Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/05.0TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: CRIME DE EMISSÃO DE CHEQUE SEM PROVISÃO
FALSA DECLARAÇÃO DE EXTRAVIO
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCANENA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11.º, N.º1, AL. B), DO DECRETO-LEI N.º 454/91, DE 28/12
Sumário: A falsa declaração de extravio, em que a conta sacada também não dispunha de fundos suficientes, integra os requisitos do tipo de crime de emissão de cheque sem provisão.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º56/05.0TAACN, a correr termos no Tribunal Judicial de Alcanena, o arguido PA, melhor identificado nos autos, foi condenado, na procedência da acusação pública, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º1, al. b), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), «assim perfazendo um total de €1.620,00 (mil seiscentos e vinte euros)».
Mais foi condenado, pela procedência parcial do pedido civil deduzido pela ofendida “CV, Lda.”, a pagar a esta uma indemnização no valor de €4.110,69 (quatro mil cento e dez euros e sessenta e nove cêntimos) e uma compensação de €500,00 (quinhentos euros), a pagar em duas tranches, mensais e sucessivas, no valor unitário de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), sendo a primeira devida no prazo de dez dias volvidos sobre o trânsito em julgado da sentença e a segunda em igual dia do mês imediatamente seguinte.

2. Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões, após convite ao aperfeiçoamento (transcrição):
«1 - A principal questão que se discute em sede de recurso prende-se com a circunstância de saber se o cheque em questão, emitido como meio de pagamento de uma dívida anterior, tem tutela jurídico-penal (art. 11.º, n.º 1, al. b), do n.º 454/91, de 28/12, na redacção do DL n.º 316/97 de 11).
2 - Na perspectiva do recorrente, o prejuízo patrimonial não é contemporâneo da emissão do cheque (a relação subjacente é anterior) pelo que o cheque em causa é indiferente para a existência do prejuízo patrimonial pressuposto do crime em questão, uma vez que a dívida já existia em Janeiro de 2005.
3 - Os pressupostos contidos no art° 11.º n.º b) e 11-A, n.º 2 do Dec-Lei n.º 454/91, de 28/12 e alterações exigem prejuízo patrimonial e a queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão, da data da entrega do cheque ao tomador e dos respectivos elementos de prova.
4 - O cheque em questão é datado de 15/03/2005 e foi emitido com data posterior, sendo a última factura a 30 dias (n.º 0752) datada de 31.01.2005.
5 - No entender do recorrente, a prova testemunhal é incongruente ou mesmo irrelevante na incriminação, não resultando prova nenhuma da data da entrega ou do envio do cheque em data posterior à divida.
6 - Nos termos do raciocínio acima expendido, o prejuízo existente foi anterior à entrega do cheque ou seja este nenhum prejuízo, imediatamente atribuível à respectiva devolução, provocou pelo que não se materializa o pressuposto do prejuízo patrimonial sob nexo causal com a falta de pagamento do dito cheque (condição sine qua non para a verificação do delito de emissão de cheque sem provisão).
7 - Acresce que, o cheque em causa não foi pago, porque o arguido, falsamente, comunicou ao Banco sacado que o mesmo se havia extraviado. Do elenco legal dos motivos concretos do não pagamento, cfr. art. 11°, n.º 1, al. b). do DL n.º 316/97 de 19/11 (levantamento de fundos, proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, encerramento da conta sacada ou alteração das condições da sua movimentação) não consta o falso extravio (que não se encaixa com propriedade em nenhum dos sobreditos casos típicos) pelo que também com este fundamento inexistiria motivo para condenar o arguido pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
8 - Há na sentença recorrida, uma contradição insanável da fundamentação porque, não se tendo provado - no nosso entender, a data da entrega na ligação imediata com o negócio e que com a sua conduta prejudicava o seu beneficiário, não se verificam os elementos do tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão pelo que a Mmo Juiz “a quo” violou o disposto no artigo 11° do DL 454/91, de 28/12 e alterações.
9 - Não se verificando o prejuízo patrimonial não há elemento objectivo, nem elemento subjectivo do tipo legal de crime, respeitante ao momento volitivo, impõe-se por isso decisão que julgue a acusação improcedente e absolva o recorrente, incluindo do pedido de indemnização civil, por força do princípio da adesão, art° 71 e segs do C. P. Penal.
10 - Demonstra-se insuficiente, para a decisão, a matéria de facto provada, uma vez que, da motivação da factualidade provada não resulta aquela prova bastante para ligar o prejuízo à imediatez com que é feita a lesão do património da assistente - 30 dias, contados de Janeiro de 2005 (conforme rezam as facturas era o prazo de pagamento).
11 - Verifica-se, ainda, na decisão recorrida um erro notório na apreciação da prova, e que conjugado com as regras da experiência, teria forçosamente que levar à absolvição do arguido, isto é,
12 - Erro este que “é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente se dá conta”.
13 - Pelo que existe na sentença recorrida erro notório na determinação da norma aplicável, havendo lugar à aplicação do disposto no n.º 3 do art.º 11 ° e 11 ° A, do regime Jurídico do Cheque
14 - A decisão recorrida deveria ser aquela tomada pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 07/02/2007:
“I – Só há crime de cheque sem provisão se este, não tendo sido pago por falta de fundos, foi emitido como meio de pagamento imediato de uma obrigação e não também quando se destinou a pagar a dívida que devia ter sido liquidada em data anterior”.
“II – O não pagamento de um cheque, que se ficou a dever ao facto de o sacador ter comunicado ao banco sacado que o mesmo se tinha extraviado, o que sabia ser falso, não é criminalmente punível, uma vez o motivo invocado – falso extravio – não constitui levantamento de fundos, nem proibição de pagamento, nem encerramento da conta, nem alteração das condições de movimentação da mesma.” (publicado in Col. Jur. de Acórdãos da Relação do Porto, 2007 Tomo I, pago 211)
15 - A Mma Juiz violou na douta sentença, as disposições dos artes 11.º n.º 1 b) e n.º 3, 11.º-A Dec-Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção que lhe foi dada pelo DL 316/97, de 19/11 DL 83/2003, de 24 de Abril, bem como art.º 394.º do Código Civil, art. 71.º a 74 do Código Penal; Art° 71° e segs do C.P.Penal, 4do C. P. Penal/ 4l0.º; 411.°n.º 1 b) e n.º4 e 412.°, todos do Código de Processo Penal.
