Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3178/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
Data do Acordão: 11/30/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 131º E 132º, N.º1 E 2, DO C. PENAL
Sumário: I- Uma faca, embora seja um meio perigoso, mesmo letal, não encerra em si uma particular perigosidade.
II- Perante um meio perigoso é necessário verificar se ele revela uma perigosidade muito superior à normal dos meios usados para matar e é indispensável determinar se da natureza do meio utilizado resulta já um especial censurabilidade ou perversidade do agente

III- Para que o crime de homicídio seja qualificado não basta que se verifique um dos exemplos padrão previstos no art.º 132º, n.º 2. É necessário que seja possível fazer a partir deles um juízo de acrescida censurabilidade ou perversidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Por acórdão proferido no processo n.º 57/04.5JAGRD do 2.º Juízo do Tribunal Judicial do Fundão foi A... condenado como autor de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea i. do Código Penal na pena de vinte e quatro anos de prisão.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido, finalizando as suas motivações com as seguintes conclusões:
1.º A matéria constante dos factos julgados, e que consta do n.º 3 alíneas a), b) e c) do presente recurso encontra-se eivada de erro de julgamento, porquanto tal matéria está em contradição com a constante dos factos provados
2.º Erro de julgamento se manifesta também ao haver-se dado como provado que o arguido respondeu à vítima que o que teria que fazer iria ser feito, fosse no dia seguinte ou fosse quando fosse, uma vez que, a testemunha Marina Cláudia naquelas circunstâncias ouvir tal expressão
3.º O tribunal a quo apesar de dar como assente que o arguido sofria de stress pós-traumático de guerra por ter estado no Ultramar, não teve tal facto em conta para aferir da possibilidade de aplicação de aplicação da atenuação especial da pena
4.º Ao condenar o recorrente A... na pena de 24 anos de prisão, com base no depoimento das testemunhas identificadas no acórdão, verifica-se existir não só insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, como também erro notório na apreciação da prova, face à razão de ciência e de conteúdo de tais depoimentos e de que resultou a convicção do tribunal (art.º 410.º n.º 2 al.s a. e c. do Código de Processo Penal)
5.º O circunstancialismo em que o crime ocorreu não permite concluir pela especial censurabilidade ou perversidade prevista no n.º 1 do art.º 132.º do Código Penal
6.º Deve o arguido ser condenado apenas pela prática de um crime de homicídio, previsto e punido pelo art.º 131.º do Código Penal
7.º Ao decidir por forma diferente incorreu o acórdão recorrido na previsão do art.º 410.º, n.º 2 alínea c. por erro notório na apreciação da prova

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a audiência, cumpre agora decidir.

O recurso é restrito à matéria de direito, sem do prejuízo do conhecimento dos vícios constantes do no 2 do art.º 410.º do Código Processo Penal.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:
2.1. FACTOS PROVADOS

