Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
637/09.2T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: PRESCRIÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
INTERRUPÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE ANADIA.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 304º, Nº 1, 323º E 498º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário: I – A prescrição é uma causa extintiva das obrigações civis ou perfeitas e dela resulta para o seu beneficiário (que a invoca com êxito) a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – artº 304º, nº 1, C.Civ..

II – A comunicação da seguradora, dirigida ao titular do direito, na qual, além de quantificar a indemnização, se predispõe a pagá-la, tem eficácia interruptiva da prescrição, valendo como reconhecimento do direito do mesmo titular.

III – Tal matéria é do conhecimento oficioso do tribunal porquanto, cumprindo ao juiz decidir se há prescrição, cumprir-lhe-á também apreciar se esta foi interrompida.

IV – O início do prazo de prescrição reporta-se não ao momento da lesão do direito do titular da indemnização mas àquele em que o direito possa ser exercido.

Decisão Texto Integral:       ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A Ré A..., Companhia de Seguros S.P.A. arguiu, na sua contestação, a excepção peremptória de prescrição do direito de indemnização que as Autoras B... e C...haviam reclamado em consequência dos danos resultantes do sinistro estradal que descrevem na sua petição.

Para tanto, alegou que o acidente de viação em discussão, no qual as Autores fundam o seu direito indemnizatório, ocorreu em 18 de Maio de 2006, e a Ré apenas foi citada para a acção no dia 19 de Maio de 2009. E sendo certo que as Autoras requereram a sua citação urgente, não é menos verdade que o facto de o requererem no dia 15 de Maio de 2009, numa sexta-feira à tarde, não só é impeditivo que funcione a citação «fictícia» prevista no art. 323º, nº2 do C.P.C., como potenciador do risco da citação não se efectuar no dia 18 de Maio de 2009, como se veio a verificar, sendo que o dia 18 de Maio de 2009 era, justamente, uma segunda-feira.

Regularmente notificadas, as Autoras vieram responder à invocada excepção, dizendo que a citação, embora chegasse à morada da Ré no dia 18 de Maio de 2009, não pôde ser feita porque a Ré se mudou, ausentando-se do local que utilizava como sede, tendo a mesma correspondência que ser reexpedida e vindo a ocorrer no dia seguinte. Assim, a falta de citação no dia 18 de Maio de 2009 ocorreu por culpa da Ré que se ausentou da morada por si própria indicada nos seus documentos como local próprio para receber notificações. Para lá disso, no dia 15 de Maio de 2009 a Autora enviou à Ré a Petição Inicial via e-mail e via fax, onde se encontrava claramente escrita a morada para a qual o Tribunal endereçou a petição, tendo recebido por aquelas duas vias a petição inicial, sem que, todavia, comunicasse à Autora a alteração da sua morada a Ré.

Na tréplica sustentou a Ré que o ónus de identificar correctamente a Ré, de acordo com o disposto no artigo 467.º, n.º 2, alínea a), do CPC, incumbe, única e exclusivamente, às Autoras. Neste sentido, deveriam as Autoras ter averiguado previamente a identificação completa e correcta da parte contrária, antes de propor a acção correspondente em tribunal. Não curaram, assim, de averiguar qual a sede da Ré, e portanto, actuaram de forma negligente, e por maioria de razão, terão de ser as Autoras a arcar com as consequências. Efectivamente, ao requererem a citação prévia da Ré, mas não com a antecedência mínima de cinco dias em relação ao termo do prazo prescricional,tal como previsto no n.º 2 do art.º 323.º do CC, incumbia-lhes prever que se aquela citação, por qualquer motivo, se frustrasse, não poderiam beneficiar do efeito interruptivo estabelecido nesse artigo. Além de que o envio da petição de uma parte à outra, sem intervenção judicial, não vale como citação, pois o envio de correspondência directa entre as partes só está legalmente previsto a partir da notificação da contestação e entre os mandatários constituídos pelas mesmas. Donde concluiu como o fizera na contestação.

No despacho saneador foi apreciada esta matéria e julgada procedente a aludida excepção de prescrição do direito de indemnização pelo que a Ré foi absolvida do pedido.

