Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
103/16.0GBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: USURPAÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
MÚSICA DIFUNDIDA ATRAVÉS DE SISTEMA DE AMPLIAÇÃO DE SOM
DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
Data do Acordão: 06/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 149.º, N.º 2, 195.º E 197.º, DO CÓDIGO DO DIREITO DE AUTOR E DOS DIREITOS CONEXOS
Sumário: I – A execução em espaço comercial aberto ao público de música proveniente de uma aparelhagem sonora sintonizada em determinada estação de rádio, à qual estavam acopladas várias colunas de som, sem prévio licenciamento, na versão do Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos considerada no Acórdão de fixação de Jurisprudência nº 15/2013 e à luz desse mesmo Acórdão, não preenchia o tipo de crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195.º e 197.º daquele diploma.

II – O princípio do primado do direito europeu não pode ter como consequência a punição como crime de uma conduta que a jurisprudência portuguesa, com ampla divulgação pública, considerou não tipificada como tal no ordenamento jurídico penal, pese embora o TJUE venha interpretando em sentido diverso elementos normativos decorrentes de directiva europeia já transposta e que se integram no tipo legal de crime.

III - As decisões do TJUE não têm carácter absoluto nem definitivo na medida em que apesar de a jurisprudência desse tribunal se vir orientando num determinado sentido, nada obsta a que altere a sua orientação perante novo reenvio prejudicial em que sejam esgrimidos novos argumentos.

Decisão Texto Integral:







Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de instrução que correram termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Coimbra – Juiz 2, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia relativamente a A., pela prática de um crime de usurpação p. p. pelos art.ºs 195º, nº 1 e 197º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (que adiante se referirá por CDADC e ao qual se reportam todas as disposições legais seguidamente mencionadas sem menção do diploma de origem).

Inconformadas, as assistentes B. e C., interpuseram recurso do despacho de não pronúncia, retirando das correspondentes motivações as conclusões seguintes:

I – Recurso da B.

a) No dia 24 de Maio de 2016, pelas 15.40, no estabelecimento comercial denominado (…), estavam a ser difundidas ao público obras musicais e literário-musicais, através de uma aparelhagem sonora, à qual estavam acopladas várias colunas, sintonizada na estação Rádio (...) ;

b) As obras transmitidas neste estabelecimento comercial são protegidas pelo direito de autor;

c) O arguido não dispunha de autorização da Recorrente, que o habilitasse a difundir tais obras em espaço público;

d) A questão a apreciar nos autos é saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de "comunicação pública", tal como previsto no artigo 3.º n.º1 da Directiva 2001/29 e se os tribunas nacionais estão vinculados a interpretação que tem sido atribuída pelo Tribunal de Justiça da União Europeia ao conceito de "comunicação pública";

e) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo a delimitar, unanimemente, em diversos Acórdãos o conceito de comunicação pública;

f) O conceito de "comunicação pública" deve ser entendido em sentido amplo, de modo a assegurar um elevado nível de protecção aos titulares de direito;

g) O meio de comunicação específico não é decisivo; importante é que seja dada ao público a possibilidade de aceder às obras em causa;

h) O conceito de "público" envolve um número indeterminado, mas importante de telespectadores ou ouvintes potenciais;

i) Deve ser um público "novo", no sentido em que é diferente do previsto quando a radiodifusão foi inicialmente autorizada;

j) O elemento lucrativo é relevante, mas não é decisivo;

1) A utilização de um mero meio técnico para garantir ou melhorar zona de cobertura não constitui comunicação ao público;

m) A utilização de televisão, radio, colunas, amplificadores não são meros meios técnicos para garantir ou melhorar a transmissão de origem na zona de cobertura, uma vez que, caso essa intervenção não se verificasse, os clientes, embora encontrando-se fisicamente no interior da referida zona, não poderiam desfrutar da obra difundida.

n) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, pelo menos desde 2007, em sucessivos Acórdãos a proferir decisões que nos permitem, com segurança e de modo uniforme a toda a União Europeia, circunscrever e entender este conceito;

o) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem entendido que a transmissão de obras radiodifundidas, através de aparelhos de televisão ou rádio em espaços públicos, configura o conceito de comunicação pública, uma vez que o detentor do aparelho de televisão, ao permitir a escuta ou a visualização da obra, tal intervenção deve ser considerada um acto de comunicação ao publico, nos termos do artigo 3º n.º 1 desta Directiva;

p) O Tribunal de Justiça da União Europeia tem Circunscrito o conceito de “comunicação pública" em diversos Acórdãos, de entre os quais os Acórdãos SGAE, C-306/05; Football Association Premier League, C-403/08 e C-429/08 e OSA, C-351/12;

q) As normas nacionais devem ser interpretadas no sentido que resulta da letra e do espirito da Directiva;

r) No âmbito de um processo de reenvio promovido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que "o conceito deve ser interpretado como abrangendo a transmissão de obras radiodifundidas através de um ecrã de televisão que se estende ao aparelho de radio e de colunas aos clientes que se encontrem presentes num estabelecimento comercial. Em tal situação estamos perante uma nova comunicação ao público e não perante uma mera recepção de uma obra";

s) Uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferida em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação vincula, quer quanto às conclusões, quer quanto à fundamentação, os tribunais nacionais.

