Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
632/10.9PBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º CP
Sumário: 1.- O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, atualmente, mesmo após cessar essa relação;
2.- Com a Revisão de 2007, deixou de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objetivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.
3.- Inexistindo na factualidade provada quaisquer factos descrevendo o relacionamento entre arguido e ofendida, durante os breves meses que durou o namoro, que permitam concluir que os mesmos mantinham uma relação estável análoga à dos cônjuges, que tenha permitido criar uma ligação afetiva de domínio do arguido sobre a ofendida e de sujeição desta àquele, não integra o círculo das vitimas de violência doméstica a que alude a al.b), n.º1, do art. 152.º do C.P., isto é, de pessoa de outro sexo com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Decisão Texto Integral:      Relatório

Pela Comarca do Baixo Vouga - Aveiro - Juízo de Média Instância Criminal - Juiz 2 , sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

A..., residente na Rua  …  Aveiro,

imputando-se-lhe a prática dos factos constantes de fls. 259 a 262, pelos quais teria cometido, em autoria material, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1 , alínea b) do Código Penal e um crime de detenção de arma proibida, p. e p . pelo art.86.º, n.º 1, alínea d) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Realizada a audiência de julgamento – no decurso do qual foi comunicada, por despacho de folhas 317, uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação, nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. – o Tribunal Singular, por sentença proferida a 15/12/2011, decidiu julgar parcialmente procedente a acusação do Ministério Público e, consequentemente:

- Absolver o arguido A..., do crime de violência doméstica que lhe era imputado;

- Julgar válida e relevante a desistência de queixa, que se homologa, declarando extinto o procedimento criminal instaurado contra o mesmo arguido quanto a uma parte dos factos apurados e que processualmente são susceptíveis de integrar um crime de injúria, dois crimes de ameaça e dois crimes de ofensa à integridade física simples p. e p., respectivamente, nos arts. 181.º, 153.º n.º 1 e 143.º n.º 1, todos do Código Penal (arts. 116.º , n.º 2, 117.º, 143.º, n.º 2, 153.º, n.º 2 e 188.º, todos do Código Penal e art. 51.º, n.º 2 do CPP).

- Condenar o mesmo arguido A...:

a) como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º n.º 1, alínea  d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/09, de 6 de Maio, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7 (sete euros);

b) como autor material de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 7 (sete euros);

c) operar o cúmulo jurídico das penas parcelares e condenar o arguido na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de  €7 (sete), o que perfaz a soma de € 2.100 ( dois mil e cem euros), a que correspondem, subsidiariamente, 200 (duzentos) dias de prisão;

- condenar ainda o mesmo arguido A... como autor material de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 97.º n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12/2011, de 27 de Abril), na coima de € 600 (seiscentos euros);

- declarar perdidas a favor do Estado, e alvo de destruição, as armas (reprodução de arma de fogo e navalha borboleta), chaves e faca de cozinha apreendidas nos autos, devendo ser solicitada à PSP a destruição da reprodução da arma de fogo (entidade a que tal arma deverá ser entregue e que oportunamente juntará o respectivo auto de destruição); e

- declarar também perdido a favor do Estado o telemóvel apreendido nos autos.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. A sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 40.º, 70.º e 152.º do Código Penal.

2. Desde a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9, a relação de namoro cabe na previsão do artigo 152.º do C.P. se a agressão apresentar o elemento caracterizador da violência doméstica que é o abuso de um poder de facto emergente de uma relação afectiva entre a vitima e o agressor,

3. A entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9, alargou o âmbito de incriminação, além do mais, pela inclusão previsão: “ainda que sem coabitação”.

4. O elemento distintivo do crime previsto no art. 152.º do C.P. é, pois, actualmente, o abuso de uma situação de poder que deriva de uma relação que pode ser familiar ou semelhante, designadamente, afectiva.

5. A ratio extensiva do novo âmbito de incriminação resultou do necessário enquadramento, no contexto e realidade sociais e culturais actuais, das novas e diferentes formas de relacionamento afectivo/íntimo entre duas pessoas.

6. A tutela do bem jurídico é agora projectada, para além de numa relação de coabitação, também numa relação de afectividade em que a vítima se encontre numa situação de subordinação ou de domínio de facto.

7. A relação de namoro cabe na previsão do art.152.º do C.P. desde que, como já se referiu, o abuso decorra de um poder de facto proveniente dessa relação afectiva entre o agressor e a vítima que coloque, esta última, em situação de dependência económica e/ou emocional.

