. O facto descrito em J) verificou-se, mantendo os autos alguns objectos na loja (resposta ao n° 5 da base).
19. No decurso das obras levadas a cabo pelo réu, no prédio descrito em F) os autores pediram as chaves do prédio ao réu, por diversas vezes, o que foi por este recusado (resposta aos nºs 6 e 7 da base).
20. O réu procedeu à construção de divisões no interior da loja (resposta ao nº 8 da base).
21. E recusou facultar aos autores uma cópia da chave da loja (resposta ao n° 9 da base).
22. Bem como recusou receber uma carta registada com aviso de recepção (resposta ao nº 10 da base).
23. Que lhe foi enviada pelos autores (resposta ao nº 11 da base).
24. E na qual era dado a conhecer o acordo descrito em A) a E) (resposta ao n° 12 da base).
25. Em 25 de Fevereiro de 1999, os autores requereram a notificação do réu para reconhecer àqueles os direitos decorrentes do acordo mencionado nas alíneas A) a E) e para se abster de praticar quaisquer actos que pusessem em causa a ocupação e a utilização pelos autores da loja descrita em A) (alínea L).
26. Essa notificação foi efectuada em 3 de Março de 1999 (alínea M).
27. Desde 17 de Setembro de 1997, os autores têm uma proposta para a utilização da loja descrita em A) (resposta ao n° 13 da base).
28. Mediante uma remuneração mensal de esc. 60.000$00 (resposta ao nº 14 da base).
29. Irene da Assunção Neves foi internada no Hospital de Tomar, em meados de Junho de 1995 (resposta ao n° 18 da base).
30. Onde ficou, durante oito dias (resposta ao nº 19 da base).

Nos termos do disposto no art.712º nº 1 al. a) do CPC, reproduz-se aqui integralmente o texto do documento de fl. 16, a que se referem os pontos de facto 1 a 9:
Entre Irene da Assunção Neves, como 1ª contratante, e os ora AA., como 2ºs contratantes, «é estabelecido o presente contrato que se rege pelas cláusulas seguintes:
PRIMElRA - A primeira contratante é proprietária do prédio sito em Tomar, na Rua da Saboaria, nº 13, 13 A e 15, inscrito na matriz predial sob o artigo nº 101 da freguesia de S. João Baptista de Tomar.
SEGUNDA – Pelo presente contrato a 1ª contratante entrega aos 2ºs, gratuitamente, até à morte do último sobrevivente destes, a loja correspondente ao número de polícia 13-A da Rua da Saboaria, em Tomar.
TERCEIRA – Os 2ºs contratantes ficam autorizados a dar à loja o destino que bem entenderem desde que legalmente permitido e a fazerem seus os rendimentos resultantes da actividade que ali se exercer.
QUARTA – A 1ª contratante expressamente autoriza que os 2ºs contratantes cedam a terceiros o uso e exploração da loja objecto do presente contrato, ainda que a título oneroso.
QUINTA - Os 2ºs contratantes assumem todos os encargos inerentes às despesas de conservação e boa utilização da loja objecto do presente contrato, sem direito a qualquer reembolso.
SEXTA – Os 2ºs contratantes ficam desde já autorizados a realizarem na loja as obras que entenderem necessárias para a sua adaptação aos fins a que se destinar, as quais não darão lugar a qualquer indemnização ou reembolso.
SÉTIMA – O presente contrato vigorará até ao óbito do último sobrevivente dos 2ºs contratantes, data em que caducará».


De direito:

As conclusões da alegação demarcam o âmbito dos recursos (art. 684º nº 3 e 690º do CPC).
Cumpre conhecer em primeiro lugar do agravo e em segundo lugar das apelações na ordem da sua interposição.

