Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
139/16.0T9ACB-J.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: CESSAÇÃO DA CONEXÃO;
DESAPENSAÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J I CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 29.º E 30.º DO CPP
Sumário:
I – Operada a conexão e “organizado um único processo” também se admite o caminho inverso, isto é, que em determinadas situações, verificados certos pressupostos, ocorra a separação de processos.
II – Um dos princípios enformadores do nosso processo penal, é o da sua estrutura acusatória.
III – Considerando que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, e que a decisão sobre a verificação de conexão em inquérito, quer em ordem à apensação ou investigação conjunta, quer tendo em vista a separação de processos, não consta das restrições dos art.ºs 268.º e 269.º do CPP, vem-se entendendo que na fase de inquérito pertence ao Ministério Público a competência para decidir da apensação e da separação de processos.
IV – A ponderação a fazer para a desapensação de processos há-de ocorrer tendo em consideração apenas os parâmetros do art.º 30.º do CPP, isto porquanto somente tal regime tem virtualidade para permitir o controlo judicial sobre a existência de desrespeito a qualquer princípio ou norma legal que fosse imperioso acatar-se, e possibilita a ponderação sobre a emergência, em maior dano do que benefício para todos, designadamente para os arguidos.
V – O caso concreto não comporta fundamento que determine a pretendida separação de processos. Por forma alguma se comprova existir na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. Relatório.
1.1. Tramitado competente inquérito, o Ministério Público junto do DIAP – 1.ª Secção de Leiria deduziu pertinente acusação (conjunta) contra 24 arguidos, entre eles sobressaindo, ao que ora releva, os arguidos A…; B… e C…, todos entretanto já melhor identificados, mostrando-se ademais o primeiro e último preventivamente detidos à ordem dos presentes autos.
No subsequente desenvolvimento processual, de entre tais 24 arguidos, apenas um deles – D… – requereu a abertura de instrução, o que foi judicialmente deferido.
Já no âmbito desta fase facultativa, os indicados arguidos A…; B… e C…, nos termos expressos e ora certificadas de fls. 47/52 (correspondentes a fls. 5889/5895 dos autos de instrução), requereram que fosse declarada a incompetência, por conexão, para a apreciação, em conjunto, dos crimes imputados aos 24 arguidos, procedendo-se, em consequência, à correspondente separação de processos em distintos autos, de acordo com a segmentação (que alegam ter sido feita de forma quadripartida) constante da acusação.
1.2. O Ministério Público pronunciou-se sobre tal requerimento (fls. 55/58, certificação de fls. 5961/5964 dos autos principais), opondo da inverificação do seu fundamento.
1.3. Idêntica foi a posição assumida pela M.ma JIC que na decisão instrutória adrede proferida, ponderando tal pretensão, considerou (sic):
«II – Saneamento:
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
**
A fls. 5889, vieram os arguidos A…, B… e C…, não requerentes da instrução, alegar que a acusação elegeu quatro grupos, identificando por referência a cada um dos grupos os arguidos envolvidos e descrevendo a factualidade imputada aos mesmos. De acordo com a descrição dos factos constantes na acusação a actuação de cada um dos grupos é independente e autónoma em relação à dos restantes, não existindo entre os grupos qualquer factor de conexão.
Face ao exposto, entendem os arguidos que não se verifica o condicionalismo tipificado no artigo 24.º, n.º 1 do CPP.
Assim sendo, requerem os arguidos que seja declarada a incompetência, por conexão, para a apreciação conjunta dos crimes imputados aos arguidos identificados na acusação e se proceda à separação de processos de acordo com a segmentação realizada na acusação.
O Ministério Público tomou já posição nos autos tendo promovido que:
“ (…) Tendo em atenção a estrutura acusatória do nosso processo penal e considerando que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público e que a decisão sobre a verificação de conexão em inquérito, quer em ordem à apensação ou investigação conjunta, quer tendo em vista a separação de processos, cabe ao Magistrado titular do processo, certo é que, no caso em análise, entendeu aquele ser conveniente para a linha de investigação a conexão de processos. Concluiu pois pela investigação em conjunto da prática do crime de tráfico de estupefacientes, cometido por vários agentes, numa zona geográfica limitada ao centro do país (e à Comarca de Leiria), realçando-se a zona da (…), com maior incidência nos anos de 2016 e 2017.