t) O Tribunal a quo estava vinculado a seguir a interpretação que o Tribunal de Justiça da União Europeia deu ao conceito de “comunicação pública” no processo de reenvio suscitado pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

u) O arguido foi advertido várias vezes pela assistente, antes e depois do levantamento do Auto de Noticia que deu origem aos presentes autos, para a obrigatoriedade de obter autorização para proceder à comunicação de obras protegidas no espaço que explora;

v) Embora estivesse avisado pela assistente para a necessidade de obter autorização, o arguido optou por não o fazer:

x) O crime de usurpação é punido a título de dolo e a titulo de negligência;

z) Ao ter sido avisado pela Recorrente para a necessidade de obter autorização, o arguido não pode não ter representado na sua mente a possibilidade de actuar de modo desconforme à Lei e, ainda assim, decidiu fazê-lo;

aa) O arguido actuou, no mínimo, com dolo;

ab) Ao ter decidido de forma diferente o Tribunal a quo violou os princípios do primado e da interpretação conforme;

ac) A decisão proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo deve, por isso, ser alterada, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de usurpação.

Termos em que deve ser revogada a decisão proferida em primeira instância, pronunciando-se o arguido A. pela prática de um crime de usurpação, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 195° e 197º do CDADC.

II – Recurso da C.

1 - O presente recurso, interposto pela Assistente, da decisão instrutória nos autos à margem identificados, que sustentou a não pronúncia do Arguido relativamente à prática do crime de usurpação p. e p. pelos arts. 195. n. 1 e 197. n. 1, ambos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos deve - com o devido respeito – ser julgado totalmente procedente, pois que, a decisão de não pronúncia do M mo. a quo, assenta, na perspetiva da Assistente, em pressupostos de direito erróneos.

2 - O Mmo. a quo, tendo por base o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 15/2013 de 16.12.2013, entendeu não pronunciar o Arguido pela prática do crime de usurpação, apesar de concordar que este se encontra em direto confronto com a jurisprudência comunitária, afirmando que «... na verdade, não é aprestado a esgrimir nenhum argumento que não tenha sido considerado no AC de fixação de jurisprudência, razão pela qual entendo que não há lugar à desaplicação desta jurisprudência obrigatória».

3 - Ora, na realidade, tal como referido no Acórdão da Relação de Coimbra, aqui Tribunal ad quem, de 28 de Junho de 2017, in www.dgsi.pt, «A fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante, e não ponderado, na notória alteração das concepcões doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 102 e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591» - sublinhado nosso.

4 - Ora, o único argumento esgrimido pelo Mmo. a quo para a aplicação da Jurisprudência Uniformizada pelo Acórdão do STJ nº 15/2013 foi o de não ter sido esgrimido nenhum novo argumento de direito que lhe permitisse fundamentar a divergência da sua decisão face à jurisprudência uniformizada.

5 - Porém, entende a Assistente, ora Recorrente, que a divergência pode ser fundada não apenas mediante a existência de novos argumentos jurídicos mas também numa notória alteração das concepções doutrinais e jurisprudenciais relativamente às questões de direito em apreço sendo certo que, in casu, essa alteração existe, quer doutrinalmente, na doutrina nacional e comunitária, quer jurisprudencialmente, em sede de toda a jurisprudência do TJUE sobre esta matéria.

6 - Na verdade, o próprio Mmo. a quo admite a contradição direta entre o Acórdão do STJ nº 15/2013 e a jurisprudência comunitária, afirmando, na decisão instrutória, que «...esta jurisprudência do Acórdão do STJ n.º 15/2013 está em clara oposição com a interpretação que o TJUE tem vindo, uniformemente, a fazer sobre o conceito de «comunicação ao público» e que é a de que a autorização para a radiodifusão abrange apenas a recepção de obras em ambientes privados, de que são exemplo, os acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12».

7 - Assim, tal entendimento plasmado no Acórdão do STJ n.º 15/2013, contraria, frontalmente, a interpretação (sentido, alcance e objetivo) das normas internacionais e comunitárias sobre esta questão, aplicáveis ao nosso país e às quais este se encontra vinculado, bem como, a interpretação conforme com as mesmas que das disposições nacionais, mormente as do CDADC, se terá que fazer, enquanto normas resultantes da transposição para o ordenamento jurídico nacional da Diretiva 2001/29/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio - mostrando-se necessário e urgente seguir, a nível nacional, a corrente jurisprudencial delineada neste ponto pelo TJUE.