16 - A matéria de facto dada como provada nos item 10 e 11 da sentença recorrida, deveria ter sido considerada não provada por prova evidente da não verificação de prejuízo patrimonial com a ordem de proibição de pagamento de cheque.
17 - A resposta aos itens 10 e 11, da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, não resultou o prejuízo da recorrida derivado do não pagamento do cheque pelo recorrente.
18 - Acresce que a relação jurídica cambiária envolvente do cheque abstrai da relação jurídica subjacente que liga o emitente e o beneficiário por via da chamada convenção executiva.
19 - Assim, a circunstância de o cheque não haver sido pago não significa necessariamente a existência de algum prejuízo para o respectivo portador, porque ele continua titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente.
20 - O prejuízo não resulta da conduta do arguido em concreto, mas já tinha ocorrido com o não pagamento da sociedade "F…., Lda", a efectuar nos 30 dias após a data das facturas 0741 e 0742, ou seja, o prejuízo ocorreu com o não pagamento das mencionadas facturas em Fevereiro de 2005 - documentos juntos aos autos e não impugnados.
21 - Além disso, o recorrente não tinha a obrigação de pagar pessoalmente à assistente, qualquer valor.
22 - A causa virtual negativa de um dano é essencialmente o facto que o produziria se não tivesse sido efectivamente produzido por um outro que constitui a sua causa real.
23 - Sem a existência de tal prejuízo não se podia configurar a situação hipotética actual, que constitui uma das vertentes da diferença que constitui o critério da medida da punibilidade ficando o requisito essencial por preencher.
24 - Por vicissitudes processuais relacionadas com a requisição das cassetes audio, a verdade é que o recorrente na elaboração da sua alegação e respectivas conclusões especificou o mesmo, no corpo da sua alegação embora não especificadamente quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, com indicação dos depoimentos em que se funda dizendo que não foi esclarecido o prejuízo imediato - como consequência directa da obrigação subjacente, e mais que prova gravada em audiência é inconclusiva para a condenação do ora recorrente, ou dela resulta o contrário - que da proibição dada ao banco não resultou prejuízo.
25 - O recorrente considera provado que o cheque foi entregue com a mercadoria, porque era norma não deixar sair nada sem cheque. - cfr. depoimento da testemunha F…..
26 - Em todo o caso, com a prova que se vai pôr em causa e analisar parcialmente, o recorrente invoca, desde já, os princípios “in dubio pro reo” e da aplicação do regime mais favorável.
27 - A prova documental constituída pelo Cheque e facturas 0741 e 0742, emitidas pela assistente, evidenciam a prova de que não se verificou prejuízo patrimonial.
28 - O recorrente esclarece pretender recorrer da fixação da matéria de facto de uma forma ampla, tendo procedido à transcrição dos depoimentos que, em seu entender, exigem decisão diferente sobre os pontos de facto impugnados.
29- Na medida do possível vem procurar responder ao convite de reformulação na medida do possível, sendo inequívoco que pretende impugnar de forma ampla a sentença recorrida, nos termos do disposto no art° 412.º n.º 3 e 4
30 - No entender do recorrente foi feita prova da entregue do cheque no acto da entrega da mercadoria, conforme resulta das declarações da I…. e do F…., os quais referiram não deixavam ir a mercadoria sem cheque (cfr. respectivos depoimentos).
31- Não concordamos que seja inequívoca a prova de que o cheque terá sido remetido pelo correio, na sequência da conversa indecorosa que o arguido terá tido ao telefone, referido no depoimento da A…. e I…. quando referem:
- o Arguido num telefonema disse à testemunha “se está aflita, vá à casa de banho”,
Não pode o Tribunal acreditar que o mesmo arguido na mesma conversa lhe tenha dito ter enviado nesse mesmo dia o cheque pelo correio.
32 - O Tribunal a quo não deveria o ter dado como assente que o cheque foi enviado pelo correio, conforme está plasmado na motivação da matéria de facto, da douta sentença.
33 - A Mm.ª Juíza considerou erradamente provado o facto sob os itens 2 "De seguida endereçou-o à ofendida “CV, Lda.”, destinando-se o mesmo ao pagamento de serviços que esta havia prestado à "F…. -Comércio de Peles, Lda.", titulados pelas facturas n.os 0741 e 0742, nos valores, respectivamente, de e 3.732,43 (três mil setecentos e trinta e dois euros e quarenta e três cêntimos) e de e 366,26 (trezentos e sessenta e seis euros e vinte e seis cêntimos); 8. “O arguido sabia que o cheque endereçado à ofendida não havia desaparecido ou sido extraviado, sem prejuízo do que deu ordem à entidade sacada nesse sentido, afim de evitar o seu pagamento”; 10. “Actuou com o propósito de causar prejuízo económico à ofendida, o que conseguiu, pois que aquela ficou privada dos proventos inerentes aos serviços prestados, que ainda não se mostram pagos” e 11 “Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei”.
34 - Termos em que deverá ser reanalisada a prova parcialmente transcrita das testemunhas, A…., F…. e I…., no sentido de considerar não haver prova bastante do elemento prejuízo patrimonial.
35 - Na perspectiva do recorrente, o prejuízo patrimonial não é contemporâneo da emissão do cheque (a relação subjacente é anterior já o tinha causado) pelo que, o cheque em causa é indiferente para a existência do prejuízo patrimonial pressuposto do crime em questão.
36 - O recorrente a seu ver, com o comportamento plasmado na audiência entende que deveria ser absolvido, porquanto o cheque se destinava a pagar “I dívida que deveria ter sido liquidada em data anterior. II - O não pagamento de um cheque, que se ficou a dever ao facto de o sacador ter comunicado ao banco sacado que o mesmo se tinha extraviado, o que sabia ser falso, não é criminalmente punível, uma vez o motivo invocado - falso extravio - não constitui levantamento de fundos, nem proibição de pagamento ... - Acórdão de 7 de Fevereiro de 2007 (publicado in Col. Jur. de Acórdãos da Relação do Porto, 2007 Tomo I, pago 211)
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. sabiamente saberão suprir, deverá ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se a decisão recorrida por outra que absolva o arguido e assim se fará JUSTIÇA

