Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3351/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
TRESPASSE
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Data do Acordão: 11/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º, N.º 2 E 219.º DO CÓDIGO CIVIL E 115.º, N.º 3 DO RAU
Sumário: 1. Não tendo as partes celebrado o contrato definitivo de trespasse, a que se haviam comprometido, em antecedente contrato-promessa, e operando-se a transferência do estabelecimento, logo com a outorga deste, dando o promitente-trespassário início à sua exploração, de imediato, no seu próprio interesse, como dono do estabelecimento, não se está em presença de um contrato de trespasse, mas antes de um contrato-promessa de trespasse, validamente, outorgado.
2. Assim sendo, improcedem os pedidos baseados na invalidade de ambas as modalidades contratuais, como seja o da declaração de nulidade, por vício de forma, do contrato-promessa celebrado, o da declaração de nulidade e de inexistência do contrato de trespasse, ou, finalmente, o da restituição da quantia entregue, a título de sinal.

3. Estando subjacente ao pedido formulado pelo autor um contrato-promessa, resultante de actos preparatórios que visavam a conclusão de um contrato de trespasse, não se tendo provado, porém, que a culpa pela não realização deste seja imputável à promitente-trespassante, encontrando-se o contrato-promessa dotado de uma garantia contratual específica, está, de todo excluída a responsabilidade contratual desta, carecendo de fundamento legal o pedido de restituição do quantitativo entregue, a título de sinal, formulado pelo promitente-trespassário.