8 - Porquanto, relativamente à diferenciação entre receção e comunicação pública, elemento basilar da tese do Acórdão do STJ n.º 15/2013, o TJUE concretizou de forma consistente e unitária o conceito de "público" e de "comunicação pública", nomeadamente no que diz respeito à comunicação pública resultante de transmissão de uma obra radiodifundida aos clientes de um estabelecimento através de rádio ou de ecrã de televisão.

9 - Sendo claro na vasta jurisprudência do TJUE nesta matéria, que constitui direito europeu unificado, que integra o ato de comunicação pública a acção do operador, proprietário e/ou explorador de um bar, café, restaurante, entre outros, que dá acesso aos seus clientes a uma emissão radiodifundida que contém uma obra/prestação protegida, sendo que estes apenas desfrutam da mesma por força da intervenção daquele e que, assim, a coloca à disposição de um público novo (um público diferente do público visado pelo ato de comunicação originária da obra, ou seja, diferente dos detentores dos aparelhos de receção que, individualmente ou na sua esfera privada ou familiar captam as emissões).

10 - Ficando assim demonstrado, com o devido respeito e s.m.o., a insustentabilidade da tese defendida no Acórdão do STJ n.º 15/2013, a qual contraria o espírito e os objetivos de harmonização das Diretivas Comunitárias no âmbito dos direitos de autor e conexos, bem como interpretação conforme às mesmas que sempre terá que ser dada às disposições nacionais plasmadas no CDADC.

11 - De onde decorre para o Arguido a obrigação de obter prévia autorização e de liquidar uma remuneração equitativa pela comunicação dessa obra e/ou prestação aos titulares do direito de autor e dos direitos conexos, a qual acresce à paga pelo radiodifusor - uma vez que a autorização para a radiodifusão da obra/prestação não remunera ou compensa o titular destes direitos dos ganhos obtidos por terceiros que, no âmbito de uma actividade económica, comuniquem posteriormente tal obra/prestação ao público.

12 - Decorre também para os Estados Membros, incluindo os órgãos jurisdicionais (independentemente da hierarquia), em virtude do referido princípio do primado do direito comunitário, a proibição de interpretar o direito nacional interno em desconformidade com o sentido e alcance do direito comunitário.

13 - Assim, a decisão de não pronúncia recorrida, sustentando-se no Acórdão do STJ n.º 15/2013, desrespeita um adquirido comunitário quer a nível legislativo quer a nível jurisprudencial e viola assim o princípio do primado do direito europeu, porquanto, a jurisprudência do TJUE assume no direito comunitário a natureza de precedente para os Tribunais do Estados membros no que concerne à interpretação dos conceitos jurídicos do direito da União.

14 - Na verdade, o próprio legislador nacional veio clarificar a questão na Lei n. 26/2015, de 14 de Abril, onde dispõe no art. 36.°, a propósito da relação das entidades de gestão colectiva com os utilizadores, que estes não se encontram obrigados a prestar informação àquelas relativamente à utilização efetiva de obras que levem a cabo, no caso de procederem «...exclusivamente à execução pública de obras e prestações incorporadas em fonogramas e videogramas, por qualquer meio, incluindo em emissões de radiodifusão áudio e audiovisual» (n. 4), demonstrando assim entender que constitui execução e/ou comunicação pública a utilização de obras, entre outras, provenientes de «emissões de radiodifusão áudio e audiovisual».

15 - Porquanto, a comunicação pública de música gravada pode ser direta, a partir de um fonograma ou videograma original, ou indireta (por exemplo, a execução pública a partir de uma emissão de rádio ou televisão), para efeito de ambientação musical de um qualquer espaço público ou aberto ao público, com ou sem fins comerciais diretos.

16 - Da conjugação do art. 184.° n.º 2 com os arts. 149.° n. 3 e 108.° n.º 2 a contrario, todos do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, resulta que sempre que a execução ou a comunicação pública não seja efectuada em privado, num meio familiar, o utilizador terá de obter a autorização prévia não só dos autores, como também dos titulares dos direitos conexos (no caso, os produtores dos fonogramas), pagando a respetiva licença.

17 - Assim, sem prescindir da discordância com a tese defendida no Acórdão do STJ n.º 15/2013, na qual o Mmo. a quo sustenta a presente decisão de não pronúncia, sempre estaríamos perante uma comunicação que extravasa o âmbito da simples receção efetuada num contexto individual, privado ou familiar.