O arguido era casado com B... desde Fevereiro de 2004, embora vivendo com a mesma desde Maio de 2003, como se marido e mulher fossem.
O arguido resolveu, no dia 12 de Abril de 2004, cerca das 7 horas, esconder-se na arrecadação do restaurante "O Tostadinho", sito na Rua José da Cunha Taborda, nesta cidade e comarca do Fundão, o qual sua mulher se encontrava a explorar e onde permaneceu até às 20 horas, com o intuito de ouvir as conversas de B... com os clientes, a fim de tentar compreender o comportamento da mulher.
Ao fim do dia resolveu confrontá-la com algumas das afirmações que ela proferiu, durante esse período de tempo.
Gerou-se uma discussão entre os dois, tendo a mesma abandonado o estabelecimento, quando ali se encontrava o, entretanto, chegado, fornecedor, Joaquim Manique, dizendo que ia pernoitar a casa de uma amiga.
Fê-lo, receosa que o seu marido a pudesse matar, como tinha acabado de ameaçar fazer e, por isso, resolveu pernoitar em casa da sua amiga Marina Cláudia, onde de resto já também se encontrava sua filha Cláudia.
O arguido telefonou-lhe nessa noite, pedindo-lhe, primeiro que regressasse a casa e depois pedindo-lhe dinheiro. B... não acedeu àquela primeira pretensão, dizendo que ele a queria matar.
O arguido respondeu-lhe que "o que teria que fazer iria ser feito, fosse no dia seguinte ou fosse quando fosse".
A B..., receosa dos desígnios do marido, não saiu da casa da amiga, tendo sido a filha desta, Daniela Vanessa que se deslocou à sua residência, onde deixou o dinheiro que o arguido pedira trouxe uma muda de roupa, para aquela.
No dia seguinte, a B... acompanhada de sua filha Cláudia, dirigiu-se ao seu estabelecimento, onde efectuou alguns trabalhos.
Perto das 10 horas, o arguido munido de duas facas, que transportava no interior do bolso do seu casaco, e que havia trazido da sua cozinha, com o propósito de, utilizar as mesmas para tirar a vida à sua mulher, entrou na churrasqueira e sentou-se com ela a uma das mesas, junto do balcão, enquanto a filha estava no lava loiça.
Depois de breve troca de palavras, o arguido retirou as facas do bolso e com elas, veio a atingir a B...
De imediato a filha Cláudia começou a gritar por socorro, ao mesmo tempo que lhe atirava um cinzeiro, para o impedir de continuar, chegando mesmo a interpor-se entre o arguido e sua mãe.
Enquanto isto, B... tentava a todo o custo libertar-se, sem qualquer possibilidade por o mesmo a segurar com uma das mãos, enquanto a outra, segurando a faca, a golpeava sucessivamente, em diversas partes do corpo, procurando atingi-la no pescoço.
Os gritos de socorro alertaram algumas pessoas, que se abeiraram da churrasqueira, acabando por se afastarem, receosos pelas suas próprias vidas.
A vitima procurava defender-se, o que determinou o arrastamento e queda de algumas mesas e cadeiras do restaurante, acabando mesmo por se esconder debaixo de uma mesa. Apesar da presença de algumas pessoas e da filha da vítima, o arguido não abandonou o propósito de tirar a vida à sua mulher, continuando a desferir sucessivos golpes, o que fez, pelo menos por 11 vezes, procurando o pescoço, o peito e as costas, sob o pulmão.
Provocou, por esta forma, as seguintes lesões:
na cabeça:
ferida na região sub-maxilar à direita, com cerca de 10 cm,
ferida incisa com cerca de 4 cm, na região mentoniana central e no sentido vertical,
ferida inciso penetrante com cerca de 10 cm, na região retro auricular à esquerda e escoriações, no nariz, na região frontal e na região periorbitária, face externa do olho esquerdo;
no pescoço:
ferida inciso penetrante com cerca de 4x8 cm, a nível de 1/3 médio, face esquerda do pescoço e,
ferida inciso penetrante na região interior e anterior do pescoço com cerca de 2x3 cm;
no tórax:
ferida incisa no quadrante superior externo da mama direita, com cerca de 3 cm, ligeiramente de cima para baixo e de fora para dentro,
ferida inciso penetrante com cerca de 15 cm, no sentido horizontal, na região sub axilar esquerda,
ferida incisa no quadrante superior interno com cerca de 3 cm, na mama esquerda;
ferida na mama esquerda de fora para dentro ligeiramente oblíqua, sem penetrar a caixa torácica e escoriações com cerca de 2 cm de diâmetro, no 1/3 superior, face direita do hemitórax anterior e,
ferida incisa, no sentido horizontal, com cerca de 3 cm no 1/3 médio da região dorsal à esquerda;
nos membro superiores:
várias feridas na face palmar da mão direita e várias feridas inciso contusas na face palmar e dorsal da mão esquerda e ferida inciso penetrante com cerca de 3 cm, na região dorsal, 1/3 superior do ombro direito e ferida inciso penetrante com cerca de 8 cm na face dorsal, 1/3 superior do ombro esquerdo,
que vieram a determinar de forma adequada, a morte da mulher, devido a choque hipovolémico como consequência daquelas e suas complicações hemorrágicas quer internas quer externas.
O arguido acabaria por abandonar o estabelecimento, deixando a mulher no chão, inanimada e banhada em sangue, deixando no local as facas utilizadas.
Uma delas, com o cabo em madeira de tom castanho claro, com a referência "CR Corte Real", com o comprimento total de 23,1 cm, sendo o total da lâmina de 12,1 cm, e o comprimento total da lâmina na zona com gume de 11,8 cm, com largura máxima da lâmina na zona com gume de 2,5 cm e a outra, com o cabo em metal de tom prateado, com lâmina com gume serrilhado, na qual eram visíveis as referências “Jay" e "Inox Spain", com o comprimento total de 22,3 cm, num total de 10,5 cm de lâmina, com o comprimento da lâmina na zona com gume de 8,0 cm e largura máxima da lâmina na zona com gume de 1,9 cm.
O arguido viria a entregar-se a um soldado da GNR em serviço na Avenida da Liberdade, nesta cidade, ao qual relatou o que tinha acabado de fazer.
O arguido agiu com o propósito de tirar a vida à sua mulher, o que resto já havia decidido no dia anterior, utilizando duas facas das quais previamente se muniu para o efeito, o que fez sabendo que o meio por si utilizado era idóneo à produção do resultado pretendido.
O número e a profundidade dos golpes produzidos, as zonas corpóreas atingidas, revelam a insistência na consumação e a escolha de um meio traiçoeiro e desleal face à impossibilidade de defesa da vitima, desarmada, não podendo deixar de conduzir à morte, o que o arguido sabia e quis.
Agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo ser a sua conduta proibida por lei.
A vítima tinha nascido a 10.5.1959.
Deixou 3 filhas. As assistentes Selma, com 24 anos de idade, Andreia, com 25 anos de idade e a Cláudia, com 12.
A vítima estava ligada às filhas, por laços de entreajuda e amor.
As filhas contavam com o amor da mãe.
As filhas sentiram desgosto, tristeza e abalo moral, com a perda da mãe, sentimento que perdurará no futuro.
A Cláudia presenciou a morte da mãe e foi mesmo atingida com um golpe, por acção do arguido, na face externa do 1/3 superior da perna esquerda, o que lhe provocou ferida inciso contusa, com cerca de 4 cm, lesão que determinou um período de 10 dias de doença, sem afectação:
Foi assistida no Hospital do Fundão, para limpeza, desinfecção, sutura e penso.
A Cláudia sofreu dores e apresenta uma cicatriz com 3 cm na zona da lesão.
Sofreu e sofre, ainda, com o quadro dos factos a que assistiu, que lhe ficou gravado, sofrimento acrescido pelo facto de se ter sentido impotente para salvar a vida da mãe.
A Cláudia naquele dia chorou convulsivamente e foi assistida no departamento de pedopsiquiatria da Covilhã.
A Cláudia vivia com a mãe, que despendi ano seu sustento valor que rondaria os € 250.00, mensalmente.
Do seu assento de nascimento não consta o nome do pai.
Era a mãe que desempenhava as funções de mãe e de pai, que a acarinhava, amparava e educava.
A Cláudia com a morte da mãe, sentiu-se só e desamparada, o que lhe provoca sofrimento, desgosto, que se prolongará no tempo.
Depois dos factos a Cláudia revela-se, por vezes, nervosa, revoltada e agressiva.
A Cláudia vai continuar a crescer privada do amparo, protecção, carinho e educação da mãe.
A vítima explorava o estabelecimento “Tostadinho”, no Fundão, donde retirava proventos para fazer face às despesas com a filha menor, a quem nada faltava.
Trabalhava, habitualmente desde as 10 às 22 horas, se 2ª feira a sábado.
A Cláudia estava a estudar.
Entretanto a Andreia foi nomeada tutora da irmã Cláudia, em processo que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra.
A B... teve medo e pânico e sofreu dores violentas, devidas às múltiplas lesões no seu corpo provocadas pelas sucessivas facadas que lhe foram desferidas, tendo tentado defender-se com as mãos e esquivar-se.
Tendo-se refugiado debaixo de uma mesa, cambaleou e arrastou-se.
Entre a primeira facada e o momento em que a vítima perdeu a consciência, mediaram alguns minutos, durante os quais gritou por ajuda e socorro.
A vítima sofreu, ainda, dor, desespero, pavor e pânico da morte, que se aproximava e de que se apercebeu.
Depois da vítima ter saído, do estabelecimento, no dia 12, o arguido e o referido fornecedor, ainda lá ficaram.
O arguido depois dos 2 telefonemas que fez no dia 12, à noite, saiu de casa e quando regressou encontrou e € 40.00 em cima da mesa.
O arguido no meio profissional e social onde estava inserido era tido como pessoa pacífica e calma, bem comportado e honesto.
O arguido desenvolveu um quadro de síndrome de stress post-traumático, depois de ter estado na guerra do Ultramar.