4. Afastada a execução específica do contrato-promessa, com a estipulação do sinal, os promitentes ficam compelidos à perda deste ou à sua restituição em dobro, consoante a parte que não cumpriu foi a que o entregou ou recebeu, sendo de presumir que quiseram apenas estabelecer essas sanções, para o caso de não cumprimento, afastando o recurso ao Tribunal para a imposição de sanção diferente.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., solteiro, maior, técnico de textura, residente na Rua Vale do Porto, nº 6, r/c – A, Casal da Amieira, concelho da Batalha, propôs a presente acção, com processo ordinário, contra B..., divorciada, professora do ensino secundário, residente na Rua Vale Pousio, nº 6, Alqueidão da Serra, concelho de Porto de Mós, pedindo que, na sua procedência, seja declarada a nulidade, por vício de forma, do contrato celebrado entre ambos e que identifica, seja declarada a nulidade e inexistência do contrato de trespasse de estabelecimento, que a ré seja condenada a restituir ao autor a quantia de 17.457,93 € que dele havia recebido, por força da nulidade do contrato, acrescida de juros de mora, desde a data da citação, ou, em alternativa, que a ré seja condenada a restituir ao autor aquela quantia de 17.457,93 € , por ter usado de má fé na celebração do contrato, ocultando elementos essenciais do mesmo, determinantes da vontade de negociar do autor, acrescida de juros de mora, desde a data da citação e até efectivo reembolso, alegando, para o efeito, e, em síntese, que celebrou com a ré um contrato-promessa de trespasse de um estabelecimento pertencente a esta última, pelo valor de 17.457,93€, que pagou na totalidade, com vista à aquisição do estabelecimento, devidamente licenciado e a funcionar, e com o horário até ás 2 horas da manhã.
Em Junho de 2001, o autor passou a explorar o estabelecimento, sem que se tenha realizado o contrato de trespasse prometido, sucedendo que a ré ocultou aquele que ao mesmo faltavam requisitos, sem os quais não podia funcionar, e bem assim que o horário de funcionamento era até ás 24 horas e não até ás 2 horas da manhã, razões que inviabilizaram a sua exploração.
Na contestação, a ré impugna que ao estabelecimento faltasse qualquer requisito de funcionamento ou que tenha omitido qualquer informação ao autor, acrescentando que foi celebrado, através de documento, um contrato de trespasse e não um contrato-promessa de trespasse do estabelecimento, sendo que o valor do trespasse foi de 6.000.000$00, concluindo pela absolvição do pedido.
Em sede reconvencional, sustenta ainda que o autor explorou, durante 12 meses, o estabelecimento, em proveito próprio, e que depois o encerrou, levando consigo todos os utensílios e pertences, num valor de 14.965 €, tendo deixado de pagar 12.469,95 €, referente ao restante do preço do trespasse, concluindo com o pedido de condenação do autor no pagamento desta última importância e respectivos juros de mora.
Na réplica, o autor termina como no articulado inicial e impugna a matéria de facto em que se fundamenta o pedido reconvencional, cuja absolvição solicita.
A sentença julgou a acção, procedente por provado, e, em consequência, declarou nulo, por vício de forma, o contrato de trespasse celebrado entre autor e ré, condenou o autor a restituir o estabelecimento e a ré a entregar aquele a quantia de 17.457,93 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 7% ao ano, desde a data de citação, em 16 de Abril de 2002, até 1 de Maio de 2003, e, à taxa de 4% ao ano, desde esta última data e até integral pagamento, e a reconvenção, improcedente por não provada, absolvendo, em consequência, o autor do pedido correspondente.
Desta sentença, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª - O escrito apresentado pelo autor como documento 1 corporiza o contrato de trespasse querido e realizado pelos contraentes, tanto material como formalmente.
2ª - O escrito particular subscrito pelas partes é requisito suficiente para a exigência de forma na celebração do contrato de trespasse, nos termos do artigo 115º do RAU.
3ª - O contrato definitivo de trespasse foi celebrado pelos contraentes através da subscrição do escrito particular, com imediata e efectiva transmissão da titularidade do estabelecimento, que o trespassário passou a explorar como dono efectivo.
4ª - O escrito particular não é um contrato promessa de trespasse.
5ª - O contrato de trespasse celebrado entre autor e ré não está ferido de nulidade por vício de forma.
6ª - A existir uma cláusula acessória verbal de fixação do prazo - que em todo o caso não existiu -, sempre deveria ter sido reduzida a escrito.
7ª - A resposta ao quesito 1º é imprecisa uma vez que não situa no tempo o aludido facto, e por outro lado está em contradição com as alíneas D, E e F dos factos assentes.
8ª – O autor veio exercer a sua pretensão ao arrepio da proibição de venire contra factum proprium, e em manifesto exercício de abuso de direito.
9ª - A trespassante tem direito a receber do autor a quantia de € 12.469.95, referente ao preço estabelecido para o trespasse e não pago, devendo, assim, ser considerada procedente por provada a reconvenção.
10ª – Ao julgar procedente a acção e improcedente a reconvenção fez o Mº Juiz “a quo” incorrecta interpretação e aplicação da lei e dos factos, tendo violado, além do mais, o artigo 115, nº 3 do RAU, artigos 220º, 221º, 236º, 237º, 238º, 410º, nºs 1 e 2 e 289º todos do Código Civil.
Nas suas contra-alegações, o autor sustenta que deve ser confirmada a sentença recorrida.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da celebração pelas partes de um contrato-promessa de trespasse ou de um contrato de trespasse, propriamente dito.
III – Suas consequências.

