Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/05.6GDFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
PRINCIPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 11/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ – 2.º JUÍZO.
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 129.º DO C.P.P. E 32.º, N.º 5 DA C.R.P..
Sumário: I. - A lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos.
II. – A proibição da valoração só ocorrerá se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte da ciência transmitida a tribunal, podendo, no entanto, o tribunal valorar o depoimento indirecto sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.
III. – Tendo o juiz chamado a depor a fonte, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar, porquanto nestes casos é possível o exercício do contraditório, na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte.
IV. – Não fixando a lei as regras de valoração do depoimento indirecto, quando tal valoração é admissível, terá de entender-se, em ordem ao princípio-base da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º, do C. Processo Penal, que o depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo, quando tenha sido prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum portanto, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro.
V. - Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento se forma para que o tribunal valore o “depoimento indirecto” no processo de formação da sua convicção.
Decisão Texto Integral: 12

I. RELATÓRIO
Pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Covilhã, mediante acusação do Ministério Público que lhe imputava a prática de um crime de abuso sexual de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 172º, nº 1, do C. Penal, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido …, solteiro, servente da construção civil, , actualmente emigrado na Alemanha.
Por acórdão de 8 de Maio de 2008, foi o arguido condenado pela prática, em co-autoria material, do imputado crime, na pena de 13 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de treze meses sob condição de entrega à ofendida …, no prazo de quatro meses, da quantia de € 1.000.
Inconformado com a decisão, dela interpôs o arguido recurso, formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
A) A motivação do Acórdão recorrido é manifestamente, insuficiente.
B) Da prova testemunhal nada resulta, que possa traduzir o circunstancialismo dos factos provados.
C) A ofendida, pasme-se, não se recorda do que se passou.
D) A Testemunha …, da mesma idade, e passados três anos da ocorrência dos factos, recorda-se do que a ofendida lhe contou, foi valorado o depoimento indirecto.
E) Devidamente notificado para deduzir pedido de indemnização civil, o legal representante da ofendida não o fez.
F) No que diz respeito à medida da pena, o Acórdão contempla dois erros;
G) Suspensão da execução da pena mediante o pagamento de uma indemnização.
H) O valor da aludida indemnização não é concreto uma vez que o acórdão refere € 750 e posteriormente €1000.
I) Assim consideram-se violados os princípios da presunção de inocência e do contraditório, tal como e ainda as garantias de defesa, nos termos do disposto nos art.ºs 32º da CRP e 129º do CPP.
(…)”.
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões que se transcrevem:
“ (…).
1. Resulta da prova produzida em julgamento, ao contrário do que afirma o recorrente, que a M...e o A... não têm a mesma idade, havendo uma diferença entre eles de 3 anos de idade, tendo a M..., à data dos factos, 7 anos e o A... 10 e, actualmente, 10 e 13 anos respectivamente;
2. A utilização e valoração dos testemunhos-eco ou de ouvir dizer, é incompatível com a estrutura acusatória do processo, por contrária aos princípios da imediação e de contra-interrogatório na fase de julgamento;
3. O que se pretende com a proibição do depoimento indirecto contemplado no art. 129.º, n.º 1, do CPP, é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu a outra pessoa que é possível ouvir directamente;
4. Mas, não foi o caso dos autos, o tribunal ouviu não só o …, mas também a …, pelo que o depoimento do … pode servir como meio de prova na parte em que reproduziu o que ouviu à … dia dos factos, não estando impedido o tribunal a quo de apreciar a prova segundo as regras da experiência e da livre convicção;
5. O recorrente alega, ainda insuficiente motivação do acórdão por, na sua opinião, da prova testemunhal nada resultar que possa traduzir o circunstancialismo dos factos dados por provados;
6. É verdade que a ofendida …, em julgamento, disse não se recordar dos factos, a não ser que esteve a jogar à bola com o …, mas ficou claro que não quis falar sobre tais factos, o que não é de estranhar, pois diz-nos a experiência que tal conduta muitas vezes acontece em julgamento com vítimas de crimes sexuais e sobretudo em crianças que em "público" não querem partilhar algo que lhe é doloroso e que procuram "esquecer", porque relatá-los implica um reviver de algo que foi muito traumatizante sobretudo psicologicamente;