Agravo:
O despacho saneador, propriamente dito, não nos merece qualquer censura na parte impugnada.
O recurso de agravo revela um mau entendimento sobre elementares regras que regem o funcionamento do processo.
Com efeito, as questões que o recorrente pretende que aí deveriam ter sido apreciadas e decididas são respeitantes a matéria de direito material, são questões de fundo, inclusive quanto à invocada nulidade do contrato por falta da forma legal que, como nulidade substantiva e não processual, também constitui, numa pers­pectiva, excepção de direito material enquanto matéria de defesa e, noutra pers­pectiva, fundamento do pedido reconvencional. Não se trata de excepções dilató­rias ou nulidades processuais sobre as quais o despacho saneador se devesse pronunciar. Nessa medida, não foi violado o disposto no art. 510º nº 1 al. a) do CPC.
Noutra medida, também não foi violado o disposto na al. b) do nº 1 desse artigo. É que, de modo evidente, o estado da causa não permitia conhecer naquele momento do mérito da causa, seja directamente (o mesmo é dizer, conhecer dal­gum pedido), seja indirectamente (o mesmo é dizer, conhecer dalguma excepção peremptória). Essa evidência ressalta da matéria controvertida e da sua recondu­ção à base instrutória elaborada.
Inexiste na decisão impugnada qualquer das nulidades invocadas no agravo, pelo que a este deve fatalmente negar-se o provimento.

Apelação dos AA:

Este recurso suscita em resumo as seguintes questões:
1ª) A da classificação do contrato de 15-6-1995 documentado a fl. 16;
2ª) A de saber se, no caso de o contrato que serve de causa de pedir se classificar de comodato, o pedido dos AA. deve proceder no todo ou em parte.

Cumpre apreciar e decidir:


Sobre a 1ª questão:

I. Segundo os AA., o contrato reduzido a escrito particular datado de 15-6-95 (doc de fl. 16) é um contrato de comodato. Segundo a contestação, o contrato dis­simula um usufruto, que devia constar de escritura pública e por isso é nulo por falta de forma legal. No pedido reconvencional, o R. pretende que «deve conside­rar-se tratar-se de contrato de usufruto e assim declarar-se a sua nulidade por falta de forma legal». Segundo a sentença, o contrato é de «doação de usufruto» e, porque não reduzido a escritura pública, é nulo.
Convém deixar-se claro antes de mais que o usufruto não é contrato ou negócio, não é dissimulável, nada do provado aponta para dissimulação através do contrato documentado a fl. 16 e também inexiste previsto na lei algum contrato de usufruto.
Só haverá dissimulação havendo simulação relativa. Nos termos do art. 240º nº 1 do CC, para haver simulação, variante de divergência entre vontade e declaração (ou seja, entre a vontade real e a vontade declarada), seria necessário verificarem-se os requisitos da simulação: a) intencionalidade de tal divergência; b) acordo simulatório entre declarante e declaratário; c) intuito de enganar terceiros. Na simulação relativa, as partes fingem celebrar certo negócio e na realidade querem celebrar outro de tipo ou conteúdo diverso: aí há o negócio simulado que é o aparente, ostensivo, e há o negócio dissimulado, oculto mas realmente querido. O simulado é nulo; e o dissimulado poderá ser nulo ou válido, conforme art. 241º: terá o tratamento jurídico que lhe caberia se tivesse sido concluído sem haver simulação.
Ora, nada do provado aponta no sentido da verificação dos requisitos da simulação.
Também o usufruto não é um negócio. É sim um direito, um direito real, tal como está tipificado na lei.
Mas a posição do réu, ao entender que o contrato documentado a fl. 16 dissimula usufruto, mostra a sua admissão de que o convencionado, aparentemente, manifestamente, não atribui qualquer usufruto aos AA.