I

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Entende a ré que a resposta ao quesito 1º é imprecisa, uma vez que não situa, no tempo, o aludido facto, e, por outro lado, está em contradição com o teor das alíneas D), E) e F), dos factos assentes.
Com efeito, o Tribunal «a quo» deu como provado, em relação ao ponto nº 1 da base instrutória, que “ autor e ré estabeleceram, verbalmente, que o contrato de trespasse se realizaria, até final de Junho de 2001”, enquanto que, por outro lado, ficou registado, desde logo, nos “factos assentes”, que “com a outorga desse acordo visava o autor a aquisição do referido estabelecimento licenciado e a funcionar, com todos os seus pertences e componentes e com o horário de funcionamento que então vigorava, com abertura às 15.00 horas e encerramento às 2 horas da manhã – D)”, “ a transferência do estabelecimento operou-se logo com a outorga do escrito referido em A), dando o autor, em Janeiro de 2001, início à exploração do mesmo, passando a fazer a sua gestão no seu próprio interesse, tudo se passando como se fosse efectivamente dono daquele estabelecimento, comprando as mercadorias, pagando as facturas e demais encargos, contratando empregados e recebendo as receitas, tendo decidido cessar a exploração, em Dezembro de 2001, encerrando então o bar – E)” e, finalmente, que “em Janeiro de 2001, o estabelecimento funcionava com licença da Câmara Municipal da Batalha e com horário de funcionamento até às 2 horas da manhã – F)”.
Assim sendo, não se vê como, com o muito devido respeito, se possa alcançar qualquer contradição entre aquele ponto da base instrutória e estas alíneas da “especificação”, sendo, igualmente, manifesto que o momento temporal concretizado, através da data “…até final de Junho de 2001”, não pode ser considerado como um marco impreciso na verificação de um determinado evento, a que acresce, também, que a ré não observou os comandos constantes dos artigos 690-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, nº 2, que contendem com a apreciação, pelo Tribunal da Relação, da matéria de facto objecto de gravação, nem indicou qualquer meio de prova insusceptível de ser destruído pelos demais, atento o teor do artigo 712, nº 1, todos do CPC.
Como assim, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como provados os seguintes factos, que reproduz:
Em Janeiro de 2001, autor e ré subscreveram o escrito, junto a folhas 8 dos autos, do seguinte teor: "Contrato de Promessa de Compra e Venda, Eu, B... (...) adiante citado como 1o outorgante, e A... (...) adiante citado como 2o outorgante, estabelecemos o seguinte contrato promessa de compra e venda:
O 1o outorgante compromete-se a trespassar ao 2o outorgante a fracção B, cave
esquerda destinada a comércio, café bar, do prédio urbano em propriedade
horizontal, sito na Rua Filipa de Lencastre, lote dois Célula B, da Vila e freguesia
da Batalha, inscrito na matriz, sob o artigo 5392, por 6.000.000$00;
O 2° outorgante entregou ao 1° outorgante o valor de 3.500.000$00, três milhões
e quinhentos mil escudos, como promessa de aquisição da fracção B, cave
esquerda, destinada a comércio, café bar, do prédio urbano em propriedade
horizontal, sito na Rua Filipa de Lencastre, lote dois, Célula B, sector C, da Vila e freguesia da Batalha, inscrito na matriz sob o artigo 5392.
O 1° outorgante tendo recebido a quantia de 3.500.000$00, três milhões e
quinhentos mil escudos, como contrato promessa de compra e venda,
compromete-se e obriga-se a vender só e tão só ao 2o outorgante a fracção acima
descrita;
Caso exista algum impedimento jurídico que impeça esta transição comercial, o 1° outorgante compromete-se e obriga-se a devolver ao 2o outorgante a quantia de
7.000.000$00, sete milhões de escudos" – A).
O acordo, referido em A), tinha por objecto um estabelecimento comercial
de café e bar, denominado “Aquarius Bar” , sito na Rua D. Filipa de Lencastre, lote dois, Célula B , da Vila e freguesia da Batalha – B).
Na sequência desse acordo, o autor entregou à ré a quantia de
3.500.00$00 – C).
Com a outorga desse acordo, visava o autor a aquisição do referido estabelecimento, licenciado e a funcionar, com todos os seus pertences e componentes, e com o horário de funcionamento que, então, vigorava, com abertura às 15.00 horas e encerramento às 2 horas da manhã – D).
A transferência do estabelecimento operou-se, logo com a outorga do
escrito referido em A), dando o autor, em Janeiro de 2001, início à exploração do
mesmo, passando a fazer a sua gestão, no seu próprio interesse, tudo se
passando como se fosse, efectivamente, dono daquele estabelecimento, comprando
as mercadorias, pagando as facturas e demais encargos, contratando empregados
e recebendo as receitas, tendo decidido cessar a exploração, em Dezembro de
2001, encerrando, então, o bar – E).
Em Janeiro de 2001, o estabelecimento funcionava com licença da
Câmara Municipal da Batalha e com horário de funcionamento até às 2 horas da
manhã – F).
O período de funcionamento do bar foi restringido para as 24 horas, por
decisão da Câmara Municipal da Batalha, datada de 25 de Outubro de 2001, e com
efeitos, a partir de 9 de Novembro desse mesmo ano, com base nas razões
discriminadas no documento junto a folhas 11 dos autos, cujo teor a sentença dá por reproduzido – G).
A ré não recebeu do autor o remanescente do preço acordado
(6.000.000$00), mencionado no documento a que se alude em A) – H).
Autor e ré estabeleceram, verbalmente, que o contrato de trespasse se
realizaria, até final de Junho de 2001 - 1o.
A Câmara Municipal da Batalha enviou à ré, em 18 de Maio de 2000, a
comunicação, cuja cópia se encontra junta a folhas 9 dos autos e que a sentença dá por reproduzida – 4º.
O autor era trabalhador no bar, há meses, conhecendo o local e as suas condições de funcionamento – 7º.