18 – Resultando, assim, à luz do exposto, para além de qualquer dúvida, fortes indícios de que o Arguido levou a cabo (ou autorizou expressamente), à data dos factos e no estabelecimento comercial que explorava, um ato de comunicação pública de música protegida por direito de autor e direitos conexos e que o fazia, conscientemente, sem a necessária e prévia autorização dos titulares de direitos conexos para o efeito.

19 – Preenchendo tal circunstância fáctica, de forma integral, os elementos do tipo legal do crime de usurpação, p. p. pelos art.s 195º e 197º do CDADC.

Nestes termos, (…) deverá ser considerado procedente o presente recurso, reformulada integralmente e em consequência a decisão instrutória recorrida, pronunciando o arguido pela prática do crime de usurpação, p. p. pelos artigos 195º, nº 1 e 197º, nº1, ambos do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência dos recursos, concluindo que:

1. A decisão recorrida efetuou uma correta ponderação da prova reunida nos autos, entendendo-se igualmente que se não indicia que o arguido tenha agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que necessitava de autorização, e que tivesse consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2. Não existe fundamento para o afastamento da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 15/2013, de 16.12., que teve em consideração o conceito de "comunicação pública" definido pelo TJUE, não se vislumbrando novos argumentos relevantes, nem "notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais".

3. Sendo inquestionável que tal jurisprudência está em oposição com a Interpretação que o TJUE tem vindo a fazer sobre o conceito de "comunicação ao público", tal foi já considerado pelo dito Acórdão, que faz referência aos acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-403/08 e C-429/08, bem como no C-162/10.

4. E em data posterior a 16.12.2013, foram proferidos diversos Acórdãos que concluem no mesmo sentido daquele, citando-se a titulo de exemplo os Acórdãos de 20.01.2016, de 22.02.2017 e de 28.06.2017, todos do Tribunal da Relação de Coimbra.

5. Atendendo à especificidade da situação em causa nos autos, tem aqui aplicação a jurisprudência fixada, considerando, como se refere na decisão recorrida, que nos autos até está em causa um rádio, portanto um "minus” em relação à televisão, aparelho a que se reporta o Acórdão.

6. Numa situação como a indiciada não se verifica uma reutilização da obra, mas uma mera receção e a ampliação do som difundido pelas colunas não altera essa utilização, nada acrescenta ou inova; a transmissão efectuada não carece de autorização, pelo que a conduta do arguido não integra o crime de usurpação, p. p. pelos artigos 195° e 197° do CDADC, desde logo por se não verificar o elemento objectivo.

7. Não ocorrendo violação do princípio do primado, antes se tratando de interpretações diferentes da directiva comunitária por parte do TJUE e dos tribunais nacionais, de que se salienta o STJ com o Acórdão n° 15/2013, que, reitera-se, já teve em conta o conceito de “comunicação publica” definido pelo TJUE.

8. Está igualmente afastado o elemento subjectivo do referido tipo de ilícito; sendo de admitir, perante "a complexidade do quadro jurídico-penal e jurisdicional em que nos movemos e a ampla divulgação do Acórdão n° 15/2013, que o arguido não soubesse que necessitava de autorização por parte dos titulares dos direitos de autor e que não soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9. Concluindo-se que se não indicia que o arguido tenha agido com dolo, em qualquer das modalidades a que alude o artigo 14º do Código Penal, mas antes que agiu da forma descrita porque estava convicto de que o poderia fazer.

10. Tão pouco é possível concluir por uma actuação negligente por parte do arguido, que não prestou declarações; sendo que a testemunha inquirida em instrução referiu que ele fora por diversas vezes interpelado pela S.P.A. no sentido de obter a sua

autorização, mas referiu não saber se e que razão invocou para não se munir da mesma, pelo que não é possível concluir que o arguido actuou violando um dever de cuidado a que estava obrigado, representando como possível que actuava de modo desconforme à Lei e não se conformando com tal.

11. Na ausência de outros elementos de prova, e considerando a referida complexidade da questão, as divergências doutrinais e jurisprudenciais e a ampla divulgação do Acórdão n° 15/2013, entendemos não se indiciar essa violação do dever objectivo de cuidado.

12. Nada permite concluir que o arguido não tenha diligenciado por informar-se e munir-se das licenças necessárias admitindo-se que o tenha feito e que se tenha louvado nos entendimentos a que vimos fazendo referência; não actuando, pois, de forma leviana ou descuidada, nem sendo a sua conduta censurável.

13. Pelo exposto, entendemos que bem decidiu a Exma. Senhora Juiz e que o despacho recorrido não violou qualquer norma, pelo que deverá ser mantido na íntegra.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se pela improcedência dos recursos.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos, a decisão deverá centrar-se em duas questões essenciais:

- Saber se a execução em espaço público, mormente, num espaço comercial, de música proveniente de um programa radiodifundido, sem prévio licenciamento, preenche a tipicidade do crime de usurpação p. p. pelos arts195º, nº 1 e 197º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos.