II. A sentença considerou tratar-se de doação de usufruto, em suma pelas seguintes razões:
1ª- «Além do claro espírito de liberalidade, resultante da introdução da expressão “até à morte do último sobrevivente”, referindo-se aos AA. (...)»;
2ª- «... descortina-se no teor literal da cl. 4ª que a vontade real das partes foi criar na esfera dos AA. a titularidade de plenos poderes para administrar e inclusive celebrar negócios jurídicos onerosos de transmissão dos poderes de uso e fruição (...)»;
3ª- «... só a título excepcional poderá o comodatário permitir que outrem use a coisa emprestada, por outro lado, a natureza genérica e incondicional de tal cláusula (a 4ª), associada à faculdade expressamente concedida (...) aos AA. de darem à loja o destino que bem entenderem (...) condiz antes com a transmissão do jus utendi e do jus fruendi típicos do direito de propriedade (art. 1305º) que com a constituição do usufruto se opera»;
4ª- «... (quanto ao usufruto) a lei, ao contrário do que sucede no comodato, não impõe limitação quanto ao fim a que a coisa ou o direito se destinam»;
5ª- «E enquanto o comodatário é um mero detentor (...), o usufrutuário pode inclusivamente alienar o seu direito real»;
6ª- «... à luz das regras da experiência comum, não pode deixar de se considerar, atenta a natureza marcadamente “intuito personae” do comodato, que emprestar a uma pessoa uma coisa por toda a sua vida é o mesmo que não fixar prazo algum para a restituição dela e, no limite, integra mesmo uma doação».
Afigura-se-nos que essas razões padecem de algumas incorrecções e, no seu conjunto, não são decisivas no sentido propugnado.
A 1ª enferma de incorrecção porque da expressão “até à morte do último sobrevivente” não se deduz qualquer espírito de liberalidade, mas sim a convenção de prazo. Por outro lado, debalde se encontrará no texto do contrato a causa- motivo dita liberalidade. Apenas sabemos que foi estabelecida a gratuitidade do contrato (atribuição patrimonial aos autores sem contrapartida para o disponente) e que o conceito de gratuitidade é mais amplo do que o de liberalidade ( Cf. I. Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Lex, 3ª ed., 1995, p.403.). De qualquer modo, tanto a doação como o comodato são contratos de natureza gratuita. Mesmo a tomar-se liberalidade como sinónimo de gratuitidade, não é por aí que a doação e o comodato se distinguem.
Quanto à 2ª, ainda que se veja no convencionado a atribuição aos ora AA. de «plenos poderes para administrar e inclusive (para) celebrar negócios jurídicos onerosos de transmissão dos poderes de uso e fruição», tal é tão compatível com o contrato de comodato como com o de doação de usufruto ( Podem incluir-se no conceito de mera administração os actos de conservação, os actos tendentes a prover à frutificação normal e os actos tendentes a prover ao melhoramento da coisa administrada (cf. C. A. Mota Pinto, TGDC, 4ª ed, 2005, p. 406 a 410).).
