Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2377/07.8TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: CAUSA DE PEDIR
FALTA
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
Data do Acordão: 10/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 193º Nº 2, DO CPC
Sumário: 1. A causa de pedir é a matéria de facto alegada, quer seja narrada na petição, quer conste dos documentos juntos com a petição e para os quais esta remeta.

2. Em geral, a causa de pedir enferma de ininteligibilidade quando é obscura (não se podendo determinar o seu sentido) ou ambígua (se tem vários sentidos possíveis). Não se pode, aliás, facilmente conceber a cumulação deste vício com a falta de causa de pedir dado que se a causa de pedir foi omitida, não se pode analisar a sua descrição para concluir que a mesma é ininteligível.

3. Os casos de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis (gerando ineptidão nos termos do artigo 193º nº 2 al. c) do CPC) são casos em que os efeitos jurídicos que se pretendem obter são por natureza inconciliáveis.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I- Relatório:

Aos 23-5-2007, A... propôs a presente acção ordinária contra B... , pedindo que esta seja condenada:

1º)- A pagar-lhe todas as rendas vencidas (no total de € 5 615,50), acrescidas de 50% pela mora, e as        vincendas, que então totalizavam € 8.423,25;

            2º)- A cumprir o contrato-promessa de trespasse, com o pagamento dos juros      legais, desde 16 de Fevereiro de 2007, sobre a quantia de € 12.500,00, até integral pagamento.

A autora alegou, em suma, que:

Por contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial e contrato promessa de trespasse do respectivo estabelecimento outorgado entre autora e ré em 22 de Novembro de 2004, que se dá, aqui, por inteira e integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, a ré encontra-se a explorar tal estabelecimento, desde 01 de Dezembro de 2004.

            Sendo devida a renda mensal de 510,50€ pela ocupação do espaço, a ré pagou a renda até Maio de 2006 e entregou como sinal e princípio de pagamento à autora para o respectivo trespasse a quantia de 12.500€, tendo deixado de pagar rendas desde Junho de 2006 e não tendo comparecido quando notificada para o acto da escritura de trespasse marcada para 16-02-2007.

Para o trespasse, a ré pagou, como sinal e princípio de pagamento, € 12500,00. Notificada para a escritura de trespasse, a ré não compareceu, a 16-02-2007.

Com a petição a A. disse juntar 3 documentos, mas juntou 7:

- 1º Doc, a fl. 7: escrito particular, intitulado “cessão de exploração de estabelecimento comercial”, datado de 22-11-2004 e assinado com os nomes das partes;

- 2º Doc, a fls. 8 e 9: escrito particular, intitulado “cessão de exploração de estabelecimento comercial e contrato promessa de trespasse com efeitos após termos da cessão de exploração”, datado de 22-11-2004 e assinado com os nomes das partes;

- 3º Doc, a fl. 10: recibo;

- 4º e 5º Docs, a fls. 11 e 12: carta de 12-02-2007 enviada pela A. à ré através do correio;

- 6º Doc, a fl. 13: carta de 1-02-2007 da ré à A.;

- 7º Doc, a fl.14: declaração de 16-02-2007 de uma técnica de notariado.

Na contestação, a ré alegou em síntese que o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial findou no dia 30-05-2006 e que o contrato de trespasse prometido celebrar deveria ser celebrado no prazo máximo de 30 dias após a cessação do contrato de cessão de exploração, sendo que, à data em que foram celebrados tais contratos, a autora não era proprietária do estabelecimento.

            Mais alegou a ré que, devendo o contrato definitivo ser celebrado até 30-06-2006, tal não sucedeu, por culpa da autora que não se disponibilizou durante 9 meses a celebrar o trespasse prometido, apesar de interpelada para o efeito, e, para além disso, afugentou a clientela do estabelecimento, tendo a ré perdido o interesse na celebração do contrato definitivo.

Em reconvenção, a ré pede que seja declarada a resolução do negócio por perda de interesse na prestação por banda da ré reconvinte face ao atraso da autora em cumprir com a prestação de celebração do contrato de trespasse e condenada a autora reconvinda a restituir à ré o montante de 25.000€ correspondente ao sinal em dobro pela autora, recebido a título de sinal e princípio de pagamento que a ré lhe entregou.