7. Contudo, no caso dos autos, embora seja certo que ninguém viu o arguido … a beijar e a apalpar a vagina e os seios, o facto é que ela gritou, o que chamou a atenção do …, que o levou a deslocar-se ao local, onde se encontrava a … muito nervosa e a chorar e onde lhe contou de imediato que o … a tinha beijado e apalpado nas partes intimas e o viu fugir na direcção de um ribeiro;
8. E também não se pode olvidar que a tia … que acorreu ao local avisada por uma vizinha, ainda viu o … com a mão na perna da …, que a deixou tão nervosa que desmaiou, e o que disse a mãe da …, que ali acorreu também encontrando a filha nervosa e a chorar e que embora na ocasião não lhe tenha contado o que se tinha passado, mais tarde confessou-lhe que o … a beijou e apalpou na vagina e nos seios, e que informou o tribunal que, posteriormente, na Alemanha, para onde a levou logo após os factos, também à psicóloga a … lhe confessou os mesmos factos;
9. Conjugando todos estes factos, o cenário é de molde a não deixar dúvida que os factos ocorreram tal como a vítima os contou aos seus mais íntimos e amigos, até porque o arguido optou por não comparecer em julgamento para esclarecer os factos, nem os contestou, limitando-se a oferecer o merecimento dos autos (cfr. fls. 123 e 124) e o seu ilustre defensor oficioso, em julgamento, também não quis usar da possibilidade de instar em julgamento as testemunhas e a ofendida para contraditar a prova produzida contra o arguido;
10. Assim, perante esta prova produzida em julgamento, segundo os princípios da imediação e do contraditório, o tribunal colectivo deu inteira credibilidade ao depoimento da testemunha … e apreciando globalmente toda a prova segundo as regras da experiência e da livre apreciação da prova, deu por provados, e bem, todos os factos constantes da acusação, não assistindo, por isso, razão ao recorrente quando impugna a decisão proferida, sobre matéria de facto, considerando existir insuficiente motivação da decisão, o que não se verifica;
11. No entanto, tem razão o recorrente quando evidencia o lapso patente no douto acórdão, quando na parte decisória determinou a suspensão da execução da pena, com a condição de entregar à ofendida…, no prazo de 4 meses a quantia de € 1000,00, quando atrás, quando apreciou de direito, decidiu que o arguido deverá, no prazo de 4 meses, entregar à menor M...(na pessoa de sua mãe), a quantia de € 750,00;
12. O art. 82.º-A, do Código de Processo Penal, permite que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos causados quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham;
13. Mas, o douto acórdão, não arbitrou a indemnização ao abrigo desta disposição, mas sim por concluir, ao abrigo dos artigos 50.º e 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, atendendo às condições da vida do arguido, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, subordinando a suspensão da execução da pena ao pagamento de uma indemnização à lesada;
14. Segundo apurei, esta contradição nos valores é um mero lapso do acórdão e o montante que o tribunal colectivo pretendeu fixar foi de € 1000,00;
15. De qualquer maneira, perante este desfasamento quanto ao montante indemnizatório, e uma vez que o recorrente apenas apontou a contradição não contestando qualquer destes valores, parece-me ser adequado o montante de € 1000,00, por ser mais adequado a reparar a lesão sofrida que o de € 750,00, protege melhor o bem jurídico em causa e contribui de forma mais eficaz para a reintegração do arguido, que os pode pagar, até porque, actualmente, se encontra a trabalhar na Alemanha, conforme contrato de trabalho de fls. 149 a 151, auferindo 12,33 €/hora e um prémio no valor de 0,34 €, sendo o horário normal de trabalho de 40 horas semanais;
16. Assim, não assistindo razão ao recorrente, nem tendo sido violado qualquer princípio constitucional ou qualquer norma penal ou processual penal, deverá ser negado total provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
(…)”.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, aderindo à argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância, se pronunciou pela confirmação do acórdão recorrido.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, completadas pelo corpo da motivação, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- Insuficiência da motivação;
- Valoração de depoimento indirecto, com violação do princípio do contraditório e da presunção de inocência;
- A medida concreta da pena e o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) No acórdão foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. Na dia 10 de Abril de 2005, de tarde, a menor ofendida …, nascida em 07.06.1997, encontrava-se a jogar à bola com um seu amigo chamado …, junto à Igreja de …, área da comarca da Covilhã. Naquele local, encontrava-se ainda o arguido … sentado num pequeno muro. A certa altura, o … ausentou-se do local para ir buscar a bola que tinha sido atirada para fora daquele sítio.