3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, defendendo a confirmação da sentença recorrida, mediante as seguintes conclusões (transcrição):
«I – A decisão recorrida é inatacável, porque fundamentada e foi proferida em obediência à lei – art. 70.º e 71.º do Cód. Proc. Penal.
II – In casu, ocorreu prejuízo patrimonial quando o cheque é devolvido ao ofendido com a menção de “revogado por extravio”.
III – A falsa declaração de extravio de cheque redunda numa ordem de proibição de pagamento do cheque, integrando crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo art. 11.º, n.º1, al. b) do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28.12.
IV – Não foi violado qualquer imperativo legal.
V – A decisão recorrida não merece reparo e deve ser mantida na íntegra

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que o mesmo não merece provimento, devendo ser apenas rectificado o lapso material que se verifica na indicação da multa global (cfr. fls. 326 a 328, renovado a fls. 375).

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º1, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, podia este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões das motivações dos recorrentes.
Assim, segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
O recorrente identifica como questões a apreciar, nas conclusões que formulou após aperfeiçoamento: a impugnação da matéria de facto dada como provada – de modo a decidir-se que não se verifica o requisito do “prejuízo patrimonial”, por não ser este, alegadamente, contemporâneo da emissão do cheque, invocando-se, a este respeito, os princípios “in dubio” e da aplicação do regime mais favorável; os vícios de contradição insanável da fundamentação, da insuficiência para a decisão da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova; a inexistência dos elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão.
Mais adiante, apreciaremos, detidamente, o âmbito a dar ao recurso.