2. 2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da materialidade constante da acusação pública, do requerimento de pedido cível e da contestação, pertinente e idónea, nada mais se provou e resultam improvados, os seguintes factos:
que, desde que casaram surgiram alguns desentendimentos entre os dois, por motivos não completamente apurados, uns relacionados com problemas económicos, outros devidos aos intensos ciúmes que A... sentia por sua mulher;
que, o arguido se tenha escondido na arrecadação, na sequência de desconfianças;
que, as expressões que o arguido quisesse ver esclarecidas tivessem sido ditas a alguns clientes;
que, a B... não quisesse falar sobre o assunto;
que, o arguido, antes dessa ocasião, noite de 12 de Abril, tivesse já ameaçado a mulher de morte;
que, com a vítima já, prostrada no chão sem dar acordo de si, o arguido ainda mais uma vez lhe espetou a faca no pescoço;
que, a vítima tenha falecido intestada;
que, a herança não foi ainda partilhada, encontrando-se ilíquida e indivisa;
que, a vítima e as filhas fossem confidentes, conselheiras, amigas e companheiras;
que, a Andreia e a Selma sempre tenham mantido para com a mãe, grande afeição e respeito;
que, a Cláudia sinta e continue a sentir, no futuro, angústia, ao pensar que poderia ter evitado a morte da mãe;
que, a Cláudia se revele agora desconcentrada;
que, a falta dos pais, se reflicta, negativamente, no crescimento emocional, na educação e formação da Cláudia;
que, a sua personalidade esteja constantemente em perigo, pela privação do amor e carinho dos pais;
que, a Cláudia dependesse exclusivamente dos rendimentos da mãe;
que, a vítima, trabalhasse por vezes aos domingos;
que, a vítima facturasse mais de 1 500 euros mensais e retirasse uma quantia líquida não inferior a 750.00 euros;
que, o arguido e a vítima viviam sem desentendimentos, ressalvando uma ou outra discussão tidas por normais;
que, em finais de Março, princípios de Abril, a vítima tenha passado a adoptar comportamentos tidos por estranhos num casal, que tenha começado a desprezá-lo e humilhá-lo, sem razão que o justificasse;
que, tenha chegado ao conhecimento do arguido através de conversas com amigos, que a vítima andava a falar mal de si, afirmando que o estabelecimento era só dela;
que, o arguido tenha ouvido a vítima em conversa com vários clientes, alguns dos quais amigos do arguido, afirmar que o marido não trabalhava, que era preguiçoso e que o restaurante era só dela;
que, a vítima tenha acabado de servir os jantares;
que, o arguido nunca tenha ameaçado a vítima de morte, nem lhe tenha dito que o que teria que fazer iria ser feito, fosse no dia seguinte ou fosse quando fosse;
que, o arguido tenha questionado a vítima acerca das afirmações proferidas no dia anterior e que esta se tenha recusado a responder, tendo-se levantado e empurrado o arguido, ao mesmo tempo que dizia para ele se ir embora que ali não tinha nada;
que, o arguido tenha agido em reacção à atitude da vítima, movido por emoção;
que, tenha utilizado uma faca que estivesse sobre o balcão;
que, apenas se lembre de estar numa cela, desde o momento em que empunhou a faca;
que, o arguido nunca tenha transportado no seu bolso 2 facas de cozinha, nem nunca tenha tido o propósito de tirar a vida à sua mulher;
que, o arguido tenha encontrado o meio de matar a mulher, por mera casualidade e que apenas tenha reagido, desproporcionadamente a um comportamento da vítima.

2. 3. MOTIVAÇÃO

A materialidade acima dada como provada colhe a sua demonstração, quanto aos factos, constantes da acusação pública:
nas declarações do arguido, que relatou os factos, tal como acima foram enunciados, até ao momento em que a “vítima lhe terá dito para sair dali que não tinha ali nada”, pelas 10 horas do dia 13 de Abril de nada mais, referindo, se recordar, daí em diante, tendo ainda relatado que nunca tinha ameaçado a mulher, que se davam bem, que as facas estavam sobre o balcão, do estabelecimento, que a mulher andava diferente, que tinha ido ao hospital, uns tempos antes, nada mais lhe tendo dito sobre essa ida, que na véspera, estivera escondido, efectivamente na arrecadação, do estabelecimento, entre as 7 e as 20 horas, sensivelmente, para escutar o que a mulher dizia aos clientes, que a ouviu dizer mal de si, repetindo, ele esta frase, meia dúzia de vezes, e pedido para a concretizar, outras tantas, vezes, não o logrou fazer;
nos depoimentos das testemunhas arroladas na acusação pública:

Cláudia Rosário, filha da vítima, com quem vivia, ainda na companhia do arguido, que relatou que, na véspera, 12 de Abril, a mãe foi pedir à mãe da sua amiga Daniela Vanessa, para dormir em casa dela, porque o arguido a tinha ameaçado de morte e, efectivamente, dormiu na casa da testemunha Marina Cláudia, bem como a testemunha, que aliás, já lá dormira na noite anterior, recordando-se de a mãe, nessa noite, ter recebido, um telefonema do arguido a pedir dinheiro, tendo sido a sua amiga Daniela Vanessa, que lá foi a casa levar o dinheiro e trazer uma muda de roupa par a mãe, tendo ainda, relatado, que no dia seguinte, de manhã, foi com a mãe, par ao estabelecimento, pois estava de férias da Páscoa e pouco depois, quando estava junto do lava loiça, a lavar um recipiente de azeitonas, apercebeu-se da chegada do arguido, que pediu à mãe para se sentar, que queria falar com ela, o que ela fez, sentando-se, a uma das mesas, de frente para ele tendo ele pedido para ela se sentar ao seu lado, ao que ela anuiu, tendo a determinada altura, pouco depois, o arguido levantando-se, aos berros, tendo retirado do bolso do blusão, que trazia vestido, 2 facas, tendo a mãe ido para debaixo de uma das mesas, para se defender, o que não impediu que o arguido a começasse a agredir com, uma das facas, ao mesmo tempo, que a mãe gritava por socorro, bem como a própria testemunha, também, o fazia, tendo inclusivamente, arremessado-lhe com um cinzeiro, tendo a testemunha ficado ferida numa das pernas, concerteza, que por acção do arguido;
Manuel Cardoso, que trabalhava nas bombas de abastecimento de combustível, que ficam defronte do estabelecimento, tendo-se apercebido, que nesse dia de manhã, cerca das 9.30 horas a vítima saiu do estabelecimento, para despejar o caixote e cerca das 10 para as 10 horas, sentiu gritos de mulher, tendo ido ver o que se passava, vendo, então, que o arguido estava às facadas no pescoço da mulher, sentada no chão, com as pernas esticadas, com uma faca, de cabo de madeira, ensanguentada, empunhando-a na mão direita, ao mesmo tempo que a agarrava pelo cabelo e lhe passava a faca pelo pescoço, o que viu fazer por 3 ou 4 vezes, tendo-o, ainda empurrado, bem como a uma mesa, mas concluiu que nada havia a fazer, tendo o arguido pedido para o deixar, apercebendo-se que a filha da vítima, puxava o arguido para trás, tendo-se vindo embora e depois ele saiu atrás e sentou ali no exterior, tendo-se, ainda apercebido que a vítima rastejou até junto da porta;
António Fernandes, agente funerário, com estabelecimento contíguo ao estabelecimento da vítima, onde ia tomar café depois do almoço, que naquele dia ouviu gritos, de mulher a pedir socorro, pensa que pelas 10 horas e pouco, tendo ouvido ainda a filha da vítima dizer “acudam, que estão a matar a minha mãe”, foi ver o que se passava, pensa que depois de lá ter estado a testemunha Cardoso e, viu mesas e cadeiras, tombadas no chão, tudo desarrumado e sangue por todo o lado e a vítima debaixo de uma mesa, sentada e com sangue no peito, dirigindo-se à testemunha dizendo, “vizinho ajude-me que ele mata-me”, que o arguido parou quando o viu e que tinha uma faca na mão e saiu a ligar para o 112 e quando voltou a vítima estava já caída, de bruços e com sinais de ter sido atingida, por 4 ou 5 vezes com facadas nas costas, estando lá a filha, mas penas que o arguido já lá não estava dentro, referindo que a vítima estava viva, que colocou um saco plástico por debaixo do corpo, que tinha sangue, a sair do pescoço, que estava cortado, que tinha a pulsação fraca, já não falava, que ainda, se agarrou ao dedo mindinho da testemunha e que ao fim de 3,4 minutos, deu 2 esticões e morreu, que o arguido aparentava estar calmo e que viu uma faca no balcão com cabo de madeira;
José Esteves, fornecedor do estabelecimento que a vitima explorava, que entrou lá nesse dia de manhã, tendo sido o primeiro a lá entrar, exceptuando a vítima, a filha e o arguido, que encontro a vitima a discutir, com o arguido, de pé, dizendo ela “tu não me respeitas”, que o arguido retirou 1 faca do bolso de um blusão preto, que envergava, com cabo de madeira, que a testemunha se agarrou ao pulso dele, tendo ele logrado passar o braço por cima da sua cabeça e viu-o determinado, nas suas intenções, pensando que não havia nada a fazer, tendo a vítima refugiado-se debaixo de uma mesa, indo o arguido direito a ela e a testemunha, nessa altura saiu e foi chamar os vizinhos, não sem que antes tenha dito ao arguido para ver o que ia fazer, que is dar cabo da vida dele;
Joaquim Manique, fornecedor de mercadoria do estabelecimento da vítima, onde foi no dia 12 de Abril, a noite, sendo o último cliente, tendo o arguido dito na sua presença que matava a mulher, tendo esta relatado, à frente do marido, que ele tinha estado o dia todo escondido a escutar o que ela dizia ao balcão, referindo o arguido que ou ela vomitava tudo ou a matava, referindo que ele disse na ocasião que ela tinha dito que o marido ela frente era uma coisa e por trás era outra, confirmando ele que tinha estado escondido a escutar as conversas, tendo a mulher acabado por dizer que não ia para casa dormir, nessa noite, com o homem que a ameaçara de morte;
Maria Serra, vizinha de cerca de 100 meros do estabelecimento explorado pela vítima, que cerca das 10.30 horas, viu passar o arguido, muito branco e desfigurado e com sangue nas mãos que lhe falou e que ele respondeu não sabe bem o quê e ficou aflita e foi ao estabelecimento ver o que se passava e encontrou o corpo da vitima voltado par a aporta da rua, de bruços, que a filha estava sobre a mãe a pedir-lhe que falasse, que trouxe a miúda consigo para sua loja, pois, estava chorosa e desorientada, tendo depois, constatado que a mesma estava a sangrar numa perna, meteu-a na ambulância, para ir ao hospital, mais referindo que já falara com a vítima sobre o marido e que esta lhe dissera que ele era ciumento, que a vítima devia cerca de 1 500 contos do estabelecimento e que não os tinha para pagar, que a vítima dizia que o negócio era dela e não do marido, que dizia que se não estava a dar bem com o marido, que lhe pedia dinheiro para o gasóleo, que a aconselhou a divorciar-se e que a vítima lhe respondeu que o casamento segundo o marido era até que a morte os separasse, mais referindo que a vítima se dava bem com as filhas;
Júlio Trindade, soldado da GNR que estava nessa manhã, de serviço e na Avenida da Liberdade no Fundão, tendo o arguido chegado junto de si e dito para o levar preso pois que acabara de matar a mulher, que tinha sangue na cara e a roupa, igualmente, com sangue;
Manuel Narciso, soldado da GNR, que estava no carro patrulha, foi ao local, por ter sido mandado, pelo Posto, viu a senhora morta e ouviu dizer que o arguido tinha ido pela rua, a pé, tendo-o depois efectivamente, encontrado, com o colega Trindade, com as mãos sujas de sangue e com a cara, igualmente, com sangue, tendo, ideia de que o arguido estava com um casaco preto;
João Santos, soldado da GNR, que estava acompanhado do colega Narciso, foi, também, ao estabelecimento, entrou, os bombeiros, que já lá estavam, disseram que a senhora estava morta, viu que estava toda banhada em sangue, o arguido estava pálido e vomitou, estava com um casaco de cabedal preto, vestido e de calças de ganga, com sangue e no local estavam 2 facas, uma com cabo de madeira, ambas com sangue, pensa que uma sobre o balcão e outra no chão;
Marina Cláudia, mãe da Vanessa, amiga da Cláudia, filha da vítima, tendo referido que a vítima dormiu na sua casa nessa noite, na véspera de morrer, com a filha, que já lá tinha dormido, igualmente, na noite anterior, que chegou a sua casa, pensa, que pelas 8 horas da noite, a dizer que o marido a queria matar, que tinha estado todo o dia escondido a escutar as conversas, apercebendo-se que o arguido telefonou para a vítima, enquanto ela esteve na sua casa, dizendo-lhe ela que a Andreia, a filha, já sabia tudo, que ela já lhe tinha telefonado a contar, tendo a testemunha, que estava ao lado da vítima, nessa ocasião, sentadas na sua cama, ouvido o arguido dizer “que o que tinha que ser feito, fazia, hoje ou em qualquer outro dia”, tendo, ainda o arguido depois feito nova chamada para a esposa a pedir dinheiro para gasóleo, tendo a filha ido a casa levar 40 euros e trouxe uma muda de roupa, a pedido da vítima;
Daniela Vanessa, filha desta Marina Cláudia, que relatou os factos de forma coincidente com a amiga Cláudia, filha da vítima e com a mãe, tendo referido que foi a casa da vítima e deixou 40 euros sobre a mesa e trouxe uma muda de roupa, a pedido daquela;
Mirando Monteiro, Inspector da PJ, que veio nesse dia ao restaurante, a pedido do magistrado do MP, que fez o exame ao hábito externo da vítima e ao espaço circundante, tendo a reportagem fotográfica, junta aos autos, sido feita sob a sua coordenação, tendo depois ido ao Posto da GNR, onde estava o arguido, acompanhando-o, a casa dele, a fim de mudar de roupa, recordando-se de que estava com umas calças, umas botas, uma camisa e um casaco, revelando que a vítima tinha sinais de facadas nas costas, no peito e no pescoço, pensa que com uma carótida cortada e golpes, ainda numa mão, porventura devidos a manobras de defesa, tendo qualificado o que viu, como de extrema violência, de valor 10, numa escala de 1 a 10, recorda-se que lhe foi entregue, por elementos da GNR, uma faca, que os bombeiros já tinham manuseado, com o cabo em madeira e outra estava no chã, tendo sido por si recolhida, estando convencido pelo que lhe foi dado a observar e a saber, que o arguido terá actuado com elevado grau de persistência criminosa, na sua conduta, não obstante ter sido chamado à atenção, por mais que uma pessoa, não largando a vítima até à morte, indo esfaqueando, sempre, enquanto mexia;
Inspector da PJ Alexandre Branco, que foi o titular da investigação, que igualmente, se deslocou ao local, no dia dos factos, viu o corpo da vítima no chão, em posição de decúbito ventral, com uma profusão de golpes, foi informado que o presumível autor já tinha sido detido pela GNR, tendo descrito o que viu, tal como consta da reportagem fotográfica, que se recorda de um cinzeiro no chão, que o casaco que o arguido tinha consigo, no Posto da GNR, tinha bolsos interiores, que os golpes poderiam ter sido feitos por qualquer das facas apreendidas;
Fernandes Cruz, Inspector da PJ, que, também, se deslocou ao local, no dia dos factos, que viu mesas tombadas no chão, o chão sujo de sangue, a vitima deitada no chão em posição de decúbito ventral, demonstrando, aquele quadro, grande rancor, tendo sido atingidos órgãos vitais e,
nas declarações das assistentes, Andreia Simões e Selma Verónica, aquela que revelou que a mãe lhe telefonou na noite de 12 de Abril, a relatar o que se tinha passado, nesse dia, com o arguido e que estava com medo dele, tendo-lhe ela chegado a pedir para lhe fazer companhia, que a mãe lhe tinha já dito que o arguido por vezes bebia, pegava com ela e depois não ia trabalhar e, esta que referiu que sendo emigrante em Inglaterra, ali foi visitada pela mãe, ainda nesse ano, antes do casamento, que lhe emprestou dinheiro e que tem a ideia de o arguido ser cimento e rude;