2.Então, o arguido aproximou-se da ofendida … e convenceu esta a ir com ele para um sítio denominado "Poceira", situado a uma distância de cerca de 200 metros daquela local.
3.Ali chegados, o arguido beijou a ofendida … na boca, meteu uma das mãos por dentro das cuecas da mesma, tendo-lhe apalpado a vagina e apalpou-lhe ainda os seios.
4.Sabia o arguido que a ofendida tinha menos de 14 anos de idade. Com a prática de tais factos, pretendeu obter, e obteve, satisfação sexual. Sabia ele que a prática de tais actos com menor de 14 anos de idade não era permitida. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida pela lei penal. O arguido agiu livre e conscientemente. É primário e encontra-se a trabalhar no estrangeiro.
(…)”.
B) Não foram considerados factos não provados.
C) E dele consta a seguinte motivação de facto (transcrição):
“ (…).
A materialidade acima dada como provada colhe a sua demonstração, nos seguintes meios de prova:
1. Declarações da testemunha … (mãe da menor …), nas quais refere que a filha se encontrava naquela data a viver com sua irmã (a testemunha …), estando a declarante emigrada na Alemanha; que nesse dia se encontrava a passar férias em Portugal; tendo sido chamada por uma vizinha, dirigiu-se ao local onde se encontrava a sua filha que estava a chorar e muito nervosa; neste momento não lhe contou o sucedido; … (apesar da sua tenra idade fez um depoimento linear e com segurança; refere que andava a jogar à bola com a …, aí se encontrando o arguido …; que a certa altura chutou a bola para um quintal e que, quando regressou, já não se encontrava a … e o …; ouviu a … a gritar e tendo-se dirigido ao local onde esta se encontrava com o arguido, a mesma contou-lhe que o … a tinha beijado na boca e que a apalpou nos seios e por "baixo"; a menor … não se recorda do que se passou, tendo referido que apenas se lembra de aí estar a brincar com o …, encontrando-se no local o arguido …; a testemunha … confirma que a menor estava a viver consigo e que no dia dos factos esta estava muito nervosa; que esteve a brincar com o menor ….
3. Foram relevantes, ainda, o relatório fotográfico de fls. 18 a 21, no qual se pode observar o local da prática dos factos; para os antecedentes criminais releva o certificado de fls. 100.
(…)”.
Da insuficiência da motivação
1. Diz o recorrente que existe insuficiente motivação da decisão pois, como resulta do acórdão recorrido, os factos dados como provados não foram presenciados por ninguém pois, dizendo a ofendida de nada se recordar, as testemunhas … e … nada presenciaram, o mesmo sucedendo com a testemunha … que dada a sua tenra idade e o decurso de três anos já verificado, não merece credibilidade, e se limitou a relatar o que lhe contou a ofendida, sendo pois um depoimento indirecto.
Entendendo-se a invocada insuficiência de motivação como insuficiência de fundamentação, é evidente que a questão proposta pelo recorrente nada tem a ver com esta última. Vejamos.
O princípio da fundamentação das decisões judiciais tem consagração constitucional. Com efeito, estabelece o art. 205º, nº 1 da Lei Fundamental que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O princípio geral da fundamentação das decisões judiciais é uma exigência do próprio Estado de direito democrático. Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, um sistema de processo penal fundado em valores democráticos, não é compatível com decisões que se imponham apenas em razão da autoridade de quem as profere, antes pressupondo que se imponham pela razão que lhes assiste (Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 293). E é através da fundamentação que a razão da bondade da decisão deve emergir, como forma de se impor, quer dentro do processo, quer fora dele.
Na lei ordinária, este princípio está previsto, de uma forma geral, no art. 97º, nº 5, do C. Processo Penal, nos termos do qual, os actos decisórios são sempre fundamentados, com a especificação dos motivos de facto e de direito da decisão. E, como é sabido, a sentença é o acto jurisdicional decisório por excelência (art. 97º, nº 1, a), do C. Processo Penal).
Mas, no que especificamente respeita à sentença penal, rege o art. 374º, do C. Processo Penal, que estabelece os seus requisitos, de natureza formal e de natureza substancial.
O art. 374º do C. Processo Penal – com a epígrafe, «Requisitos da sentença» – distingue na sentença três partes: o relatório, a fundamentação e o dispositivo ou decisão.
