Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
132/08.7TBOFR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPOSO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 186º, NºS 1, 2 E 3, E 189º, Nº 2, AL. B), DO CIRE
Sumário: I – O artº 186º do CIRE define o conceito de insolvência culposa, com o estabelecimento dos seus pressupostos, através da formulação de uma noção geral (nº 1), que depois complementa e concretiza ainda com o recurso a presunções (nºs 2 e 3).

II - Dessa noção geral resulta que são pressupostos do conceito de insolvência: 1) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito; 2) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; 3) que essa conduta tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência; 4) e que essa mesma conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.

III - Postula-se ali, além do mais, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.

IV- Mas o legislador não se ficou por ali, indo mais longe ao estatuir, através do nº 2 daquele mesmo preceito legal, uma presunção juris et jure no sentido de que, em casos em que a insolvente não seja uma pessoa singular, sempre que ocorra objectivamente uma das situações descritas nas diversas alíneas desse normativo (relacionadas com factos praticados pelos seus administradores) tal conduz, sem mais, inexoravelmente à atribuição do carácter culposo à insolvência.

V- Diferentemente se passa com o nº 3 do mesmo preceito legal, onde apenas se estabelece, no quadro da ocorrência das situações ali descritas, uma presunção juris tantum de culpa grave dos administradores da pessoa colectiva insolvente, e nada mais do isso, pelo que quanto aos demais pressupostos (vg. do nexo causal) ter-se-á que recorrer à previsão do nº 1, e cuja verificação se exige para que a insolvência possa ser qualificada de culposa.

VI- Declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade material do artº 189º, nº 2, al. b), do CIRE, não pode decretar-se, como efeito da qualificação culposa da insolvência, a inabilitação da pessoa afectada por essa qualificação.

VII- Embora a lei não o diga expressamente, deve entender-se que o prazo de contagem da medida de inibição aplicada, à luz da al. c) do nº 2 do citado artº 189º, à pessoa afectada por aquela qualificação se inicia com a data do trânsito da sentença que a declarou, e mais concretamente com a data do seu registo na competente conservatória.

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1.1 A... requereu, em 2 de Abril de 2008, que fosse declarada a insolvência de “F..., S.A.”.

1.2 Por sentença proferida em 14 de Julho de 2008 nos autos de Insolvência apensos, já transitada em julgado, foi aquela sociedade declarada insolvente e aberto o incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno.

1.3 O srº administrador da Insolvência emitiu parecer nos termos do artigo 188º, nº 2, do C.I.R.E. no sentido da insolvência ser declarada culposa, propondo que o carácter culposo da insolvência fosse declarado na pessoa de L..., administrador único da insolvente, com base nos fundamentos que ali aduziu e que, no seu entender, se integravam na previsão das als. a), b), d), f) e h) do nº 2 do art.º 186.º, nº 2, do CIRE.

1.4 O Ministério Público acompanhou o parecer do srº administrador da Insolvência, promovendo que a insolvência fosse qualificada como culposa.

1.5 A insolvente e o referido administrador L... vieram opor-se à qualificação da Insolvência como culposa, pugnando que a mesma fosse declarada fortuita, com base nos fundamentos que aduziram nesse seu respectivo articulado.

1.6 No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da instância, após o que se procedeu à selecção da matéria de facto assente e controvertida, que não mereceu qualquer reparo das partes.

1.7 Realizou-se depois o julgamento – com a gravação da audiência -, não tendo a resposta aos diversos pontos da base instrutória sido objecto de qualquer reclamação das partes.

1.8 Seguiu-se a prolação da sentença que, a final, decidiu nos seguintes termos:

Qualifico a insolvência de “F...,S.A.” como culposa, afectando a qualificação o administrador L...

a) Decreto a inabilitação de L... por um período de dois anos.

b) Declaro L... inibido do exercício do comércio durante um período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.”

1.9 Não se tendo conformado como tal sentença, dela apelaram a sociedade insolvente e aquele seu administrador L..., em alegações que concluíram nos seguintes termos:

(...)

1.10 Nas suas contra-alegações, o ilustre representante do MºPº pugnou pela manutenção do julgado, com excepção da parte em que decretou a inabilitação do apelante L...

