Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
282/07. 7GAALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CRIME DE COACÇÃO E CRIME DE AMEAÇAS
CONCURSO APARENTE DE NORMAS
Data do Acordão: 10/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 153.º E 154.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. - O concurso aparente assenta no pressuposto de que várias normas concorrem só em aparência, porquanto uma delas há-de excluir as outras por virtude da ocorrência, entre as normas de uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção – cfr. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, vol. II, pág. 1033.
II. – A mera comparação dos elementos constitutivos dos tipos de crime descritos na lei não são, em si só, o único critério para determinar as relações de parentesco que se estabelecem entre os diversos preceitos penais devendo o interprete atender aos valores ou bens jurídicos tutelados pelos diferentes tipos legais de crime, sendo que alguns desses bens jurídicos são formados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais protegem, outros resultam de se acrescentar um elemento novo ao valor ou bem jurídico doutro tipo e outros ainda são entre si diversos só porque exprimem no plano criminal a especifica significação de diferentes formas ou graus de ofensa de um mesmo interesse ou valor (cfr. Eduardo Correia (in Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 130 e segs); e Jescheck, Tratado de Derecho Penal, pág. 674).
III. - Se numa determinada situação de facto acontece que a reacção contra a valoração concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos lato se efectiva já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos ocorre uma relação de consumpção em que a norma que mais extensamente proteger o complexo jurídico-penal em presença consome a norma que em menor amplitude o fizer.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO.

veio interpor recurso da sentença que o condenou pela prática de um crime de coacção p. e p. pelo artigo 154º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 e, de um crime de ameaças p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 do mesmo Código, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária € 6,00.

Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena de 135 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, num total de € 810,00.

Na procedência parcial do pedido de indemnização civil formulado pelo assistente …, foi o arguido condenado no pagamento de € 500,00 a título de danos não patrimoniais.

A sua discordância encontra‑se expressa na motivação de recurso de onde retirou as seguintes conclusões:

1- O tribunal deu como provados os factos constantes das páginas 1 e 2 da sentença, assim como não provados os factos constantes das páginas 2 e 3 da sentença mormente que: - O arguido tivesse proferido as seguintes expressões: - que havia de ficar aos bocados na estrada; que quando o apanhasse sozinho o rebentava todo e que só ainda não o tinha feito por o não ter encontrado sozinho; - o (demandante) fechasse a vala por temer pela sua vida e integridade física (o sublinhado é nosso); - o arguido quisesse apavorar o queixoso; - o arguido dissesse que a vala tinha de ser fechada em 4 dias; ­- até hoje o demandante não conseguisse ultrapassar o medo que sente em relação ao demandante de forma a poder estar na sua presença, naturalmente; - estes acontecimentos provocassem alterações ao estado de saúde do demandante, já pessoa doente bem como a sua esposa agravando-os,

2- O Tribunal singular em que se baseia para condenar o arguido? Exclusivamente, “no depoimento do ofendido … e na esposa … que confirmaram a matéria descrita na acusação e que depuseram quanto às palavras pronunciadas pelo arguido, embora por vezes não tenha usado as palavras descritas na acusação mas outras de significado similar, o que se compreende face ao tempo decorrido” (sic).

3- No nosso ordenamento jurídico, está soberanamente consagrado o princípio da presunção de inocência, estabelecido no Art. 32°, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa, segundo o qual ninguém pode ser punido ou sujeito a uma pena ou sanção acessória sem que a sua culpabilidade fique demonstrada inequivocamente e sem mácula de dúvida. Contrariando tal disposição de direito positivo inequívoco o tribunal a quo não aplicou o princípio com rigor, qualidade e inquestionabilidade. Errou na apreciação da prova, violou o art. 410º, n.º 2. al. c) do CPP. Deve por isso o arguido ser absolvido.

4- Ademais, atente-se à contraditoriedade entre os factos dados como provados e os como não provados. É nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do art. 374° do CPP, segundo o qual "ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal". O tribunal dá como não provados os factos atrás enunciados, os quais contradizem os pressupostos de direito para a aplicação dos crimes a que veio a ser condenado o arguido. Com a agravante de a própria sentença dizer, expressa e explicitamente que no depoimento do ofendido .... .e na esposa .....que confirmaram a matéria descrita na acusação e que depuseram quanto às palavras pronunciadas pelo arguido, embora por vezes não tenha usado as palavras descritas na acusação mas outras de significado similar, o que se compreende face ao tempo decorrido. Ora é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (art. 379º, n.º 1, al. b) do CPP). Ao admitir que condenou o arguido por palavras não descritas na acusação, o tribunal violou o dispositivo legal mencionado.