Dispõe o seu nº 2:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, que mais não é do que a narração de forma metódica, mas não necessariamente subordinada a números, ainda que tal seja conveniente, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, constantes da acusação ou pronuncia, da contestação, do pedido de indemnização, e ainda dos que, com relevo para a decisão, resultaram provados da discussão da causa, tem por objectivo permitir concluir que o tribunal conheceu e apreciou todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa e tem que ser concisa, contendo as provas que serviram para fundar a sua convicção – o que não significa a realização de assentadas tendo por objecto a prova por declarações e a prova testemunhal produzida – a bem como a respectiva análise crítica.
A análise crítica da prova mais não é do que a explicitação do processo de formação da convicção do julgador que se concretiza na indicação das razões e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada. Esta explicitação não exige a referência a todos os elementos e passos dados pelo julgador até chegar à decisão mas antes e apenas que permita concluir, quer aos sujeitos, quer ao tribunal de recurso o processo lógico racional seguido.
É que só com a demonstração de que a concreta opção tomada não é ilógica, arbitrária ou violadora das regras da experiência, a decisão se torna transparente e permite a sua total e desejada compreensão, dentro do processo, pelos respectivos sujeitos processuais e pelo tribunal de recurso, e extraprocessualmente, pela própria sociedade (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. e loc. cit., 294, e Acs. do STJ de 15/03/2000, CJ, S, VIII, I, 226 e de 09/01/1997 CJ, S, V, I, 178, e da R. de Coimbra de 15/10/2000, CJ, XXV, IV, 53 e de 17/05/2000, processo nº 893/2000, http://www.dgsi.pt). Como se escreveu no Ac. nº 680/98 de 02/12/1998 do Tribunal Constitucional (Proc. nº 456/95, 2ª Secção, em http://www.tribunalconstitucional.pt), “a fundamentação das sentenças penais – especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da sua livre apreciação pelo julgador (…).”. Como dizia Bentham, replicando uma velha máxima romana, “não basta que a decisão seja justa, é preciso ainda que o pareça.” (citado por Medina de Seiça, O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, 202).
Posto isto.
Lendo-se o acórdão recorrido, verifica-se que na respectiva Fundamentação, constam os factos provados – enumerados de 1 a 4, ainda que, em cada número, se encontrem vários agrupados, sendo que no último, de forma não harmónica – bem como consta a menção de não existirem factos não provados a considerar.
Depois, temos a fundamentação de facto que, apesar de demasiado sintética, permite ainda observar os elementos probatórios e o percurso seguido pelo tribunal colectivo para formar a sua convicção. Com efeito, aí se referem: as testemunhas … e …, cuja razão de ciência foi terem estado com a ofendida logo após os factos e que, por tal razão, constataram o seu nervosismo; o depoimento da testemunha …, qualificado pelo tribunal colectivo como linear e seguro, apesar da sua pouco idade, assim o credibilizando, testemunha que tendo estado imediatamente antes dos factos a brincar com a ofendida na presença do arguido, ouviu esta gritar e tendo-se dirigido para o local, aí a encontrou bem como ao arguido, tendo-lhe a ofendida então dito que o arguido a havia beijado na boca e apalpado no peito e nos genitais; o depoimento da ofendida que apenas disse recordar-se de ter estado a brincar com A... na presença do arguido; e os documentos fotográficos de fls. 18 a 219, relativos ao local onde ocorreram os factos. Ou seja, o tribunal colectivo conjugou os gritos ouvidos pela testemunha A..., com o relato que este fez do que lhe disse então a ofendida, com o subsequente estado de nervosismo da ofendida constatado pelas outras duas testemunhas, para se convencer terem efectivamente ocorrido os factos narrados na acusação.
Desta forma, dúvidas não subsistem de que na fundamentação do acórdão recorrido foi dado cumprimento ao disposto no art. 374º, nº 2, do C. Processo Penal, sendo possível apreender através da respectiva leitura, os elementos, as razões e os passos que contribuíram para a formação da convicção dos Mmos. Juízes.
Concordar ou discordar de tais razões, passos e convicção alcançada é o que, no fundo, faz o recorrente mas aqui, não estamos já, seguramente, no âmbito da nulidade que vimos analisando.