8, In casu, a par da assumida relação de namoro, é, precisamente, a contínua conduta de agressão, perpetrada pelo arguido, que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou poder, proporcionada pela relação de dependência afectiva da ofendida.

9. Tal resulta da própria sentença que dá como provado que o arguido agiu com o objectivo de manter a ofendida de forma abusiva, submissa à sua vontade.

10. Da prova produzida, resulta evidente, que o cometimento de maus tratos físicos e  psíquicos por parte do arguido à pessoa da ofendida, decorrente de uma relação de namoro em que é patente o exercício de um domínio e poder da pessoa daquele sobre a pessoa desta última, proporcionada pela relação de submissão e dependência emocional da ofendida   integra a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica.

11. Ainda que assim não se entenda, sempre se considera desajustada a condenação do arguido em pena de multa.

12. A pena de multa aplicada ao arguido não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição revelando-se desajustada ao caso em apreço.

13. In casu, as finalidades da punição não podem ser alcançadas mediante a sujeição do arguido à pena menos gravosa, observando, não só, às exigências de prevenção geral, mas considerando, essencialmente as necessidades de prevenção especial, que se revelam muitíssimo elevadas, atenta a reiteração do arguido na prática dos crimes, o qual persiste na sua conduta criminosa apesar das várias condenações, o que denota que a sua personalidade desconforme ao direito - cfr. C.R.C. do arguido.

14. A reiteração da conduta criminosa do arguido é reveladora de um profundo desprezo para com a vida em sociedade.

15. Resulta, pois, que no caso em apreço, a pena de multa aplicada se revela, de todo, desajustada, devendo ser, o arguido, condenado em pena de prisão.

Nestes termos e naqueles mais que V.ªs Ex.ªs , se dignarão suprir:

Deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão, na parte recorrida, com as demais consequências legais.

            O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. 

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1. O arguido namorou com a ofendida B..., durante cerca de 5 meses, até 19/03/2010, data em que esta terminou aquele relacionamento.

2. Porém, o arguido não aceitou com agrado o termo da relação e resolveu um procedimento contra a ofendida que lhe proporcionasse (ao arguido) o aconchego da vingança.

3. No dia 22/03/2010, cerca das 9,10 horas, no Centro Comercial Fórum, em Aveiro, onde a ofendida B... trabalhava numa loja, o arguido, dirigindo-se àquela, afirmou em alta e viva voz: “sua puta, eu vou-te apanhar quando saíres daí”, causando-lhe, desta forma, receio pela vida e/ou integridade física.

4. Nesse mesmo dia 22/03/2010, cerca das 10,10 horas, no Centro Comercial Fórum, em Aveiro, onde a ofendida B... trabalhava, o arguido, dirigindo-se àquela, disse: “olha, o teu carro tem os pneus furados, e vou ficar à tua espera”, causando-lhe, desta forma, receio pela vida e/ou integridade física. Após isto, a ofendida dirigiu-se ao local onde parqueara o automóvel que utilizava, propriedade do seu pai, constatando que o mesmo tinha 3 pneus furados e, ao final do dia, apresentava um risco contínuo na pintura, circundando-o na totalidade.

5. No dia 27/03/2010, cerca das 9,30 horas, na Rua … , em Aveiro, o arguido abordou a B... e agrediu-a desferindo-lhe uma bofetada que a atingiu no rosto sem, no entanto, lhe causar lesões visíveis.

6. No dia 29/03/2010, cerca das 11 horas, na … , em Aveiro, o arguido, na sequência de discussão com B..., agrediu-a desferindo-lhe uma bofetada e um murro que a atingiram no rosto causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de fls. 11 a 13 do inquérito apenso 707/10.4PBAVR que demandaram, directa e necessariamente, 4 dias de doença sem afectação da sua capacidade de trabalho.

7. No período temporal compreendido entre 22 e 30 de Março de 2010, o arguido, utilizando telemóvel com o IMEI  …  e número … , enviou para o telemóvel … , utilizado por B..., diversos SMS contendo expressões como: " ... tou tão mal que te mando um tiro sem pensar duas vezes", "...corto t esses labios fora e como-os tua frente", "...vou-te fazer desaparecer da face da terra ...", "vou-te queimar o bolas todo...", " ... eu vou-te matar", "... só quero vingança...", "... se não vieres falar comigo te rebento toda ... ponho-te a cara aos papos...", "... eu vou-te desfigurar toda mas toda mesmo...", "... escusas de andar com gente sempre atrás de ti que não te safa de nada...", "eu mato-te eu juro-te B......".