2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados o seguintes factos (transcrição):
1. O arguido voluntariamente inscreveu – no cheque n.º 23474653, relativo a uma conta de que era titular a “F…. – Comércio de Peles, Lda.”, da qual era representante legal, aberta na agência de Santa Maria da Feira do então BES, com o número YYYYYYYY –, nos locais destinados à data de emissão e ao montante titulado, respectivamente, 15/03/05 e € 4.098,69 (quatro mil noventa e oito euros e sessenta e nove cêntimos).
2. De seguida endereçou-o à ofendida “CV, Lda.”, destinando-se o mesmo ao pagamento de serviços que esta havia prestado à “F…. – Comércio de Peles, Lda.”, titulados pelas facturas n.º s 0741 e 0742, nos valores, respectivamente, de € 3.732,43 (três mil setecentos e trinta e dois euros e quarenta e três cêntimos) e de € 366,26 (trezentos e sessenta e seis euros e vinte e seis cêntimos).
3.Apresentado a pagamento na agência de Alcanena do BCP pela ofendida, em 21/03/05, o cheque não foi pago, tendo sido devolvido com a menção, aposta no seu verso e datada de 24/03/05, de “revogação por extravio”.
4. Em 23/03/05, o arguido, na qualidade de representante legal da “F…. – Comércio de Peles, Lda.”, dirigira, à agência de Santa Maria da Feira do então BES, fax ordenando a anulação do cheque, por motivo de “revogação / desaparecimento”.
5. Em 15/03/05, assim como em 21/03/05, a conta sobre que foi sacado o cheque, não dispunha de quantias em depósito suficientes para o seu pagamento.
6. As despesas originadas pela devolução do cheque cifram-se em € 12,00 (doze euros), que a ofendida suportou.
7. Na agência de Alcanena do BCP, a ofendida sentiu constrangimento por força do motivo de devolução explanado no verso do cheque.
8. O arguido sabia que o cheque endereçado à ofendida não havia desaparecido ou sido extraviado, sem prejuízo do que deu ordem à entidade sacada nesse sentido, a fim de evitar o seu pagamento.
9.Não ignorava a insuficiência de fundos na conta sacada à data do envio do cheque, não se tendo coibido de o pôr em circulação, sem que estivesse assegurado o seu pagamento pela entidade sacada até ao termo do prazo legal.
10.Actuou com o propósito de causar prejuízo económico à ofendida, o que conseguiu, pois que aquela ficou privada dos proventos inerentes aos serviços prestados, que ainda não se mostram pagos.
11. Sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.
12. Não obstante não deixou de actuar como actuou, agindo de forma livre, deliberada e consciente.
13. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
2.2. Quanto a factos não provados consignou-se (transcrição):
Não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, a qual, cotejada com as regras da experiência, se revelou suficiente em ordem a, para além de qualquer dúvida razoável, dar como provados os factos pelos quais o arguido foi acusado.
Com efeito, o arguido, no uso de direito que legalmente lhe assiste, optou por não prestar declarações, pelo que não pôde este Tribunal auscultar a sua versão dos factos. As três testemunhas arroladas pela acusação, comuns ao pedido de indemnização civil, A…., F…. e I…., depuseram de forma coerente, isenta e séria, pelo que mereceram a credibilidade deste Tribunal. Todas corroboraram a factualidade vertida na acusação, tendo esclarecido que entre a ofendida – na qual todos trabalham – e a sociedade de que o arguido era representante legal intercediam relações comerciais, e que este inicialmente cumpriu com o pagamento dos serviços que eram prestados a essa mesma sociedade, o que, todavia, deixou de fazer. Foi instado sucessivamente no sentido de pagar as duas facturas que totalizavam o montante titulado pelo cheque em apreço, após o que acabou por comunicar, via telefone, a uma sexta-feira, que o cheque seguia por correio, tendo sido enviado com data de 15 de Março, e recepcionado em 21 de Março, data em que foi depositado. Todas esclareceram, ainda, que não se tratava de cheque pré-datado e que, inclusivamente, o saldo bancário da ofendida apresentou valor negativo à conta da devolução do cheque, uma vez que esta contava com o respectivo dinheiro para fazer face a outros encargos. Foi, por fim, salientado o incómodo e o constrangimento causados com a conduta do arguido perante a instituição bancária.
As testemunhas arroladas pela defesa, VT e AA ainda, considerados os documentos pertinentes juntos aos autos, designadamente a fotocópia do cheque, a ordem de não pagamento dada pelo arguido e o CRC.

3. Apreciando
3.1. Resulta da análise das conclusões da motivação, após convite ao aperfeiçoamento, que o recorrente discorda da matéria de facto dada como provada.
Como se disse supra, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente concretamente identifique nas conclusões da motivação. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).

3.2. A audiência de julgamento decorreu já na vigência das alterações do C.P.P. operadas pela Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, que entraram em vigor no dia 15 de Setembro de 2007, sendo tais alterações de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior, conforme dispõe o artigo 5.º, n.º1, do referido código.
Quer isto dizer que o recurso foi já interposto ao abrigo do C.P.P. revisto.

3.3. Porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, «devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º4.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas concretamente indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, www.dgsi.pt).
Saliente-se que também o recurso que verse matéria de direito exige a indicação nas conclusões: das específicas normas jurídicas violadas; do sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e do sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; em caso de erro na determinação da norma aplicável, da norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (artigo 412.º, n.º2).

3.4.O artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., determina que se a motivação do recurso não contiver conclusões ou se estas forem deficientes – quando delas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.º 2 a 5 do artigo 412.º –, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, «sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada». Em todo o caso, o aperfeiçoamento das conclusões não consente que se modifique o âmbito do recurso fixado na motivação (artigo 417.º, n.º4). Quer isto dizer que o aperfeiçoamento das conclusões não se pode traduzir num aperfeiçoamento do corpo da motivação que aquelas conclusões devem, apenas, sintetizar.