Em conclusão, não enferma o acórdão recorrido da nulidade prevista nas disposições conjugadas dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, a), do C. Processo Penal.
Da valoração de depoimento indirecto (com violação do princípio do contraditório e da presunção de inocência)
2. Como deixamos referido no número anterior, o recorrente discorda da convicção alcançada pelo tribunal colectivo porque, em seu entender, se fundou exclusivamente, numa testemunha que não merece credibilidade, e cujo depoimento foi indirecto. Questiona pois o recorrente a forma como o tribunal a quo alcançou a verdade processual.
Mas, e começando pelo depoimento indirecto, não demonstra a bondade da alegação a partir do concreto depoimento prestado isto é, não identifica concretamente as passagens de onde resulta ser o depoimento indirecto, antes apela ao texto da motivação. E certo é que na motivação, o depoimento da testemunha em questão – … – se mostra referido como contribuindo – decisivamente, acrescentamos nós – para a formação da convicção do tribunal colectivo, sendo claro também que aí é dito ter a testemunha relatado os actos que a ofendida disse terem sido praticados pelo recorrente.
Posto isto.
2.1. O objecto da prova é constituído por todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do agente e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis (art. 124º, do C. Processo Penal).
Fixado um determinado objecto, através das alegações de facto da acusação e da defesa, as provas são os instrumentos utilizados para demonstrá-lo, segundo as regras do processo (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 104).
No campo das provas também vigora o princípio da legalidade, enformador de todo o nosso processo penal (art. 2º, do C. Processo Penal). Assim, estabelece o art. 125º do C. Processo Penal que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. A legalidade dos meios de prova, as regras da sua produção e as «proibições de prova», são condições de validade processual da prova e por isso, critérios da verdade material (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 197).
O C. Processo Penal consagra no seu art. 340º, nº 1, o princípio da investigação, também designado por princípio da verdade material, segundo o qual compete ao juiz investigar e esclarecer oficiosamente o facto sujeito a julgamento, por forma a atingir a descoberta verdade. Mas a verdade processual de que falamos não é uma verdade absoluta ou ontológica mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 194). Ou seja, a busca da verdade não é nem pode ser um valor absoluto, que atropele tudo o que lhe surja como obstáculo, antes tem que ser procurada e obtida através dos meios legalmente admissíveis.
E um dos meios de que a lei se serve para, protegendo os cidadãos, impedir as práticas abusivas na produção de prova é através do estabelecimento de proibições de prova. A este propósito escreveu o Prof. Costa Andrade (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, 83), “Como Gossel acentua, as proibições de prova são «barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo». Mais do que a modalidade do seu enunciado, o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade. Normalmente formulada como proibição, a proibição de prova pode igualmente ser ditada através de uma imposição e, mesmo, de uma permissão. É que, e como Gossel pertinentemente assinala, «toda a regra relativa à investigação dos factos proíbe ao mesmo tempo as vias não permitidas de averiguação». Assim e por exemplo, ao prever e regulamentar as formas admissíveis de depoimento indirecto, o artigo 129º do CPP aponta e prescreve eo ipso as formas proibidas de hearsay evidence.”. E mais adiante (fls. 188) escreve o mesmo Mestre, “Mais do que garantias processuais face à agressão e devassa das instâncias da perseguição penal, os direitos e interesses que emprestam sentido axiológico e racionalidade teleológica às proibições de prova, emergem como direitos fundamentais erigidos em autênticos bens jurídicos.”.
Vejamos agora como trata a lei o depoimento indirecto.
2.2. Dispõe o art. 128º, nº 1, do C. Processo Penal que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.
Já atrás vimos quais os factos que constituem o objecto da prova. Quanto ao mais, a testemunha tem conhecimento directo dos factos, quando os percepcionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos. Mas no depoimento indirecto, “a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos.” (Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Ed., 158).
Por sua vez, dispõe o art. 129º, nº 1, do C. Processo Penal:
Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”.
Daqui resulta, em primeiro lugar, que a regra é a do testemunho directo. Mas, por outro lado, a lei não proíbe de forma absoluta a produção de depoimentos indirectos.
O que o código proíbe é a valoração de tais depoimentos, se o juiz não chamar a depor a pessoa indicada pela testemunha como fonte do conhecimento que transmitiu ao tribunal. No entanto, o depoimento indirecto pode ser valorado sempre que a inquirição da fonte não seja possível, por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada.