Inconformadas as Autoras, interpuseram recurso de apelação deste despacho saneador-sentença e no termo de sua alegação enunciaram as conclusões seguintes:

[…]

Contra-alegou a Ré, impugnando especificamente e concluindo pela manutenção do julgado.

E, ora, corridos os vistos, cumpre decidir.

A questão que está colocada na apelação, delimitado o respectivo objecto, centra-se em saber se o direito de indemnização das Recorrentes se encontra prescrito.

 II.

Elementos que foram tomados em conta na instância recorrida:  

a)O acidente de viação em discussão, onde as AA fundam a responsabilidade pela prática de factos ilícitos ocorreu em 18 de Maio de 2006;

b)As Autoras deram entrada da presente acção, por via electrónica, no dia15 de Maio de 2009, pelas 14h58min., tendo requerido a citação urgente da Ré.

c)A citação da Ré, mediante carta registada com aviso de recepção, foi expedida no dia 15 de Maio de 2009 para a morada indicada pelas Autoras na petição inicial, a saber: «Avenida X..., 114, ... Lisboa».

d)A correspondência respeitante à citação da Ré chegou à morada indicada pelas Autoras na petição inicial, a saber: Avenida X..., 114, ...Lisboa, no dia 18 de Maio de 2009.

e) A correspondência respeitante à citação da Ré foi reexpedida para a morada: Rua Y..., 11, ... Lisboa.

f)A Ré assinou o aviso de recepção relativo à citação para os presentes autos no dia 19 de Maio de 2009.

g)A sede da Ré passou a estar instalada na Rua Y..., 11, ... Lisboa, desde 31 de Dezembro de 2006.

h)No site da Ré a saber: www.A....pt., na secção intitulada contactos, constam todas as moradas e telefones da sede e das delegações da Ré, nomeadamente, que a morada da Ré, à data da propositura da acção, era Rua Y..., 11, ... Lisboa.

i)Em consequência do acidente de viação, as Autoras e a Ré trocaram correspondência entre si, no ano de 2006, onde constava a morada da Ré como sendo a Avenida X..., 114, ... Lisboa.

j)No dia 15 de Maio de 2009 a Autora enviou à Ré a petição inicial por email e por fax onde se encontrava indicada a morada para a qual o Tribunal endereçou a petição inicial.

Abordemos, então, o recurso:

É incontroverso, no caso em presença, o prazo trienal de prescrição do direito de indemnização das AA a que se reporta o nº1 do artº498º do CC.

O que os Recorrentes questionam é se esse mesmo prazo já decorreu na íntegra, quer por ter sido alvo de interrupção quer por o contabilizarem de forma diversa daquela levada a cabo na decisão sob recurso.

 Segundo Almeida Costa, a prescrição é causa extintiva das obrigações civis ou perfeitas e “consiste no instituto por virtude do qual a contraparte pode opor-se ao exercício de um direito quando este se não verifique durante certo tempo indicado na lei e que varia consoante os casos” (Direito das Obrigações, 10ª ed, 1120/21).

A sua justificação radica nos valores da segurança jurídica e da certeza do direito por referência à inércia do titular do direito em exercitá-lo que faz presumir a sua renúncia ou, ao menos, a desnecessidade de sua tutela jurídica de harmonia com o antigo aforismo “dormientibus non succurrit jus”.

Dela resulta para o beneficiário que a invoca com êxito, a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (artº304º1 daquele diploma).

Fundando-se, pois, num facto jurídico involuntário – o decurso do tempo - não é de estranhar que o respectivo prazo tenha curso contínuo (artº296º e 279º do citado código). Tal regra, porém, admite excepções, corporizadas nas causas de suspensão enunciadas no artº318º e ss. e nos casos de interrupção previstos nos artº323º e ss do mencionado diploma.

Tem esta última o condão de inutilizar todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo que tanto pode ser da iniciativa do titular do direito – credor - como do beneficiário da prescrição – devedor mas cujo círculo se restringe aos que são prevenidos na lei pois se trata de normas de ordem pública: a do primeiro (artº323º) terá lugar sempre que se dê conhecimento ao devedor, por meio de citação, notificação judicial ou outro meio dessa natureza de que se pretende exercer o direito; a do segundo (artº 325º) que ocorre quando se verifica o reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular, por aquele contra quem o direito pode ser exercido.