Quanto à 3ª, é de notar que a permissão para o comodatário ceder a terceiro o uso (ou uso e fruição) da coisa emprestada pode constituir cláusula acessória do contrato de comodato, sem o descaracterizar, e harmoniza-se com o princípio da autonomia privada (ou autonomia da vontade) consagrado no art. 405º do CC: o disponente, incluindo o comodante, pode autorizar o subcontrato. Também o donatário de usufruto pode trespassar (transferir para outrem) o seu direito, nos termos do art. 1444º do CC. Só que no primeiro caso a permissão de cedência a terceiro tem de resultar de convenção das partes, enquanto no segundo resulta da lei (norma imperativa) ( A imperatividade da norma resulta da circunstância de o poder de trespasse se englobar no conteúdo necessário do direito real de usufruto (veja-se o advérbio “plenamente” constante do art. 1439º do CC). As normas supletivas constam dos art. 1446º ss, por força do disposto no art. 1445º.). Resultando do texto do contrato tal permissão (ali referida como “autorização” dada por Irene), tal não é decisivo para a classificação do contrato em um ou outro tipo, embora seja um índice no sentido de comodato pois que a tratar-se de doação de usufruto tal cláusula seria inútil (a cedência a 3º não dependeria de autorização do doador do usufruto).
Por outro lado, entender que o jus utendi et fruendi só pode integrar o conteúdo dum direito real equivale a negar a categoria dos direitos pessoais de gozo, por contraposição aos direitos reais de gozo, categoria essa que o próprio art. 407º do CC consagra.
Quanto à 4ª, não é correcto dizer-se que no comodato a lei impõe limitação quanto ao fim a que a coisa se destina. Como se comprova com o disposto nos art. 1129º, 1131º e 1137º do CC, o uso não determinado por convenção das partes não descaracteriza o contrato de comodato ( Preceitua o nº2 do artigo 1137º: «Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida».).
Quanto à 5ª, tanto o comodatário como o donatário de usufruto podem considerar-se meros detentores. Só que o usufrutuário é possuidor em nome alheio quanto ao direito de propriedade e possuidor em nome próprio do direito de usufruto. Também o comodatário se pode considerar possuidor, para efeitos de defesa do seu direito pessoal de gozo, nos termos do art. 1133º nº 2 do CC. Mas é evidente que, classificado o contrato, o seu regime será diverso do regime de outro contrato e os direitos e obrigações emergentes da sua celebração também serão, ao menos parcialmente, diversos. Só que do que se trata é de classificar o contrato num ou noutro tipo possível, para a partir daí sim encontrar o regime aplicável.
Quanto à 6ª, a partir da constatação de que foi autorizada a cedência a terceiros e não estando em causa quem é que deve restituir, não tem sentido falar-se no “intuitus personae”. Por outro lado, não pode concordar-se com a afirmação de que «emprestar a uma pessoa uma coisa por toda a sua vida é o mesmo que não fixar prazo algum para a restituição dela e, no limite, integra mesmo uma doação». A cláusula 2ª prevê um prazo. Os prazos podem ser certos ou incertos. Um prazo incerto não equivale à ausência de prazo. Não é pela convenção de prazo que se distinguem os contratos em discussão pois que os direitos emergentes de um ou outro sempre se poderiam extinguir por caducidade, supletivamente, à data do decesso do último sobrevivente dos AA. ou, por convenção, em momento anterior: quanto ao comodato, vide art. 1135º al. h), 1137º e 1141º do CC; quanto ao usufruto, vide art. 1443º e 1476º nº 1 al. a) do CC.