            Na réplica, a autora invocou a litigância de má fé da ré e alegou que em Janeiro e Fevereiro de 2006 notificou a ré para actualização da renda e para o depósito da mesma, tendo a ré começado a faltar nessa altura ao cumprimento do contrato de cessão de exploração e deixando antever que não estava interessada no cumprimento do contrato prometido de trespasse.

            Mais alegou que, tendo a ré deixado de pagar as rendas a partir de Junho de 2006 e como ainda não podia ser celebrada a escritura de trespasse, a autora notificou-a “para esclarecimento e concretização” da cláusula 6º do contrato-promessa de trespasse, bem como para lhe pagar as rendas em dívida e o mais que consta da notificação judicial avulsa que então dirigiu à ré.

            Alegou também que, tendo marcado a escritura para 16-02-2007, a ré não compareceu, nem posteriormente entregou o estabelecimento à autora.

            Concluiu pedindo a condenação da ré, por litigância de má fé, a pagar-lhe uma indemnização.

            A ré veio pronunciar-se acerca da questão da litigância de má fé, alegando que não compreende o peticionado pela A. quanto às rendas e nomeadamente se são referentes ao espaço ou à cessão de exploração, já que, tendo cessado o contrato de cessão de exploração, ao abrigo do mesmo não pode ser exigido o pagamento de quaisquer rendas, inexistindo causa de pedir e devendo por isso improceder o incidente por litigância de má fé.

Sem prévia audiência preliminar, foi proferido despacho saneador a fls. 106/111,  que culminou na seguinte decisão:

«Decido conhecer oficiosamente da excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e, na procedência dessa excepção, julgo nulo todo o processado, o que prejudica o conhecimento da reconvenção e do incidente de litigância de má fé, e, em consequência, absolvo a ré B... da instância».
Inconformada, recorre a A., para obter a revogação dessa decisão e o prosseguimento do processo, para o que conclui a sua alegação:
1ª Não existe contradição ou incompatibilidade substancial entre os pedidos, ou cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis uma vez que são sequenciais;
2ª Fez-se má interpretação e má aplicação do estipulado no art. 193º do CPC.
Não houve contra-alegação.
Foi tabelarmente mantida a decisão recorrida.
Correram os vistos legais.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II - Fundamentos:
As questões a apreciar no âmbito do recurso são as que constam das conclusões da alegação (art. 684º nº 3 e 690º do CPC), sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso, cabendo em suma reapreciar se o processo é nulo por ineptidão da petição inicial.
A decisão em crise baseou-se em que:

«Face ao estado dos autos, afigura-se manifesto que não se justifica o prosseguimento dos mesmos.

«Na verdade, fundando as suas pretensões no incumprimento, pela ré, de um – ou talvez dois – contrato(s) celebrados entre as partes, a autora omitiu por completo a alegação dos factos relativos ao encontro de vontades entre as partes subjacente ao(s) contrato(s) formulados, cujo concreto objecto contratual não foi alegado (a não ser por remissão genérica para o teor dos documentos juntos com a p.i.) e cujo conteúdo a autora, em sede de tréplica, afirma ter concretizado, esclarecido e alterado através de notificação judicial avulsa dirigida à ré.

«Ora, não compete ao Julgador adivinhar em que concreta cláusula(s) do(s) dito(s) contrato(s) ou, porventura, da notificação judicial avulsa funda a autora as pretensões formuladas, desconhecendo-se inclusive em que concretas qualidades intervieram os outorgantes desse(s) contrato(s), cujo objecto não foi concretizado ou, sequer, alegado.

«Assim, ao remeter para o teor dos documentos juntos aos autos para fundamentar os seus pedidos, os quais, por si só, não são esclarecedores, a autora omitiu, pelas razões expostas, a alegação dos factos que efectivamente consubstanciam a causa de pedir da presente acção, ou seja, do(s) concreto(s) contrato(s) de onde – supõe-se - emerge a pretensão formulada pela autora, contrato(s) esses que não se encontram factualmente alegados em termos que permitam a definição do seu tempo de vigência e a afirmação de que continuam vigentes (sendo, pois, referido no doc. de fls. 7 intitulado “cessão de exploração de estabelecimento comercial” que o mesmo findou em 30-05-2006, o que é repetido no doc. de fls. 8 intitulado “cessão de exploração de estabelecimento comercial e contrato promessa de trespasse com efeitos após termos da cessão de exploração”), assim como o seu objecto e das obrigações deles emergentes para as partes depois de 30-05-2006, etc.