3.5. No caso em análise, constata-se que o recorrente, na sequência de convite ao aperfeiçoamento das conclusões, aditou às primitivamente apresentadas as que vêm indicadas a partir do n.º15.
Mais que duplicou o número das conclusões, sendo certo que não só estas excedem o âmbito definido pelo corpo da motivação, mas continuam a não cumprir os ónus de especificação legalmente impostos.
O recorrente refere-se genericamente aos depoimentos de testemunhas, transcrevendo na motivação algumas frases, sem fazer qualquer menção às gravações que é suposto o tribunal ouvir, ou seja, sem concretização das passagens das gravações em que se funda a impugnação.
Aliás, é claro que o recorrente pretende demonstrar que o prejuízo patrimonial sofrido pela ofendida não foi contemporâneo da emissão do cheque, já que este se destinava ao pagamento de serviços titulados por facturas emitidas em datas anteriores.
Ora, é o próprio tribunal a quo a considerar provado que o cheque em questão, emitido em 15 de Março de 2005, se destinava ao pagamento de serviços que a ofendida havia prestado à sociedade de que o arguido era legal representante, titulados pelas facturas n.º 0741 e 0742, nos valores, respectivamente, de € 3.732,43 (três mil setecentos e trinta e dois euros e quarenta e três cêntimos) e de € 366,26 (trezentos e sessenta e seis euros e vinte e seis cêntimos).
Quer isto dizer que o tribunal recorrido não teve qualquer dúvida quanto ao facto do cheque em questão se destinar ao pagamento de serviços prestados anteriormente e a que se reportam facturas também anteriormente emitidas.
Saber se o não pagamento do cheque, nessas circunstâncias, causou o “prejuízo patrimonial” que a lei exige como elemento do tipo de crime, constitui outra e diversa questão, que não depende tanto da prova, mas antes do modo de interpretar o que seja tal “prejuízo”.
Certo é que o recorrente, afirmando nas conclusões aperfeiçoadas, “que pretende impugnar de forma ampla a sentença recorrida” (cfr. n.º 28 e 29), não o fez pela forma legalmente imposta.
Ao invés de suprir as deficiências, o recorrente continuou a remeter para depoimentos, em termos genéricos e sem alguma vez cumprir o ónus de especificação das concretas provas gravadas, com indicação (concretizada) das passagens das gravações em que se fundava a impugnação (não havendo lugar a transcrição) e que são aquelas que o tribunal deve ouvir (para além de outras que repute de relevantes).
Em bom rigor, afigura-se-nos, neste momento, que o recorrente nem sequer deveria ter sido convidado a corrigir as conclusões, porquanto a insuficiência não estava nelas, mas antes no próprio corpo da motivação, que não continha as especificações exigidas por lei e não é susceptível de aperfeiçoamento (cfr. Ac. do STJ de 31/10/2007, Processo: 07P3218, www.dgsi.pt).
Face ao exposto, é forçoso concluir que o recurso interposto, no que concerne à impugnação alargada da matéria de facto com base na apreciação de prova pessoal produzida em audiência, não preenche os requisitos legais que habilitariam ao seu conhecimento, por incumprimento dos respectivos ónus de especificação.

3.6.Temos, assim, que o recurso não pode ser conhecido enquanto impugnação ampla da matéria de facto.
Da análise da sentença recorrida resulta que o tribunal a quo analisou a documentação junta, considerou os testemunhos prestados, tudo sopesou no âmbito da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.) e acabou por decidir quanto à matéria de facto.
Da decisão recorrida não se infere que, no processo de valoração e decisão, no âmbito da livre apreciação, tenha o tribunal a quo actuado contra a lei ou de modo desconforme aos ditames da razão, da lógica e da experiência comum.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios de conhecimento oficioso.
Em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
Quanto à “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este vício, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Quanto à “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Desde já adiantamos que, a nosso ver, do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios, cuja invocação se revela, pois, destituída de fundamento.
Aliás, afigura-se-nos que recorrente faz confusão entre insuficiência para a decisão da matéria de facto, contradição insanável e erro notório na apreciação da prova, com o recurso alargado sobre a matéria de facto e a apreciação de direito.
No fundo, o que o recorrente impugna, sob a invocação dos referidos vícios, é o facto de o tribunal, face à prova produzida, ter dado como provado o prejuízo patrimonial da ofendida.
Ora, a fundamentação do tribunal é suficientemente esclarecedora dos motivos que levaram a dar como provados os factos constantes da sentença e certamente a discordância do recorrente quanto à valoração das provas não integra qualquer dos vícios da decisão enunciados no artigo 410.º, n.º2.
Por outro lado, a alegada não verificação de um dos elementos do tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão, no caso, a verificação de existência de prejuízo patrimonial, que o recorrente pretender reconduzir a um dos vícios do artigo 410.º, n.º2, também não encontra aí qualquer cabimento.
Mais concretamente, quanto à conclusão de facto atinente ao prejuízo patrimonial, nos pronunciaremos a seguir.
Não sem que antes seja de realçar que do teor da sentença recorrida não resulta que esta haja violado qualquer princípio ou regra sobre provas, não tendo sustentação a invocação de que teria sido infringido o princípio in dubio pro reo.
Por um lado, não resulta da sentença que o tribunal tenha ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado dubitativo, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido; por outro, não se encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida, razão pela qual não havia que apelar ao princípio in dubio, também nada nos permite concluir que o devesse estar.