Ora, tendo ocorrido a referida conexão na fase de inquérito, sem desrespeito por qualquer princípio ou norma legal, julgo que a separação de processos a efectuar neste momento resulta em maior dano do que benefício para todos, designadamente para os arguidos.
Aliás, a referida unidade processual não colidiu nem colide com qualquer direito de defesa dos arguidos e respeita em pleno o direito ao contraditório.
Acresce que, mostrando-se já designada a data para a realização de debate instrutório, mostra-se não só inconveniente à luz dos princípios de celeridade e economia processual, como prejudicial aos seus intervenientes, a multiplicação de processos no momento presente, o que implica além do mais que posteriormente algumas testemunhas venham por diversas vezes a juízo para repetirem a exposição de factos.
São as próprias regras da razoabilidade e do princípio da lealdade processual consagrado na CRP e ainda os princípios supramencionados que apontam para a manutenção da conexão, sendo que não se mostra presente nenhuma das situações retratadas no artigo 30.º do CPP.
Por fim, não posso deixar de realçar que os arguidos não vieram apresentar os contornos precisos quanto à concretização da requerida separação de processos, ficando por perceber em que moldes deveria a mesma ser efectuada.
Nestes termos, salvo melhor opinião, entendo que não deverá ser declarada a incompetência, por conexão, mantendo-se a apreciação em conjunto dos crimes imputados aos arguidos.”
Cumpre pois apreciar e decidir.
Nos presentes autos a instrução foi apenas requerida pelo arguido D….
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Ou seja, impõe-se nesta fase que o juiz de instrução aprecie dos indícios em ordem a proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia relativamente ao arguido que requereu a instrução.
Neste momento os arguidos A…, B… e C…, vieram colocar em causa o entendimento seguido pelo Ministério Público e que levou à investigação conjunta, nestes autos, da actividade desenvolvida pelos arguidos, entendendo que não se verificam quaisquer factores justificativos de conexão, requerendo que se proceda à separação de processos.
O inquérito é da competência do Ministério Público (art.º 263.º do CPP), a quem cabe exclusivamente a sua direcção, praticando como tal os actos e assegurando os meios de prova necessários “que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” (art.º 262.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal).
Assim e neste momento ao Juiz de Instrução apenas se impõe apreciar se existe fundamento para determinar a separação de processos ao abrigo do disposto no artigo 30.º do Código de Processo Penal.
A este respeito pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.06.2013, proferido no processo n.º 1244/12.8TBPRT-A.P1, Relator ANTÓNIO GAMA, disponível em www.dgsi.pt, o seguinte.
I. A “regra” de que a cada crime corresponde um processo, para o qual é competente determinado tribunal, em resultado da aplicação das regras de competência material, funcional e territorial, não é uma regra legal expressa em matéria de competência, mas apenas uma decorrência lógica da finalidade e âmbito do inquérito, art.º 262.º do Código de Processo Penal, das regras de competência material, funcional e territorial, resultando também de uma leitura a contrario do art.º 29.º do Código de Processo Penal, inserido sistematicamente na competência por conexão.
II. Tendo em vista objectivos de harmonia, unidade e coerência de processamento, celeridade e economia processual, bem como prevenir a contradição de julgados, em certas situações previstas nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, a lei admite restrições ao funcionamento das regras gerais de competência material, funcional e territorial, permitindo a organização de um único processo para uma pluralidade de crimes, exigindo no entanto, que entre eles exista uma ligação (conexão) que torne conveniente, para a melhor realização da justiça, que todos sejam apreciados conjuntamente.
III. A conexão pode operar na fase de inquérito, instrução ou julgamento, desde que os processos se encontrem simultaneamente na mesma fase.