«Não foi mencionado com base em que acordo é agora exigido pela autora o pagamento de rendas vencidas acrescidas de 50% pela mora e de rendas vincendas (face ao termo do contrato de cessão mencionado nos documentos juntos com a p.i., a autora fundar-se-á exclusivamente na notificação judicial avulsa onde por sua exclusiva iniciativa resolveu alterar o programa contratual mencionado naqueles documentos? Desconhece-se por não ter sido alegado….).

«Por outro lado, parecendo decorrer dos pedidos formulados na p.i. que a autora pretende que a ré seja condenada a pagar rendas vencidas e vincendas, com indemnização pela mora, com base no contrato de cessão de exploração (cuja vigência e perduração são pressupostas por tal pedido), pretende também o simultâneo cumprimento do contrato promessa de trespasse (supondo-se que a autora estará a referir-se à execução específica do mesmo), o que configura cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, na medida em que, se fosse executado, como parece ser pretensão da autora, o contrato promessa com a efectivação do dito trespasse, tal obstaria, obviamente, à simultânea manutenção da vigência do contrato de cessão de exploração, o qual tem por pressuposto que a cessionária não passe a ser titular do estabelecimento.

            «Verifica-se assim que foi preterida a alegação ininteligível da concreta causa de pedir que sustenta os pedidos formulados nos autos, nos termos do art. 193º, nº 2, alínea a) do CPC, sendo certo que tais pedidos são entre si substancialmente incompatíveis, o que também configura ineptidão da petição inicial nos termos do art. 193º, nº 2, alínea c) do CPC e acarreta nulidade de todo o processado nos termos do art. 193º, nº 1 do CPC, com a necessária absolvição da ré da instância, nos termos dos art. 288º, nº 1, alínea a), 494º, alínea b), 495º, todos do CPC.

            «Dir-se-á ainda que a alegação dos factos por remissão directa para o teor de documentos não representa um procedimento que permita a correcta compreensão dos factos em discussão, pois que, como é jurisprudencialmente sustentado, factos não se confundem com documentos, sendo certo que não compete à parte contrária e ao Tribunal suprir a falta de alegação dos factos adivinhando para que concretos trechos dos referidos documentos quis remeter a autora no art. 1º da p.i.

            «Não há lugar a convite de aperfeiçoamento dos articulados por tal pressupor uma alegação dos factos minimamente concretizada e perceptível e uma adequada formulação dos pedidos, o que não é compatível com a indicação ininteligível da causa de pedir e com a incompatibilidade substancial dos pedidos formulados, pois que, nesse caso, nada há que aproveitar ou concretizar em sede da alegação dos factos». (Fim de transcrição).


Daí se vê que a decisão aponta três causas de ineptidão:
1ª) A omissão completa da alegação dos factos tradutores da causa de pedir, sem indicar as cláusulas de «um ou talvez dois contratos» que a ré teria incumprido e sem indicar as qualidades em que nele(s) as partes intervieram;
2ª) A ininteligibilidade da causa de pedir;
3ª) A cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.

Preceitua o artigo 193º, nº 2, do CPC: «Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.


Sobre a falta de causa de pedir:
Refere a decisão recorrida que a petição «ao remeter para o teor dos documentos juntos aos autos para fundamentar os seus pedidos, os quais, por si só, não são esclarecedores, a autora omitiu, pelas razões expostas, a alegação dos factos que efectivamente consubstanciam a causa de pedir da presente acção».
Constata-se que não se verifica a falta de causa de pedir, embora na parte narrativa da petição não conste o clausulado dos dois contratos a que aludem os documentos de fls. 7 a 9 e embora na parte narrativa da petição não conste a indicação das qualidades em que as partes intervieram nos contratos.
É certo que a petição é muito sucinta e não constitui peça modelar. Mas, em consonância com os documentos juntos, temos um quadro factual mínimo que justifica o prosseguimento do processo ou pelo menos justificaria um convite ao aperfeiçoamento, mas não justifica de modo algum a anulação de todo o processo com absolvição da ré da instância.
Falta de causa de pedir e insuficiência da causa de pedir não se confundem. E só do primeiro aspecto cura o artigo 193º do CPC.
Enquanto a falta de causa de pedir significa a ausência de alegação de factos que fundem o pedido, o mesmo é dizer, que constituam o direito feito valer através do pedido, já a insuficiência da causa de pedir pressupõe a alegação de factos atinentes ao direito feito valer embora não constem alegados todos os factos necessários à procedência do pedido. Enquanto a falta de causa de pedir constitui vício formal, insuprível, que conduz à anulação de todo o processo e, em sede de saneamento do processo, à absolvição do réu da instância, já a insuficiência da causa de pedir pode ser suprida e, se o não for, conduzirá, em sede de apreciação do mérito, à improcedência, total ou parcial, do pedido ([1]).
Assim, é fácil ver que falta de causa de pedir e insuficiência da causa de pedir não se confundem. E só do primeiro aspecto cura o artigo 193º do CPC.
À face da petição há causa de pedir alegada, como se vê da súmula do relatório supra. E os factos contidos nos documentos juntos com o articulado podem ser aproveitados para integrar a descrição da causa de pedir, quando para eles remeta, expressa ou implicitamente.
Como entendeu em caso semelhante a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 27-02-1970 (na J. R. ano 16º, p. 86), alíás acolhendo o entendimento que já Alberto dos Reis perfilhava, o documento junto com a petição deve considerar-se parte integrante desta e por isso susceptível de suprir as lacunas de que a petição enferma. Quanto aos factos contidos no documento, naturalmente.