- E verificar se se devem considerar reunidos indícios suficientes da prática desse crime por parte do arguido, em termos tais que se impusesse a sua pronúncia.

                                              

II - FUNDAMENTAÇÃO:

A decisão de não pronúncia, ora recorrida, tem o seguinte teor:

Inconformadas com a decisão de arquivamento, as assistentes B. e C., requereram a abertura da instrução, pedindo a pronuncia do arguido A., melhor identificado nos autos, pela prática de um crime de usurpação p. e p. pelo art.º 195º n.º 1 e 197º do CP.

Defende a assistente SPA, CRL que, considerando o disposto nos artigos 67º, 68º n.º 2 al. e) e 4 e 149º do CDADC e do art.º 11º da Convenção de Berna, a utilização de obras radiodifundidas em locais públicos está protegida pelo direito de autor e necessita de autorização do seu titular. A autorização que foi concedida à entidade de radiodifusão não se estende ao explorador de um estabelecimento comercial. Nessa medida, o arguido necessitava de ter obtido autorização para efeitos de radiodifusão para poder difundir música no estabelecimento comercial.

Esclarece que o entendimento supra exposto é o do Tribunal de Justiça da União Europeia, que tem decidido que a transmissão de obras protegidas pelo direito de autor em locais públicos integra o conceito de comunicação de obras ao público nos termos e para os efeitos da Diretiva 2001/29/CE, entretanto transposta para o OJ português.

Este tribunal tem vindo a entender que “comunicação de obra ao público abrange a transmissão de obras radiodifundidas através ou da televisão ou de altifalantes aos clientes de um estabelecimento comercial

O AC STJ 15/2013 contraria as diretivas e decisões comunitárias

Assim, e dado o primado do direito europeu, deve ser interpretado o conceito de comunicação ao público em conformidade com o direito europeu. Aliás, este foi o sentido do TJUE, despacho de 14/7/2015, no processo C151/15, decisão esta tomado num processo de reenvio, que os tribunais nacionais estão obrigados a seguir

Este foi o sentido do decidido nos acórdãos da RL de 30/6/2016 e da RC de 28/6/2017 e da RG de 11/9/2017.

Arrolou uma testemunha.

Quanto à assistente B., sustenta que a execução publica de fonogramas e de videogramas está dependentes de autorização /licença, por força do disposto nos arts. 184º, 177º, 149º n.º 3 e 108º n.º 2 do CDADC, não só dos autores mas também dos titulares de direitos conexos, pagando a remuneração a artistas e produtores.

Ora, a B. representa o produtor fonográfico do fonogramas que o arguido executava: a musica do artista (...) , cujos direitos pertencem à (…), associada da B.

A conduta do arguido que consta do auto de notícia constitui crime de usurpação, p. e p- pelo art.º 195º do CDADC.

Arrolou uma testemunha.

II- Foi proferido despacho de abertura da instrução e foi inquirida a testemunha arrolada, ao que se seguiu o debate instrutório, que decorreu com cumprimento dos legais formalismos.

III - A instrução visa, no presente caso, apurar se dos elementos constantes dos autos, designadamente daqueles que foram colhidos na sequência das diligências instrutórias levadas a cabo, resultam ou não indícios suficientes de o arguido ter cometido factos constitutivos de responsabilidade criminal, maxime subsumíveis ao crime de usurpação, p. e p. pelos arts 195º e 197º do CDACD.

Em conformidade com o disposto no n.º1 do art.308º do CPP, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

A instrução visa, pois, apurar se dos elementos constantes dos autos, designadamente dos resultantes das diligências instrutórias levadas a cabo, resultam ou não indícios suficientes de o arguido ter cometido factos constitutivos de responsabilidade criminal, nomeadamente, do crime que lhe vem imputado.

Nesta perspetiva, importará, desde logo, definir aquilo que, no sentido que interessa à disposição do n.º1 do art. 308º do CPP e, portanto, que é suposto pelo juízo subjacente à decisão de pronunciar, se há-de entender por indícios suficientes.

Para efeitos de dedução de acusação pública no termo do inquérito, considera a lei suficientes os indícios dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Tal fórmula, expressamente consagrada no n.º 2 do art.283º do C.P.P., representa uma adesão expressa ao entendimento de que, na ausência de uma norma positiva de idêntico teor, vinha sendo doutrinal e jurisprudencialmente firmado no domínio da lei processual de 29.

Entendia-se, com efeito, que os indícios seriam bastantes quando lhes correspondesse “um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados”.

Por indícios suficientes eram, neste sentido, entendidos todos os “vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que é o arguido responsável por aquele”.