Foi a este último – reconhecimento do direito - que os Recorrentes deitaram mão para invocarem a interrupção da prescrição e que constaria da comunicação que a própria Ré fez juntar aos autos na qual dava conta à A. C... do resultado da vistoria ao veículo acidentado e informando-a que o valor da indemnização a considerar era de €810,50.

Entende a Recorrida que tal comunicação não consubstancia o reconhecimento do direito de indemnização das AA e que essa questão era totalmente nova pois só em sede de recurso havia sido alegada.

Justificava Vaz Serra o efeito interruptivo do reconhecimento do seguinte modo: “se o prescribente reconhece o direito do titular, é razoável que perca o benefício do prazo prescricional já decorrido: tal reconhecimento pode interpretar-se como renúncia da sua parte a prevalecer-se desse prazo, visto supor a vontade de cumprir, além de que o titular pode confiar na opinião manifestada pela outra parte, não tendo, por isso que a demandar” (Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ, 106, 220).

Esse reconhecimento, aliás, pode ser tácito (nº2 do citado artº325º) que todavia só releva quando for “claro, inequívoco e concludente, ou seja, não deixar quaisquer dúvidas quanto à aceitação da existência da dívida, do direito do credor e da obrigação de indemnizar” (Ac TRE de 28.01.1999, BMJ, 488,287).

Deve ainda ser dirigido ao titular do direito reconhecido como forma de assegurar e acentuar a intenção do declarante em reconhecer o direito daquele. Na verdade, escrevia aquele professor: “…Aquele que declara perante um terceiro que existe certo direito pode fazê-lo com leviandade maior do que se essa declaração fosse feita perante o próprio titular. Por outro lado, o efeito interruptivo do reconhecimento funda-se na confiança que este desperta no titular acerca do vigor do seu direito e essa confiança só pode, pelo menos em regra existir quando a declaração lhe seja exigida”(loc cit, pág. 226 e 227).

A referida comunicação, remetida pelos serviços da Ré/Recorrida, à A. C..., datada de 29/05/2006, referenciando o veículo sinistrado de matrícula ...GG, começa por acusar a participação do sinistro, informa de seguida que, após vistoria ao mesmo veículo, “a sua reconstituição natural não é possível…motivo pelo qual vimos informar…que iremos proceder a uma indemnização pecuniária”. Seguidamente, dando nota do valor do veículo - €960,50 – e do valor do salvado - €150,00, informa “que para efeito de indemnização iremos considerar o valor de €810,50, ficando V. Exª de posse do salvado”.

Acrescente-se, ainda que não foi alvo de impugnação por banda das AA.

Tal comunicação, dirigida à titular do direito de indemnização, articulado em consequência de acidente em que interveio o segurado da Ré, revela, sem margem para qualquer dúvida de natureza interpretativa, conduta factual que reconhece não só aquele direito de indemnização que, concretamente, quantifica mas também a sua obrigação de indemnizar e a vontade de lhe dar cumprimento.

Em suma, tal comunicação tem eficácia interruptiva da prescrição cujo prazo, sendo reiniciado no dia seguinte àquele a que se reporta a data que dela consta (29.05.2006), afinal ainda se não havia completado quando teve lugar a citação da Ré (19.05.2009).

Cumpre, no entanto, reconhecer que tal matéria só agora, em sede de recurso, foi objecto de alegação, ou seja, corresponde a matéria nova que não foi apreciada pelo tribunal recorrido quando se sabe que a regra é a de que no recurso se visa modificar decisões impugnadas e obter o reexame das questões nele tratadas e decididas pelos tribunais inferiores.

Sabe-se, também, porém que esta regra não vale quanto às questões de conhecimento oficioso.

Ora, embora reconhecendo que a interrupção do prazo prescricional se assume como facto impeditivo da paralisação do exercício do direito e como tal a respectiva alegação e prova incumba ao credor, Vaz Serra, da mesma forma que o fez quanto às causas da suspensão da prescrição, entende que essa matéria cabe no poder de apreciação oficiosa do juiz porquanto se o processo “fornece ao juiz conhecimento de uma causa interruptiva da prescrição, deve atendê-la, pois, cumprindo-lhe decidir se há prescrição, cumpre-lhe apreciar se esta foi interrompida” (loc citado, 144 e 187, nota 850).