Assim, chamando o juiz a fonte a depor, o depoimento indirecto pode ser valorado, mesmo nos casos em que a aquela se recusa, lícita ou ilicitamente, a prestar depoimento ou, por exemplo, diz de nada se recordar já (cfr. Ac. da R. do Porto de 07/11/2007, proc. nº 0714613, in http://www.dgsi.pt). É que nesta situação é possível o exercício do contraditório na audiência de julgamento, através do interrogatório e do contra-interrogatório, quer da testemunha de ouvir dizer, quer da testemunha fonte, assim se assegurando o respeito pela estrutura acusatória do processo criminal, imposto pelo art. 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa.
E a conformidade do art. 129º, nº 1, do C. Processo Penal, ao admitir, nas circunstâncias aí previstas, a valoração do hearsay evidence, com a Lei Fundamental tem vindo a ser afirmada pelo Tribunal Constitucional, nos seguintes termos: “Ora, entende-se que a regulamentação consagrada na norma do nº 1 do artigo 129º do Código de Processo Penal se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público, e, por último, os do tribunal preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law). (…)
Tão-pouco se pode afirmar que a estrutura acusatória do processo criminal, que impõe que a audiência de julgamento e mesmo os actos instrutórios determinados por lei estejam subordinados ao princípio do contraditório, ponha em causa a regulamentação do segmento da norma em causa. A lei processual penal veda, em princípio, a admissibilidade do testemunho de ouvir dizer, impondo que seja chamada a depor a pessoa determinada invocada no testemunho prestado, assegurando-se a imediação, relativamente ao tribunal criminal e aos sujeitos processuais.
Só nos casos de total impossibilidade – em virtude de morte, anomalia psíquica superveniente ou de impossibilidade de ser encontrada – pode ser admitido e valorado o depoimento indirecto. E como já Bentham sustentou no início do século XIX, na falta de prova de superior qualidade, o testemunho de ouvir dizer pode revelar-se um modo válido de descoberta da verdade, sujeito sempre à apreciação do tribunal segundo as regras da experiência, tendo em conta o princípio legal da livre convicção do tribunal.
No que toca à alegada violação do princípio do contraditório – princípio complexo que comporta, na vertente respeitante ao arguido, o direito de «intervir no processo e de se pronunciar e contradizer todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo» (G. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 206) – sempre se dirá que o arguido pode inquirir a testemunha que refere o depoimento de outra pessoa e requerer que seja convocada a depor esta última. A lei processual não veda, porém, a admissão e valoração do depoimento indirecto, no caso de impossibilidade de localização da pessoa determinada a quem imputa a afirmação reproduzida. Trata-se de uma solução excepcional, de evidente base racional, que só por si, e nos contados casos em que ocorre, não pode afectar intolerável ou desproporcionadamente os direitos do arguido, como atrás houve ocasião de referir.” (Ac. nº 213/94, de 2 de Março de 1994; cfr. no mesmo sentido, Ac. nº 440/99, de 8 de Julho de 1999, ambos in http://www.tribunalconstitucional.pt).
A lei não fixa as regras de valoração do depoimento indirecto, quando tal valoração é admissível, devendo entender-se, face ao princípio geral da livre apreciação da prova estabelecido no art. 127º, do C. Processo Penal, que o depoimento deve ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o correspondente depoimento directo, quando tenha sido prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum portanto, sem qualquer hierarquia de valoração entre um e outro (cfr. neste sentido, Acs. do STJ de 20/11/2002, CJ, X, III, 232, Ac. da R. do Porto de 07/11/2007, já citado e Ac. da R. de Évora de 30/01/2007, proc. nº 2457/06-1 in http://www.dgsi.pt; contudo, em sentido contrário, cfr. Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 349 e ss.).
2.3. Retomando agora a questão colocada pelo recorrente, tendo em conta o que se pode ler na fundamentação de facto do acórdão recorrido, e como atrás já deixámos dito, o depoimento da testemunha … contribuiu decisivamente para a formação da convicção do tribunal colectivo, relativamente aos factos cuja autoria foi imputada ao recorrente.