Para a pronúncia, porém, - entendia-se ainda -, não sendo embora necessária uma certeza da existência da infracção, que “os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado” (cfr., por todos, Ac da Relação de Coimbra de 31 de Março de 1993, CJ, T.II, pg.65).

Seguindo a definição proposta pelo Prof. Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal, V.III, pg.181 e ss., obra que citamos e que passamos a acompanhar - indícios, no sentido em que o conceito é utilizado pela lei processual, são meios de prova, enquanto causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais do crime.

Nas fases preliminares do processo, como é o caso da instrução, não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas antes, e tão-só, indícios, sinais de que um crime foi cometido por determinado agente.

As provas recolhidas nestas fases não constituem, nesta perspectiva, pressuposto da decisão de mérito mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento. Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, bastando-se com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência.

Necessário é, porém, que os mesmos sejam de modo a sustentar um juízo favorável à existência de uma possibilidade razoável de o crime ter sido cometido pelo arguido. Só assim serão tidos por suficientes, com as todas as consequências legais.

Deste modo, e porque no juízo de quem acusa, tal como no de quem pronuncia, deverá estar sempre a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, tal possibilidade razoável tem que surgir como mais positiva do que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, através de um juízo objectivo fundamentado nos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido. Ou, utilizando agora as expressivas palavras do Prof. Figueiredo Dias, quando, já em face da prova recolhida, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou, em todo o caso, esta surja mais provável do que a sua absolvição (cfr. Direito Processual Penal, V.I, 1974, pg.133).

Em caso de pronúncia, todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime hão-de figurar no despacho de forma clara e explícita, o que significa, em suma, que a decisão instrutória apenas conhecerá tal sentido se os autos contiverem matéria indiciária suficiente que lhes sirva de suporte fáctico.

Apoiados, pois, nestas conclusões doutrinais e jurisprudenciais, analisemos o caso a que se reportam os presentes autos.

E, antes de mais, há que notar que se entende que há indícios suficientes da seguinte factualidade:

1- O estabelecimento Café (...) , sito na Av. (...) é explorado pela Sociedade (...) , Ld.a, sendo o arguido o seu gerente

2- No dia 24 de maio de 2016, pelas 15 horas e 40 minutos, foi levada a cabo uma fiscalização levada a cabo pela GNR e constatou-se que no estabelecimento estava a ser difundida a obras musical e literário-musical “ x (...) ”, do cantor (...) .

3- A música era difundida através de uma aparelhagem sonora, sintonizada na estação Rádio (...) , sendo o som propagado por todo o estabelecimento, através de várias colunas de som, instaladas quer no interior quer na esplanada do mesmo

4- O referido estabelecimento estava aberto ao público

5- Os direitos de autor sobre essa obra são representados pela SPA

6- Os direitos para o território nacional sobre a referida música pertencem à Valentim de Carvalho, nomeadamente o direito de autorizar a execução /comunicação pública de tal fonograma/videograma, sendo este produtor associado da assistente Audiogest

7- O arguido não possuía autorização da SPA para difundir o som acima referidos.

8- O arguido não possuía autorização da Audiogest para proceder à execução da obra musical em causa naquele estabelecimento nem dos artistas e/ou dos seus representantes nem não liquidou qualquer remuneração a este título

Em contrapartida, não há indícios suficientes de que:

a- O arguido sabia que necessitava de autorização da SPA para difundir a referida obra musical e mesmo assim decidiu não a adquirir e emitir a musica

b- O arguido agiu deliberada livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Vejamos porquê.

Relativamente aos factos que se mostram indiciados, eles resultam desde logo dos teor dos documentos juntos aos autos, designadamente do teor do auto de notícia de fls. 2 e 3, da certidão permanente de fls. 12 a 20, da declaração de fls. 33e da declaração de fls. 40, da certidão notarial de fls. 53 a 67, da certidão de fls. 68 a 69, do título de registo de fls. 70 e da certidão de fls. 71 a 73

Depois, valoraram-se os depoimentos das testemunhas (…), que é soldado da GNR e que confirmou o teor do auto de notícia.

O arguido foi ouvido em inquérito como testemunha e confirmou todo o teor do auto de notícia lavrado pela GNR e que não possuía licença SPA e PAss Music.

Já a testemunha (…), que trabalha na SPA, contou que o arguido foi avisado várias vezes pelo agente da SPA na zona que era necessário autorização para difundir a música da rádio, tendo-lhe ainda entregue documentação nesse sentido.

Nesta medida, conjugando todos estes elementos probatórios temos de concluir que há indícios suficientes dos factos que nessa qualidade acima foram descritos.