quanto aos factos do requerimento do pedido cível:

nos depoimentos, da já referida Maria Serra;
Rui Brás, tio do marido da assistente Andreia, vivendo na mesma aldeia que ela, que conhecia a vítima desde há cerca de 12 anos, que ela visitava a filha e que esta, por sua vez, visitava a mãe, que a mãe chegou a ir a Inglaterra visitar a outra filha, que todas as filhas, ficaram abaladas, devido às circunstâncias, que a Cláudia vai carregar para toda a vida, com a recordação de brutalidade que nunca tinha presenciado antes, sentindo-se todas revoltadas, que a Cláudia vivia com a mãe e agora vive com a irmã Andreia;
Zélia Pereira, esposa da testemunha Rui Brás, que prestou depoimento de forma coincidente com o daquele, referindo que a Andreia e a mãe se telefonavam, que a Cláudia era calma e agra vive revoltada;
Maria Brás, sogra da Andreia, que conhecia a vítima desde há cerca de 9 anos, em casa, de quem, agora, vive, também a Cláudia, com a irmã Andreia, que a vítima se dava bem com as filhas, que eram muito ligadas, que a Andreia agora está mais nervosa do que antes e que a Cláudia, está também, mais nervosa, agora do que antes, que acorda por vezes durante a noite sobressaltada e que muitas vezes foge para o cemitério, onde a mãe está sepultada;
quanto aos factos constantes da contestação:
nos depoimentos das testemunhas:
Joaquim Lopes, que na altura estava a trabalhar, há 1 mês para o arguido;
António Marques, que trabalhava na ocasião, desde há cerca de 6 meses para o arguido;
António Manique, que, também, trabalhava, na ocasião, desde há cerca de 6 meses para o arguido, como encarregado, todos relatando ser o arguido uma pessoa calma, de boas contas, honesto e bom colega de trabalho;
Américo Mateus, primo direito do arguido, que nunca ouviu dizer nada do arguido, sabendo que esteve em Angola;
Abel Afonso, que há cerca de 2 anos arranjou trabalho ao arguido que o fez, tendo-o cumprido, sem reclamação;
José Santos, casado com 1 prima do arguido, em casa de quem o arguido estava a trabalhar ao tempo dos factos, tendo referido que no dia a dia nunca se apercebeu de nenhuma alteração do comportamento do arguido, tendo ouvido dizer aos sogros que uma vez se atirou da cama abaixo, depois de ter vindo da guerra de Ultramar;
Otília Jesus, que foi companheira do arguido, durante cerca de 1 ano e meio, até ao ano de 2002, que era uma pessoa calma e que por vezes durante a noite acordava sobressaltado.
Baseou-se o Tribunal, ainda, na reportagem fotográfica de fls. 10 a 44, quer ao hábito externo da vítima, quer ao local envolvente, onde a mesma foi encontrada, quer aos instrumentos do crime, quer ao próprio arguido, com a roupa e calçado, que trazia, na ocasião, sendo bem visível o bolso interior do blusão, de onde as testemunhas Cláudia e António Esteves, referiram, ver o arguido retirar as facas, antes de dar início às agressões, ficha de urgência de fls. 49, relativamente às lesões sofridas pela Cláudia, auto de apreensão de fls. 50, relatório de autópsia de fls. 128 a 133, relatório do exame pericial, ao material apreendido, donde se conclui que a camisa do arguido, o blusão, as botas, a própria cara do arguido e ambas as facas, tinham sangue da vítima e o par de calças, tinha sangue de indivíduo do sexo feminino, que não da vítima e reportagem fotográfica aos objectos examinados de fls. 176 a 179, relatório de exame directo de fls. 244/5, à Cláudia, crc. de fls. 267, certidões dos assentos de nascimento de fls. 288, 290, 292 e 294, relatório do exame, de fls. 376/7, onde se conclui que o sangue encontrado nas calças do arguido, pertence à Cláudia e relatório do exame médico-legal de fls. 477 e ss.

Quanto aos factos não provados nenhum elemento de prova, em absoluto se produziu.

Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:
- Eventual existência dos vícios previstos nas al.s b. e c. do art.º 410., n.º 2 do Código de Processo Penal
- Integração jurídica dos factos e
- Eventual aplicação do instituto da atenuação especial da pena
- Medida da pena
Apreciando:
Eventual existência dos vícios previstos nas al.s b. e c. do art.º 410., n.º 2 do Código de Processo Penal