8. O arguido agiu voluntária e conscientemente, com intuito de molestar fisicamente e psicologicamente a sua ex-namorada, a atemorizar e a diminuir na sua honra e consideração, com o objectivo de a manter, de forma abusiva, submissa à sua vontade, sem outras motivações que não o seu humor e desejo de vingança, apesar de bem saber que aquela sua conduta era reprovável e punida por lei.

9. No decurso de busca efectuada no dia 31/3/2010, pelas 11 horas, na residência do arguido A..., foi encontrada a navalha, exibida a fls 68 e descrita no auto de exame de fls 71, com 10,5 cm de comprimento de lâmina e 23 cm de comprimento total, tendo a referida lâmina um gume cortante e outro serrilhado, articulada num cabo dividido longitudinalmente em duas partes, também articuladas entre si, de forma que a abertura da arma pode ser efectuada com o movimento de uma só mão (mecanismo designado como "faca de borboleta").

10. Tal instrumento é arma branca, susceptível de produzir lesões mortais se utilizado contra qualquer pessoa.

11. E foi encontrada a pistola exibida nos documentos de fls 63 e 64 e descrita no auto de exame de fls 70 como “um mecanismo portátil com a configuração de uma arma de fogo “na forma de uma pistola “Walter P99”, com o nº   … , feita em plástico anodizado a preto, com corrediça móvel, gatilho, carcaça, cano, carregador metálico e sistema de segurança … pode lançar esferas não metálicas”

12. É reprodução de arma de fogo, classificada como arma de classe A, cuja detenção depende de autorização, nos termos dos arts 2º, nº 1-aac) e 3º, nº 2- n) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio.

13. O arguido agiu voluntária e conscientemente, apesar de bem saber que a detenção daquela arma branca e desta reprodução de arma de fogo lhe era interdita e que a sua conduta era reprovável e punida por lei.

14. O arguido encontra-se desempregado desde há cerca de 2 meses, altura até à qual auferia mensalmente cerca de €5.000.

15. Vive só em casa cedida pelos seus avós.

16. Tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.

17. Do CRC do arguido constam averbadas as seguintes condenações:

a) em 30/10/2003, transitada em julgado em 14/11/2003, pela prática de um crime de furto qualificado e de um crime de crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 12 meses de prisão suspensas por 2 anos;

b) em 12/12/2003, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €3, por crime de desobediência;

c) em 25/11/2003, transitada em julgado em 19/01/2004, por crime de furto qualificado, na pena de 12 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos;

d) em 28/06/2004, transitada em julgado 14/07/2004, por quatro crimes de furto de uso de veículo, um crime de furto simples e um crime de crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão;

e) em 21/12/2004, transitada em julgado em 21/12/2004, por crime de furto qualificado, na pena de 8 meses de prisão;

f) em 06/07/2005, transitada em julgado em 20/09/2005, por crime de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa;

g) em 15/11/2005, transitada em julgado em 30/11/2005, por dois crimes de furto simples e um crime de crime de condução sem habilitação legal, na pena única de 17 meses de prisão;

h) em 09/06/2006, transitada em julgado em 29/06/2006, por crime de furto simples, na pena de 14 meses de prisão;

i) em 23/10/2007, transitada em julgado em 28/11/2007, por crime de furto simples, em pena de prisão suspensa por 5 anos;

j) em 09/12/2008, transitada em julgado em 08/01/2009, por crime de crime de  condução sem habilitação legal, na pena de dezasseis meses de prisão, suspensa por dezasseis meses.

            Factos não provados

Não se provaram outros factos (e referimos factos porque da acusação constam alguns meio de prova e alguma considerações jurídicas ou preceitos legais) constantes da acusação que estejam em contradição com os assentes e que tenham relevância para a decisão da causa, designadamente:

- que o arguido tivesse tido um procedimento que constrangesse a ofendida a reatar o relacionamento;

- que quando no dia 29/03/2010 discutiu com a ofendida o arguido lhe tivesse desferido vários golpes no rosto;

            Convicção do Tribunal

Indicação probatória.