1.11 Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação


A) De facto.

Pelo tribunal da 1ª instância foram dados com provados os seguintes factos (a acrescer àqueles descritos sobre os nºs 1.1 e 1.2 do ponto I):

(...)


***

B) De direito.

1. Do objecto do recurso.

É sabido que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se fixa e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 684º, nº 3, e 685º- A, nº 1, do CPC).
É também sabido que, dentro de tal âmbito, deve o tribunal resolver todas as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, exceptuando-se aquelas questões cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras (cfr. 1ª parte do nº 2 do artº 660º do CPC).

Por fim, vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).

Ora, compulsando as conclusões das alegações do presente de recurso, verifica-se que as verdadeiras questões que importa aqui apreciar são as seguintes:

a) Se a insolvência da sociedade F... deve ser qualificada como culposa ou como fortuita.

b) No caso de vingar a qualificação de culposa, se devem manter-se os efeitos de inabilitação e inibição decretados na sentença recorrida em relação ao seu administrador L...


***

2. Quanto à 1ª questão.

Decretada a insolvência, deverá o ocorrer o incidente com vista a qualificar a mesma, e que no fundo visa indagar se a mesma resultou de um comportamento culposo do devedor ou dos seus administradores ou, se pelo contrário, a mesma está associada a acontecimentos meramente fortuitos.

E daí que tal incidente (que pode correr com carácter pleno, e que constitui a regra - artº 188º e ss do CIRE –, ou, em situações particulares, com carácter limitado – cfr. artºs 191º, nº 1, 39º, nº 1, e 232º, nº 5, do mesmo diploma) só possa concluir no final pela qualificação de tal insolvência como culposa ou como fortuita, classificações ou modalidades essas que são as únicas legalmente possíveis no nosso actual ordenamento falimentar (cfr. artº 185º do actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL nº 53/2004 de 18/3, e a cujo diploma pertencerão os normativos que adiante venham a ser indicados sem a menção da sua fonte).

No caso dos presentes autos, tal incidente correu com carácter pleno, vindo-se na sentença final a qualificar a insolvência da sociedade F... como culposa.

Qualificação essa que foi fundamentada pela ocorrência das situações previstas quer nas alíneas a), b), d), f) e h) do nº 1 do artº 186º, quer mesmo com base na ocorrência da situação prevista na al. a) do nº 3 daquele mesmo normativo.

Contra essa qualificação se insurgem os apelantes, argumentado, na sua essencialidade, que nenhuma da situações previstas naquelas citadas alíneas ocorreu, o mesmo sucedendo em relação àquela outra prevista na alínea do nº 3, e que mesmo que, neste último caso, a situação objectiva ali prevista ocorresse faltaria sempre a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta de incumprimento do dever ali previsto e a situação (de ocorrência ou agravamento) da insolvência.

Apreciemos:

O artº 186º define o conceito de insolvência culposa, com o estabelecimento dos seus pressupostos, através da formulação de uma noção geral (nº 1), que depois complementa e concretiza com o recurso a presunções (nºs 2 e 3).

Na verdade, reza o nº 1 do artº 186º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.

Dessa noção geral, resulta, assim, que são pressupostos do conceito de insolvência: 1) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito; 2) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; 3) que essa conduta tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência; 4) e que essa mesma conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave.

Postula-se ali não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos administradores, mas também o nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência.

Mas o legislador não se ficou por ali, indo mais longe ao estatuir, através do nº 2 daquele mesmo preceito legal, que “considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de facto ou de direito”, tenham praticado alguns dos factos elencados nas diversas alíneas desse número.

Tal significa que, sem prejuízo daquela noção geral, o legislador, a partir de certas condutas dos administradores (relacionadas com actos destinados a empobrecer o património do devedor ou com o não cumprimento de determinadas obrigações legais), estabeleceu, através do nº 2 citado artº 186º, presunções de insolvência culposa, impondo como pressuposto que o insolvente não seja uma pessoa singular.

Ao utilizar a expressão “considera-se sempre”, o legislador quis deixar bem vincado que as situações elencadas nas diversas alíneas - a) a i) – do nº 2 do citado artº 186º configuram, só por si, verdadeiras presunções juris et jure de insolvência culposa.