Diz-nos o art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Estes vícios apenas relevam se incidirem sobre matéria essencial para a decisão da causa pois que se não incidirem, pode o tribunal ad quem prescindir deles; no caso de serem imprescindíveis para a boa decisão da causa, há lugar, em princípio, a reenvio (art.º 426.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
Vejamos:
A alínea b. do n.º 2 refere-se a situações em que se “afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade ou na qualidade”, sendo que só releva a contradição insanável da fundamentação quando “de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” (Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 739).
Como se diz no acórdão do STJ de 2 de Outubro de 1997 “verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação quando se dão como provados factos contraditórios, quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto e quando existe incompatibilidade entre factos provados e a respectiva fundamentação probatória. E, além disso, quando a contradição se apresenta de tal modo no contexto da matéria de facto que não pode ser ultrapassada através do demais da decisão recorrida e das regras da experiência comum.”
No caso “sub judice” entende o recorrente que tendo sido dado como não provado "que, o arguido se tenha escondido na arrecadação, na sequência de desconfianças” está em contradição com os seguintes factos dados como provados:
O arguido resolveu, no dia 12 de Abril de 2004, cerca das 7 horas, esconder-se na arrecadação do restaurante "O Tostadinho", sito na Rua José da Cunha Taborda, nesta cidade e comarca do Fundão, o qual sua mulher se encontrava a explorar e onde permaneceu até às 20 horas, com o intuito de ouvir as conversas de B... com os clientes, a fim de tentar compreender o comportamento da mulher.
“Ao fim do dia resolveu confrontá-la com algumas das afirmações que ela proferiu, durante esse período de tempo
Não tem razão.
Com efeito, o que ficou provado foi que o arguido se escondeu na arrecadação a fim de compreender o comportamento da mulher para a confrontar posteriormente com o que pudesse te escutado e o que não se provou foi que essa sua atitude resultasse de desconfianças.
Parece contraditório mas não é.
“Desconfianças” tem o significado de suspeição, de dúvida, de falta de confiança, de receio de ser enganado e até de ciúme. Aliás, aquele vocábulo é comummente utilizado quando alguém suspeita se que está a ser traído pelo parceiro.
Ora da factualidade provada não resulta qualquer razão para concluirmos que o arguido tinha “desconfianças” da mulher. Antes resulta que queria compreender o seu comportamento, que é coisa bem diversa.
Repare-se que o tribunal a quo fundamentou a matéria de facto nesta parte explicando que o arguido dissera em julgamento que “a mulher andava diferente, que tinha ido ao hospital, uns tempos antes, nada mais lhe tendo dito sobre essa ida, que na véspera, estivera escondido, efectivamente na arrecadação, do estabelecimento, entre as 7 e as 20 horas, sensivelmente, para escutar o que a mulher dizia aos clientes, que a ouviu dizer mal de si, repetindo, ele esta frase, meia dúzia de vezes, e pedido para a concretizar, outras tantas, vezes, não o logrou fazer”.
Ressalta evidente que não havia qualquer base para terem sido dadas como provadas as “desconfianças”, tanto mais que o arguido apenas disse que a ouviu dizer mal de si (o que não significa suspeitas) e não explicou sequer o que a ouvira dizer.
Por tal razão e muito bem, foi dado como não provado o facto alegado como contraditório
*
Alega ainda que há contradição entre os factos dados como provados
Ao fim do dia resolveu confrontá-la com algumas das afirmações que ela proferiu, durante esse período de tempo.
Gerou-se uma discussão entre os dois, tendo a mesma abandonado o estabelecimento, quando ali se encontrava o, entretanto, chegado, fornecedor, Joaquim Manique, dizendo que ia pernoitar a casa de uma amiga.”
e os factos dados como não provados:
“Que, o arguido tenha questionado a vítima acerca das afirmações proferidas no dia anterior e que esta se tenha recusado a responder, tendo-se levantado e empurrado o arguido, ao mesmo tempo que dizia para ele se ir embora que ali não tinha nada
Mais uma vez, não se vislumbra contradição e neste caso é incompreensível a posição do arguido porquanto de uma simples leitura de ambos os factos resulta que o provado ocorreu ao fim do dia (12) e o que não ficou provado foi algo que alegadamente se teria passado no dia seguinte (13) de manhã.
*
Embora alegue contradição, refere a existência no acórdão de erro notório na apreciação da prova.
Vejamos:
Estamos perante o vício da al. c. “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos” (Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 740).
O erro notório consiste pois num desacerto do raciocínio na apreciação das provas que ressalta de imediato patenteado numa simples leitura da decisão recorrida uma vez que as provas anunciam claramente um sentido e a decisão recorrida conclui em sentido contrário.
De uma forma linear mas abrangente, escreve-se no acórdão do STJ de 12 de Junho de 1996, processo n.º 268/96:
“Em sede de erro notório na apreciação da prova, as regras de experiência comum só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a existência do aludido erro, já que a lei exige, para ser válido, enquanto motivo de anulação, que ele tenha veste de “notório”, isto é, que contra o que resulta de elementos que constem dos autos e cuja força probatória plena não haja sido infirmada ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.
É o que acontece, nomeadamente, quando por forma manifesta, e sem adequada justificação, se dá como não provada matéria constante de documento com força probatória plena sem que o mesmo tenha sido arguido de falso, ou quando se afirme como existente ou inexistente um facto, que seja do conhecimento público não se ter ou se ter produzido.
Fora destas hipóteses, porém, o erro notório na apreciação da prova só pode resultar do texto da própria decisão recorrida, em virtude de o conhecimento da prova oralmente produzida em audiência se encontrar subtraído, pela sua intrínseca natureza, a qualquer reapreciação pelo tribunal de recurso.
A prova produzida tem de ser apreciada na sua globalidade, não sendo lícito contestá-la enquanto tal, com base unicamente num dos seus meios, isolados do conjunto.
São totalmente irrelevantes as considerações que os recorrentes fazem no sentido de pretenderem discutir a prova feita em julgamento e de solicitarem a este Supremo Tribunal que modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder ao sentido do que tenha resultado do aludido julgamento.”
Em suma, o vício em causa apenas se verifica quando, usando um método racional e lógico de análise, se torna evidente para qualquer pessoa minimamente atenta que a conclusão a que chegou o tribunal recorrido é ostensivamente violadora das regras da experiência comum.
No caso “sub judice” entende o recorrente que não podia ser dado como não provado que “o arguido nunca tenha transportado no seu bolso duas facas de cozinha, nem nunca tenha tido o propósito de tirar a vida à sua mulher”.
Como ficou dito, o erro na apreciação da prova tem que ser notório e no caso em apreço estamos perante uma simples divergência de opinião (aliás, não fundamentada nem explicada) quanto à apreciação da prova e como é sabido, a apreciação feita pelo tribunal sobrepõe-se à de terceiros.
De qualquer maneira sempre diremos que do exame da fundamentação da matéria de facto (único meio de que este tribunal dispõe uma vez que não houve recurso da matéria de facto) resulta inequívoco que tais factos teriam que ser dados como não provados pois que seria essa a única solução ao ser usado um processo lógico e racional de análise.
Quer-nos no entanto parecer que o próprio recorrente se confundiu com a forma como os factos foram descritos na negativa. Aliás, perante a prova produzida e os factos dados como provados, nunca poderia ser dado como provado que o arguido nunca tenha transportado no seu bolso duas facas de cozinha e muito menos que nunca tenha tido o propósito de tirar a vida à sua mulher. Se o tivesse feito, especialmente no último caso, haveria o vício da al. b., do n.º 2.
Por fim diremos que é o próprio recorrente que baseia a sua alegação com fundamentos que genericamente a rejeitam.
Entende ainda o recorrente que há erro notório na apreciação da prova ao dar-se como provado que “o arguido respondeu-lhe que o que teria que ser feito, iria ser feito no dia seguinte ou fosse quando fosse”.
Mais uma vez confunde o que não pode ser confundido: o erro notório não se confunde com desacordo de opiniões.
Na situação em apreço o recorrente entende que não deveria ter sido dado crédito ao depoimento da testemunha Marina Cláudia. Não se percebe porquê, pois que nada resulta do texto recorrido nesse sentido e como explica o tribunal a quo, aquela estava ao lado da vítima, ambas sentadas na sua cama e ouviu o arguido fazer aquela ameaça através do telefone. Não há nada de estranho nesta situação pois que é muito natural que estando sentada ao lado da falecida tenha ouvido pelo menos uma parte do telefonema, tanto mais que certamente arguido não falava em surdina uma vez que os ânimos estariam exaltados.