IV. Operada a conexão e “organizado um único processo” também se admite, o caminho inverso, que em determinadas situações, verificados certos pressupostos, tenha lugar a separação de processos.
V. Tendo em atenção a estrutura acusatória do processo penal, considerando que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, e que a decisão sobre a verificação de conexão em inquérito, quer em ordem à apensação ou investigação conjunta, quer tendo em vista a separação de processos, não consta das restrições dos art.ºs 268.º e 269.º do CPP, tem-se entendido que na fase de inquérito pertence ao Ministério Público a competência para decidir da apensação e da separação de processos, pese opiniões em contrário.
VI. Permitindo a lei a aplicação do regime da conexão à fase de inquérito, art.º 264.º, n.º 5, não soluciona de modo expresso o caso de, verificando-se os pressupostos para a “organização de um só inquérito” durante a fase da investigação, o mesmo já não se verificar aquando do encerramento do inquérito; nem diz se a opção do Ministério Público - seja ela qual for, de acordo com a lei ou em sua violação - pode ser sindicada, e em que termos, pelo JIC ou pelo juiz do julgamento aquando do despacho do art.º 311.º do Código de Processo Penal, ou mesmo posteriormente.
VII. Verificando a conexão na fase do inquérito, e tendo esta deixado de se verificar antes do seu encerramento, isto é, antes de ser proferida acusação, não se justifica a prorrogação de competência nos moldes pensados no art.º 31.º do Código de Processo Penal para o julgamento.
VII. Nestas circunstâncias, não há obstáculo legal, bem pelo contrário, a que em instrução o JIC e, na fase de julgamento o juiz, oficiosamente ou a requerimento, apense ou separe os processos (in) verificados os apertados pressupostos legais, nomeadamente art.ºs 24.º, 30.º, 119.º al. e) e 123.º do Código de Processo Penal.”
Ora nesta fase impõe-se apreciar se existe um motivo ponderoso e atendível, como seja o não prolongamento da prisão preventiva e que represente grave risco e violação de direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP e que justifique a separação e processos.
O artigo 30.º do Código de Processo Penal dispõe nos seguintes termos:
Separação dos processos
“1. Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou,
d) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
2. A requerimento de algum ou alguns dos arguidos, o tribunal pode ainda tomar a providência referida no número anterior quando outro ou outros dos arguidos tiverem requerido a intervenção do júri.
3. O requerimento referido na primeira parte do número anterior tem lugar nos oito dias posteriores à notificação do despacho que tiver admitido a intervenção do júri.”
Analisando o caso concreto não se afigura que neste momento se verifique qualquer situação subsumível ao disposto no artigo 30.º, n.º 1, als. a) a c) do Código de Processo Penal.
A fase de instrução decorreu com celeridade, procedeu-se à realização de debate instrutório e dentro do prazo legal será proferida decisão instrutória.
Apenas um arguido requereu a abertura de instrução, sendo que relativamente a este e caso venha a ser interposto recurso relativamente à decisão instrutória, o tribunal poderá ponderar separar o processo, se a situação em causa o justificar, nomeadamente em ordem a evitar o prolongamento da prisão preventiva a que se encontram sujeitos alguns dos arguidos.
Caso tal não se venha a verificar o processo seguirá para a fase de julgamento.
Face ao exposto, neste momento não existe qualquer motivo justificativo da separação de processos, razão pela qual se indefere o requerido pelos arguidos.»
1.4. Já depois de proferida decisão instrutória (a 20 de Março pretérito), e com data de 23 do mesmo mês, os arguidos A…, B… e C… questionaram da prematuridade da aludida decisão da M.ma JIC, através da “exposição” que é fls. 106/107 do presente recurso (certificando fls. 6231/6232 dos autos de instrução).
Ponderando esta exposição, despachou a M.ma JIC (fls. 6233, ora certificadas a fls. 108):
«Fls. 6231.
O Tribunal já tomou posição sobre a questão suscitada.
No entanto cabe desde já salientar que aos arguidos, não requerentes da instrução, foi dado conhecimento, em sede de debate instrutório, da posição assumida nos autos pelo M.P. relativamente ao requerimento apresentado pelos mesmos e no qual suscitavam a questão de separação de processos.