No que respeita aos factos que se julga não estarem indiciados, a verdade é que não há elementos de prova que apontem nesse sentido. Com efeito, no crime de usurpação, é necessário que o cidadão conheça a proibição para que a sua a consciência ético-jurídica se decidida no sentido da ilicitude da conduta. E, relativamente à conduta em casa nos autos, o próprio STJ se decidiu no sentido de não ser antijurídica a conduta levada a cabo pelo arguido, no sentido de inexistir essa proibição legal, como infra se verá. Daí que se tenha de concluir que o arguido não só desconhecia a proibição como não agiu sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Vejamos então a polémica que a este respeito subsiste sobre a antijuridicidade da conduta do arguido.

Como é sabido, o CDADC protege, fundamentalmente, as obras criativas do domínio literário, científico e artístico, bem como os direitos do autor dessas obras ou relativos à sua interpretação ou execução (art.ºs 1.º, 9.º e 176.º do CDADC, diploma a que se referem as demais disposições legais citadas sem indicação de outra fonte). Vid. RL, 22-4-97, CJ, II, 116).

Assim, para efeito de definição do âmbito de protecção, consideram-se obras, nos termos do art.º 1.º, n.º 1 “as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas”. Pode, assim, dizer-se que “o direito de autor tutela necessariamente as criações do espírito por qualquer modo exteriorizadas, não sendo por ele tutelados nem as ideias nem os processos nem os temas, antes recaindo a protecção sobre a forma que constitui, assim, a essência da obra. A primeira condição para a protecção de uma obra literária, científica ou artística é a sua originalidade, exteriorizada por certa forma” (STJ, 23-3-2000, CSTJ, I, 143).

Por outro lado, nos termos do art.º 9.º, o conteúdo do direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e que se traduzem num complexo de faculdades cuja finalidade é a de assegurar ao autor a utilização económica exclusiva da obra. “O direito de autor pode ser nuclearmente caracterizado como um exclusivo temporário da exploração económica da obra pelo seu próprio autor” (RL, 26-3-98, CJ, II, 100).

O autor goza igualmente de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e paternidade.

Em matéria penal, resulta do disposto no art.º 195.º, n.º 1 do citado diploma que “comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste código”.

Por outro lado, dispõe o nº 1 do artº 197º do mesmo diploma que:

“Os crimes previstos nos artigos anteriores são punidos com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave.

2 - Nos crimes previstos neste título a negligência é punível com multa de 50 a 150 dias.

O tipo legal remete para as formas de utilização de uma obra ou prestação previstas no CDADC, ou seja, para o seu art. 68º, onde se lê que:

1 - “A exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser”

2- Assiste ao autor, entre outros, o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes; (…)

e) A difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa for feita por outro organismo que não o de origem; (…).”

No que concerne à autorização da radiodifusão e reprodução de sinais, sons e imagens, dispõe o art. 149º do mesmo código que:

1 – Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 – Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 – Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, e ainda que com reserva declarada do direito de admissão.

Estabelece ainda o art. 155º do CDADC que:

é devida igualmente remuneração ao autor pela comunicação pública da obra radiodifundida por altifalante ou por qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, de sons ou de imagens.

E diz ainda o artigo 184.º, na redação atualmente em vigor que

“1 - Assiste ao produtor do fonograma ou do videograma o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

(…)

e) A comunicação ao público, de fonogramas e videogramas, incluindo a difusão por qualquer meio e a execução pública direta ou indireta, em local público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º

2 - (Revogado.)

3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador tem de pagar, como contrapartida da autorização prevista na alínea e) do n.º 1, uma remuneração equitativa e única, a dividir entre o produtor e os artistas, intérpretes ou executantes em partes iguais, salvo acordo em contrário.

Sendo inquestionável que o estabelecimento do arguido é um lugar público, atenta a definição legal contida no nº 3 do art. 149º do CDADC, a questão que se levanta é a de saber se a difusão de uma música radiodifundida nesse local através de aparelhagem de ‘rádio’ com colunas distribuidoras e ampliadoras de som, sintonizada em certa estação emissora, configura uma situação de simples recepção de obra ou, pelo contrário, traduz uma nova utilização [uma recepção – transmissão] de obra.

Sobre esta matéria, o STJ pronunciou-se já no Acórdão n.º 15/2013, de 16 de Dezembro (publicado no DR, 1ª série, n.º 243, de 16 de Dezembro de 2013), que fixou jurisprudência nos seguintes termos: "A aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos."