Alega ainda o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada relativamente a um não melhor apuramento sobre as capacidades psíquicas do arguido.

A alínea a. do n.º 2 refere-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, ou seja, há insuficiência da matéria de facto provada “quando da actualidade vertida na decisão em recurso, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição” (Ac. do STJ de 97-05-08, Ac.s STJ V, 2, 200).
Como se diz em “Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 738, parafraseando o acórdão do STJ de 99/06/02, processo n.º 288/99, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do Código de Processo Penal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa. Os factos que ficaram por apurar têm, portanto, de ser factos que, num juízo de prognose, se admita virem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica da matéria de facto ou da medida da pena ou de ambas”.
Em suma, verifica-se este vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados.
A este respeito diremos muito simplesmente que o tribunal entendeu que não era necessário proceder a tal exame ou ouvir novamente o perito, deixando porém o caminho aberto para se tal se mostrasse entretanto oportuno, determinaria a sua realização.
O despacho transitou com todas as consequências.
Não viria a ser posteriormente ordenada a realização de novo exame o que nos leva a concluir que não houve razão para o fazer.
O que se compreende: já havia um exame nos autos onde o Sr. Perito conclui que “os testes psicológicos realizados não são conclusivos, não se podendo extrair deles quaisquer conclusões que possam elucidar melhor o acontecido. Assim sendo, penso que deve ser considerado imputável e responsável pelo acontecido, podendo eventualmente o síndrome pós-traumático de stress ser considerado como atenuante. Numa segunda visão e perante as fragilidades manifestas, poderá colocar-se um outro diagnóstico de ocultação/construção de uma história procurando eventuais benefícios secundários e menor responsabilização. E se assim for, tratar-se-ia de um quadro de simulação que elabora conscientemente continuando a ser responsável e imputável e penso, sem qualquer possível atenuante”.
Acresce que as testemunhas que conheciam o arguido, o Joaquim Lopes, o António Manique, o António Marques, o José Santos e a Otília Jesus, o descreveram como pessoa calma.
Não havia efectivamente qualquer razão para novo exame pericial.
Assim sendo, não assiste mais uma vez razão ao recorrente.

Em suma, improcedem todos os vícios alegados.

Integração jurídica dos factos


Alega o arguido que os factos que praticou integram um crime de homicídio e não de um homicídio qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea i. do Código Penal.
Afigura-se-nos que continua a não ter razão.
Com efeito, embora não sendo as circunstâncias qualificativas do n.º 2 do art.º 132.º do Código Penal de aplicação automática, as mesmas funcionarão se no caso concreto revelarem especial censurabilidade ou perversidade.
É o caso dos autos
Vejamos o caso concreto.
O arguido estava acusado do cometimento de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas g. e i. e veio a ser condenado apenas pela alínea i..
Dando como assente que os factos integram efectivamente um crime de homicídio, há que apurar se o mesmo é ou não qualificado
No que ao caso interessa, diz-nos aquela última disposição legal que
“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
(…)
i) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;
(…)”
Concordamos inteiramente com o acórdão recorrido quando nele se afirma que “que ao contrário do que defende a acusação pública, se não verifica qualquer situação susceptível de integrar a referida alínea g), não obstante o arguido ter utilizado 2 facas que trazia consigo, meios, ambos, perigosos e letais, mas não necessariamente, particularmente perigosos, ou que se traduzam na prática de um crime de perigo comum, dado estarmos perante facas, com utilização definida, não obstante serem 2, o que relevará, em termos de quantidade e não de qualidade do meio empregue.”
Na realidade uma faca embora seja um meio perigoso, mesmo letal, não encerra em si uma particular perigosidade. “Entende-se como meio particularmente perigoso todo aquele que, por forma superior à normal, tiver a potencialidade para, segundo a experiência comum, causar lesão corporal susceptível de pôr em risco, de forma significativa a integridade física ou a vida” (Código Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 69).
Segundo o Professor Jorge Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 37, “utilizar meio particularmente perigoso é (…) servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (…) Para além do que fica dito, deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes}; em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado — e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes — resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma — aqui, sim! —, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso”.
No que respeita ao crime de perigo comum, ele não se verifica uma vez que a conduta do arguido não integra nenhum dos crimes previstos nos art.ºs 272.º a 286.º do Código Penal, sendo certo que as facas que transportou não constituem arma proibida.
No acórdão recorrido entende-se que o arguido agiu com reflexão sobre o meio empregado e frieza de ânimo.
Ora, examinando-se os factos provados, tem de concluir-se que o arguido estava animado do propósito, antecipadamente formado e a sangue frio, de lhe tirar a vida.
Vejamos:
No dia anterior aos factos, no interior do restaurante, houve uma discussão entre o casal que levou a que a falecida, com medo de que o arguido concretizasse a ameaça de morte que lhe fizera, fosse pernoitar a casa de uma amiga
“O arguido telefonou-lhe nessa noite, pedindo-lhe, primeiro que regressasse a casa (…) mas a B... não acedeu (…) dizendo que ele a queria matar.
“O arguido respondeu-lhe que "o que teria que fazer iria ser feito, fosse no dia seguinte ou fosse quando fosse".
“Perto das 10 horas (do dia seguinte), o arguido munido de duas facas, que transportava no interior do bolso do seu casaco, e que havia trazido da sua cozinha, com o propósito de, utilizar as mesmas para tirar a vida à sua mulher, entrou na churrasqueira e sentou-se com ela a uma das mesas, junto do balcão, enquanto a filha estava no lava loiça.
“Depois de breve troca de palavras, o arguido retirou as facas do bolso e com elas, veio a atingir a B....
“De imediato a filha Cláudia começou a gritar por socorro, ao mesmo tempo que lhe atirava um cinzeiro, para o impedir de continuar, chegando mesmo a interpor-se entre o arguido e sua mãe.
“Enquanto isto, B... tentava a todo o custo libertar-se, sem qualquer possibilidade por o mesmo a segurar com uma das mãos, enquanto a outra, segurando a faca, a golpeava sucessivamente, em diversas partes do corpo, procurando atingi-la no pescoço.
“A vitima procurava defender-se, o que determinou o arrastamento e queda de algumas mesas e cadeiras do restaurante, acabando mesmo por se esconder debaixo de uma mesa. Apesar da presença de algumas pessoas e da filha da vítima, o arguido não abandonou o propósito de tirar a vida à sua mulher, continuando a desferir sucessivos golpes, o que fez, pelo menos por 11 vezes, procurando o pescoço, o peito e as costas, sob o pulmão.”
Temos assim que o propósito de matar já fora formulado no dia anterior (teria havido uma ameaça de tal ainda no interior do restaurante que foi reafirmada nessa noite através do telefone), que manteve esse propósito, que escolheu a forma como a iria matar munindo-se de duas facas (o que não é despiciendo visto que se alguma coisa corresse mal teria uma segunda), que procurou a vítima onde sabia que ela estava e que após uma breve troca de palavras com ela, a golpeou inúmeras vezes.
Se isto por si só já revela reflexão sobre os meios empregados e frieza de ânimo, esta última é ainda mais salientada pelo que ocorreu durante a agressão.
Com efeito, muito embora a vítima se debatesse energicamente dificultando a sua acção e procurasse escapar às agressões, o arguido conseguiu atingi-la três vezes na cabeça, duas no pescoço, cinco no tórax e uma no ombro, o que revela por um lado grande presença de espírito (o que explica que todos os golpes tenham atingido a vítima numa pequena e vital zona do corpo muito embora o mesmo estivesse em movimento a maior parte do tempo) — os restantes golpes são reveladores de um acto de defesa da falecida — e por outro, uma vontade inabalável de lhe tirar a vida.