Consagra-se, assim, ali uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Significa tal que, não sendo o insolvente uma pessoa singular, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito artº 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa. (No sentido acabado de expor vidé, entre muitos outros, Carvalho Fernandes/João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, vol. II, págs.14, nota 5, e 15, nota 8”; Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência, Almedina, 2009, págs. 270/271; Carvalho Fernandes, in “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, pág. 94, da revista Themis, edição especial, 2005”; Acs. RC de 2/6/de 2009, in Agravo nº 3412/07 desta secção - relatado pelo des. Jorge Arcanjo, e do qual o ora relator e o 1º adjunto foram, respectivamente, 1º e 2º adjuntos -, de 21/4/2009, processo 369/07.6TBCDN-B.C1; de 14/11/2006, processo 1002/04.3TBTNV-C.C1”, de 17/2/2009, processo 2740/05.9TBMGR-E.C1 e de 28/10/2008, processo 2577/05.5TBPMS-K.C1, encontrando-se todos, com excepção do 1º, disponíveis no site da net desta Relação).

Mas o legislador continuou a não ficar-se por ali (em matéria de presunções), ao fazer consagrar o nº 3 daquele mesmo preceito legal que “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.

É consensual o entendimento de que a presunção que ali (no nº 3) se estabelece é juris tantum e como tal ilidível, nos termos do nº 2 do artº 350º do C. Civil.

O que, porém, já não é consensual é o alcance ou o âmbito a atribuir a essa presunção.

Pode mesmo dizer-se que, a tal propósito, existem duas grandes correntes de opinião:

Uma, no sentido de que se estabelece ali uma presunção juris tantum de culpa grave, mas já não o nexo de causalidade (cfr., entre muitos outros, Menezes Leitão, in “Ob. cit, pág. 269 e segs”; Acs. da RP de 15/3/07, de 13/9/07, de 7/1/08, Ac. da RG de 20/9/07, Ac. RLx de 22/1/08, Ac. RC de 28/10/08, de 24/3/09, de 21/4/09, disponíveis em www.dgsi.pt).

b) – Outra, a defender uma presunção ilidível de insolvência culposa, abrangendo também o nexo de causalidade (cfr. Catarina Serra, in “O Novo Regime Português da Insolvência, pág. 95” e Acs. da RP de 22/5/07, 18/6/07, de 17/11/08, de 5/2/09, disponíveis em www.dgsi.pt).

Todavia, aderimos à 1ª corrente de opinião, por ser aquela que se nos afigura mais consistente, face à letra da própria lei, espelhada no normativo acabado de citar, em conjugação ainda com o próprio nº 1 e em confronto com o nº 2 do mesmo preceito legal, que acima deixámos também transcritos.

É que, como supra deixámos exarado, no nº 2 é empregue a expressão “considera-se sempre culposa”, enquanto que neste nº 3 se emprega a expressão “presume-se a existência de culpa grave”, trata-se, pois, de uma expressão, ao contrário daquela, menos abrangente e categórica.

Ressalta, a nosso ver, da redacção do nº 3, que a presunção ali estabelecida se cinge ou reporta tão somente à “culpa”, e nada mais do isso, pelo que quanto aos demais pressupostos ter-se-á que recorrer à previsão do nº 1.

Significa tal que quando se verifique alguma das situações configuradas nas duas alíneas daquele normativo (do nº 3), apenas será dispensável a demonstração do nexo de imputação desses incumprimentos, a título de culpa, aos administradores da pessoa colectiva, mas será já exigível a demonstração dos demais requisitos ou pressupostos legais, incluindo o do nexo causal entre essa situação de incumprimento e a criação ou agravamento da situação de insolvência (para que esta possa, assim, ser qualificada de culposa).

Posto isto, e tomando por base tais considerandos e a matéria factual apurada, avancemos então para a solução final da questão em apreço.