5- Ora, o tribunal a quo não aplicou o princípio in dúbio pró reo com rigor, qualidade e inquestionabilidade. Errou na apreciação da prova, violou o art. 410º n.º 2. al. c) do CPP. Deve o arguido ser absolvido.

6- Sem prescindir, dir-se-á ainda o seguinte: Não é legítimo concluir-se pela existência do Crime de Coacção: Consequentemente errou o tribunal recorrido na qualificação Jurídica: Dispõe o art. 154°, n.º 1, pelo qual foi condenado o arguido que, "quem por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". Ora a juiz a quo deu como não provado que - o queixoso fechasse a vala por temer pela sua vida e integridade física (o sublinhado é nosso); Ao dar tal facto como não provado, nenhum outro receio poderia atemorizar o queixoso a consumar contra a sua vontade, determinado procedimento. Até porque a douta sentença não fundamenta e não refere em que circunstâncias o queixoso ficou determinado por "um mal importante". Qual mal, se não se trata de receio de agressão física ou equivalente?! Inexiste, por explicação da própria sentença fundamento para a condenação pelo crime de coacção simples, pelo que foi violado nos seus propósitos e pressupostos o art. 154°, n.º 1 do CP, do qual, aliás, o arguido nem sequer estava acusado.

7- Não é legítimo concluir-se pela existência do Crime de Ameaças; Consequentemente errou o tribunal recorrido na qualificação jurídica. Mutatis mutandis, a mesma argumentação atrás indicada para o crime de coacção simples é aplicável ao crime de ameaças. Ora, o queixoso não fechou a vala por temer pela sua vida e integridade física (o sublinhado é nosso); não foi dado como provado que o arguido quisesse apavorar o queixoso; Não foi provado que até hoje o demandante não conseguisse ultrapassar o medo que sente em relação ao demandante ( a juiz quereria dizer o arguido) de forma a poder estar na sua presença, naturalmente. Não foi provado que os acontecimentos provocassem alterações ao estado de saúde do demandante, já pessoa doente, bem como a sua esposa agravando-os. Ou seja, nenhum pressuposto relevante foi dado como provado para cumprir, os requisitos essenciais para a consumação do crime de ameaças. Foi violado o art. 153°, n.º 1 do CP.

8- E, mesmo que assim se não entendesse, sempre a pena deveria ter sido especialmente atenuada. O Tribunal a quo, violou os termos dos art.s 72°, n.º 2 al. d) e 73°, n.º 1 al. a) do CP.

9- A pena concreta é excessiva e injusta. Atentas as circunstancias dos crimes, a terem ocorrido na sua plenitude, o que não se concebe, e o facto de se tratar de arguido sem antecedentes criminais relevantes dada até a situação familiar e profissional, considera-se que foram violados os determinativos da medida da pena (art. 71° do CP), os quais deveriam ter sido levados mais em conta, ou seja mais brandamente, pelo tribunal singular. Nestes termos, deverá ser a pena alterada para uma pena única de 50 dias de multa, pena final cumulada que se mostraria adequada e suficiente para punir cabalmente a conduta eventualmente negativa do recorrente. O juiz a quo violou o art. 71 ° do CP.
Respondeu a Magistrada do MºPº junto do tribunal “a quo” pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Nesta instância, também o Exmº Procurador-Geral Adjunto, acompanhando o entendimento expresso na resposta, emitiu parecer no mesmo sentido.

Os autos tiveram os vistos legais.

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

Factos provados

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

Entre o queixoso … e o arguido existe um litígio relativo a um caminho sito em T….; Ribeira de Fráguas, Albergaria-a- Velha.

Aconteceu que, no dia 11/05/2007, o queixoso mandou efectuar uma vala ao cimo do referido caminho de forma a evitar o seu uso pelo arguido.

Na sequência de tal facto, no dia 14-05-2007, cerca das l0h30m, o arguido dirigiu-se até junto da residência do queixoso, sita na...., em T….., Ribeira de Fráguas.