3.7. As questões fundamentais que importa apreciar são: da verificação ou não do requisito do “prejuízo patrimonial”; saber se a falsa declaração de extravio, num caso como o dos autos em que a conta sacada também não dispunha de fundos suficientes, integra os requisitos do tipo de crime de emissão de cheque sem provisão.

3.7.1. O regime jurídico-penal do cheque sem provisão encontra-se previsto no Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Setembro (além de outras, como as do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro e da Lei nº 48/2005, de 29 de Agosto).
Dispõe o artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção em vigor na data da prática dos factos:
«1 - Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a (euro) 62,35 que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou
c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores;
se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com a pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se valor elevado o montante constante de cheque não pago que exceda o valor previsto no artigo 202.º, alínea a), do Código Penal.
3 - O disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
4 - Os mandantes, ainda que pessoas colectivas, sociedades ou meras associações de facto, são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento de multas e de indemnizações em que forem condenados os seus representantes pela prática do crime previsto no n.º 1, contanto que estes tenham agido nessa qualidade e no interesse dos representados.
5 - A responsabilidade criminal extingue-se pela regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1.º-A.
6 - Se o montante do cheque for pago, com reparação do dano causado, já depois de decorrido o prazo referido no n.º 5, mas até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena pode ser especialmente atenuada
O crime de emissão de cheque sem provisão é hoje um crime de dano que tem por valor primordialmente tutelado o património do tomador do cheque (cfr. Prof. Figueiredo Dias, CJ, XVII, III, pp. 67 e ss.; Prof. Germano Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, Principia, 1997, pp. 21 e 48, Prof. Taipa de Carvalho, Crime de Emissão de Cheque sem Provisão, Coimbra Editora, 1998, pp. 12 e ss. e Tolda Pinto, Cheques sem Provisão, Coimbra, Editora, 1998, pp.148 e ss.), ainda que, num segundo plano, se continue a tutelar a credibilidade do cheque enquanto meio de pagamento.
Enquanto meio de pagamento, apenas tem tutela penal, face ao disposto no n.º 3 do artigo 11.º, o cheque que se destina a pagamento imediato, sendo excluídos dessa tutela, como se pode ler no relatório preambular do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, os denominados cheques de garantia, os cheques pós-datados e todos os que não se destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente.
Quer isto dizer que não tem tutela penal o cheque cuja data de emissão seja posterior à da sua efectiva entrega ao tomador, o cheque destinado a funcionar como instrumento de crédito ou como instrumento de garantia penal do pagamento ou do cumprimento (futuro) de uma obrigação contratual.

3.7.2. São elementos constitutivos do tipo de crime, no que agora nos importa:
- Que o agente emita e entregue a outrem cheque, ou entregue a outrem cheque sacado por terceiro, para pagamento de quantia superior a € 62,35 (€150 com as alterações introduzidas pelo Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto), e antes ou após a entrega levante os fundos necessários ao seu pagamento, proíba à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerre a conta sacada ou, por qualquer modo, altere as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque;
- Que, consequentemente, a instituição sacada recuse o pagamento do cheque;
- Que ao assim actuar, o agente cause prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro;
- O dolo genérico, que se traduz no conhecimento e vontade de praticar o facto, sabendo o agente que o mesmo é ilícito.
Vejamos em que se traduz a causação de “prejuízo patrimonial” ao legítimo portador do cheque.

3.7.2.1. Conforme salienta Tolda Pinto, com a menção expressa ao elemento objectivo “prejuízo patrimonial” o legislador pretendeu, por um lado, sublinhar a função económica do cheque, enquanto meio de pagamento à vista e, por outro, salientar o valor protegido pela incriminação – o interesse patrimonial do portador legítimo do cheque (ob. cit., pp. 148 e 149).
No que concerne à noção de património, enquanto bem jurídico-criminal, debatem-se na doutrina três teses fundamentais: a concepção jurídica, a económica e a jurídico-económica de património.
O património, na concepção jurídico-económica – aceite de forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência – consiste no conjunto de utilidades económicas detidas por uma pessoa e tuteladas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cuja fruição essa ordem jurídica não desaprova (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit. p. 68, Prof. Germano Marques da Silva, ob cit., p. 53 e Tolda Pinto, ob. cit. p. 149).
Deste modo, o “prejuízo patrimonial” traduz-se na «frustração efectiva de utilidades avaliáveis em dinheiro, cuja fruição a ordem jurídica tutela ou não desaprova» (Prof. Germano Marques da Silva, ob cit., p. 54).
Aplicando este conceito ao crime de emissão de cheque sem provisão, temos que o seu elemento constitutivo “prejuízo patrimonial” é, pois, «a frustração do direito do portador do cheque de receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito em razão de uma obrigação subjacente ao cheque de que é credor e para cujo pagamento o cheque serviu» (Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit. p 54).
Comparando os conceitos de prejuízo usados no domínio cambiário (em que relevam as características de legitimação, literalidade e abstracção) e no âmbito penal, conclui o Prof. Germano Marques da Silva: «Para efeitos de tutela penal, o cheque é considerado apenas como meio de pagamento. Efectuado o pagamento por meio de cheque, o credor tem o direito a receber o valor desse cheque, não simplesmente porque dele é portador, mas porque tinha a posição de credor na relação jurídica que subjaz ao cheque e que este se destinou a satisfazer. Assim, se a relação jurídica subjacente não é juridicamente válida ou se o pagamento a que o cheque se destina não é devido, o não-pagamento do cheque não causará prejuízo» (ob. cit., p. 59).