É certo que factos não se confundem com documentos. Os documentos destinam-se a provar factos. Mas, ainda assim, os documentos, representando o clausulado pelas partes, contêm factos que são precisamente o clausulado pelas partes, bem como eventualmente certa data e assinaturas das partes.
O que nos aparece de fls. 7 a 9 são dois contratos firmados entre as partes, um que as partes qualificam de cessão de exploração de estabelecimento comercial findou no dia 30-05-2006 e outro que as partes qualificam de promessa de trespasse do estabelecimento comercial. Não um ou «talvez» dois como a 1ª instância referiu.
É certo que o tribunal não está vinculado à qualificação jurídica que as partes pretendam emprestar aos contratos documentados. Mas isso é matéria de direito. O conteúdo desses contratos documentados é elemento fundamental a considerar para a sua qualificação jurídica mas o conteúdo, convencionado pelas partes, constitui matéria de facto e esta deve considerar-se alegada mediante a junção dos respectivos documentos ao articulado que para eles remete.
Ora, é a matéria de facto alegada, quer a que conste narrada na petição, quer a que conste dos documentos juntos com a petição e para os quais esta remeta, que, fundando o pedido, integra a causa de pedir.
No caso de o tribunal considerar que a petição merece ser aperfeiçoada ou corrigida, face a alguma incompleição ou algum ponto menos claro, pode convidar a autora para o fazer, mediante indicação do que se pretende. E esse poder (que é um poder-dever) é exercitável inclusive em audiência preliminar.

Sobre a ininteligibilidade da causa de pedir:
Ainda a respeito deste vício nos situamos no âmbito formal de análise da petição. E não directamente ao nível de apreciação do mérito da causa.
Em geral, a causa de pedir enferma de ininteligibilidade quando é obscura (não se podendo determinar o seu sentido) ou ambígua (se tem vários sentidos possíveis). Como refere J. Alberto dos Reis, in Comentário ao CPC, II, p. 371, há o vício de ininteligibilidade da causa de pedir quando o autor expõe os factos fonte do pedido em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir.
Pondere-se o seguinte. A A alega ter cedido a exploração do snack à ré com início em 1-12-2004 e com termo em 30-5-2006, mediante determinada renda mensal, tendo a ré deixado de pagar as rendas desde Junho de 2006 inclusive. E alega manter-se a ré a explorar o snack. Mais alega que, conforme o contrato-promessa de trespasse entre elas celebrado, a ré lhe pagou € 12500 como sinal e princípio de pagamento, ficando a ré de lhe pagar os restantes € 12500 (do preço do trespasse, entende-se) na altura da celebração da escritura (do trespasse), mas a ré não compareceu para a escritura, a 16-02-2007 (conforme doc. a fl. 14…). Pede, em consequência, a condenação da ré no pagamento das rendas em dívida, mais 50% pela mora, e rendas vincendas (1º pedido), bem como os juros sobre € 12500 desde 16-02-07 até cumprir o contrato (contrato-promessa, entende-se) (2º pedido).

