Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/04.8PBVNO.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
REABERTURA
NULIDADE
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º, 5 CRP,119º, E), 262º, 1, 279º, 2, 286º, 1 CPP
Sumário: 1-Sendo do Ministério Público a competência para decidir sobre o pedido de reabertura do inquérito, o juiz, quando profere decisão sobre o requerimento, viola as regras da competência para tal.
2- O despacho judicial proferido enferma de uma nulidade constante do disposto no artigo 119.º, al. e), do C.P.P., a conhecer oficiosamente.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:
1. Nos presentes Autos de Inquérito n.º 131/04.8PBVNO, Serviços do Ministério Público da Comarca de Ourém, em que Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A. participou criminalmente contra P... –, Ld.ª, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu, a fls. 98/103, em 31/8/2006, despacho de arquivamento, por não conterem os autos indícios suficientes da prática dos denunciados crimes de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 2, por remissão do artigo 391.º, do C.P.C., e de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, do Código Penal.
2. Inconformada com essa decisão, Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A., assistente nos autos, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 1, al. b), do C.P.P., em 17/10/2006, veio requerer a abertura de instrução contra M… e V…, respectivamente, sócio gerente e responsável pelos postos de abastecimento da P... –, S.A., defendendo que, após a realização de debate instrutório, deveria ser proferido despacho de pronúncia dos arguidos pela prática dos factos que lhes são imputados no dito requerimento de abertura de instrução e acima referidos.
3. Em 23/10/2007, a fls. 728/744, foi proferida decisão instrutória, na qual os arguidos M… e V… não foram pronunciados.
4. Na sequência, em 13/11/2007, Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A. veio interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, defendendo a revogação parcial daquela decisão e substituição da mesma por acórdão que determinasse a pronúncia dos arguidos pela prática do crime de abuso de confiança qualificado.
5. Em 10/12/2007, o Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.
6. Em 13/12/2007, os arguidos V… e M… apresentaram respostas, nas quais consideraram que “deve o presente recurso ser rejeitado por inadmissível, por enquadrável no artigo 400.º, n.º 1, al. g), do CPP, ou em alternativa, dever-se-á manter na íntegra a douta decisão de não pronúncia.”
7. Em 31/1/2008, já nesta Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
8. Em 25/2/2008, o Exmo. Senhor Desembargador Fernando Ventura, a fls. 844/861, proferiu Decisão Sumária, em que rejeitou o recurso, por manifestamente improcedente (artigo 420.º, n.º 1, do CPP).
9. Os autos baixaram, em 31/3/2008, ao Tribunal Judicial de Ourém, 2.º Juízo, sendo certo que, em 7/7/2008, foi neles aposto visto em correição.
10. Em 24/4/2009, em requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Procurador Adjunto, do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, 2.º Juízo, Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A., veio requerer, nos termos do disposto no artigo 279.º, do CPP, a reabertura do inquérito, relativamente ao crime de abuso de confiança (fls. 895/916).
11. Em 28/4/2009, o Meritíssimo Juiz titular do processo proferiu o seguinte despacho:
Ao M.P., antes de mais.
12. Em 29/4/2009, a fls. 918, o Ministério Público assumiu a seguinte posição:
Fls. 895 a 916: entendemos que a pretensão da requerente Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A., apenas poderia ser satisfeita, considerando o estado do processo, através da extracção de uma certidão integral de todo o processado, a qual seria depois remetida aos serviços do Ministério público junto deste Tribunal e autuada como novo inquérito.
O fundamento para tal actuação, de acordo com o disposto no artigo 279.º, do CPP, seria o surgimento de novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento.
Ora, considerando o alegado pela requerente e os documentos juntos, entendemos que em nenhum ponto foram postos em causa os fundamentos invocados no despacho que determinou o arquivamento dos autos.
Alega e conclui a requerente que “…não é razoável conceder que a sociedade P..., Ld.ª, em apenas cerca de 12 horas (…) tenha conseguido vender 9812 litros (…)”. No entanto, não existe nos autos prova de que tal não tenha sucedido.
Acresce que, em sede de autoria, e a verificar-se o crime, persiste o desconhecimento de qual dos arguidos é o seu autor.
Pelo exposto, entendemos dever o ora requerido ser indeferido.