3.7.2.2. Já se pretendeu – e pretende o recorrente – que o não pagamento de cheque destinado a pagar dívidas contraídas anteriormente à sua emissão não causa prejuízo patrimonial ao seu portador, já que a dívida civil se manteria no seu património.
Tal entendimento não merece a nossa concordância. Em face do já enunciado critério jurídico-económico de património, um direito de crédito exigível, que tem uma fonte lícita, não pode deixar de integrar o património do credor, pelo que a não realização desse direito do credor consubstancia um prejuízo patrimonial.
Conforme salienta o Prof. Germano Marques da Silva, acordado o cumprimento de uma obrigação mediante a entrega de um cheque (datio pro solvendo) e não sendo este pago quando tempestivamente apresentado a pagamento, o portador sofre um dano patrimonial positivo que corresponde à quantia que tinha direito de receber nessa data e para cujo pagamento o cheque serviu (ob. cit., p. 54).
A referia preexistência da dívida em relação à emissão do cheque não retira a este a tutela penal, pois não estamos face a um cheque pós-datado ou de mera garantia.
No rigor dos termos, todas as dívidas são preexistentes aos respectivos pagamentos, pois só se paga aquilo que se deve.
Em lado algum se impõe que o cheque só tenha tutela penal quando o pagamento por cheque seja efectuado como contrapartida da imediata entrega das mercadorias ou da prestação de serviços.
O que se exige é que o cheque se destine ao pagamento imediato de quantia e não que sejam contemporâneas a sua emissão e a celebração do negócio jurídico subjacente, fonte da obrigação.
Como já se disse, a exigência legal do elemento “prejuízo patrimonial” visou a eliminação da tutela penal dos cheques para satisfação de obrigação futura ou destinados a servir de mera garantia penal de cumprimento.
Tal não ocorre quando, à data da emissão do cheque, a obrigação já existia ou se constituiu em acto simultâneo ao da emissão do título.
O que importa, a nosso ver, é que o portador do cheque, na data em que este lhe foi entregue, tenha direito a receber o montante nele inscrito, o que evidentemente sucede no caso dos autos, não resultando da matéria provada que se tratasse de cheque pós-datado.

3.7.2.3.O Acórdão do S.T.J. nº 1/2007, de 30 de Novembro de 2006 (DR, I, n.º 32, de 14/02/2007), fixou jurisprudência nos seguintes termos:
«Integra o conceito de «prejuízo patrimonial» a que se reporta o nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, o não recebimento, para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, aquando da sua apresentação a pagamento, do montante devido, correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento.»
Ponderou-se neste aresto que não releva, para efeitos da concretização do elemento típico “prejuízo patrimonial”, o prejuízo decorrente do não pagamento da obrigação cartular que o cheque consubstancia, mas antes o prejuízo derivado do não pagamento da obrigação subjacente à emissão do cheque. O prejuízo patrimonial situa-se na não satisfação da obrigação subjacente, no pressuposto de que aquela se constituiu validamente e é exigível.
Cremos que a fixação de jurisprudência pelo S.T.J. se orientou no sentido preconizado pelo Prof. Germano Marques da Silva, atrás referido, e que aqui perfilhamos (no sentido aqui defendido, indicam-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos: da Relação de Lisboa, de 7.05.2003, processo n.º 615/2003-3; da Relação de Lisboa, de 14-07-2004, processo n.º 3975/2004-3; da Relação do Porto, de 3.11.2004, processo n.º 0442434; da Relação do Porto, de 21.03.2007, processo n.º 0511579; da Relação de Guimarães, de 20-03-2006, processo n.º 103/06-1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

3.7.2.4. Assim, há que averiguar se a emissão e entrega do cheque significa assumir validamente uma obrigação, própria ou alheia, igualmente lícita, para ser cumprida na data da emissão e entrega do cheque, que desta forma funcionará como meio imediato de pagamento da relação causal. Quando tal suceder, o não pagamento do cheque lesará os interesses patrimoniais do respectivo portador (cfr. Tolda Pinto, ob. cit., 150).
Como dissemos supra, o que importa é que o portador do cheque, na data em que este lhe foi entregue, tenha direito a receber o montante nele inscrito, o que sucede no caso dos créditos em causa e não é posto em causa pelo recorrente.
O cheque foi emitido para pagamento imediato de uma dívida que efectivamente existia e era exigível. Ao recebê-lo a ofendida criou uma expectativa legítima de obtenção económica, a qual se frustrou com o não pagamento pela respectiva instituição bancária. Houve, pois, um prejuízo patrimonial, independentemente da anterioridade temporal do negócio subjacente, naufragando a argumentação contrária desenvolvida pelo recorrente.