Aí chegado, dirigindo-se e referindo-se ao queixoso que bem o ouviu, o arguido vociferou as seguintes expressões:

- Que onde o encontrasse o esfarrapava todo;

- Que a sua cabeça havia de ficar esmagada conforme estava o seu barrete;

- Que se não fechasse a vala ia lá com o tractor e partia-lhe tudo

Ainda nesse dia, cerca das 19h00m, no mesmo local, o arguido dirigiu ao queixoso expressões não concretamente apuradas mas de teor semelhante às acima referenciadas.

Mercê das palavras que lhe foram endereçadas pelo arguido, o queixoso procedeu ao fecho da sobredita vala.

Ao actuar da forma acima descrita o arguido quis e conseguiu atemorizar o queixoso de forma adequada a que este procedesse ao fecho da vala que tinha aberto no mencionado caminho.

Também quis e conseguiu atormentar o queixoso.

Agiu livre, voluntária e conscientemente.

O arguido conhecia a proibição legal das suas condutas.

O arguido é madeireiro auferindo mensalmente cerca de 750 €.

A esposa aufere 380 € mensais.

Tem dois filhos a cargo.

O arguido é pessoa com bom comportamento anterior e posterior à prática dos factos que lhe foram imputados.

Não se provou que

O arguido tivesse proferido as seguintes expressões: - "que havia de ficar aos bocados na estrada";

- que quando o apanhasse sozinho o rebentava todo e que só ainda não o tinha feito por o não ter encontrado sozinho;

- o ofendido fechasse a vala por temer pela sua vida e integridade física;

- o arguido quisesse apavorar o queixoso.

- o arguido dissesse que a vala tinha de ser fechada em 4 dias

- até hoje o demandante não conseguisse ultrapassar o medo que sente em relação ao demandante de forma a poder estar na sua presença, naturalmente.

- estes acontecimentos provocassem alterações ao estado de saúde do demandante, já pessoa doente, bem como a sua esposa agravando-os.

Motivação:

O tribunal fundou a sua convicção:

- no CRC do arguido;

No depoimento do ofendido … e esposa … que confirmaram a matéria descrita na acusação e que depuseram quanto às palavras pronunciadas pelo arguido, embora por vezes não tenha usado as palavras descritas na acusação mas outras de significado similar, o que se compreende face ao tempo decorrido.

Depuseram, ainda quanto às circunstâncias em que ocorreram os factos.

O arguido depôs quanto à sua situação pessoal.

As restantes testemunhas não tinham conhecimento presencial dos factos.

Todas depuseram de forma favorável quanto ao carácter do arguido.

As testemunhas … e …, agentes da GNR presentes afirmaram que no local existia uma vala num caminho, desconhecendo se esse caminho é público ou privado e que junto da vala estava estacionada uma carrinha.

Quanto ao pedido de indemnização civil embora tenha resultado do depoimento da esposa do ofendido que o mesmo terá ficado afectado com as palavras do arguido, delas não resultaram consequências tão graves como as que resultam desse pedido.

APRECIANDO

Como é sabido, o âmbito dos recursos é limitado em função das conclusões extraídas da respectiva motivação, pelos recorrentes, sem prejuízo, no entanto, das questões de conhecimento oficioso, conforme o disposto nos artigos 412º, n.º 1 e 410º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

No presente recurso as questões colocadas à apreciação deste tribunal, tal como vêm sintetizadas pelo recorrente na motivação, são as seguintes:

- os vícios da sentença (de erro notório na apreciação da prova e da contradição insanável da fundamentação);

- a não verificação dos crimes de coacção e de ameaça;

- a medida da pena.

A-

Alega o recorrente que a sentença recorrida enferma dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação.

Como suporte do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, refere que o tribunal singular se baseou para condenar o arguido exclusivamente no depoimento do ofendido e de sua mulher, a test…., (…), não tendo as provas sido concludentes que impliquem o arguido na prática dos factos relatados, com violação do princípio da presunção de inocência estabelecido no art. 32º, n.º 2 da CRP.

E, quanto à contradição insanável da fundamentação, sustenta o recorrente que são contraditórios os factos dados como provados e como não provados.

Antes de mais convém relembrar que a existência dos aludidos vícios, tem de resultar do texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugados com as regras da experiência comum, não podendo o tribunal ad quem socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo. Vícios esses que, desde já avançamos, inexistem na decisão sob apreciação.