13. Em 4/5/2009, o Meritíssimo Juiz titular do processo, a fls. 919, proferiu o seguinte despacho, ora em crise:
Requerimento de fls. 895 e seguintes: Como parece evidente da leitura do preceito legal convocado pela requerente, leia-se, o artigo 279.º, do CPP, resulta, desde logo, a impossibilidade legal do deferimento do requerido. Com efeito, os presentes autos já não se encontram na fase de inquérito, antes, por acção da ora requerente, tiveram a fase de instrução, já finda, com submissão do mérito dos autos a apreciação judicial com o desfecho que os autos espelham. Donde, não pode ser atendido o ora requerido, manifestamente, que assim vai indeferido.
Notifique.
14. Inconformada com essa decisão, em 29/5/2009, veio Petróleos de Portugal – Petrogal, S.A, interpor recurso da mesma, defendendo a revogação do despacho e sua substituição por outro que aceite o requerimento de reabertura de inquérito, porque legalmente admissível, e determine a sua remessa ao Digno Magistrado do Ministério Público competente, seguindo-se ulteriores termos até final, extraindo da sua Motivação as seguintes Conclusões:
1. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 279.º do CPP, “Esgotado o prazo a que se refere o artigo anterior, o inquérito só pode ser reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento”.
2. Nenhuma razão assiste ao Mmo. Juiz do Tribunal a quo, na medida em que a decisão de não pronúncia fez caso julgado formal apenas em relação aos indícios até aí recolhidos no âmbito dos presentes autos, mas não em relação a novos elementos de prova que tenham surgido e que possam invalidar os seus fundamentos, que não foram objecto de apreciação judicial (neste sentido, veja-se, a título meramente exemplificativo, o douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 07P621, e disponível em www.dgsi.pt).
3. Assim, mesmo no caso de despacho de não pronúncia final (com o sentido de despacho que determina o arquivamento do processo), nada impede que o processo arquivado possa ser reaberto se surgirem novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos daquele arquivamento, nos termos prescritos pelos artigos 277.º e 279.º, do CPP, para a reabertura do inquérito arquivado pelo M.P. (cfr. douto acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 06P2798, e disponível em www.dgsi.pt).
4. Por outro lado, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo não tem legitimidade para decidir sobre a (in)admissibilidade legal do requerimento de reabertura do inquérito, devendo o mesmo limitar-se a ordenar a apresentação do processo ao Digno Magistrado do Ministério Público, para que este se pronuncie sobre o requerido, já que é a este que, como titular da acção penal (cfr. artigos 263.º e 267.º, ambos do CPP), compete decidir sobre o pedido de reabertura do processo, ainda que arquivado após instrução.
15. Em 2/7/2009, A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e apresentando as seguintes Conclusões:
1. A pretensão da requerente é possível através da extracção de certidão de todo o processado e registo da mesma como novo inquérito.
2. O fundamento para tal actuação de acordo com o disposto no artigo 279.º, do CPP, seria o surgimento de novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados nos autos para o seu arquivamento, situação que entendemos não se verificar.
3. Entendemos dever manter-se o indeferimento do requerido pela assistente quanto à reabertura do inquérito, mas pelos fundamentos invocados supra e não pelos fundamentos invocados no douto despacho de fls. 919, conforme posição anteriormente assumida nos autos a fls. 918.
16. O recurso foi admitido, por despacho de 16/7/2009.
17. Em 15/9/2009, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que acompanhou o Ministério Público na 1ª instância, defendendo, assim, a improcedência do recurso.
18. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
19. Colhidos os vistos legais, efectuada conferência, cumpre apreciar e decidir.
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B - Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a apreciar são as seguintes:
- saber se o requerimento da assistente para reabertura do inquérito é possível, mesmo no caso de despacho de não pronúncia final (com o sentido de despacho que determina o arquivamento do processo).
- saber se o Mmo. Juiz do Tribunal a quo tem legitimidade para decidir sobre a (in)admissibilidade legal do requerimento de reabertura de inquérito.
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Como acima ficou descrito, a recorrente veio, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, do C.P.P., solicitar a reabertura do inquérito, através de requerimento dirigido ao Exmo. Senhor Procurador Adjunto (fls. 895).
E bem andou, na medida em que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, de acordo com o disposto no artigo 263.º, n.º 1, do C.P.P.