Tal situação não implicava que aos arguidos fosse concedido qualquer prazo para contraditarem os argumentos aduzidos pelo M.P. no requerimento apresentado e no qual tomou posição relativamente às questões suscitadas pelos arguidos.
Assim não se entende a argumentação apresentada pelos arguidos, sublinhando-se apenas que os presentes autos têm natureza urgente e como tal os prazos em curso correm também no período das férias judiciais.
Pelo exposto não foi proferida qualquer decisão instrutória “prematura”.»
1.5. Discordando do assim decidido, e clamando por decisão que, ao invés, considere não verificados os pressupostos da conexão, no momento em que foi deduzida a acusação dos presentes autos e, consequentemente, determine a separação do processo em 4 diferentes processos, de acordo com a segmentação realizada na acusação, recorrem os arguidos A…, B… e C…, extraindo da motivação com que minutaram o dissídio, a seguinte ordem de conclusões (transcrição):
«1. O presente recurso tem por objeto matéria de direito, justaposta à não verificação dos pressupostos da competência por conexão.
2. Os arguidos, ora recorrentes, apresentaram um requerimento, na esfera do qual alegaram e suscitaram o seguinte:
a) - a acusação, de forma acertada, elegeu 4 núcleos de atuação, a englobar os arguidos, e descreveu a correlativa facticidade;
b) - a esses 4 grupos correspondem universos factuais distintos, constituídos por elementos objetivos e subjetivos próprios e absolutamente independentes;
c) - entre os crimes atribuídos a cada grupo de arguidos não intercede nenhuma conexão - isso significa que tais crimes apresentam uma inteira autonomia, decorrente de ações, naturalísticas, perfeitamente independentes e sem justaposição ou imbricação alguma;
d) - admite-se, teoreticamente, que o Ministério Público possa ter excogitado, num impulso inicial, o crime de associação criminosa entre todos os arguidos; contudo, a intercorrência processual excluiu, em absoluto, a tipicidade correspondente e, no consectário, não foi deduzida acusação nesse segmento;
e) - isso posto, conclui-se que a falta de suporte legal para a subsistência de um só processo, a abranger todos os arguidos, ocorria no momento em que foi deduzida a acusação dos presentes autos, e o Ministério Público tinha absoluta consciência disso, como desponta da metodologia perfilhada pelo tocante à diegese factual - efetivamente, os quatro cernes da acusação corporificam condutas totalmente apartadas entre si e sem nenhuma correlação; e
f) - em vista das anteditos postulados, não se verifica o condicionalismo tipificado no artigo 24.°, n.º 1, do Código de Processo Penal - mostra-se, assim, errada a persistência da conexão operada pelo Ministério Público e, por tal motivo, inexiste fundamento legal (nem razões de economia processual, adite-se) para a manutenção de um só processo para os crimes atribuídos, nos presentes autos, aos 4 grupos de arguidos.
3. Nos termos sobreditos, os arguidos requereram: a declaração de incompetência, por conexão, para a apreciação, em conjunto, dos crimes atribuídos aos arguidos identificados na acusação; e, na subsequência, a pertinente separação do processo em diferentes processos, de acordo com a segmentação realizada na acusação.
4. Aberta vista, o Ministério Público, no seu Parecer, entendeu que se deve manter a apreciação em conjunto dos crimes imputados aos arguidos e, por isso, deve ser indeferido o requerido.
5. Por despacho de 20/03/2018, a M.ma Juíza de Instrução indeferiu o requerido pelos arguidos, com o fundamento de que não existe, neste momento, qualquer motivo justificativo da separação de processos.
6. Porém, os arguidos discordam, na totalidade, da referida decisão, porquanto subsiste a inteira validade das excogitações efetuadas no requerimento em cuja esfera invocaram a exceção de incompetência.
