Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
777/07.2TAVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: CRIME DE OFENSA A ORGANISMO
SERVIÇO OU PESSOA COLECTIVA
OFENDIDO Mº Pº
QUEIXA
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 187º, 1 CP, 113º, 1 CPP
Sumário: O Mº Pº tem legitimidade para promover o procedimento criminal por crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, visando os serviços do Mº Pº de uma determinada comarca não se exigindo a apresentação de queixa pelo Procurador-Geral da República.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

            Nestes autos de processo comum provenientes do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém, o M.P. deduziu acusação contra J..., com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a autoria material de um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. p. pelo art. 187º, nº 1, do Código Penal. Contudo, por despacho exarado a fls. 94/95, o Mmº Juiz entendeu faltar legitimidade ao M.P. para proceder contra o arguido pelo referido crime e julgou extinto o procedimento criminal por ausência de queixa ou participação pelo titular do direito correspondente.

           

            Inconformado, o M.P. interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra J..., pela prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, previsto e punido pelo artigo 187º nº 1 do Código Penal;

2. Em 6 de Abril de 2009 foi proferido o despacho recorrido, que entendeu ser legalmente inadmissível o procedimento nestes autos, por falta de legitimidade do Ministério Público para proceder criminalmente contra o arguido e, consequentemente, julgou extinto o procedimento criminal, ordenando o arquivamento dos autos.

3. Na decisão recorrida, a Mmª Juiz a quo entendeu que sendo ofendido o Ministério Público, teria de ser quem o representa enquanto corpo quem tinha legitimidade para efectuar queixa ou participação pelos factos imputados ao arguido.

4. Contudo, a decisão recorrida incorre em dois erros: em primeiro lugar, nem sequer aborda às ofensas dirigidas ao Tribunal de Ourém, enquanto órgão de soberania, limitando-se a apreciar as afirmações dirigidas ao Ministério Público de Ourém; em segundo lugar, a Mmª Juiz a quo alicerça a sua decisão dizendo que o ofendido é o Ministério Público.

5. Todavia, tal afirmação não corresponde à situação dos autos, já que conforme decorre cristalinamente do despacho de acusação do Ministério Público, bem como da análise do requerimento redigido e assinado pelo arguido, o mesmo afirma "eu acuso o Ministério Público de Ourém (sublinhado nosso) por desrespeito por crianças e deficientes e de a muito até hoje de ter atitudes criminosas contra mim e família ",

6. Ao contrário do que afirma a Mmª Juiz a quo no despacho recorrido, o arguido não ofende o Ministério Público no seu todo, enquanto Magistratura, mas sim o Ministério Público de Ourém. Basta atentar nas afirmações do arguido, vertidas no requerimento acima referido e que está em causa nestes autos, para constatar tal facto.

7. No requerimento que está em causa nestes autos, o arguido dirige-se expressamente e ofende quer o Ministério Público de Ourém, quer o Tribunal de Ourém, individualmente considerados, de per si, como entidades que exercem uma autoridade pública. Está, pois, em causa nos autos o interesse particular do Tribunal Judicial da comarca de Ourém e do Ministério Público desta mesma comarca, que, como tal, são os ofendidos no ilícito praticado pelo arguido.

8. Daí que os Magistrados que ali exercem funções são quem tem legitimidade para participar criminalmente por tais factos.

9. A Mmª Juiz a quo não teve em consideração o preceituado pelo artigo 4.º, nº 1, alínea c), do Estatuto do Ministério Público, de acordo com o qual o Ministério Público é representado nos tribunais de primeira instância por Procuradores da República e por Procuradores-­Adjuntos, o que é reiterado pelo artigo 64°, nº 2 do mesmo Estatuto, norma que preceitua que compete aos Procuradores-Adjuntos representar o Ministério Público nos tribunais de primeira instância.

10. A decisão recorrida violou, assim, o preceituado nos artigos 113º, nº 1 e 187º do Código Penal, nos artigos 49º, nº 2 e 311º do Código de Processo Penal e os artigos 4º, no l, alínea c) e 64º, nº 2 do Estatuto do Ministério Público.

11. Assim, deverá o tribunal de recurso revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público nos presentes autos.

            Não houve resposta.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela procedência do recurso.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir consiste em verificar se a legitimidade do M.P. para promover o procedimento criminal contra o arguido por crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, em que é ofendido o M.P. de Ourém, pressupõe a apresentação de queixa pelo Procurador-Geral da República.

           

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

            A acusação rejeitada tem o seguinte teor:

(…)

Em processo comum e para julgamento com intervenção de Tribunal Singular, o Ministério Público deduz acusação contra:

1. J..., casado, natural da freguesia de …, concelho de Ourém, residente na …, Loulé.

Porquanto:

1° O arguido assinou e remeteu ao Processo de Instrução nº 961106.6TALLE, do 2° Juízo do Tribuna! Judicial da Comarca de Ourém, uma carta datada de 13 de Novembro de 2007 e que foi junta aos mesmos autos, a 20 do mesmo mês.