Calcorreando a matéria factual dada como assente, por provada (e relembre-se que só a ela nos poderemos a atender, sendo certo que a mesma nem sequer foi directamente questionada pelo apelante, por meio do mecanismo legal previsto para o efeito no artº 685º-B do CPC), da conjugação dos factos ali descritos sob os nºs 5 a 11, facilmente, a nosso, se é levado a concluir que os mesmos se integram na previsão das situações que se encontram elencadas nas alienas a), b), d), e f) do nº 2 do citado artº 186º.

Na verdade, da conjugação de tais factos resulta e é-se levado a concluir, tal como se referiu na sentença recorrida, que o administrador da sociedade insolvente fez desaparecer parte considerável do património desta, na medida em que, após o sinistro (incêndio que destruiu as instalações daquela) e por conta dele, recebeu uma indemnização no valor global de € 1.080.800,00 destinado à sociedade, valor esse que grande parte (ou seja, no valor de € 666.273,83) depositou na sua conta pessoal, através de cheque, utilizando-o em proveito próprio.

Como se isso não bastasse, o referido único administrador, L..., também depositou na sua conta pessoal, assim os subtraindo do património da sociedade, montantes recebidos de devedores da insolvente no valor global de € 17.598,64.

Note-se, como bem se salientou na sentença recorrida, que não resultou sequer provado o alegado pela insolvente e seu administrador de que tais montantes, não obstante terem sido depositados na conta pessoal do sócio, tenham sido utilizados em pagamentos de créditos da F... A esse respeito apenas resultou provado que de tais montantes a insolvente pagou despesas no valor total de € 50.000, o que representa um valor em muito inferior ao valor da indemnização recebida.

E essa panóplia de factos só pode também conduzir à natural conclusão de que com tais condutas o referido administrador, pelo menos, agravou os prejuízos da insolvente, dispondo de bens da mesma em benefício próprio e, consequentemente, deles fazendo um uso contrário aos interesses da insolvente.

E na formulação desse juízo conclusivo, como bem também se salientou na sentença recorrida, não se pode esquecer de todo o facto do referido L... ter sido entretanto (decorridos apenas cerca de 6 meses após a declaração da insolvência daquela sociedade que até aí administrou sozinho) nomeado administrador único de uma outra sociedade cujo objecto social é idêntico ao da sociedade insolvente.

Ora, como resulta das conclusões que supra deixámos expandidas, bastará que ocorra uma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do citado artº 186º (e já vimos que in casu ocorrem várias) para que - por força da presunção juris et jure ali estatuída - se atribua, sem mais, carácter culposo à insolvência, qualificando-se, consequentemente, a mesma como culposa, sendo certo que a insolvente não é pessoa singular e que tais situações resultaram de condutas praticadas pelo seu único administrador num período manifestamente compreendido nos três anos que antecederam o início do processo que conduziu à sua insolvência.

Nesses termos, torna-se inócuo, por desnecessário, indagar se no caso também ocorre (como se reconheceu na sentença) ou não (como defendem os apelantes) a situação presuntiva (com natureza juris tantum) prevista na al. a) do nº 3 daquele citado artº 186º.

Do exposto, ter-se-á, assim, de qualificar a insolvência da sociedade F... como culposa (tal como se concluiu na sentença recorrida), pelo que nessa parte se julga o recurso improcedente.


***

3. Quanto à 2ª questão.

Dos efeitos decorrentes da qualificação da insolvência como culposa.

Da qualificação da insolvência como culposa emergem, nos termos do nº 2 do artº 189º, diversos efeitos especiais, e que são aqueles que se encontram elencados nas als. a) a d) desse normativo.

Assim, após a referida qualificação, a primeira tarefa que se impõe ao juiz traduz-se em determinar ou identificar as pessoas afectadas pela mesma (al. a)).

E na sentença recorrida determinou-se que a pessoa afectada por tal qualificação seria precisamente o então único administrador da sociedade insolvente, L...

Afectação essa que naturalmente decorre e está associada àquela sua conduta atrás descrita e que motivou a qualificação da insolvência naquela modalidade.

De entre os demais efeitos estatuídos em tal normativo, que automaticamente decorrem da referida qualificação, contam-se os previstos nas als. b) e c).