A contradição insanável consiste no enunciado de duas ou mais preposições contraditórias, logicamente inconciliáveis. Ela só existe quando a fundamentação conduziria necessariamente a uma decisão de sinal diferente da proferida.

“Existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta, ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” ([i]).

E, ocorre erro notório na apreciação da prova (art. 410º, n.º 2, al. c)) quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., pág. 740).

O erro notório na apreciação da prova, porque violador dos dados do conhecimento público generalizado, consiste em erro de tal modo evidente que não escapa ao comum dos observadores. Estar-se-á perante tal erro quando da leitura da decisão impugnada, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, se conclua que os factos nela dados como provados não podem ter acontecido ou que os factos dados como não provados não podem deixar de ter acontecido, isto é, quando os factos dados como provados e/ou como não provados se revelam inequivocamente desconformes, impossíveis, ou seja, quando aqueles traduzem uma situação fáctica irreal ou utópica – (acórdão do STJ, de 11-3-2004, proferido no recurso 2674/02 deste TR).

O invocado princípio da presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 32º da CRP, (intimamente ligado ao princípio in dubio pro reo, dado que um non liquet na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do arguido) significa que sem um juízo de culpa não pode haver condenação.

No que respeita ao invocado vício de contradição insanável, verificamos que os factos dados como provados não são contraditórios dos factos dados como não provados. Por outro lado, não foi o arguido condenado por factos diversos dos descritos na acusação.

Ao procedermos à leitura da acusação, verificamos que as expressões dadas como assentes ali vêm descritas, nela constando ainda as expressões dadas como não provadas, sendo que, quanto a duas expressões dadas como não provadas foram enunciadas no pedido de indemnização civil formulado pelo queixoso.

In casu, o arguido não assumiu a prática dos factos, tendo o tribunal a quo indicado qual a prova (positiva) que serviu para fundamentar a sua convicção (o depoimento do ofendido e de sua mulher, dado que as demais testemunhas não tinham conhecimento presencial dos factos). Caso essa prova não existisse, como se mencionou, então o julgador teria de decidir favorecendo o arguido.

Argumenta o recorrente que tais depoimentos são parciais e intencionais, porquanto o queixoso e a mulher são partes directamente interessadas na condenação do arguido, até pelos antecedentes de mau relacionamento entre o casal e o arguido, o que reforça a parcialidade da prova.

Convém relembrar que, tal como resultou provado, o arguido se dirigiu até à residência do queixoso, tendo aí proferido as expressões dadas como assentes. Logo, não nos suscita qualquer dúvida que, como resulta da fundamentação da matéria de facto que efectuou, o Tribunal a quo tenha formado a sua convicção, essencialmente, com base no depoimento do ofendido e da mulher, dado que estes foram os únicos que tinham conhecimento directo dos factos que relataram (para além das testemunhas … e …, agentes da GNR, terem afirmado que no local existia uma vala num caminho).

Acresce, que a fundamentação de facto, quer na enumeração dos factos, quer na motivação de facto, não apresenta qualquer erro, ou qualquer facto contrário às regras da lógica e, da experiência comum, de que qualquer cidadão com formação média logo se aperceba e, é suficiente para a decisão de direito encontrada, não nos merecendo censura, pelo que improcedem os alegados vícios.

Acontece que o recorrente confunde tais vícios com uma diferente convicção probatória sobre a suficiência da prova e a credibilidade dos meios de prova apreciados em julgamento. No fundo, o recorrente impugna a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova prevista no artº 127º do CPP.

B-

Sustenta o recorrente que nenhum pressuposto relevante foi dado como provado para cumprir os requisitos essenciais para a consumação dos crimes de coacção e de ameaça.

Quanto ao crime de ameaças, estabelece o artigo 153º, n.º 1 do Código Penal, que: “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”

O nosso Código pune a ameaça “por um lado, pelo perigo que a acompanha e o alarme que pode inspirar sendo conhecida; e por outro, porque é um acto de natureza a causar, por si só, perturbação social, isto é, não lesando directamente a liberdade, perturba, contudo, a tranquilidade de ânimo, provocando um estado de agitação e incerteza no ofendido ameaçado que se não crê seguro na vida ou nos bens" – cfr. Código Penal Anotado, 2° Vol. Simas Santos e Leal Henriques, pág. 305.