7. Relativamente ao citado despacho de 20/03/2018, os arguidos aceitam as
considerações teórico-jurídicas tecidas pela M.ma Juíza, que se estribam no teor do Acórdão da Relação do Porto de 21/06/2013, de que foi relator o Juiz-Desembargador António Gama.
8. A indigitada decisão acaba por admitir, implicitamente, a não verificação dos pressupostos da conexão - para o efeito, basta atentar que, no correspondente arrazoado, jamais foi feita a sotoposição/subsunção dos factos a qualquer das alíneas do artigo 24.º, n.º 1, do CPP.
9. De facto, não há elementos de conexão entre os 4 grupos, porquanto cada um deles tem um substrato inteiramente autónomo.
10. Desta sorte, o Ministério Público, no momento processual pertinente, id est, em momento anterior à acusação, perante o afastamento de uma associação criminosa, devia ter-se decidido, em resultado da aplicação do princípio-regra sobre competência, pela criação de 4 processos autónomos pelo tocante a cada série de factos e arguidos.
11. A singularidade de os 4 núcleos de atuação terem sido processados de forma conjunta no inquérito, não determinava, naturalmente, que a conexão entre eles subsistisse no momento da dedução da acusação e nas fases posteriores da instrução e do julgamento. Ora, como tal ligação não intercedia definitivamente, a não separação dos processos consolidou uma violação/desconsideração das regras de conexão - que configura uma irregularidade, no que respeita à competência do Ministério Público, mas que consubstancia uma nulidade insanável, nos termos do estabelecido no artigo 119.º, alínea e), do CPP, no que afeta à competência do tribunal.
12. Convém também aditar que “a rigorosa aplicação das regras de conexão [...] é essencial para evitar a sobreposição e acumulação, que podem originar processos muito complexos na gestão e decisão (em “jargão”, os «mega processos») nos quais, em rigor, em alguns casos, podem não ter sido respeitados os critérios de determinação da competência por conexão. Sendo regras objectivas de competência, os critérios de conexão não são discricionários nem manipuláveis pela (aparente) conveniência operativa.” (ver Código Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2014, pág. 97, e, ainda, o Acórdão da Relação do Porto de 08/03/2017, de que foi relatora a Juíza-Desembargadora Lígia Figueiredo, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.)
13. De outro lado, não é ocioso clarificar que a separação de processos a que se aludiu no requerimento inicial não foi perspetivada em termos dogmáticos/técnicos, por aplicação do artigo 30.º do CPP, mas sim como corolário da não verificação dos elementos de conexão.
14. Por derradeiro, compete ressair o seguinte:
a) - não se divisa em que medida a separação de processos neste momento resulta em maior dano do que benefício para todos, designadamente para os arguidos;
b) - o facto de a conexão na fase de inquérito, num instante inicial, ter ocorrido sem desrespeito por qualquer princípio ou norma legal, não significa que, em momento posterior, maiormente antes da dedução da acusação, não ocorra uma desconsideração/violação das regras de conexão;
c) - é enganadora a afirmação do Ministério Público de que, com a separação, algumas testemunhas terão de vir diversas vezes a juízo para repetir a exposição de factos: de um lado, a repetida vinda a juízo apenas poderá respeitar a agentes policiais; de outro lado, não se cura de repetir a exposição de factos - trata-se, antes, de depor sobre factos diferenciados;
d) - alfim, não se antolha nenhuma legitimidade para o Ministério Público afirmar que “os arguidos não vieram apresentar os contornos precisos quanto à concretização da requerida separação de processos, ficando por perceber em que moldes deveria a mesma ser efectuada.”
Com efeito, para se perceber em que termos deve operar a separação do processo, é suficiente uma leitura diametral/transversal e não muito atenta do requerimento inicialmente apresentado: aí se referenciou, por várias vezes, a existência de 4 grupos de arguidos, que foram delimitados, e, após, concluiu-se que se deve proceder à separação do processo em 4 processos, de acordo com a segmentação realizada na acusação; apenas não se indicou qual a prova para cada processo - contudo, isso não cabe ao arguido...