II

DA NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO

Efectuando uma síntese da factualidade que ficou demonstrada, importa reter que as partes celebraram um denominado “contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual a ré se comprometia a trespassar ao autor um estabelecimento comercial de café e bar, pelo preço de 6.000.000$00, tendo, então, este entregue aquela o valor de 3.500.000$00, como promessa de aquisição, estabelecendo ambos ainda, verbalmente, que o contrato de trespasse se realizaria, até final de Junho de 2001.
Com a outorga do acordo, o autor visava a aquisição do referido estabelecimento, licenciado e a funcionar, com todos os seus pertences e componentes, e com o horário de funcionamento que, então, vigorava, com abertura às 15.00 horas e encerramento às 2 horas da manhã.
A transferência do estabelecimento operou-se, logo com a outorga daquele
escrito, dando o autor, em Janeiro de 2001, início à exploração do
mesmo, passando a fazer a sua gestão, no seu próprio interesse, comprando
as mercadorias, pagando as facturas e demais encargos, contratando empregados
e recebendo as receitas, tudo se passando como se fosse, efectivamente, dono do estabelecimento, tendo decidido cessar a sua exploração, em Dezembro de 2001, encerrando, então, o bar.
O período de funcionamento do bar foi restringido para as 24 horas, por
decisão da Câmara Municipal da Batalha, datada de 25 de Outubro de 2001, com
efeitos a partir de 9 de Novembro desse mesmo ano.
A ré não recebeu do autor o remanescente do preço acordado, no montante de 2.500.000$00.
O contrato de trespasse consiste na transmissão, por acto «inter vivos», voluntária, de natureza onerosa ou gratuita, da titularidade de um estabelecimento comercial ou industrial, localizado em espaço arrendado, sem dependência da autorização do senhorio, em conjunto com as instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos que o integram, mantendo-se o exercício do mesmo ramo de comércio ou indústria, sem que a transmissão da fruição do prédio implique a sua afectação a um outro destino económico Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, revista e actualizada, 2001, 531 a 537..
Por sua vez, o contrato–promessa ou contrato-promessa de contratar é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam a celebrar determinado contrato, ou melhor, a emitir a declaração de vontade correspondente, a cuja futura realização ambas, ou apenas uma delas, ficam adstritas, e a que se dá o nome genérico de contrato prometido Antunes Varela, Das Obrigações em Geral I, 1970, 211..
A este propósito, vigora, como regime geral na matéria, o princípio da equiparação, consagrado pelo artigo 410º, nº 1, do Código Civil (CC), segundo o qual aos requisitos e efeitos do contrato-promessa são aplicáveis as disposições relativas ao contrato prometido, com excepção das relativas à forma e das que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
No que concerne à forma do contrato-promessa, quando a lei exige documento, quer autêntico, quer particular, para o contrato prometido, o respectivo contrato-promessa só é válido se constar de documento escrito, assinado pelos promitentes, em conformidade com o estipulado pelo artigo 410º, nº 2, enquanto que se o contrato prometido estiver subordinado a qualquer outra formalidade que não seja a redução a documento, valerá para o correspondente contrato-promessa a regra geral da liberdade da forma, constante do artigo 219º, ambos do CC.
Com efeito, nos termos do preceituado pelo artigo 115º, nº 3, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), na redacção introduzida pelo DL nº 64-A/2000, de 22 de Abril, vigente à data em que foi outorgado o contrato em análise, o trespasse deixou de dever ser celebrado por escritura pública, para passar a dever ser celebrado por escrito, sob pena de nulidade.
Revertendo ao caso em apreço, importa considerar que, independentemente do “nomen iuris” adoptado pelas partes, ou seja, como um “contrato promessa de compra e venda”, a que o Tribunal não está vinculado, por força do estipulado pelo artigo 664º, do CPC, estas quiseram celebrar um contrato-promessa de trespasse do estabelecimento comercial, que reduziram a escrito, devidamente, assinado por ambas.
Assim sendo, atendendo a que o contrato prometido de trespasse deve agora ser reduzido a escrito, é válido o contrato-promessa celebrado pelas partes, porquanto consta de documento escrito, assinado por ambos os promitentes, em harmonia com o disposto pelo artigo 410º, nº 2, do CC.
Ora, sendo válido o contrato-promessa de trespasse outorgado pelas partes, e não tendo as mesmas celebrado o contrato definitivo de trespasse, como a tanto se tinham comprometido, ainda que, verbalmente, até final de Junho de 2001, operando-se a transferência do estabelecimento, logo com a outorga daquele, dando o autor início à sua exploração, em Janeiro de 2001, fazendo a gestão do mesmo, no seu próprio interesse, tudo se passando como se fosse, efectivamente, dono daquele estabelecimento, resta saber se existe um contrato de trespasse, sem configuração normal, posterior ao contrato-promessa, retirando do aludido documento escrito a virtualidade de representar o título constitutivo desse contrato, sendo, então, o contrato de trespasse, inexistente e ineficaz, por ser nulo, por vício de forma, como entende o autor, ou antes um contrato atípico de trespasse definitivo, como sustenta a ré.
Efectivamente, ambas as partes, sustentadas embora em considerações diversas, defendem que foi celebrado entre si um contrato de trespasse definitivo, entendimento este que obteve acolhimento na sentença recorrida, concluindo o Mº Juiz que, “a partir de Junho de 2001 ficou desvitalizado por vontade das partes o contrato-promessa antes celebrado e tiveram elas por concluído um contrato de trespasse definitivo, deixando de se entender a partir desse momento a exploração do estabelecimento pelo autor como uma antecipação dos efeitos do contrato prometido, podendo concluir-se que se está em presença de um contrato perfeito ou completo”.
Mas, se o contrato-promessa de trespasse é válido, por observância da respectiva forma legal, com base no preceituado pelo artigo 410º, nº 2, do CC, como já se disse, outrotanto sucederia, se tivesse sido celebrado pelas partes o contrato prometido de trespasse, em virtude do prescrito pelo artigo 115º, nº 3, do RAU.
Efectivamente, não se aceita a tese defendida pela sentença recorrida, como que fazendo uma bissectriz das posições convergentes das partes, segundo a qual estas celebraram entre si um contrato de trespasse definitivo.