O Tribunal, num juízo crítico de apreciação da prova produzida, e sendo certo que as declarações oralmente prestadas em audiência constam do respectivo registo áudio de gravação da prova ali produzida, formulou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, com base na análise global da prova produzida, em conjugação as regras da experiência comum e da lógica, e particularmente nos seguintes elementos:

a) nas declarações do arguido que se dispôs a prestá-las quanto à sua situação económica, familiar e habilitações literárias, declarações essas que se nos afiguraram credíveis;

b) no depoimento das testemunhas:

- B... (ofendida) a qual, embora evidenciando sentimentos de receio e revolta para com o arguido, se pronunciou quanto ao apurado comportamento do arguido, após o términus daquele namoro que tiveram (sendo bem explícita em afirmar nunca terem vivido em condições análogas às dos cônjuges, nem partilhado cama ou habitação ou existido economia em comum, apesar de por vezes terem partilhado despesas em algumas refeições que tomaram juntos), nos contextos espácio-temporais apurados desde as apuradas expressões injuriosas e ameaçadoras (quer pessoalmente quer através das apuradas mensagens SMS que recebeu no seu telemóvel e enviadas do telemóvel do arguido – cujo número demonstrou bem conhecer) e humilhação e receio sentidos com as mesmas expressões, passando pelas apuradas agressões físicas de que foi alvo por parte do arguido que até se deslocou ao seu local de trabalho. Referiu ainda ter constatado, naquele dia em que o arguido se deslocou ao seu local de trabalho, que 3 pneus do seu carro estavam cortados e o carro tinha um risco na pintura em toda a volta. O depoimento desta testemunha, pelo modo singelo e coerente como relatou os factos, convenceu o tribunal da veracidade das suas afirmações;

-  … (agente da PSP), o qual na sequência do respectivo mandado de busca, procedeu a busca na residência onde vivia o arguido e ali procedeu à apreensão dos objectos discriminados no auto de busca e apreensão fls. 62 e visíveis nas fotos de fls. 63 a 68);

- … , na altura empregada na Pastelaria … , sita em … , a qual, embora não se recordando concretamente do dia do ano passado, referiu que pouco depois da ofendida dali ter saído depois de ter tomado o pequeno almoço, a mesma ofendida voltou àquela pastelaria aflita a pedir para chamarem a polícia, tendo a testemunha facultado o seu telemóvel à ofendida que terá telefonado para alguém, sendo que passado algum tempo apareceu naquela pastelaria o pai da ofendida e também a polícia. Embora não tendo presenciado o que se possa ter passado com a ofendida, a testemunha referiu ter visto no exterior da pastelaria um rapaz (cujas características de estatura e idade que descreveu correspondiam às do arguido – que não se encontrava presente na sessão em que a testemunha depôs) junto do carro da ofendida;

-  … (amiga da ofendida), a qual referiu não ter presenciado quaisquer dos actos imputados ao arguido, referiu ter visto mensagens no telemóvel da ofendida que esta disse terem sido enviadas pelo arguido; ter visto de uma vez a ofendida com marcas no pescoço e pisadura na cara, dizendo que tinha sido o arguido que a havia agredido e ter visto por uma vez o arguido no Fórum, próximo da loja onde a ofendida trabalhava, a vigiar a ofendida, sendo que nesse dia, á noite, depois da ofendida lhe ter telefonado, viu o carro desta riscado;

-  … (coordenadora da loja onde na altura trabalhava a ofendida) a qual referiu ter ouvido o arguido (antes da abertura daquela loja no dia 22/03/2010, abertura essa que ocorria às 10 horas) do exterior a chamar e a dizer para a ofendida as expressões apuradas no facto 3., sendo que depois de ter sido aberta a loja ao público o arguido ali entrou e foi falar com a ofendida, sendo que algum tempo depois a ofendida entrou na parte de armazém a chorar, dizendo que tinha ido ver o carro ao estacionamento e tinha os pneus furados e o carro tinha sido riscado. A mesma testemunha chegou a ver mensagens no telemóvel que a ofendida lhe mostrou, dizendo que tinham sido enviadas pelo arguido, mensagens essas que a testemunha já não recorda mas de linguagem que considera injuriosa e ameaçadora;

- … , a qual referiu juntamente com uma tal  … terem-se encontrado com o arguido numa pastelaria da … , sendo que depois da ofendida ali ter entrado, tanto a testemunha como aquela  … se ausentaram deixando a ofendida a falar com o arguido. Referiu que do exterior da pastelaria se apercebeu que o arguido se terá exaltado e terá desferido uma bofetada na ofendida e que no exterior desferiu uma cabeçada ou um murro na ofendida, sendo que após isso, no veículo da ofendida foram a casa do arguido, local onde a ofendida pôs gelo no nariz da ofendida que estava a sangrar.