2º Da mesma carta, e além do mais, constava “… Eu acuso o ministério público de Ourém por desrespeito de crianças e deficientes e de a muito ate hoje de ter atitudes criminosas contra mim e família e describilizo o tribunal de Ourém e comunico com este documento que não é para desentranhar! E quero que tudo o que diga respeito ao meu nome até à última virgula saia do tribunal de Ourém e que siga despacho para o tribunal Europeu dos direitos humanos…”.

3º O mesmo agiu dessa forma, sem fundamento para, em boa fé, reputar como verdadeiros, os factos que fez constar nessa carta, corno sabia.

4° Tais expressões são capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio e a confiança que são devidos ao Ministério Público e ao Tribunal Judicial da Comarca de Ourém.

5° O arguido agiu consciente, livre e deliberadamente,

6º Bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Pelo exposto, cometeu o arguido, em autoria material, um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, previsto e punível pelo artigo 187°, nº 1, do Código Penal.

(…)

            Por seu turno, é o seguinte, o teor do despacho recorrido:

A Digna Magistrada do Ministério Público deduziu acusação contra J..., imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva previsto no art. 187°, no l, do Cód. Penal.

Determina tal preceito que «quem, sem fundamento para, em boa fé, o reputar como verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismos ou serviços que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até 6 meses ou multa até 240 dias.»

Por sua vez, o art. 188°, nº 1, do mesmo diploma consagra que no caso em que o ofendido exerça autoridade pública, basta a existência de queixa ou participação para a instauração do procedimento criminal.

Sendo o ofendido o Ministério Público terá de ser quem o representa enquanto corpo que tem legitimidade para efectuar a queixa ou apresentar a correspondente participação.

Ora, no caso dos presentes autos, e sem se entrar desde já em considerações acerca do preenchimento do tipo do ilícito em apreço, a queixa ou a participação crime sempre teriam que ser apresentadas, por quem representa o Ministério Público, enquanto organismo, ou seja, o Procurador Geral da Republica ou em quem ele tiver delegado tal faculdade para os presentes efeitos.

Assim sendo, como se entende que é, falece, desde logo, legitimidade ao M. P. para proceder criminalmente contra o arguido pela prática do ilícito em apreço, sendo, nessa medida, legalmente inadmissível o procedimento (cfr, arts. 116º, 113° e 187° e 188°, nº 1, do Cód. Penal. e art. 49° do Cód. Proc. Penal).

O art. 113º do Cód. Penal determina no seu nº 1 que o juiz, recebidos os autos, se pronuncia sobre as questões prévias ou nulidades que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

Assim sendo e pelos fundamentos exposto, e uma vez que não foi apresentada a competente queixa ou participação pelo seu titular, julgo extinto o procedimento criminal, determinando o arquivamento dos autos.

Notifique.

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            A questão que essencialmente se coloca no recurso consiste em averiguar quem é o detentor do direito de queixa, estando em causa a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, com sede legal no art. 187º, nº 1, do Código Penal.

            Os factos tipificadores do referido crime foram praticados através da remessa de uma carta dirigida ao Processo de Instrução nº 961/06.6TALLE, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, datada de 13 de Novembro de 2007 e junta aos autos em 20 de Novembro do mesmo ano, portanto, já em plena vigência da redacção do art. 187º, nº 1, do Código Penal introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro. Essa norma dispõe nos seguintes termos:

            1 – Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

Ainda que a regra para o procedimento criminal quanto aos crimes previstos no Capítulo VI do Título I da Parte Especial do Código Penal seja a da obrigatoriedade da dedução de acusação particular, o art. 188º, nº 1, al. b), exceptuou expressamente a previsão do art. 187º sempre que o ofendido exerça autoridade pública, caso em que é suficiente a queixa ou a participação, assumindo assim o crime natureza semi-pública.

            A queixa, como é sabido, consiste numa manifestação de vontade inequívoca de responsabilização criminal do agente a quem é imputável um facto criminoso. O Código Penal estabelece, no art. 113º, nº 1, a titularidade do direito de queixa, dispondo que “quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

            No caso de que agora nos ocupamos, a passagem constante da carta endereçada pelo arguido ao processo e que foi considerada susceptível de preencher a tipicidade do crime previsto no art. 187º, nº 1, do Código Penal, tem o seguinte teor: “… Eu acuso o ministério público de Ourém por desrespeito de crianças e deficientes e de a muito ate hoje de ter atitudes criminosas contra mim e família e describilizo o tribunal de Ourém…”.