O reconhecimento do direito, como se viu, foi objecto de aquisição processual nos autos e devia ter sido objecto da apreciação oficiosa na decisão recorrida que a esse propósito não emitiu pronúncia. Admitindo que essa omissão constitua fundamento de nulidade, certo é que ela se colmata por via da substituição que a este tribunal de recurso compete (artº668º, 1, al d) e 715º,2 do CPC).

Termos em que se julgará interrompida a prescrição relativamente ao direito da A. C....

b – No tocante à contagem do prazo de prescrição, alegam as Recorrentes, se bem entendemos que ela só devia iniciar-se após ter lugar o julgamento da matéria da contra-ordenação, articulada como causal do acidente.

A confusão dos Recorrentes é manifesta.

Só é admissível nos casos de conexão das responsabilidades criminal e civil que o prazo de prescrição corra de novo quando, pendente processo-crime onde possa ser deduzido pela regra obrigatória da adesão, pedido de indemnização civil, este, por alguma razão, tenha de ser deduzido em separado, contando-se aquele prazo a partir de então.

Necessário, portanto é que, desde logo, se trate de processo onde possa ser formulado aquele pedido de indemnização o que é viável no processo-crime mas já o não é, no processo de contra-ordenação, sendo certo que nenhuma notícia facultam os autos sobre a instauração de qualquer processo de natureza ciminal ou contra-ordenacional.

Esta questão, embora sem fundamento, suscitou, no entanto, a nossa atenção quanto ao início do prazo da prescrição do direito da co-Autora B... que foi reportado à data do acidente, sem qualquer justificação.

Sabe-se que o início do prazo de prescrição se reporta, não ao momento da lesão do direito do titular da indemnização mas àquele em que o direito possa ser exercido, a coincidir com o momento do conhecimento do direito que lhe compete, isto é, do direito de indemnização (artº306º,1 e 498º,1 do CC) – cfr Ac do STJ de 22.09.2009, pº nº 18/2002.S2 (Alves Velho).

Como se colhe da petição inicial, sustenta aquela Autora o seu pedido de indemnização em lesões corporais e dores provocadas pela colisão que teve lugar aquando da eclosão do sinistro.

A esse propósito e aludindo a documento que juntou com a contestação, a Ré Seguradora veio manifestar a sua estranheza quanto àqueles factos porquanto a mesma, no dia 31.05.2006, subscreveu aquele documento de que resulta, nomeadamente, que não deixou de trabalhar em virtude de tais lesões, não ficou internada e teve alta no próprio dis do sinistro.

Como é evidente, esta impugnação não elimina a hipótese ou de qualquer modo inviabiliza que as alegadas lesões só tenham ganho significado e relevo jurídico após aquela data o que é suficiente para questionar a verificação da prescrição e obrigar a que essa matéria seja objecto da base instrutória a organizar, devidamente, contextualizada pelo teor do datado documento acima referenciado.

c – Aqui chegados, mostra-se prejudicado o conhecimento das as demais questões suscitadas pelas Recorrentes que, por isso, se dispensa.

Sintetizando conclusões:

A comunicação da Seguradora, dirigida ao titular do direito, na qual, além de quantificar a indemnização, se predispõe a pagá-la, tem eficácia interruptiva da prescrição, valendo como reconhecimento do direito do mesmo titular;

Tal matéria é do conhecimento oficioso do tribunal porquanto, cumprindo ao juiz decidir se há prescrição, cumprir-lhe-á também apreciar se esta foi interrompida;

o início do prazo de prescrição reporta-se, não ao momento da lesão do direito do titular da indemnização mas àquele em que o direito possa ser exercido.

III.

Face a todo o exposto, e embora com outros fundamentos, julgando procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos, mormente, para selecção dos factos assentes e da base instrutória.


Martins de Sousa (Relator)
Maria Regina Rosa
Manuel Artur Dias