Pelo modo sereno e confiante como prestaram os seus depoimentos, todas estas testemunhas se nos afiguraram credíveis em relação aos factos a que depuseram por forma a convencerem o tribunal da veracidade das suas afirmações.

c) no teor dos seguintes documentos: fls. 13 a 19 (mensagens escritas no telemóvel da ofendida); auto de busca e apreensão fls. 62, fotografias de fls. 63 a 68; fls. 69 a 71 (autos de exame á reprodução de pistola e faca de borboleta); fls. 87; informação policial de fls. 153, fls. 220 a 226 (auto de exame a telemóvel apreendido nos autos), bem como no teor do CRC de fls. 290 a 298. Igualmente foi tido em consideração o teor dos relatórios de exame médico-legal de fls. 10 a 12 do apensado inquérito nº 689/10.2PBAVR e de fls. 11 a 13 do apensado inquérito nº 707/10.4PBAVR.

d) nas regras da experiência comum ligadas à consciência da ilicitude por parte do arguido e à voluntariedade das suas condutas, regras essas que não foram postas em causa em sede de audiência.

Quantos aos factos dados como não provados não foi feita prova segura, consistente nem convincente dos mesmos para que, pela positiva, pudessem ser tidos como assentes. Para além do arguido se ter remetido ao mais completo silêncio, de não ter sido possível a audição da testemunha  … e da testemunha  … não ter conhecimento dos factos a que aludia a acusação, quer do depoimento da ofendida quer das demais testemunhas ouvidas, quer das mensagens escritas não foi feita prova convincente que o arguido pretendesse efectivamente reatar o relacionamento com a ofendida, tendo de certa forma ficado patente em audiência que o arguido pretendia, sim vinga-se da ofendida pelo términos do namoro, com actos em que ocorriam humilhações, enxovalhos, perturbações do sentimento de segurança da ofendida com as ameaças e com concretas agressões físicas. Por outro lado, também não foi feita prova convincente que naquele dia 27/03/2010 o arguido tivesse desferido “vários golpes” na ofendida. Por tais razões, e não esquecendo o princípio do "in dubio pro reo" os factos da acusação que extravasam dos apurados não puderam ser tidos como assentes.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir, exclusivamente de direito, são as seguintes:

- se a conduta do arguido integra a previsão do art.152.º do C.P.; e

- se a pena de multa aplicada ao arguido não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição, impondo-se a aplicação ao mesmo de uma pena de prisão.

            Passemos ao conhecimento da primeira questão.

O recorrente defende que o Tribunal a quo andou mal ao operar a alteração da qualificação jurídica dos factos, convolando um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, al. b), do Código Penal, para a prática de um crime de injúria, dois de ameaça e dois de ofensa á integridade física simples, sustentando para o efeito que desde a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9, com a inclusão do termo “ainda que sem coabitação”, a relação de namoro cabe na previsão do artigo 152.º do C.P., se a agressão apresentar o elemento caracterizador da violência doméstica, que é o abuso de um poder de facto emergente de uma relação afectiva entre a vitima e o agressor. Da prova produzida, resulta que o cometimento de maus tratos físicos e psíquicos por parte do arguido à pessoa da ofendida, decorre de uma relação de namoro entre eles, em que é patente o exercício de um domínio e poder da pessoa daquele sobre a pessoa desta última, proporcionada pela relação de submissão e dependência emocional da ofendida.

Logo, o arguido preencheu com a sua conduta o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, al. b), do Código Penal.

Vejamos.
O crime de maus tratos, do art.152.º, n.ºs 1 e  2 do Código Penal,  na versão de 1995, punia com pena de prisão de 1 a 5 anos, « quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos. ».
Nesta redacção do art.152.º do Código Penal, os sujeitos passivos eram o cônjuge, ou quem convivia com o agente em condições análogas às dos cônjuges.
Para o Prof. Taipa de Carvalho, em anotação ao crime de maus tratos, a ratio do art. 152.º do CP não está «na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana», nem se restringe à protecção da integridade física. O âmbito punitivo vai muito além «dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas», concluindo que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental».[4]
Para o Prof. Augusto Silva Dias, os bens jurídicos protegidos pelo tipo incriminador do art. 152.°, na mesma redacção, são a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (no caso das als. b) e c) do n.º 1) em contextos de subordinação existencial (n.º l), coabitação conjugal ou análoga (n.º 2), estreita relação de vida (n.º 3) e relação laboral (n.º 4).[5]
Também a generalidade da jurisprudência, de que é exemplo o acórdão do STJ , de 30-10-2003, se pronunciava no sentido de que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar».[6]
Para efeitos de tutela penal no crime de maus tratos, defendia então a Dr.ª Catarina Sá Gomes que a convivência análoga à dos cônjuges se verificava desde que o relacionamento fosse estável, com comunhão de cama e habitação, ficando excluídas da tutela as relações momentâneas, fortuitas, ainda que vividas intensamente.[7]  
Através da Revisão do Código Penal, levada a efeito pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador procedeu, entretanto, a alterações na repressão da criminalidade ligada à violência doméstica, reforçando a tutela penal dos crimes de violência doméstica, de homicídio qualificado, p. e p. na al.b), n.º2 do art.132.º do Código Penal e, ainda, de ofensas à integridade física qualificada, dada a remissão do art.145.º, n.º2, do mesmo Código.
O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, do Código Penal, introduzido no Código Penal pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, estatui, designadamente, o seguinte:

« 1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

      a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

      b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

      c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

      d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;    

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se perna mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».

Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que originou a Revisão do Código Penal introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, menciona-se que entre as principais orientações se destacam « o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação », salientando-se o seguinte: « Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente. À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício paternal, da tutela ou da curatela.».

O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de  maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em  contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.

Este parece ser também o entendimento do Dr. Plácido Conde Fernandes ao escrever que não se vê «razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos».[8]

Enquanto nos maus tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.

Na vigência do crime de maus tratos, na redacção dada ao art.152.º, do Código Penal, pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, esclarecia já o STJ que não são todas as ofensas entre cônjuges que cabem na previsão legal, “ ..mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou ininsensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente”. [9]

No debate sobre a necessidade de exigência ou não da reiteração como elemento integrador do crime de maus tratos, p. e p. pelo art.152.º, n.º 2 do Código Penal revisto em 1995 defendíamos não ser de exigir necessariamente a reiteração na conduta criminosa, mas para que uma só conduta fosse suficiente para o preenchimento do tipo esta tinha de se mostrar especialmente grave. [10]

Do texto do art.152.º, n.º1 do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, resulta que o crime de violência doméstica pode ser praticado “ …de modo reiterado ou não…”.   

No círculo das vítimas de violência doméstica surgem, na al. b), n.º1 do art.152.º do Código Penal, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

Com a Revisão de 2007, deixa de ser necessária a coabitação e, consequentemente, de se exigir a ideia de comunhão de cama e habitação, mas não pode deixar de se exigir, no tipo objectivo, um carácter mais ou menos estável de relacionamento amoroso, aproximado ao da relação conjugal de cama e habitação.

Neste sentido, o Dr. André Lamas Leite, sustenta que se exige no crime de violência doméstica a existência de “ uma proximidade existencial efectiva”. “ Do mesmo passo, meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.152.º, n.º1, al. b).” Por outras palavras, sublinha este autor, que “ ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a).”.[11]    

Ainda a este propósito, o Dr. Plácido Conde Fernandes, após sustentar que « a estabilidade relacional de afectos e sentimentos e o projecto de vida em comum, que caracterizam grosso modo a conjugalidade, hão-de revelar-se mesmo que em menor grau, no laço efectivo mantido entre o agressor e a vítima”, acrescenta, com elevado acerto, que “ deverão ser suficientemente indiciados em inquérito, indicados na acusação e provados em julgamento, os factos concretos que forma exteriorizando esse vínculo ao longo da relação, perante o outro e perante terceiros, na medida estritamente necessária à sua demonstração probatória”.[12]  

Do exposto, concluímos que a letra do art.152.º, n.º1, al. b), do Código Penal, não afasta a possibilidade de integração de relações de namoro no tipo objectivo, mas na ausência de coabitação exige-se algum detalhe fáctico que possa comprovar a existência de uma relação afectiva, estável, análoga à dos cônjuges.[13]

O crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.

No caso em apreciação, está dado como provado, no ponto n.º1 da sentença recorrida, que o arguido A...namorou com a ofendida B..., durante cerca de 5 meses, até 19/03/2010, data em que esta terminou aquele relacionamento.

Em abstracto, o namoro é uma fase de relacionamento amoroso para conhecer o outro, e não um fim em si, de comunhão de vida, que é própria do casamento ou da união de facto. È uma fase transitória que com frequência acaba no rompimento amoroso, por as expectativas de um ou ambos os namorados não serem aquelas que esperavam.