15. O Tribunal a quo, ao indeferir o requerido pelos arguidos e ao não determinar, na subsequência, a separação do processo em 4 processos, violou o estabelecido nos artigos 24.º, n.º 1, e 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (o direito dos arguidos a um processo equitativo).»
1.6. A fls. 6311 dos autos principais (agora certificados a fls. 128), proferiu-se despacho admitindo o recurso interposto, fixando o seu regime de subida, e efeito, bem como, ainda, determinando os elementos que haveriam de completar a sua respectiva instrução.
1.7. Notificado também para o efeito, respondeu o Ministério Público ut fls. 132/139, terçando pelo seu improvimento sustentado na seguinte síntese de fundamentos:
«1. Os arguidos A…, C… e B… vieram apresentar recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, da decisão exarada em 20 de Março de 2018 pela Juiz de Instrução Criminal, apontando a violação do estabelecido nos artigos 24.º, n.º 1 e 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
2.º Imperando no processo penal a regra de que a cada crime corresponde um processo, para o qual é competente determinado tribunal, em resultado da aplicação das regras de competência material, funcional e territorial, certo é que a lei admite restrições ao funcionamento destas regras, permitindo a organização de um único processo para uma pluralidade de crimes, atentas as situações previstas nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal.
3.º Por seu turno, enuncia o n.º 1 do artigo 30.º do CPP que oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que se verificar alguma das circunstâncias aí enunciadas.
4.º Em nosso entender não se mostra presente nenhuma das situações retratadas no artigo 30.º do CPP. Além do mais, julgo que a separação de processos a efetuar neste momento resulta em maior dano do que benefício para todos, designadamente para os arguidos. Aliás, até ao momento, a referida unidade processual não colidiu com qualquer direito de defesa dos arguidos e respeita em pleno o direito ao contraditório. Acresce que mostrando-se já elaborada a decisão instrutória, devendo os autos seguir de imediato para a fase de julgamento, mostra-se não só inconveniente à luz dos princípios de celeridade e economia processual, como prejudicial aos seus intervenientes, a multiplicação de processos no momento presente, o que implica que posteriormente algumas testemunhas venham por diversas vezes a juízo para repetirem a exposição de factos, correndo-se o risco de eventuais contradições ou lacunas nos seus diversos depoimentos. São as próprias regras da razoabilidade e do princípio da lealdade processual consagrado na CRP e ainda os princípios supramencionados que apontam para a manutenção da conexão.
5.º Nestes termos, salvo melhor opinião, ao ser exarada a decisão datada de 20.03.2018 não foi violado qualquer princípio ou preceito legal, nomeadamente o estabelecido nos artigos 24.º, n.º 1 e 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (o direito dos arguidos a um processo equitativo).»
1.7. Ordenada e acatada a remessa dos autos para este Tribunal da Relação, com vista dos mesmos nos termos e para os afeitos do disposto no art.º 416.º do Código de Processo Penal, a Exma. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer conducente à manutenção do despacho recorrido atenta a inverificação da preterição dos preceitos legais aduzidos pelos recorrentes.
1.8. Notificados deste parecer, notificados conforme subsequente art.º 417.º, n.º 2, nenhum dos arguidos respondeu ao mesmo.
1.9. Aquando do exame preliminar dos autos, consignou-se da inexistência de qualquer circunstância que obstasse ao seu conhecimento de meritis e daí ter-se determinado o seu prosseguimento com a recolha de vistos, o que sucedeu, e submissão a conferência.
É dos trabalhos desta que emerge a presente apreciação e decisão.
*
II. Fundamentação.
2.1. Delimitação do objecto do recurso.
Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas em considerar, à luz do disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que os recorrentes extraíram da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de pendor oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objecto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
In casu, atento o teor do relatório atrás produzido - que procurámos fosse o mais exaustivo possível em ordem a permitir agora fixar adequadamente o objecto do recurso -, bem como as sintetizadas conclusões dos recorrentes, consistirá o mesmo em apurarmos se intercede a propalada nulidade do despacho recorrido ao não determinar a requerida separação de processos.