No dito depoimento, tal como se encontra referenciado na fundamentação de facto, há que distinguir:
- O segmento em que o depoente diz estar a jogar à bola com a ofendida, na presença do recorrente, ter-se ausentado momentaneamente para ir buscar a bola a um quintal, ter regressado e já não encontrar a ofendida e o recorrente, ter ouvido a ofendida gritar e ter-se dirigido para o local onde se encontrava a ofendida e o recorrente; nesta parte, o depoimento é directo pois que os factos descritos foram percepcionados pelos sentidos do depoente sem qualquer mediação;
- O segmento em que o depoente afirma ter-lhe a ofendida contado que o recorrente a beijou na boca e a apalpou no peito e órgãos sexuais; nesta parte, o depoimento é indirecto pois o conhecimento do facto transmitido ao tribunal não é um conhecimento originário, mas intermediado pela ofendida.
Sucede que a ofendida foi testemunha no processo, tendo prestado depoimento na audiência de julgamento, como resulta, quer da acta de fls. 142 e ss., quer da própria fundamentação de facto do acórdão, onde o seu depoimento é também referido.
Tendo deposto a pessoa a quem se ouviu dizer, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de ouvir dizer, pelo que nenhum impedimento existia a que o tribunal colectivo valorasse, como valorou, todo o depoimento da testemunha …, no processo de formação da sua convicção.
2.4. Concluindo, não enferma o acórdão recorrido de nulidade causada pela valoração de depoimento indirecto, posto que se mostra observado o art. 129º, nº 1, do C. Processo Penal.
Por isso, e face ao que atrás se deixou dito quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, se conclui também que não se mostra violado o princípio do contraditório.
3. Vimos já também que o recorrente alega que o depoimento da testemunha …, decorridos três anos sobre a prática dos factos, atenta a sua tenra idade, e tendo em conta o depoimento da ofendida, da mesma idade, carece de credibilidade.
Pois bem, quanto à credibilidade do depoimento apenas em função da idade da testemunha é manifesta a falta de razão do recorrente. Em primeiro lugar porque, e ao contrário do por si alegado, a testemunha não tem a mesma idade da ofendida, como resulta da acta da audiência de julgamento de fls. 142 e seguintes, tendo a testemunha e a ofendida respectivamente 13 e 10 anos de idade, quando foram inquiridas. O … é pois um jovem adolescente, sendo inadequada a referência no acórdão à sua tenra idade. E depois, porque a lei não determina a atribuição de um menor peso na valoração das testemunhas mais jovens.
Quanto ao mais, parece esquecer o recorrente o princípio basilar da prova em processo penal, ínsito no art. 127º, do C. Processo Penal, segundo o qual a prova, salvo diferente disposição da lei, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
A livre apreciação da prova não significa uma apreciação imotivável e incontrolável, fruto do arbítrio do julgador, mas antes uma avaliação feita por recurso a critérios objectivos e visando alcançar a verdade material.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido a com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse.” (Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 204 e ss.).
Pois bem, o tribunal colectivo – com a acrescida garantia que a sua composição significa – beneficiando da imediação e oralidade da prova, qualificou o depoimento da testemunha, sem esquecer de ponderar a sua idade, como linear e seguro isto é, considerou-o credível. E como atrás deixámos dito, não existe impedimento processual à valoração do depoimento.
É certo que, de acordo com a fundamentação de facto, a ofendida, no seu depoimento, apenas declarou lembrar-se de ter estado a brincar com a testemunha …, na presença do recorrente. Poderia a fundamentação, nesta parte, ter ido mais longe, expressando concretamente as impressões colhidas perante tal depoimento. Na verdade, a ofendida não disse que nada tinha acontecido com o recorrente mas apenas que já não se lembrava. Ora, a ofendida tinha 10 anos de idade quando foi ouvida em audiência, e tinha apenas 7 anos de idade, na data dos factos, sendo absolutamente compreensível a sua relutância em recordar e, mais do que isso, tornar a afirmar publicamente, tais factos.
Porém, a testemunha … afirmou ter ouvido a ofendida gritar, e logo supôs que ela se encontrasse em dificuldades pois dirigiu-se para o local de onde provinham os gritos, e quando aí chegou constatou que aquela se encontrava com o recorrente. Ora, se a ofendida gritou de forma a alertar a testemunha, é porque alguma coisa a fez gritar. E se, logo que a testemunha … chegou junto de si, a ofendida lhe contou o que o recorrente lhe havia feito, atenta a sua idade e a rápida sucessão dos acontecimentos, que, em princípio, inviabilizam a possibilidade de uma mistificação do sucedido, há que considerar como razoável a convicção alcançada pelo tribunal colectivo quanto à verificação dos factos.