III. Antes da aplicação do regime legal atinente às vicissitudes contratuais, deve-se classificar o contrato. Para se classificar um contrato deve atentar-se no seu conteúdo, procedendo-se primeiramente à sua interpre­tação e tendo em atenção as regras dos artigos 236º e segs. do CC.
No documento a fl. 16 os contratantes não utilizaram a designação de doação, ou empréstimo, ou comodato, ou usufruto, que serviriam de auxiliar interpretativo.
O conteúdo do contrato resume-se, textualmente, ao seguinte:
- Na 1ª cláusula Irene diz-se proprietária do prédio em que se situa a loja em causa;
- Na 2ª, Irene declara que entrega essa loja gratuitamente aos ora AA., até à morte do último sobrevivente destes;
- Na 3ª, Irene declara que autoriza os ora AA. a dar à loja o destino que entenderem desde que legalmente permitido e a fazerem seus os rendimentos da actividade ali a exercer;
- Na 4ª, Irene declara que autoriza os ora AA. a ceder a terceiros o uso e exploração da loja, ainda que onerosamente;
- Nas 5ª e 6ª é declarado que os ora AA. suportam todas as despesas de conservação e boa utilização da loja, bem como as obras necessárias, em qual­quer caso sem direito a reembolso;
- Na 7ª (e última) é declarado que, falecidos todos os outorgantes ora AA, o contrato caduca.
A entrega da loja aos AA. foi feita para a usarem, embora não tenha sido convencionado um uso determinado, mas sim que podiam eles dar à loja o destino que entendessem, desde que legal. Além do uso cedido aos AA., ainda Irene os autorizou a fruir quaisquer rendimentos que a loja viesse a propiciar, quer por exploração dos próprios, quer por exploração de terceiros a quem os AA. a permi­tissem. Assim, ao uso acresce a fruição.
O contrato, contendo em suma a cedência dos direitos de uso e fruição aos AA., foi celebrado para valer até à morte do último dos AA. Isto é um prazo. O decesso é de verificação certa em momento incerto (dies certus an incertus quando). A morte é certa, a hora incerta. Trata-se de prazo incerto.
Através da 2ª cláusula faz-se a entrega imediata, temporária e gra­tuitamente, da loja aos AA. Tal compatibiliza-se com um contrato real quoad cons­tituitionem, como o é o comodato, através do qual se concede a outrem o uso tem­porário e gratuito de coisa infungível e determinada, a restituir (art. 1129º do CC). Tal tipo contratual não é descaracterizado por também ter sido concedido o poder de fruição da coisa, porque essa concessão foi convencionada expressamente (art. 1132º do CC).
É certo que o usufruto também engloba no seu conteúdo os poderes tempo­rários de uso e fruição, poderes em que se decompõe o direito de gozo respectivo (gozo que aí é menos rico do que o inerente à propriedade plena e mais rico do que o próprio do direito de simples uso), e engloba-os necessariamente (art. 1439º do CC).
Mas o usufruto não é um contrato, diversamente do que inculca a posição do réu ao falar em “dissimulação de usufruto” e em “contrato de usufruto”.
O usufruto é um direito, é um direito real, tipificado na lei como todos os direitos reais legalmente admissíveis.
Não se pode contrapor usufruto a comodato: ali temos um direito real, aqui temos um contrato nominado, típico. Os direitos podem ter por fonte um contrato. Constituído um usufruto por contrato, o usufruto faz parte do objecto desse contrato. O usufruto pode ser objecto de contrato de doação, ou de compra e venda, ou de dação em pagamento, etc, ou até de um contrato atípico ou misto.
O direito de usufruto (direito de usar e fruir) pode ser constituído através de contrato, conforme art. 1440º do CC, mas este artigo não nos diz que tipo contratual pode ser fonte do direito de usufruto ou quais as condições legais em que um contrato pode ser fonte do direito de usufruto. Um contrato de comodato não pode ser fonte do direito de usufruto, mas é necessariamente fonte do direito de uso da coisa seu objecto (art. 1129º: “para que se sirva dela”) e pode cumulativamente (se por con­venção expressa) ser fonte também do direito de fruição da coisa (art. 1132º). Tudo isso quer dizer que o direito de usar e fruir uma coisa pode ter a natureza de direito real (o direito típico de usufruto cujo regime imperativo mínimo consta dos art. 1439º a 1444º do CC e cujo regime restante há-de resultar do título constitutivo e, supletivamente, dos art. 1446º e ss. (art. 1445º do CC), como pode, diversamente, ter a natureza de direito pessoal, obrigacional.