III

CONSEQUÊNCIAS

Atendendo ao acabado de expor, considerando que as partes celebraram, validamente, um contrato-promessa de trespasse, sem que tivessem chegado a outorgar o respectivo contrato prometido, improcedem, consequentemente, com base em manifesta falta de base legal, os pedidos principais formulados pelo autor, no sentido da declaração de nulidade, por vício de forma, do contrato celebrado, e da declaração de nulidade e inexistência do contrato de trespasse, e bem assim como da restituição pela ré da quantia de 17.457,93 €.
Porém, o autor deduz ainda, em alternativa, o pedido de condenação da ré a restituir-lhe a aludida quantia de 17.457,93 €, em virtude daquela ter usado de má fé na celebração do contrato, ocultando elementos essenciais do mesmo, determinantes da vontade de negociar do autor.
Existe uma multiplicidade de contratos que se concluem, rapidamente, pelo mero encontro de uma proposta e de uma aceitação, sem que se verifiquem anteriores aproximações dos contraentes ou negociações prévias, ao contrário de outros em que ocorre uma maior frequência de contactos, antecedidos de um processo genético, que se inicia com os primeiros encontros das partes, com o objectivo da constituição de um negócio jurídico, e se prolonga, até ao momento da sua efectiva celebração, onde se incluem, nomeadamente, aqueles actos preparatórios que revestem, só por si, natureza negocial, de significado inequívoco, como seja o contrato-promessa, unilateral ou bilateral, de que resulta uma vinculação mais forte, porque envolve, em relação a um ou a todos os intervenientes, a obrigação de concluir determinado contrato, nos termos estabelecidos.
Efectivamente, os actos preparatórios do contrato prometido de trespasse assumiram natureza negocial, através da figura do contrato-promessa, não se tendo provado, porém, que a culpa pela não realização do contrato definitivo seja imputável à ré, promitente-trespassante, porquanto, a existir, seria distribuída, igualmente, por ambas as partes, anulando-se, reciprocamente, para efeitos indemnizatórios, não sendo, consequentemente, configurável uma situação de culpa daquela na formação do prometido contrato de trespasse, autonomizando-se na figura do contrato-promessa os actos preparatórios que visaram a conclusão daquele negócio.
Ora, afastada a imputabilidade da ré pela não consumação do contrato prometido, carece de fundamento legal o pedido de restituição do quantitativo entregue, a título de sinal, formulado pelo autor, com base em responsabilidade contratual.
Estando subjacente em contrato-promessa o pedido formulado pelo autor, resultante de actos preparatórios que visavam a conclusão de um contrato de trespasse, mas que nele perderam a sua identidade, autonomizando-se na figura do contrato-promessa, encontrando-se este dotado de uma garantia contratual específica, está, de todo, excluída a hipotética responsabilidade contratual da ré, pela não celebração do contrato prometido.
Finalmente, a ré sustenta que tem direito a receber do autor a quantia de 12.469.95 €, referente a parte do preço estabelecido para o trespasse e que este ainda não pagou.
Ora, se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte obter sentença constitutiva, proferida em acção destinada a obter o cumprimento da promessa, que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, com ressalva daquelas situações em que a tal se oponha a natureza da obrigação assumida ou em que exista convenção em contrário, entendendo-se haver convenção em contrário, se existir sinal ou se tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa, nos termos do estipulado pelo artigo 830º, nºs 1 e 2, do CC.