Sendo de presumir que a relação de namoro entre o arguido A...e a B... envolveu uma parte afectiva, como acontece em qualquer namoro, não encontramos na factualidade dada como provada quaisquer factos descrevendo o relacionamento daqueles, durante os breves meses que durou o namoro, que permitam concluir que os mesmos mantinham uma relação estável análoga à dos cônjuges, que tenha permitido criar uma ligação afectiva de domínio do arguido sobre a ofendida e de sujeição desta àquele.

Muito menos, resulta da factualidade dada como provada, que essa relação de namoro, enquanto se manteve, era “de submissão e dependência emocional da ofendida”, como sustenta o recorrente.

A quase conjugalidade, mesmo que sem coabitação, exigida na al.b), n.º1, do art.152.º do Código Penal, não se mostra descrita na acusação do Ministério Público, nem consequentemente passou para a factualidade provada.

Tal facto não passou despercebido ao Ex.mo Juiz logo durante o julgamento, levando-o a comunicar ao arguido uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação perante a possibilidade de não haver factos na acusação que permitam o preenchimento do crime de violência doméstica, mas sim outros crimes, por “falta de alegação fáctica de alguma das situações a que aludem as diversas alíneas do n.º1 do art.152.º do C.P…”.  

A motivação da matéria de facto da sentença recorrida – que não se confunde com a factualidade dada como provada – abre uma janela sobre o nível de relacionamento afectivo entre o arguido A...e a ofendida B...; mas ao consignar-se aí que a ofendida B... declarou que ela e o arguido A…, durante o namoro, não partilharam cama, nem habitação, tendo apenas partilhado despesas em algumas refeições que tomaram juntos, o Tribunal da Relação não retira dessas declarações a existência dum relacionamento amoroso enquadrável numa relação de conjugalidade análoga à dos cônjuges.

Os factos provados deixam perceber que ao fim de 5 meses de namoro, o arguido não aceitou com agrado o termo da relação e decidiu vingar-se da namorada. A vingança passou por a ter insultado, a ter agrediu, e até ameaçado durante vários dias. Pese embora tenha querido, com estas condutas, submeter actualmente a ofendida à sua vontade, não se provou que com elas quisesse obrigar a ofendida a reatar o relacionamento com ele. Nem se nos afigura resultar dos factos provados que a conduta do arguido A… , posterior ao fim do namoro, decorre de um poder de facto sobre a ofendida, resultante de uma qualquer situação de dependência emocional pretérita da ofendida.   

Em suma, e tendo em conta o que se deixou mencionado, concluímos, com a decisão recorrida, que a ofendida, numa situação de namoro como a descrita nos termos em que constam da acusação, não integra o círculo das vitimas de violência doméstica a que alude a al.b), n.º1, do art. 152.º do C.P., isto é, de pessoa de outro sexo com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

Assim, improcede esta questão.

            Importa agora passar à segunda questão objecto de recurso.

            O recorrente considera que é desajustada a condenação do arguido A...em pena de multa, porquanto esta não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de punição. As exigências de prevenção geral e essencialmente as necessidades de prevenção especial, que se revelam muitíssimo elevadas, atenta a reiteração do arguido na prática dos crimes, impõem a aplicação a este de penas de prisão. 

Está em causa, pois, a decisão sobre a escolha da pena.

O critério de orientação geral para a escolha da pena consta do art.70.º do Código Penal , que estabelece que “ Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.

As finalidades da punição, a que ali se alude, estão actualmente definidas no art.40.º, n.º1 do Código Penal, resultando dos seus termos que “ a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente ( prevenção geral negativa ou de intimidação ), quer  para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na  tutela de bens jurídicos e , assim , no ordenamento jurídico-penal ( prevenção geral positiva ou de integração).

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual , isto é , à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente , com o fim de evitar que no futuro , ele cometa novos crimes, que reincida.

A escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.

Dentro da prevenção há que atribuir prevalência às exigências de prevenção especial por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.

A prevenção geral surge sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.

Desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam irremediavelmente postas em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.

A culpa, entendida como juízo de censura que é possível dirigir ao agente por não se ter comportado, como podia, de acordo com a norma, não tem relevância no problema da escolha da pena.[14]

Vejamos.

O arguido A...foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º n.º 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/09, de 6 de Maio, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 7 e, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 7.

Em cúmulo jurídico destas, foi condenado na pena conjunta de 300 dias de multa, à taxa diária de  € 7, o que perfaz a soma de € 2.100, a que correspondem, subsidiariamente, 200 dias de prisão.