Já um contrato de doação pode ser fonte do direito (real) de usufruto—art. 940º e, decisivamente, 944º nº 2 do CC.
Aparentemente, o contrato em causa, atendendo estritamente ao conteúdo constante das cláusulas 1ª a 6ª, tanto se poderia classificar de doação de usufruto como de comodato, dado que se trata de contrato que é gratuito e que tem por objecto imediato a cedência dos direitos de uso e fruição de coisa infungível.
Duma espécie contratual emergeria no caso um direito real, enquanto da outra emergeriam direitos meramente pessoais ou obrigacionais. Daquela um direito real de gozo (usufruto), enquanto desta um direito pessoal de gozo (uso e fruição).
Há razões decisivas para considerarmos que o contrato em causa deve ser classificado de comodato e não de doação de usufruto.
Primeira: as doações determinam-se por exclusão de partes; são negócios (bilaterais ou plurilaterais) gratuitos para além das deixas testamentárias e de outros contratos gratuitos previstos e regulados por lei. Em sentido aproximado, vd. I. Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Lex, 3ª ed., 1995, nº 199 a pág. 401 a 404.
Segunda: o princípio da conservação dos negócios jurídicos (que subjaz por exemplo ao disposto nos art. 292º e 293º do CC) e o princípio da boa fé (art. 227º, 334º e 762º nº 2 do CC). Sabido que a doação incidente sobre imóvel é nula quando não celebrada mediante escritura pública e que a celebração de comodato de imóvel não está subordinada a qualquer formalidade legal, é de optar pela classificação do contrato que se harmonize com o convencionado e cuja validade se conserve, desde que a tal não obste a boa fé objectiva. Ora, estando as partes contratantes de boa fé, é de presumir que, sabendo na altura da celebração ser o contrato nulo se este se houvesse como doação de usufruto, sempre celebrariam o contrato como sendo de comodato com o mesmo conteúdo com que o celebraram.
Terceira: a haver dúvida sobre se ao conteúdo do contrato corresponde o de comodato ou o de doação, sempre prevaleceria o menos gravoso para o disponente, por ambos serem gratuitos (art. 237º do CC). No caso concreto, o comodato seria menos gravoso para Irene ou seus sucessores do que a doação de usufruto: em qualquer momento o comodato poderia ser resolvido com base em justa causa (art. 966º do CC), tanto pelo comodante como pelos seus sucessores, enquanto a doação (apenas resolúvel em geral com base no não cumprimento dos encargos) não o poderia ser no caso porque a possibilidade de resolução não foi convencionada no contrato (art. 966º do CC); após aceitação do contrato pelos AA., a doação apenas seria revogável nos apertados termos e prazos dos art. 970º a 979º do CC.
Quarta: a cláusula 7ª, segundo a qual o contrato caducará na data do óbito do último sobrevivente dos 2ºs contratantes ora AA, não se coaduna com a doação mas sim com o comodato. O regime das doações não prevê a caducidade como forma de sua extinção, mas sim a revogação e a resolução. A lei não prevê a celebração de doações com subordinação a condição, ou a termo, sobrevindo o qual operaria a caducidade. Já o comodato, como contrato de execução por natureza temporária, tem uma vigência subordinada a termo, convencionado ou legal supletivo (art. 1141º do CC).
Temos consequentemente por assente que o contrato em causa é de comodato, como o art. 1129º do CC o define. Em primeira linha o contrato rege-se pelo convencionado (art. 405º e 406º do CC); aonde a auto-regulamentação das partes não chegar, isto é, supletivamente, há que aplicar o regime legal respectivo (especificamente art. 1129º a 1141º do CC).