Saber se o dito contrato de cessão de exploração deve ser juridicamente qualificado como tal é questão de direito, atinente ao mérito da causa, questão sem especial dificuldade de solução, visto o seu conteúdo e a circunstância de ambas as partes serem concordes nesse ponto. O mesmo se dirá do dito contrato-promessa de trespasse.
Saber se a partir da cessação do contrato de cessão de exploração a ré, pelo período de ocupação, deve rendas (ou o equivalente ao montante das rendas, o que praticamente dá no mesmo) é também uma questão de direito, mas pressupõe a alegação desse contrato e da ocupação para além da data da sua cessação, questões estas que são de facto: o conteúdo do contrato e a ocupação constam do alegado pela autora na petição, em conjugação com os documentos juntos.
O que à 1ª instância fez espécie é a circunstância de a A. pedir rendas pelo período posterior ao termo convencionado para a cessão de exploração. Só que aí não há ininteligibilidade do alegado e tal é questão de mérito da causa, não uma questão formal de ineptidão da petição. Tais questões não devem ser confundidas.
Não há ininteligibilidade da causa de pedir. O M.mo Juiz é que não estará a entender que, cessando por caducidade o contrato de cessão de exploração e mantendo-se o cessionário apesar disso a explorar o estabelecimento, alguma compensação ou indemnização pode ser devida ao cedente e ela pode consistir em montante igual ao das rendas que seriam devidas se o contrato ainda vigorasse ([2]).
A causa de pedir não enferma de ininteligibilidade. Não se pode, aliás, facilmente conceber a cumulação deste vício com a falta de causa de pedir, diversamente do que a 1ª instância propugna. Pois se a causa de pedir foi omitida, não se pode analisar a sua descrição para concluir que a mesma é ininteligível.

Sobre a incompatibilidade substancial dos pedidos cumulados:

Refere o despacho impugnado: «(…) Parecendo decorrer dos pedidos formulados na p.i. que a autora pretende que a ré seja condenada a pagar rendas vencidas e vincendas, com indemnização pela mora, com base no contrato de cessão de exploração (cuja vigência e perduração são pressupostas por tal pedido), pretende também o simultâneo cumprimento do contrato promessa de trespasse (supondo-se que a autora estará a referir-se à execução específica do mesmo), o que configura cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, na medida em que, se fosse executado, como parece ser pretensão da autora, o contrato promessa com a efectivação do dito trespasse, tal obstaria, obviamente, à simultânea manutenção da vigência do contrato de cessão de exploração, o qual tem por pressuposto que a cessionária não passe a ser titular do estabelecimento».

Ora, os casos de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis (gerando ineptidão nos termos do artigo 193º nº 2 al. c) do CPC) são casos em que os efeitos jurídicos que se pretendem obter são por natureza inconciliáveis. Neste sentido, vide os acórdãos do STJ de 14-3-90 (in A.J. 2º/90, p. 14) e da Rel. Porto de 9-01-1990 (in BMJ 393º, p. 653).

No caso concreto, é perfeitamente viável a pretensão de pagamento de determinadas quantias pelo período de continuação da exploração além do termo do contrato respectivo e a pretensão de cumprimento do contrato-promessa de trespasse. Entre o termo daquele contrato e o momento de cumprimento da promessa de trespasse decorrerá sempre um período de tempo de exploração do estabelecimento, em razão do qual poderá a cessionária ter de pagar as rendas ou o seu equivalente à cedente, sem qualquer incompatibilidade de efeitos jurídico-práticos com o cumprimento da promessa.
Consequentemente, não se verifica nenhum dos fundamentos de ineptidão da petição considerados no despacho impugnado.

III - Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se o provimento ao agravo, com revogação da decisão recorrida, a qual deve ser substituida por outra que faça prosseguir o processo.
Sem custas pelo recurso.


[1] Se a causa de pedir não se revelar bastante para alicerçar o pedido, o problema é de improcedência, não de ineptidão – neste sentido, vd. ac. da Rel. Porto de 18-6-76 (CJ 1976, 2, p. 373), da Rel. Lisboa (BMJ 300º, p. 439) e da Rel. Évora de 7-4-83 (BMJ 328º, p. 656) e de 24-5-90 (BMJ 397º, p. 590).
[2] Vide sobre a questão, no regime geral de locação, Pedro R. Martinez, Direito das Obrigações – Contratos, 2ª ed, p. 202-203 (nº III). Questão (de direito) é saber se tal regime geral é aplicável subsidiariamente em matéria de cessão de exploração de estabelecimento. Outra questão, subsequente, é a de saber se o nº 2 do artigo 1045º do CC será aplicável a semelhante caso.