Assim, ainda que o recorrente tenha invocado a violação do princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa – tendo, no entanto, prescindido de concretizar as razões em que funda tal violação – não vemos que tal tenha ocorrido.
Este princípio assenta “na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada.” (Prof, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 2000, 82), e surge articulado, e por vezes confundido, com o princípio do in dubio pro reo, e associado ao princípio nulla poena sine culpa. Mas nada tem a ver, ao menos directamente, com a correcta ou incorrecta valoração da prova.
Concluindo, não se mostra violado o invocado princípio.
A medida concreta da pena e o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
4. Diz o recorrente que o acórdão em crise, relativamente à medida da pena, contém dois erros: o primeiro consiste em se ter fixado como condição para a suspensão da execução da pena de prisão, a entrega à ofendida de uma determinada quantia, quando esta não deduziu pedido de indemnização, assim se estabelecendo uma dupla penalização; o segundo consiste em na fundamentação se ter fixado a quantia objecto de tal condição em € 750 e na decisão se ter fixado tal quantia em € 1.000.
Vejamos.
4.1. Quanto ao primeiro erro, não assiste qualquer razão ao recorrente.
A ofendida é livre de deduzir ou não, pedido de indemnização civil pelos danos sofridos com a prática do crime pois que de direito disponível se trata.
O estabelecimento de uma condição para a suspensão da execução da pena de prisão tendo por objecto a entrega de uma determinada importância não tem natureza de indemnização civil, destinando-se tão só a que o condenado repare, ao menos parcialmente, o mal do crime. A condição assim estabelecida integra a própria pena, não fazendo qualquer sentido falar-se em dupla penalização (arts. 50º, nº 1 e 51º, nº 1, do C. Penal).
4.2. Quanto ao segundo erro, é manifesta a razão do recorrente.
Depois de expor as razões que fundamentam o instituto da suspensão da execução da pena de prisão o tribunal colectivo, debruçando-se sobre o caso concreto, laconicamente escreveu: “O arguido encontra-se emigrado e a trabalhar. É primário, pelo que, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam as finalidades da punição. Deverá o arguido, no prazo de 4 meses, entregar à menor (na pessoa de sua mãe) a quantia de € 750,00.”.
Mas no ponto I da Decisão escreveu-se: “ (Pelo exposto, decide este Tribunal, …, condenar o arguido, …,) I – Na pena de 13 (treze) meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido, à data dos factos, pelo artigo 172º, nº 1 do Código Penal, cuja execução suspendemos pelo período de 13 (treze) meses, com a condição de entregar à menor ofendida M..., no prazo de 4 (quatro) meses a quantia de € 1.000,00 (mil euros).”.
É pois clara a contradição existente entre a fundamentação e a decisão, relativamente à quantia que constitui o objecto da condição da suspensão da execução da pena de prisão, contradição que emerge do próprio texto do acórdão.
Trata-se, obviamente, de um erro que o tribunal colectivo não corrigiu e que este tribunal de recurso está impossibilitado de corrigir, na medida em que não existe qualquer elemento no texto da decisão recorrida que permita concluir qual dos valores foi efectivamente querido pelo tribunal a quo.
E, como é evidente, para tal efeito não valem as averiguações efectuadas pelo Digno Procurador da República junto da 1ª instância e das quais deu notícia na sua contramotivação.
Resta pois concluir, e sem necessidade de mais considerações, pela verificação do vício previsto no art. 410º, nº 2, b), do C. Processo Penal, vício que é, aliás, de conhecimento oficioso (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995).
Assim, e nos termos do disposto no art. 426º, nº 1, do C. Processo Penal, impõe-se determinar o reenvio do processo para novo julgamento, a realizar nos termos do art. 426º-A do mesmo código, relativamente à determinação da quantia que constitui o objecto da condição de suspensão da execução da pena de prisão.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:
A) Julgar improcedente a nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação e julgar admissível a valoração de todo o depoimento prestado pela testemunha … e, em consequência, negar provimento ao recurso.
B) Determinar o reenvio do processo para novo julgamento, apenas quanto à determinação da quantia que constitui o objecto da condição de suspensão da execução da pena de prisão, com observância do disposto no art. 426º-A, do C. Processo Penal.