            É em função do facto concreto, tal como foi narrado na acusação, que há que determinar a titularidade do direito de queixa. E como o “facto”, no caso em recurso, até tem suporte material – um texto escrito – é no contexto das significâncias vertidas no texto que haverá que encontrar a dimensão que o agente quis imprimir às palavras que escreveu. Recorde-se que a própria linguagem, segundo Nietzsche, é metáfora do real, no sentido em que ele nela cria uma transposição que se afirma em dois planos distintos: na relação do locutor com o interlocutor e nas comparações que assemelham ou diferenciam elementos significáveis, tornando a palavra compreensível. Nessa medida, a palavra escrita acaba por ser um jogo de «significâncias»[1], cuja decifração, no entanto, exige a ponderação dos interesses que a movem e das interpretações que se lhes ajustam, particularmente numa língua tão rica de conteúdos como é a língua portuguesa, em que são frequentes, entre uma palavra e o seu antitético, progressivas graduações de significado.

De todo o modo, no caso vertente basta ler nas palavras utilizadas aquilo que elas efectivamente significam para que a dimensão jurídica do que começou por ser apenas vocabular se apresente de forma cristalina: “Eu acuso o ministério público de Ourém (…) e describilizo o tribunal de Ourém…”, lê-se no texto a que se reporta a acusação! Inúteis se revelam aturados esforços interpretativos, que só poderiam servir para, ainda que inadvertidamente, subverter o texto efectivamente escrito. O seu autor visou o Ministério Público de Ourém e (descontado o erro ortográfico) o Tribunal de Ourém. Nada mais nem mais ninguém! Não está em causa, pois, o Ministério Público na sua globalidade, enquanto corpo de magistrados com estatuto próprio, dotado de autonomia e com subordinação hierárquica, encimada pelo Procurador-Geral da República, mas apenas e tão-só o Ministério Público de Ourém; e ainda o Tribunal de Ourém. E logo por aí, não faria sentido exigir, para efeitos de procedimento criminal, a apresentação formal de queixa pelo Procurador-Geral da República. Aliás, mesmo em relação a outros corpos que exercem autoridade pública, como as forças policiais, a jurisprudência já reconheceu, em situações análogas, a desnecessidade de apresentação de queixa pelo responsável máximo da corporação quando não está em causa a corporação no seu todo, sendo visados apenas destacamentos, divisões, ou agentes identificados [2]. É verdade que tal orientação está longe de constituir jurisprudência uniforme. Afigura-se-nos, no entanto, que no caso vertente a questão posta não se coloca, por força da especificidade das funções cometidas ao M.P. e dos poderes que decorrem do seu próprio estatuto. O Ministério Público é representado nos tribunais de primeira instância por procuradores da República e por procuradores-adjuntos [art. 4º, nº 1, al. c), e 64º, nº 2, da Lei nº 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público)], zelando pelos interesses que lhe estão confiados e promovendo o que tiver por conveniente (idem, art. 6º, nº 1). Coerentemente, o referido Estatuto só atribui ao Procurador-Geral da República a representação do Ministério Público nos tribunais referidos no art. 4º, nº 1, al. a), a saber, Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal de Contas [cfr. o art. 12º, nº 1, al. b)]. Nesta medida, o Magistrado do M.P. junto do Tribunal Judicial de Ourém tinha legitimidade para apresentar a queixa pelos factos supra descritos, integradores de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva visando os serviços do Ministério Público de Ourém.

Solucionada a questão da legitimidade, perguntar-se-á se foi validamente apresentada queixa ou participação.

Sobre a forma da queixa diz o Professor Figueiredo Dias: “No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. O que só é reforçado pelo disposto no art. 49º-3 do CPP, já acima referido. Não se torna necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor, v.g., como denúncia, acusação, etc. Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona” [3].

No caso vertente, recebida nos autos de instrução nº 961/06.6TALLE a carta subscrita pelo arguido documentada a fls. 2 dos presentes autos, foi ordenada a extracção de certidão e correspondente remessa ao M.P. para eventual procedimento criminal contra J… (é o que se lê na certidão de fls. 1), tendo o M.P. ordenado o respectivo registo, distribuição e autuação como inquérito pelo crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (mesma certidão, nota manuscrita no canto superior direito). É caso para dizer que mais esclarecedor quanto à intenção que presidiu à abertura do inquérito seria difícil… o que nos leva a afirmar, na sequência da citação acima transcrita, que a queixa foi validamente apresentada.

O recurso afirma-se, pois, como procedente.

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III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, devendo no tribunal recorrido ser proferido despacho que receba a acusação se nenhuma outra razão a isso obstar.

            Sem tributação.

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                                                                                  Coimbra, ____________


[1] - Sobre o tema, veja-se “Enciclopédia Einaudi – Vol. 11 – Oral / escrito / argumentação, pags. 118 e ss. e 146 e ss.
[2] - Cfr. o Ac. da Relação de Coimbra, de 9/03/1994, in CJ, ano XIX, tomo 4, pag. 40 e ss.; Ac. da Relação de Coimbra, de 18/04/2007, Recurso nº 341/03.5TAAGD.C1; Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 3/12/2003, Recurso nº JTRP00036449;
[3] - “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pag. 675.