De acordo com o referido dispositivo legal os elementos constitutivos de tal ilícito criminal são:

- anúncio feito pelo agente de que pretende infligir a outrem um mal que constitui crime, um mal  futuro;

- que esse anúncio seja adequado a provocar receio, medo ou inquietação ou prejudique a liberdade de determinação do sujeito passivo;

- que o agente tenha actuado com dolo.

Verificamos, assim, que o objecto da ameaça tem de constituir crime, isto é, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico, daqueles que o próprio artigo 153º, n.º 1 enumera.

No que ao crime de coacção respeita, prescreve o artigo 154º, n.º 1 do Código Penal que: Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção – cfr. "Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 354.

Quanto à violência, esta pode implicar o emprego da força física, mas também a pressão moral ou intimação, não se exigindo que a intimação ou a força física sejam irresistíveis: basta que tenham potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do acto ou à omissão ou a suportar a actividade.

Quanto à ameaça com um mal importante, atende-se apenas à actividade social susceptível de causar um mal importante, ou seja um mal que tenha acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que pode causar. Cfr. "Código Penal Português" - Maia Gonçalves, 1996, anotação ao artigo 154º do Código Penal

Quanto ao elemento subjectivo, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14° do Código Penal. Não é necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que o agente, sejam quais foram as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme.

No caso vertente, face à factualidade dada como provada, resultam inequívocas as expressões ameaçadoras por parte do arguido dirigidas à pessoa do ofendido António Neves, as quais foram adequadas a provocar-lhe medo, e determinaram que o queixoso procedesse ao fecho da aludida vala.

Verificam-se pois, os elementos típicos dos crimes imputados ao arguido.

O bem jurídico protegido por ambas as normas (153º e 154º do CP) é a liberdade de decisão e de acção em geral dos cidadãos.

Conforme o estabelecido pelo n.º 1 do art. 154º a coacção pode realizar-se através da ameaça com mal importante. Ora, as características do conceito de ameaça são as mesmas, quer se trate do crime de ameaça, quer se trate de ameaça como meio do crime de coacção ([ii]).

Por conseguinte, o crime de ameaça é constituído por factos também integrantes do crime de coacção, encontrando-se numa relação de concurso aparente e não efectivo com este.

Como sabemos o concurso aparente assenta no pressuposto de que várias normas concorrem só em aparência, porquanto uma delas há-de excluir as outras – cfr. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, vol. II, pág. 1033. E, tal exclusão ocorre porque entre as normas em apreço há uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consunção.

Como refere Eduardo Correia (in Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 130 e seg)  as relações de parentesco que se estabelecem entre os diversos preceitos penais não se resumem, porém, naquelas que logo se surpreendem pela mera comparação dos elementos constitutivos dos tipos de crime descritos na lei. Depois de esgotadas as que desse confronto resultam, e se olharmos os valores ou bens jurídicos que os diferentes tipos legais de crime respiram ou referem, descobriremos entre eles laços de dependência mais estreita. Alguns desses bens jurídicos são formados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais protegem, outros resultam de se acrescentar um elemento novo ao valor ou bem jurídico doutro tipo e outros ainda são entre si diversos só porque exprimem no plano criminal a especifica significação de diferentes formas ou graus de ofensa de um mesmo interesse ou valor (no mesmo sentido, Jeschek, Tratado de Derecho Penal, pág. 674).

Se se apresentam ao mesmo tempo, para se aplicarem a uma certa situação de facto, diversos tipos de crime encontrando-se os respectivos bens jurídicos, uns relativamente aos outros, em tais relações pode suceder que a reacção contra a valoração concreta do bem jurídico realizada pelo tipo enformado pelo valor menos lato se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos.

Quando tal acontece as disposições penais vêm a encontrar-se numa relação de consunção: uma consome já a protecção que a outra visa. E como não pode oferecer dúvidas que a mais ampla, a lex consumens, tem em todo o caso de ser eficaz, é manifesto, sob pena de clara violação do principio ne bis in idem, que a menos ampla, a lex consumta não pode continuar a aplicar-se.