Na hipótese em análise, por ocasião da celebração do contrato-promessa de trespasse, o autor, promitente-trespassário, entregou à ré, promitente-trespassante, a quantia de 3.500.000$00, como parte do valor total do negócio prometido, que se presume assumir o carácter de sinal, atento o disposto pelo artigo 441º, presunção essa que não foi ilidida e é, igualmente, extensiva ao contrato-promessa de trespasse STJ, de 24-11-83, BMJ nº 331, 538., com os efeitos decorrentes do artigo 442º, ambos do CC.
Porém, as partes estabeleceram ainda, verbalmente, que o contrato de trespasse se realizaria, até final de Junho de 2001, o que não chegou a acontecer, por razões que não ficaram demonstradas, sendo certo que o autor-trespassário não pretende, ao contrário da ré-trespassante, a respectiva ultimação, não tendo esta recebido ainda do autor o remanescente do preço acordado, no montante de 2.500.000$00.
Assim sendo, tendo-se fixado um prazo final para o cumprimento de uma promessa sinalagmática, isto é, até final de Junho de 2001, mas continuando o autor a explorar o bar, até Dezembro de 2001, altura em que, unilateralmente, o decidiu encerrar, entende-se que as partes não estabeleceram um prazo, findo o qual o contrato caducaria, automaticamente, ficando ambas desvinculadas do mesmo, mas antes que o contrato-promessa continua de pé, gozando, qualquer das partes, do direito de, unilateralmente, por sua exclusiva vontade, o revogar, dando-o sem valor Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 126, nota 1..
Porém, como já se disse, na hipótese de incumprimento do contrato-promessa, o promitente fiel, ou seja, a ré, no caso «sub judice», só poderia obter sentença substitutiva da declaração negocial do faltoso, na falta de convenção em contrário, o que a existência de sinal exclui, em conformidade como disposto pelo artigo 830º, nºs 1 e 2, do CC.
Afastada, assim, a execução específica do contrato-promessa, em relação ao autor e à ré, em virtude de a entrega do sinal significar ser esse e não outro o tipo de sanção que as partes prevêem e querem, para o caso do não cumprimento da promessa, como que se reservando a liberdade de não contratarem, de não cumprirem a promessa, ficam, então, as mesmas sujeitas à sanção por elas próprias estipulada Pereira Coelho, Obrigações, Sumários, 28..
Por isso, é esse o montante da indemnização que as partes prefixaram, para a hipótese de não cumprimento, indo ao arrepio de todas as suas expectativas a ideia de o Tribunal, ultrapassando a sua recusa, poder suprir a vontade do promitente faltoso, não fazendo, portanto, qualquer sentido uma avaliação concreta dos danos causados pela falta de cumprimento Antunes Varela, Das Obrigações em Geral I, 1970, 221 e 222 e nota 113..
Desde que, pela estipulação do sinal, os promitentes ficavam compelidos à perda do sinal ou à sua restituição em dobro, consoante a parte que não cumpriu foi a que o entregou ou recebeu, nos termos do preceituado pelo artigo 442º, nº 2, 1ª parte, do CC, devia presumir-se que quiseram, apenas, estabelecer essas sanções, para o caso de não cumprimento, afastando o recurso ao Tribunal para a imposição de sanção diferente.
Procedem, pois, tão-só, em parte, as conclusões constantes das alegações da ré.