Ora, a conduta do arguido traduz indubitavelmente, insensibilidade, indiferença pela vida humana, tenacidade, firmeza e irrevocabilidade da sua resolução criminosa, para além de reflexão sobre o meio com que iria concretizar os seus intentos.
Mostram-se assim verificados dois dos exemplos-padrão do art.º 132.º, n.º 2 do Código Penal.
Como atrás dissemos, para que o crime de homicídio seja qualificado não basta que se verifique um daqueles exemplos padrão. É necessário que seja possível fazer a partir delas um juízo de acrescida censurabilidade ou perversidade.
No caso dos autos é evidente a existência de tal acréscimo de censura.
Na verdade, não se vislumbra qualquer motivo que tivesse dado origem ao comportamento homicida do arguido, o que potencia enormemente o juízo de censurabilidade ou perversidade e, não de somenos importância, o acto foi praticada sobre a pessoa com quem havia casado menos de dois meses antes, o que ainda o potencia mais.
Não vemos como se pode deixar de considerar os factos de extrema gravidade, praticados com acentuado grau de culpa, com ausência de um mínimo de razão ou motivo, com frieza, altamente reprováveis e reveladores duma insensibilidade extrema
Tudo conjugado com a inconcebível violência com que o crime foi praticado, dúvidas não restam de que a conduta do arguido é reveladora de enorme perversidade e merecedora de um altíssimo juízo de censura e por isso mesma integra o crime previsto e punido pelo art.º 132.º do Código Penal.
Eventual aplicação do instituto da atenuação especial da pena

Entende o recorrente que deveria beneficiar do instituto da atenuação especial da pena porquanto ficou provado que sofria de stress pós traumático.
Mais uma vez não lhe assiste qualquer razão.
Diz-nos o art.º 72.º do Código Penal (Atenuação especial da pena)
1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob a influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
Como se lê em “As Consequências Jurídicas do Crime”, Figueiredo Dias, pág. 302, «quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena.»
Ora, não se vislumbra no caso em apreço qualquer circunstância anterior, contemporâneo ou posterior ao crime que diminua acentuadamente a ilicitude dos factos, a culpa do arguido ou a necessidade da pena.
É certo que ficou provado que sofre daquele síndroma, mas não é menos certo que não ficou provada qualquer relação entre esse estado patogénico e o crime que praticou, para além de que não há qualquer prova nos autos de que haja alguma manifestação exterior do mesmo (ficou provado que “no meio profissional e social onde estava inserido era tido como pessoa pacífica e calma, bem comportado e honesto”) e de na perícia que lhe foi feita não lhe ter sido detectada conexão com o crime (havendo até suspeitas de que conscientemente procuraria tirar benefícios ilegítimos de tal facto).
Assim sendo, também nesta parte decai a pretensão do recorrente.
Medida da pena

O arguido foi condenado em vinte e quatro anos de prisão.
Vejamos se neste ponto o acórdão merece censura.
A pena a aplicar ao arguido será a resultante da concretização dos critérios do artº 71º do Código Penal, ou seja, num primeiro momento apura-se a moldura abstracta da pena e num segundo momento a medida concreta da mesma.
Assim, no caso "sub judice" e dentro da moldura penal abstracta de 12 até 25 anos de prisão, há que atender à culpa do agente e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuserem a favor ou contra o arguido.
Nesta conformidade, há que ter em consideração que a culpa (enquanto censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa e avaliada na dupla vertente de culpa pelo facto criminoso e de culpa pela personalidade) para além de constituir o suporte axiológico-normativo da pena, estabelece o limite máximo da pena concreta dado que sem ela não há pena e que esta não pode ultrapassar a sua medida (retribuição justa).
Por outro lado e ainda numa primeira linha, relevam as necessidades de prevenção (com um fim preventivo geral, ligado à contenção da criminalidade e defesa da sociedade — e cuja justificação assenta na ideia de sociedade considerada como o sujeito activo que sente e padece o conflito e que viu violado o seu sentimento de segurança com a violação da norma, tendo, portanto, direito a participar e ser levada em conta na solução do conflito — e com um fim preventivo especial, ligado à reinserção social do agente).
Assim e em termos de prevenção geral, a medida da pena é dada pela necessidade de tutela dos bens jurídicos concretos pelo que o limite inferior da mesma resultará de considerações ligadas à prevenção geral positiva ou reintegração, contraposta à prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente.
Para além de constituir um elemento dissuasor da prática de novos crimes por parte de terceiros, a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas.
No que toca à prevenção especial há a ponderar a vertente necessidade de ressocialização do agente e a vertente necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir (devendo ser especialmente considerado um factor que também toca a culpa: a susceptibilidade de o agente ser influenciado pela pena).
Ponderados estes limites, deve ainda o tribunal atender e a quaisquer outras circunstâncias que não fazendo parte do tipo (para que não haja violação do princípio ne bis in idem), deponham contra ou a favor do agente.
Assim e para além do mais (como ensina Jorge Figueiredo Dias in "Direito Penal Português – as Consequências Jurídicas do Crime", pág. 245, § 335 v.g., factores relativos à própria vítima — personalidade, concorrência de culpas, etc. — e/ou relacionados com a necessidade de pena — decurso do tempo), deverá ser sopesado:
- O grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências e o grau de violação dos deveres impostos ao agente
- A intensidade do dolo ou da negligência
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Assim e concretizando:
A culpa é de grau é elevadíssimo.
As exigências de prevenção geral são médias e as de prevenção especial mostram-se normais.
O grau de ilicitude é elevadíssimo, tal como a intensidade do dolo.
Pondera-se também a situação social do arguido e que não tem antecedentes criminais.
Pondera-se ainda que não se provou arrependimento.
Atentas todas estas circunstâncias, mostra-se adequado condenar o arguido na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.
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Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso do arguido, alterando a medida da pena aplicada no acórdão sob recurso.
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Custas pelo arguido pelo decaimento parcial, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
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Coimbra,