Como resulta da estrutura acusatória da nossa lei processual criminal, com consagração constitucional (artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P.), o Ministério Público é livre, na esfera legal e estatutária em que se move, de levar a cabo, por si mesmo ou pelos órgãos de polícia criminal que actuem sob a sua alçada, as diligências que entender por convenientes, tendo em vista a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (artigos 53.º e 267.º, ambos do C.P.P.).
Acontece que a norma invocada pela recorrente no seu recurso não impossibilita, ainda que tenha sido proferido despacho de arquivamento na fase de instrução ou de não pronúncia, a reabertura da fase de inquérito respeitante ao mesmo processo. Forçoso é que tenham surgido novos elementos de prova ver, neste sentido, para além dos acórdãos mencionados pelo recorrente, o Acórdão do TRL, de 14/11/2007, processo n.º 2747.3, 3º Secção, no qual se perfilha o entendimento de que, nos termos do artigo 279.º, do C.P.P., pode ser reaberto o inquérito, apesar do trânsito em julgado do despacho de não pronúncia.
Não poderia ser de outra maneira. Seria bizarro, até por uma questão de economia processual, obrigar um ofendido, perante novos elementos de prova, tivesse que apresentar nova queixa e originasse, assim, a abertura de um novo processo, ou que houvesse a necessidade de extrair certidão de todo o processado para o registar como novo inquérito.
Na verdade, a partir do momento em que o inquérito visa “…investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” (artigo 262.º, n.º 1, do C.P.P.), e que a instrução, de carácter facultativo, visa “…a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (artigo 286.º, n.º 1, do C.P.P.), necessário é concluir que a dita segunda fase processual não assume a natureza de investigação criminal, pelo que não poderia impedir a fase que a antecede daquela sua função, desde que apareçam novos elementos probatórios, a apurar.
Seria impossível de aceitar, em sede de realização da justiça, a recusa em permitir a reabertura do inquérito no mesmo processo, tendo surgido novos elementos de prova que pudessem contrariar os invocados nos despacho de arquivamento ou de não pronúncia.
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Aqui chegados, importa, então, fazer a seguinte pergunta:
- A quem compete apreciar o pedido de reabertura de inquérito?
Já acima vimos que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público.
Sobre esta questão, e por isso, seguimos o entendimento expresso no Acórdão do TRL, de 22/3/2001, C.J., XXVI, tomo 2, pág. 133, segundo o qual tendo sido requerida a abertura de instrução, após o Ministério Público, nos termos do artigo 277.º, n.º 1, do C.P.P., ter determinado o arquivamento dos autos, e tendo tal requerimento sido indeferido pelo juiz de instrução, a apreciação do requerimento posteriormente apresentado para reabertura do inquérito, nos termos do artigo 279.º, não é da competência daquele Magistrado, mas sim do Ministério Público respectivo.”.
No caso em apreço, a recorrente dirigiu, como não poderia deixar de ser, o seu requerimento ao Ministério Público.
Aliás, o n.º 2, do artigo 279.º, do C.P.P., consagra quedo despacho do Ministério Público que deferir ou recusar a reabertura do inquérito há reclamação para o superior hierárquico imediato.”.
Simplesmente, o despacho que originou o presente recurso foi proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, após o Ministério Público se ter pronunciado sobre o assunto (fls. 918 e 919).
Sendo do Ministério Público a competência para decidir sobre o pedido de reabertura do inquérito, o Tribunal a quo, ao proferir decisão sobre o requerimento em causa, violou as regras da competência para tal.
Daí que o despacho recorrido enferme de uma nulidade constante do disposto no artigo 119.º, al. e), do C.P.P., a conhecer oficiosamente, por ter violado as regras de competência do Tribunal, ao extravasá-las, decidindo sobre o pedido de abertura do inquérito que, de resto, não lhe estava endereçado – ver, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7/1/2009, C.J., XXXIV, tomo I, pág. 150.
É o que se declara.
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C - Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nulo o despacho recorrido, determinando-se que os autos sejam remetidos ao Magistrado do Ministério Público respectivo, para se pronunciar, nos termos do artigo 279.º, n.º 2, do C.P.P., sobre o requerimento de reabertura do inquérito.
Sem custas.
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(Texto processado e integralmente revisto pelo relator)


Coimbra, 25 de Novembro de 2009,

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(José Eduardo Martins)

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(Isabel Valongo)