O crime de detenção de arma proibida é punido com pena de prisão de 30 dias a 4 anos ou com pena de multa de 10 a 480 dias.

Por sua vez, o crime de ameaça agravado é punido com pena de prisão de 30 dias a 2 anos ou com pena de multa de 10 a 240 dias.

Prevendo cada um dos crimes a aplicação, em alternativa, de uma pena de prisão ou de multa, como penas principais, a primeira operação, tendo em vista a aplicação da pena criminal , é a  escolha da pena e, a este propósito, a decisão recorrida é algo concisa na fundamentação da escolha das penas.

Ainda assim, é possível ver que o Tribunal a quo, quanto às razões de prevenção especial, não deixou de atender aos antecedentes criminais do arguido, realçando, porém, que nenhum dos crimes constantes do CRC do arguido é de idêntica natureza aos crimes preenchidos com a sua conduta nos presentes autos.   

Já quanto às exigências de prevenção geral, considera-se na decisão recorrida que as mesmas são grandes sobretudo no crime de detenção de arma proibida, mas que no caso a navalha borboleta se encontrava no interior da residência, não sendo o arguido portador dela na via pública.    

Em face do CRC do arguido, de onde constam diversas condenações, verificamos que, efectivamente, este não foi ainda condenado pela prática de qualquer um dos dois crimes pelos quais foi condenado em 1.ª instância, nomeadamente por crimes contra as pessoas.

Andou bem, assim, o Tribunal a quo ao realçar essa circunstância a nível das exigências de prevenção especial, uma vez que acaba por atenuar essa premente necessidade, que se retira dos antecedentes criminais e da factualidade dada como provada, que deixam perceber uma deficiente formação da personalidade do arguido.

Considerando a frequência com que se violam os bens jurídicos protegidos nos tipos penais violados pelo arguido A...consideramos que as exigências preventivas gerais, neste tipos penais de pequena e média criminalidade, são elevadas.

Tendo, porém, a ofendida desistido da queixa por si apresentada contra o arguido pelos crimes que admitiam a desistência e não tendo o mesmo arguido feito alusão ao uso da navalha de tipo “borboleta” nas ameaças feitas à ofendida, nem sendo portador dela quando lhe foi apreendida,  cremos que a conduta do arguido A...não vai ao ponto de se ter de se concluir que o recurso às penas de multa, previstas nos tipos penais de detenção de arma proibida e de ameaça agravada, não se mostra adequado às exigências de prevenção.

Deste modo, entendemos que não merece censura a decisão recorrida por haver optado, nestas circunstâncias concretas e por esta vez, pela aplicação das penas de multa, em detrimento das penas de prisão, previstas nos tipos relativos aos dois crimes preenchidos pelo arguido com a sua conduta.

Assim, improcede também esta questão e, naturalmente, o recurso interposto pelo Ministério Público.

            Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e manter a douta sentença recorrida.

           Sem custas.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                                             

   *

                                                                                        Coimbra,


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132),
[5]Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110),
[6] CJSTJ, 2003, tomo 3, pág. 208.
[7]O crime de Maus-tratos Físicos e Psiquicos Inflingidos ao Cônjuge ou ao Convivente em Condições Análogas às dos Cônjuges”, in AAFDL, 2002, pág. 65 e seg.s.
[8]Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”,  Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal,  Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305)

[9]  cfr. acórdão do STJ, de 14-11-1997, CJ, ASTJ, ano V, 3.º, pág. 235.   

[10] cfr. neste sentido também, entre outros, o citado acórdão do STJ, de 14-11-1997 e o acórdão do STJ de 2 de Julho de 2008 , proc. n.º 07P3861, in www.dgsi.pt.

[11] Revista Julgar, n.º12 Especial, “ A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, pág. 52. Em igual direcção, o Dr. Plácido Conde Fernandes, defendendo que se impõe “ afirmar a estabilidade do relacionamento, em fluxo simétrico, com a relação conjugal, que excluirá do âmbito da norma ligações de natureza afectiva, ou mesmo sexual, meramente fortuitas ou ocasionais” - Obra citada, págs. 310 e 311

[12] Obra citada, pág. 311.
[13] Nos termos do art.1672.º do CC os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistencia.

[14] Cfr. Cons. Maia Gonçalves , in “Código Penal  Português anotado” , 8ª edição , pág.354 e Prof. Figueiredo Dias, in  “Direito Penal Português, As  consequências Jurídicas do crime”, Notícias Editorial, pág.332.