Sobre a 2ª questão: O mérito dos pedidos dos AA:

Que o réu deve respeitar os direitos dos AA., decorrentes do contrato de comodato celebrado em 15-6-95:
Todos os direitos devem ser respeitados por quem não seja seu titular. Já explicámos por que o contrato se deve classificar de comodato. Assim, os direitos dos AA. como comodatários devem ser respeitados pelo réu, o que só tem sentido declarar-se desde que os AA. ainda tenham essa qualidade, ou seja, desde que o contrato não se deva considerar já extinto como o réu pretende, o que se apreciará abaixo.

Pedido de entrega da loja:
Os AA. têm o direito pessoal de gozo (uso e fruição) da loja em virtude do comodato. O art. 1133º nº 2 do CC concede aos comodatários a defesa possessó­ria do seu direito, designadamente a acção de restituição da posse no caso de esbulho (art. 1278º nº 1 do CC).
Astuciosamente, e na vigência do contrato, o réu apoderou-se da loja possuída pelos AA. e não a restituiu apesar de interpelado. Houve esbulho. O réu deve ser condenado a restituir a loja aos AA., a não ser que proceda o pedido de resolução como o réu pretende, o que abaixo se apreciará.

Pedido de indemnização em quantia a liquidar em execução:
De entre os elementos ou pressupostos da responsabilidade por facto ilícito importa aqui ponderar especialmente o dano e o nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano.
Os AA. alegaram, como causa de pedir, para este efeito, que a conduta do réu além de lhes impedir a utilização da loja, os impede de rentabilizar o uso com cedência a 3ºs da sua exploração, pois que têm uma proposta de arrendamento por 60 000$00 ao mês (doc 2), quantia que não aceitaram por ser insuficiente face aos valores praticados na zona (doc 3).
Dessa matéria, além do esbulho, apenas se provou que desde 17-9-1997 os AA. têm uma proposta para a utilização ( O próprio doc particular nº 2 a fl. 27 refere arrendamento e renda mensal, pelo que podia a base instrutória e as respostas utilizar tais conceitos, como conceitos também da linguagem vulgar, no caso constituindo pois apenas matéria de facto.) da loja mediante uma remuneração mensal de 60 000$00 (respostas aos quesitos 13 e 14). Os próprios AA. acrescentaram que não aceitaram essa proposta.
Ora, não está provada a existência de qualquer prejuízo ou dano patrimonial (i. é, susceptível de ser avaliado em dinheiro), que seja indemnizável em dinheiro.
Nem sequer se provou que os AA. tenham pretendido dar de arrendamento a loja e que só não a deram por causa do esbulho. Não consta terem aceite a proposta provada, aliás afirmaram terem-na rejeitado. Inexiste provado o alegado lucro cessante.
Também não está provado algum dano emergente a indemnizar em dinheiro. É certo que os AA. foram esbulhados e que a conduta continuada do réu impede a utilização da loja. Isso porém apenas traduz o facto ilícito, não o dano. É que nem se provou que os AA. quiseram efectivamente utilizar entretanto a loja e só o não fizeram por causa da ocupação pelo réu. O que sabemos, porque provado, é que após a ocupação da loja pelo réu os AA. aí mantêm alguns objectos (resposta ao quesito 5º).
Poderia ter sucedido que os AA. se tivessem visto na necessidade de armazenar as suas mercadorias noutro espaço pagando determinada quantia, ou que tivessem querido retirar os objectos que permaneceram na loja e, não os podendo retirar por acto do réu, com isso tivessem sofrido algum prejuízo. Mas nada semelhante foi alegado e provado.
Como não está provada a existência de dano a indemnizar, não se pode remeter a fixação dessa indemnização para execução de sentença. Antes deve haver absolvição desta parte do pedido.

Apelação do réu:
As conclusões da alegação demarcam o âmbito do recurso.
O réu suscita a questão da incoerência da parte decisória da sentença, consistente em ter declarado nulo o contrato (dito de doação de usufruto) e ter julgado improcedente a reconvenção, apesar de nesta ter sido pedida a declaração de nulidade do contrato.
O apelante tem razão na parte da incoerência. Declarada a nulidade do contrato, devia, em coerência, o julgador ter declarado procedente o pedido reconvencional nessa parte, em vez de ter julgado totalmente improcedente a reconvenção. Embora não tenha utilizado o termo “totalmente”, é esse o sentido decorrente da declaração de improcedência sem qualquer restrição.
Todavia, já acima se deixou resolvido que o contrato em causa é de comodato, para cuja validade a lei o não subordina a qualquer formalidade, e não o de doação de usufruto de imóvel, que estaria sujeito à celebração por escritura pública. Inexistindo pois a invocada nulidade contratual e improcedendo a parte restante do pedido (parte restante cuja decisão transitou em julgado porque não foi posta em causa no recurso), a solução acaba por consistir na improcedência total da reconvenção.

Em suma: dos pedidos formulados pelos AA., os pedidos a) e b) devem proceder e o pedido c) deve improceder; a reconvenção deve improceder totalmente.

III- Decisão:

Pelo exposto, decide-se o seguinte:

1)- Nega-se o provimento ao agravo, mantendo-se a decisão impugnada;

2)- Quanto à apelação dos AA: julga-se esta parcialmente procedente, em cuja medida se revoga a decisão impugnada, declarando-se que o réu deve respeitar os direitos dos AA., decorrentes do contrato de comodato celebrado em 15-6-95, e condenando-se o mesmo réu a entregar aos AA. a loja sita no nº 13-A da Rua da Saboaria em Tomar a que se refere aquele contrato. No mais improcede a apelação dos AA., confirmando-se a decisão de improcedência do pedido de indemnização;

3)- Quanto à apelação do réu, é esta julgada improcedente, confirmando-se a decisão na parte impugnada, embora por diferente fundamento (o contrato é de comodato, e não um contrato de doação enfermando de nulidade).

Custas da 1ª instância: quanto às da acção, pelo grupo dos AA. na propor­ção de ¼ e pelo réu na proporção de ¾; quanto às da reconvenção, pelo réu.
Custas dos recursos: do agravo, pelo réu; da apelação dos AA, por estes na propor­ção de ¼ e pelo réu na proporção de ¾; da apelação do réu, a cargo deste.

Coimbra, 2007-10-02