Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
677/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
Data do Acordão: 04/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: RECURSO REJEITADO
Legislação Nacional: ARTIGOS 119°, AL.F), 311.º N.º 1 E 391°-D, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:

I - Recebidos os autos para julgamento em processo abreviado, o juiz, por força do disposto no art.391°-D, do CPP, deve conhecer das questões a que se refere o art.311°, n.º 1 do mesmo Código, nomeadamente das nulidades.
II - Para saber se o M.º P.º fez emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei, nulidade insanável prevista no art.119, al.f), do CPP , deve o juiz apreciar os pressupostos que permitem a utilização de tal forma de processo, nomeadamente a simplicidade e a evidência da prova quanto aos indícios da verificação do crime e de quem foi o seu agente.
III - Tal sindicância traduz um juízo sobre a idoneidade da prova para sustentar a tese da acusação e não so bre o bem fundado da tese da acusação .
IV - A decisão quanto à falta de pressupostos legais do processo abre-viado, declarada como nulidade, é irrecorrível quando proferida nos termos do art.391°-D, n.º 1, do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam , em conferência , na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra .
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No processo abreviado n.º 133/03.1GTLRA , do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria , em que é arguido AA o Ex.mo Juiz , por despacho de 9 de Outubro de 2003 , decidiu “declarar a nulidade da acusação consistente no emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei” e ordenou que , após trânsito , se remetessem os autos aos Serviços do Ministério Público.

Inconformado com o douto despacho de 9 de Outubro de 2003 dele interpôs recurso
o Ministério Público , concluindo na sua motivação :
1 - Nos presentes autos, na sequência de interrogatório judicial, ao arguido foi imputada a prática dos seguintes ilícitos :
- um crime de condução de veiculo sem carta, previsto pelo art. 3.º n.º 2 do Dec. Lei 2/98 de 3-1 e
- um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto um crime de condução de veiculo automóvel sem habilitação legal, pelo art. 25.º a) do Dec. Lei 15/93 de 22-1, com referência à tabela I-A a ele anexa.
2 - Efectuado inquérito, foi produzida a prova documental - junção de crc , junção de informação da DGV e do relatório de exame ao estupefaciente apreendido, por inexistir outra , de relevante e essencial interesse a produzir.
3 - Concluído o inquérito, o Ministério Público optou por utilizar a forma de processo abreviado, com utilização do art. 16.º do CPP, imputando ao arguido a prática de um crime de condução de veiculo sem carta, previsto pelo art.3.º n.º 2 do Dec. Lei 2/98 de 3-1 e de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto pelo art. 25.º a) do Dec. Lei 15/93 de 22-1, com referência à tabela I-A a ele anexa.
4 - O Ex. mo Juiz, afirmando que a prova dos autos não era simples nem evidente, declarou nula a acusação por emprego de forma de processo especial fora de caso previsto na Lei.
5 - A prova no caso concreto apresenta-se como simples e evidente. Com efeito a mesma resume-se ao auto de noticia elaborado por um soldado da GNR, e ás declarações a produzir por este e por um colega que o acompanhava quando da verificação dos factos praticados pelo arguido .
6 - A prova apresenta-se como de produção e percepção fácil e a já produzida aponta, com alto grau de evidência, para a existência dos factos imputados ao arguido, mostrando-se como irrelevante a postura adoptada pelo arguido nas suas declarações antes do julgamento, negando os factos .
7 - O despacho ora recorrido violou o disposto nos arts. 311.º, 391.º- A e 391.º- D, todos do Código de Processo Penal .
Nestes termos deverá ser dado provimento ao recurso , anulando-se o despacho ora impugnado .

O Ex.mo Juiz , por despacho de 21-1-2004 , sustentou o decisão recorrida , mantendo-a .

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso , com revogação da decisão impugnada e substituição por outra no sentido do prosseguimento do processo .

Foi cumprido o disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal .

Colhidos os vistos cumpre decidir .
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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
Face às conclusões da motivação do recurso é a seguinte a questão a decidir :
- se o despacho recorrido ao declarar nula a acusação , por emprego de forma de processo especial fora do caso previsto na lei , violou o disposto nos art.s. 311.º, 391.º-A e 391.º-D, todos do Código de Processo Penal .
Antes de a conhecer deparasse-nos a questão prévia da admissibilidade do recurso , suscitada pelo relator no exame preliminar , que a proceder impedirá este Tribunal da Relação de conhecer do recurso , ficando o mesmo prejudicado.
Comecemos , pois , por decidir esta questão prévia .
O processo abreviado é uma forma de processo especial introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 59/98 , de 25 de Agosto , através dos art.s 391.º-A a 391.º-E .
Através do processo abreviado foram introduzidos e reforçados mecanismos de simplificação , aceleração e consenso relativamente à pequena e média criminalidade – Cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII .
Nos termos do art.391.º-A do Código de Processo Penal o processo abreviado tem lugar quando se verifiquem os seguintes pressupostos :
- em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos ;
- havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios evidentes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente ; e
- o Ministério Público deduza acusação para julgamento em processo abreviado sem que hajam decorrido mais de 90 dias desde a data em que o crime foi cometido .
Resulta do exposto que o Ministério Público tem o poder de , verificados os pressupostos enunciados no art.391.º-A do Código de Processo Penal , requerer o julgamento do arguido em processo abreviado .
Deduzida a acusação pelo Ministério Público para julgamento em processo abreviado ou o arguido requer a abertura da instrução ( art.391.º-C do C.P.P.) ou o processo é remetido ao juiz de julgamento .
Para este último caso importa atender ao disposto no art.391.º-D do Código de Processo Penal que estatui :
« 1. Recebidos os autos , o juiz , por despacho irrecorrível , conhece das questões a que se refere o artigo 311.º , n.º 1 , e designa dia para audiência.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido debate instrutório , é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 311.º , n.ºs 2 e 3 .» .
O art.311.º , n.º1 do Código de Processo Penal , para que remete o art.391.º-D do mesmo Código estatui por sua vez :
« Recebidos os autos no tribunal , o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa , de que possa desde logo conhecer.» .
Entre essas nulidades estão as chamadas “nulidades insanáveis” previstas taxativamente no art.119.º do Código de Processo Penal .
Uma das nulidades insanáveis , constante da al. f) ,do art.119.º do C.P.P. , traduz-se no “ emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei”.
Ao receber os autos , para saber se o Ministério Público não faz emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei , deve o juiz apreciar os pressupostos que permitem a utilização da forma de processo seguida pelo Ministério Público .
Ou seja , o pressuposto da prova evidente pode ser controlado pelo juiz de julgamento . « Esta sindicância traduz um juízo , não sobre o bem fundado da tese da acusação , mas “apenas sobre a idoneidade da prova para sustentar a tese da acusação em julgamento” . ».- Cfr. Prof. Anabela Miranda Rodrigues , in “R.P.C.C.” , vol. 3º , pág.245 .
Se o Juiz concluir que no caso concreto não se verificam todos os pressupostos para julgamento em processo abreviado , designadamente por considerar que a simplicidade e evidência da prova indiciária não é real relativamente à verificação do crime e ao seu agente , então é inadmissível a tramitação sob a forma de processo especial escolhida pelo Ministério Público .
Gerando a tramitação processual , com emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei , uma nulidade insanável , não poderá o juiz deixar de declarar tal nulidade no despacho de saneamento do processo .
Nos termos do art.391.º-D , n.º1 , do Código de Processo Penal , o despacho que conhece das nulidades a que se refere o art.311.º , n.º 1 do mesmo Código - como aqui acontece com o despacho impugnado pelo Ministério Público - , é irrecorrível .
Esta solução legal é a mesma que a lei processual penal tomou para o processo sumário e processo sumaríssimo , que com o processo abreviado constituem os processos especiais previstos no Livro VIII .
Efectivamente , nos termos do art.390.º, al. a) do Código de Processo Penal , sempre que se verificar a inadmissibilidade , no caso , do processo sumário , “ o tribunal , por despacho irrecorrível , remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma do processo .”.
Também quanto ao processo sumaríssimo estatui o art.395.º , n.ºs 1 , alínea a ) e 4 , do Código de Processo Penal , que o juiz rejeita o requerimento e reenvia o processo para a forma comum
“quando for legalmente inadmissível o procedimento” , e deste despacho “não há recurso”.
Em qualquer dos três casos de processos especiais previstos no Livro VIII se o juiz decidir , no momento determinado na lei , que não se verificam os pressupostos legais do processo utilizado deve declará-lo em despacho .
A decisão quanto à falta de pressupostos legais do processo abreviado e consequente declaração de nulidade processual , por emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei , bem ou mal fundada , é irrecorrível quando proferida nos termos do art.391.º-D , n.º1 , do Código de Processo Penal .
A decisão que admitiu o recurso do Ministério Público interposto do despacho recorrido não vincula o tribunal superior ( art.414.º , n.º3 do Código de Processo Penal ) e deve ser alterada no presente caso .

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Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos , acordam os juizes do Tribunal da Relação de Coimbra em rejeitar o recurso do Ministério Público , nos termos do art. 420.º , n.º1 do Código de Processo Penal , por a decisão ser irrecorrível .
Sem custas .
Coimbra ,