2.2. Os recorrentes por forma alguma controvertem a “conexão” que intercedeu no decurso da fase de inquérito, isto é, que a investigação dos factos atinentes aos (então) 24 arguidos fosse processada exactamente sob o manto de um único inquérito. Percorrendo o requerimento que ofertaram e o recurso incidente sobre o despacho que denegou agora a sua “separação”, o que sobressai é, então, o seguinte:
A acusação pública deduzida elegeu 4 núcleos de actuação. Um, abrangendo a dos ora recorrentes e outros 4 arguidos [E…, F…,G… e H… (este em comparticipação com aquele G…)], essencialmente ocorrida na área da residência localizada na KK…, e na zona respeitante (…).
Outro, o concernente à actuação dos arguidos I…; J… e K… (todos residentes na residência dos arguidos recorrentes A… e B…; actuação maioritariamente cometida no (…), mas sem comunhão de esforços com nenhum dos três ora recorrentes, sucedendo terem sido apreendidos estupefacientes àqueles I…; J… e K… que se encontravam na KK…).
Ora, prosseguem, mostrando-se alheias quaisquer ligações entre os mencionados arguidos acusados, atendo-nos ao vindo de referir-se, era (é) imperiosa a cessação da “conexão” estabelecida, sob pena de preterição aos art.ºs 119.º, al. e), do Código de Processo Penal, e 20.º n.º 4, da Constituição da República.
Quid iuris?
Ressalvadas as excepções previstas no nosso diploma adjectivo penal (que ora não cuida concretizar), “a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.” (n.º 2, do art.º 262.º, desse mesmo diploma)
Inquérito que há de compreender o conjunto de diligências susceptível de investigar a ocorrência do ilícito, seu(s) agente(s) e provas capazes de serem recolhidas, tudo visando ponderar a acusação (n.º 1 do citado normativo).
Inquérito, por seu turno, a decorrer sob a égide do Ministério Público, e com observância, nomeadamente, do disposto nos art.ºs 24.º a 30.º (art.º 264.º, do Código de Processo Penal).
Atentando neste regime o Exmo. Desembargador António Gama escreveu adequadamente no citado aresto do TRP, que a “regra” de que a cada crime corresponde um processo, para o qual é competente determinado tribunal, em resultado da aplicação das regras de competência material, funcional e territorial, não é uma regra legal expressa em matéria de competência, mas apenas uma decorrência lógica da finalidade e âmbito do inquérito, resultando também de uma leitura a contrario do art.º 29.º do Código de Processo Penal, inserido sistematicamente na competência por conexão.
Com efeito, tendo em vista objectivos de harmonia, unidade e coerência de processamento, celeridade e economia processual, bem como prevenir a contradição de julgados, em certas situações previstas nos art.ºs 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, a lei admite restrições ao funcionamento das regras gerais de competência material, funcional e territorial, permitindo a organização de um único processo para uma pluralidade de crimes, exigindo no entanto, que entre eles exista uma ligação (conexão) que torne conveniente, para a melhor realização da justiça, que todos sejam apreciados conjuntamente.
Operada a conexão e “organizado um único processo” também se admite, o caminho inverso, isto é, que em determinadas situações, verificados certos pressupostos, ocorra a separação de processos.
Como é consabido, um dos princípios enformadores do nosso processo penal, é o da sua estrutura acusatória; daí que considerando que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, e que a decisão sobre a verificação de conexão em inquérito, quer em ordem à apensação ou investigação conjunta, quer tendo em vista a separação de processos, não consta das restrições dos art.ºs 268.º e 269.º do Código de Processo Penal, vir-se entendendo que na fase de inquérito pertence ao Ministério Público a competência para decidir da apensação e da separação de processos.
Permitindo a lei a aplicação do regime da conexão à fase de inquérito (ut citado art.º 264.º, n.º 5), sucede, porém, não solucionar de modo expresso o caso de, verificando-se os pressupostos para a “organização de um só inquérito” durante a fase da investigação, o mesmo já não se verificar aquando do encerramento do inquérito, nem, acresce, se a opção do Ministério Público (seja ela qual for, isto é, mantendo a “conexão” ou determinando a “separação”) pode ser sindicada, e em que termos, pelo JIC ou pelo juiz do julgamento aquando do despacho do art.º 311.º do Código de Processo Penal, ou mesmo posteriormente.