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CONCLUSÕES:

I – Não tendo as partes celebrado o contrato definitivo de trespasse, a que se haviam comprometido, em antecedente contrato-promessa, e operando-se a transferência do estabelecimento, logo com a outorga deste, dando o promitente-trespassário início à sua exploração, de imediato, no seu próprio interesse, como dono do estabelecimento, não se está em presença de um contrato de trespasse, mas antes de um contrato-promessa de trespasse, validamente, outorgado.
II – Assim sendo, improcedem os pedidos baseados na invalidade de ambas as modalidades contratuais, como seja o da declaração de nulidade, por vício de forma, do contrato-promessa celebrado, o da declaração de nulidade e de inexistência do contrato de trespasse, ou, finalmente, o da restituição da quantia entregue, a título de sinal.
III - Estando subjacente ao pedido formulado pelo autor um contrato-promessa, resultante de actos preparatórios que visavam a conclusão de um contrato de trespasse, não se tendo provado, porém, que a culpa pela não realização deste seja imputável à promitente-trespassante, encontrando-se o contrato-promessa dotado de uma garantia contratual específica, está, de todo excluída a responsabilidade contratual desta, carecendo de fundamento legal o pedido de restituição do quantitativo entregue, a título de sinal, formulado pelo promitente-trespassário.
IV – Afastada a execução específica do contrato-promessa, com a estipulação do sinal, os promitentes ficam compelidos à perda deste ou à sua restituição em dobro, consoante a parte que não cumpriu foi a que o entregou ou recebeu, sendo de presumir que quiseram apenas estabelecer essas sanções, para o caso de não cumprimento, afastando o recurso ao Tribunal para a imposição de sanção diferente.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação e, em consequência, em revogar a sentença recorrida, na parte em que julgou procedente o pedido formulado pelo autor, confirmando-a, quanto ao demais, ou seja, na parte em que julgou improcedente o pedido reconvencional deduzido pela ré.

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Custas, a cargo do autor-apelado e da ré-apelante, na proporção de 2/3 e de 1/3, respectivamente.

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Notifique.