3.7.3. Assente a verificação de prejuízo patrimonial e bem assim a inexistência de qualquer vício da decisão de facto, os factos dados como provados e as respectivas conclusões de facto não merecem qualquer censura.

3.7.4. No caso em apreço, o cheque foi apresentado a pagamento, em 21.03.2005, sendo devolvido com a menção, aposta no seu verso, de “revogação por extravio”.
Está provado que o arguido, em 23.03.2005, dirigiu à instituição bancária um fax a ordenar a anulação do cheque, por motivo de “revogação/desaparecimento”.
E também está provado que em 15.03.2005, assim como em 21.03.2005, a conta sobre que foi sacado o cheque não dispunha de quantias em depósito suficientes para o seu pagamento.
Invoca o recorrente que o motivo da recusa de pagamento não integra o elenco legal dos motivos concretos de não pagamento constantes do artigo 11.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 454/91.
Não há dúvida de que a falsa comunicação de desaparecimento do cheque não foi mais do que um expediente habilidoso para evitar que o cheque viesse a ser devolvido por falta de fundos, já que está demonstrado nos autos que a conta sacada não estava provisionada de modo a permitir o seu pagamento.
É relativamente frequente a comunicação de extravio de cheques ou a invocação de falta ou vícios da vontade como fundamentos (falsos) para a revogação de cheques.
A verdade é que o recorrente, através do expediente utilizado, logrou proibir à instituição bancária o pagamento do cheque, sendo certo que a conta sobre a qual o cheque fora sacado também não tinha fundos bastantes que permitissem o seu pagamento.
A alínea b) do n.º1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91 prevê, como conduta típica, o acto de proibir à instituição sacada o pagamento de cheque em circulação.
Tem-se discutido, a este propósito, além do mais, o âmbito do poder de revogação do cheque e a eventual responsabilidade do sacado perante o portador, e bem assim se a falsa declaração de extravio poderá integrar ou não um crime de falsificação de documento (questionando-se que documento seria objecto dessa falsificação).
A nosso ver, o fax que o recorrente dirigiu à instituição bancária a ordenar a anulação do cheque, por motivo (não correspondente à verdade) de “revogação/desaparecimento” traduziu-se numa contra-ordem de pagamento ou de revogação do cheque, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação.
Tratou-se, pois, de uma comunicação ao banco no sentido de proibir o pagamento do cheque, com uma particularidade assinalável: no caso, o recorrente sabia que a conta de depósitos sacada não registava fundos que possibilitassem o pagamento, pelo que, a não ser este recusado por motivo de revogação do cheque, sempre seria recusado por insuficiência de fundos na conta sacada.
Tal actuação, a nosso ver, traduz-se numa injustificada proibição de pagamento do cheque e preenche a conduta típica prevista no artigo 11.º, n.º1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 454/91 (cfr. Tolda Pinto, ob. cit., pp. 162 a 165).
Entendemos, por conseguinte, que estando verificados os demais elementos constitutivos do tipo de crime e a condição objectiva de punibilidade, o recorrente não podia deixar de ser condenado pelo crime imputado.
Atente-se que, quanto ao tipo subjectivo, está provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que devia o cheque, que o cheque em causa não havia desaparecido e que a conta sacada tinha insuficiência de fundos, sabendo, outrossim, que a sua conduta era proibida e punida pela lei. Agiu portanto, dolosamente.

3.8. Aqui chegados, não se vislumbra minimamente que a sentença recorrida tenha violado qualquer dos preceitos legais indicados pelo recorrente. Aliás, parece-nos mesmo que a indicação desses preceitos foi realizada de forma pouco criteriosa e injustificada: por exemplo, de que modo poderia o tribunal a quo violar o artigo 412.º do C.P.P. que tem como destinatário o recorrente e não o tribunal? Com que fundamento se invoca a violação do princípio da aplicação da lei mais favorável? A sentença recorrida não denota a verificação de qualquer das referidas violações.

3.9. No que concerne à determinação da pena e ao pedido de indemnização civil, o recorrente nada adianta, sendo que também nessa parte a sentença não merece qualquer reparo, para além da correcção do manifesto lapso de escrita, que o contexto claramente evidencia, que se traduziu na indicação do montante global da multa aplicada ao recorrente: que é de €1680 e não de €1620, como erradamente consta da sentença (cfr. artigo 380, n.º1, al.b) e 2), do C.P.P.).
Concluindo:
O recurso terá de improceder

III – Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se a condenação do arguido/recorrente, mas corrigindo-se o lapso de escrita na indicação do montante global da multa, que é de €1.680 (mil e seiscentos e oitenta euros) e não de €1.620 (mil e seiscentos e vinte euros) como consta da sentença recorrida.
Condena-se o arguido nas custas, fixando-se em 5 Ucs a taxa de justiça.

Coimbra,
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
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(Jorge Gonçalves)

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(Jorge Raposo)