Assim sendo, tudo se resume a saber qual a relação existente entre os dois tipos legais. Isto é, embora sejam violados formalmente dois preceitos legais, o crime de coacção punido com pena mais grave consome o crime de ameaça. Deve pois, o arguido ser condenado apenas pela prática do crime de coacção e, absolvido quanto ao crime de ameaça.

C-

Pugna o recorrente pela atenuação especial da pena, alegando que agiu em estado de necessidade e de alteração do estado emocional por causa da provocação do próprio demandante que, por ter procedido à abertura da vala, teve o arguido, por uma noite, de estacionar a sua viatura junto à residência daquele.

Invoca o recorrente a aplicabilidade do artigo 72º do Código Penal e, consequentemente, da atenuação especial da pena.

Como primeiro momento de análise da pretensão do recorrente importa considerar que, como exemplos ilustrativos da cláusula geral contida no artigo 72º, n.º 1 do CP funcionam as circunstâncias descritas nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito. Todavia, outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção. Por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do n.º 2 não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido.

Deste ponto de vista, pode afirmar‑se, com razoável exactidão, que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar‑se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor‑se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura que corresponde ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a jurisprudência e a doutrina quando insistem em que a atenuação especial só em casos excepcionais pode ter lugar.

Estamos em crer que tal quadro de especial diminuição da culpa ou das exigências de prevenção não resulta da análise dos autos. Na verdade, o facto de três dias antes o queixoso ter mandado efectuar uma vala ao cimo do caminho sito em T….., de forma a evitar o seu uso pelo arguido, veio corroborar a existência do litígio entre ambos quanto a tal caminho, não se podendo inferir que a conduta do arguido foi motivada por forte solicitação ou provocação injusta do queixoso.

Deste modo, e tendo os factos ocorrido em Maio de 2007, não se vislumbra qual o quadro de especial diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, como por exemplo a invocada na al. d) do n.º 2 do art. 72º do CP (Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta).

Por outro lado, considera o recorrente que as penas impostas são exageradas, concluindo que a pena única deveria ser fixada em 50 dias de multa; não foi questionada a taxa diária da multa.

Não obstante a questão do concurso de crimes não ter sido suscitada pelo recorrente, tendo este tribunal de recurso concluído que o crime de ameaça está em concurso aparente com o crime de coacção, pelo que há lugar apenas à punição deste, apenas nos iremos reportar à pena imposta ao arguido pelo crime de coacção.

Tal crime é punível, em abstracto, com pena de prisão ou com multa.

Na decisão sob crítica, tendo em conta o disposto nos artigos 70º, 71º e 40º, n.º 1 do CP, optou-se pela pena de multa, ficando, assim, ultrapassada a fase da escolha da pena.

Assim, o crime de coacção é punível com multa de 10 a 360 dias.

Como é sabido, para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelos artigos 71º e 47º, n.º 1 do Código Penal, nos termos dos quais, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstractamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.

Conforme refere Figueiredo Dias (Consequências Jurídicas do Crime, pág. 227 e seg) a propósito da questão da medida da pena, a finalidade da aplicação desta reside primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível na reinserção do agente na comunidade. A determinação da medida da pena é, assim, a conjugação da expectativa da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida que se consubstancia com a ideia de prevenção geral positiva e as exigências derivadas da inserção social e reintegração do agente na comunidade.

Tal conjugação terá como parâmetro a culpa que constitui um limite máximo que não pode ser ultrapassado.

Como se pode ler no Acórdão do STJ, proferido em 3-6-2004, no processo 04P1266, em www.dgsi.pt “A pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito o causar ao arguido, pelo menos, algum desconforto se não, mesmo, um sacrifício económico palpável”.

Compulsando a materialidade considerada provada e tendo em conta as disposições legais citadas, nenhum reparo há a fazer à medida da multa fixada de 90 dias e, bem assim, quanto à respectiva taxa diária de € 6,00 que não foi questionada.

Improcede, na totalidade, a argumentação do recorrente.
III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso;

- Revogar parcialmente a sentença recorrida, decidindo:

   a) absolver o arguido … da prática do crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 do Código Penal (por estar numa relação de concurso aparente com o crime de coacção que o consome);

   b) manter no mais a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 6 UCs a taxa de justiça.

[i] - Simas Santos e Leal Henriques, CPP, II Vol. pág. 739.
[ii] - Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, pág.355.