Na verdade, dispõe-se ali que na sentença deve o juiz:

b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;

c) Declarar as pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

E foi precisamente à luz de tais dispositivos legais que na sentença recorrida o tribunal a quo decretou, por um lado, a inabilitação do referido administrador, L..., por um período de dois anos e, por outro, declarou ainda o mesmo inibido do exercício do comércio durante o mesmo período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Só que um problema de ordem jurídico-constitucional foi, entretanto, colocado no que concerne à al. b) do nº 2 do citado artigo 189, e à luz do qual foi decretada, na sentença, a inabilitação do referido L...

É que tal normativo foi recentemente declarado, com força obrigatória geral, inconstitucional, por violação dos artºs 26º e 18, nº 2, da C.R.Portuguesa, pelo acórdão do Tribunal Constitucional proferido em 2/4/2009, e que foi publicado no DR, nº 85, Iª Série, de 4/5/2009.

Acórdão que, a todos se impõe, e nomeadamente ao tribunal a quo, que proferiu a sentença em causa quando aquele acórdão já havia sido proferido e publicado.

Na lógica desse acórdão (que, no fundo, se limitou a dar “voz” ao entendimento que, a esse respeito, já vinha sendo perfilhado por esse Tribunal: cfr. Acs. nºs 570/08, 582/08 e 585/08 e as decisões sumárias nºs 615/07, 85/08, 267/08, 321/08, 323/08, 371/08, 376/08 e 425/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) está o entendimento de que a inabilitação prevista em tal normativo não só foge à finalidade própria que preside ao instituto da inabilitação disciplinado na lei civil (protecção das pessoas incapazes), para se tornar num mero instrumento de restrição dos direitos à capacidade civil, como também nenhum acréscimo de segurança traz à defesa do interesse dos credores, os quais já se acham protegidos pelas demais medidas (efeitos) previstos nas als. c) - inibição para o exercício do comércio da pessoa afectada – e d) – perda dos créditos que essa pessoa tenha sobre a insolvência ou massa insolvente – do nº 2 do mesmo artigo. Nessa medida, e contendendo com um dos direitos elementares do ser humano (o direito à capacidade civil), tal medida (a inabilitação prevista na al. b) do nº 2), por desproporcionada ou excessiva, viola, em último grau, o princípio constitucional da proporcionalidade.

Termos, pois, em que, dando-se nessa parte razão aos apelantes, se revoga aquele seguemento decisório que decretou a inabilitação do referido L...

Já, porém, nada a dizer no que concerne à decisão que declarou o mesmo inibido nos termos e para o efeitos contemplados na acima transcrita al. c) do nº 2 do citado artº 189º, e tanto mais que, como se referiu, tal efeito decorre directamente da lei. A única margem ali concedida ao juiz é a de dosear o período temporal durante o qual perdura tal efeito, o qual se encontra ali balizado entre um período que vai de 2 a 10 anos. A crítica que, a esse respeito, se pode fazer à srª juiz a quo é que não fundamentou, como devia, a razão de ter optado pelo período de duração mínimo ali previsto, ou seja, de dois anos. Todavia, tal não pode afectar essa parte da decisão, em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus (pois ainda que porventura se entendesse que se estaria perante uma nulidade jamais, no caso, poderia este tribunal ad quem, à luz do disposto no artº 715, nº 1, do CPC, alterar, para mais, aquele período de duração daquela medida que foi fixado na sentença).

Diga-se, por fim, em jeito de remate, e respondendo a uma das preocupações dos apelantes, que muito embora da lei não resulte a data do início da contagem do prazo de tal medida, e nem na sentença tenha sido o mesmo expressamente fixado, vem constituindo entendimento dominante que tal prazo se inicia com a data do trânsito da sentença que declarou a mesma, e mais concretamente, por força da articulação com o disposto como nº 3 do citado artº 189º, da data do seu registo na competente conservatória (Neste sentido, e para mais desenvolvimento, vidé, entre outros, Carvalho Fernandes/João Labareda, in “Ob. cit., pág. 28”).


***

III- Decisão


Assim, em face do exposto, e na parcial procedência do recurso, acorda-se:

a) Em revogar a sentença da 1ª instância na parte em que decretou a inabilitação do apelante L...

b) Em manter, no mais, o decidido na referida sentença.

Custas na proporção de 3/4 para os apelantes e de 1/3 para a massa insolvente.