Para nós, um ponto se nos afigura todavia incontroverso: qualquer que seja o regime tido por aplicável [ser o JIC, porque tal lhe tenha sido solicitado e/ou se tenha aberto a fase facultativa de instrução – o caso vertente -, ou mesmo oficiosamente; ser o Juiz de julgamento no momento de prolação do despacho a que alude o art.º 311.º do Código de Processo Penal, ou mesmo a qualquer momento, por requerimento ou oficiosamente], a ponderação que então houver de fazer-se há-de ocorrer tendo em consideração apenas os parâmetros do art.º 30.º do Código de Processo Penal, isto porquanto somente tal regime tem virtualidade para permitir o controlo judicial sobre a existência de desrespeito a qualquer princípio ou norma legal que fosse imperioso acatar-se, e possibilita a ponderação sobre a emergência, em maior dano do que benefício para todos, designadamente para os arguidos.
Aliás, sintomaticamente, o referido art.º contém em todas as suas alíneas a menção a adjectivos que induzem e apontam decisivamente num carácter quase de excepção ao decretar então da “separação” de processos.
Relembramos (e sublinhamos) que, oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou,
d) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
Ora, nesta perspectiva, o caso concreto não comporta fundamento que determine a pretendida separação de processos. Com efeito:
Por forma alguma se comprova existir na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva.
Através dos elementos juntos aos autos, alguns já aquando da sua subida a este Tribunal, e outros entretanto oficiosamente solicitados, resulta que foi designada data para o julgamento conjunto dos 23 arguidos (o co-arguido L… foi despronunciado em sede própria), com início para o dia 25 deste mês de Junho. Mais do que conjecturas, fica objectivamente a tramitação expedita dos autos. Nenhum outro fundamento vem aduzido no sentido de comprovar um interesse ponderoso e atendível na separação dos processos.
Acresce, bem ao invés da previsão da al. b), que a conexão representa uma vantagem (que não um risco grave) para a pretensão punitiva do Estado, pois a investigação conjunta possibilita um conhecimento aprofundado e mais minucioso de todo o modo de actuação dos vários intervenientes e (mesmo que ténues) intercorrências entre alguns deles.
Tal como já consignado, a manutenção da conexão não retardará excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos. Concedendo-se que, ao menos em abstracto, sempre será mais expedito julgar 7 arguidos do que 10 ou 23, verdade é também que muito dependerá da atitude processual que cada um desses (núcleos) queira assumir, o que é mera conjectura incapaz por ora de alicerçar uma ponderação adequada.
A própria tutela dos direitos dos arguidos recorrentes reclama a tramitação regular dos autos, sem intercedência de vicissitudes apenas processuais, estas sim conducentes ao seu protelamento.
Razoabilidade também para os demais intervenientes processuais, mormente testemunhas, que não terão de depor sucessivamente com prejuízo, por vezes, e como é consabido, para a conformidade dos seus depoimentos.
Por fim, separação entre que núcleos essenciais? Apenas o que integra os arguidos ora recorrentes e os arguidos E…; F…; G… e H…? Ou, também, a que abrange a de todos eles, bem como a dos arguidos I…; J… e K…? E, assim sendo, não se esbateriam, quase inexoravelmente, eventuais benefícios que pudessem colher-se com a “separação” pretendida?
Circunstância que os recorrentes não definem, em concreto.
Por isto a conclusão inequívoca de que no despacho recorrido e na fundamentação dele adveniente, se não mostra questionado o carácter equitativo que a nossa Lei Fundamental reconhece ao direito processual penal.
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III. Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos e, em consequência, decidem manter o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em três UCs a taxa de justiça individualmente devida (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Coimbra, 27 de Junho de 2018
Brízida Martins (relator)
Belmiro Andrade (adjunto)