Pode ler-se na respectiva fundamentação, que "A comunicação da obra radiodifundida por altifalante ou instrumento análogo depende, pois, de autorização e confere ao autor da obra direito a uma remuneração. Mas que se deve entender por comunicação? Trata-se necessariamente de uma modalidade de utilização da obra diferente das previstas no n.º 1 (transmissão e retransmissão). Na radiodifusão, como vimos, a comunicação direta entre o organismo emissor e o público recetor está prevista no n.º 1 do artigo 149.º, bem como a relação mediada por retransmissor. A situação prevista no n.º 2 terá, pois, de ser diferente. E é diferente desde logo pelas características do lugar onde é realizada a receção: lugar público. Mas será que a mera receção em lugar público integrará a previsão do n.º 3, envolvendo o dever de autorização por parte do autor da obra? A audição/visionamento de estações de televisão em cafés, restaurantes, bares, e outros tipos de estabelecimentos abertos ao público em geral determinará a obrigação para os seus responsáveis de obter autorização dos autores das obras transmitidas?

Para decidir tal questão, há que operar a distinção entre receção e comunicação. A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite -se (radiodifunde -se) para o recetor. Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do n.º 1 do artigo 149.º. Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção.

É necessário, pois, distinguir entre a mera receção (captação dos sinais) e a reutilização da obra, situação prevista no n.º 2 do artigo 149.º. Este preceito tem de reportar-se a situações em que a transmissão acrescenta, modifica ou inova, constituindo assim uma nova utilização da obra. Só assim tem sentido conferir ao autor da obra direito a nova remuneração. Essa nova utilização passa necessariamente por uma qualquer modificação por meios técnicos na forma de receção, em ordem a aproveitá-la para produzir um efeito visual ou sonoro espetacular, para criar uma encenação que a mera receção do programa radiodifundido não provocaria.

Mas já não será o caso da mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atrativo.

(…)

Assim, sempre que a situação se configure como de mera receção, ainda que alterada por quaisquer equipamentos, mas desde que limitados à função de a aperfeiçoar ou melhorar, não se aplica o disposto nº 2 do artigo 149.º. Doutra forma, seriam cobrados direitos a dobrar sobre a mesma utilização da obra, uma vez que pela autorização da radiodifusão da obra já o autor recebeu a correspondente remuneração.”

E esta jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador é claramente aplicável à situação em apreço nos autos onde está apenas em causa um aparelho receptor de radiodifusão sonora da obra, um rádio, um minus portanto, relativamente a uma televisão – e desta cuidou o Acórdão Uniformizador – enquanto aparelho receptor de radiodifusão sonora e visual de obra.

No entanto, e como salientam os assistentes, esta jurisprudência está em clara oposição com a interpretação que o TJUE tem vindo, uniformemente, a fazer sobre o conceito de «comunicação ao público» e que é a de que a autorização para a radiodifusão abrange apenas a recepção das obras em ambientes privados, de que são exemplo, os acórdãos do TJUE C-403/08, C-429/08 e C-351/12.

Aliás, no recurso nº 16/11.1GASJP.C1, desta Relação de Coimbra foi determinado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, a fim de ser conhecida, além de outra, a seguinte questão prejudicial: «[Deve o] conceito de comunicação de obra ao público previsto no artigo 3.º, n.º 1, da Directiva 2001/29 ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão de obras radiodifundidas, em estabelecimentos comerciais, como bares, cafés, restaurantes, ou outros com características semelhantes, através de aparelhos televisores receptores e cuja difusão é ampliada por colunas e/ou amplificadores, configurando, nessa medida, uma nova utilização de obras protegidas pelo direito de autor?». Sobre esta questão, por despacho de 14 de Julho de 2015, proferido no processo C-151/15 [in, http://curia.europa.eu/juris/document], o TJUE declarou que “O conceito de «comunicação ao público», na aceção do artigo 3.°, n.º 1, da Diretiva 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação, deve ser interpretado no sentido de que abrange a transmissão, através de um aparelho de rádio ligado a colunas e/ou amplificadores, pelas pessoas que exploram um café-restaurante, de obras musicais e de obras musico-literárias difundidas por uma estação emissora de rádio aos clientes que se encontram presentes nesse estabelecimento.

Existindo embora esta oposição, não deixamos de ter presente que, nos termos do disposto no art. 445º, nº 3 do C. Processo Penal, a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada na decisão.

E, tal como se refere no Ac. da RC de 28 de Junho de 2017, in www.dgsi.pt, “A fundamentação da divergência tem que ir para além da comum fundamentação da decisão penal, devendo suportar-se em argumento novo, relevante e não ponderado, na notória alteração das concepções doutrinais e/ou jurisprudenciais ou na modificação da composição do Tribunal Supremo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1202 e Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1591).”

E, na verdade, não é aprestado a esgrimir nenhum argumento que não tenha sido considerado no AC de fixação de jurisprudência, razão pela qual entendo que não há lugar à desaplicação desta jurisprudência obrigatória.

E de acordo com esta jurisprudência uniformizada pelo Acórdão nº 15/2013, a conduta do arguido não preenche o tipo objectivo do crime de usurpação.

Mas ainda que assim não se entendesse, e que se perfilhasse a tese de que deve ser afastada a jurisprudência uniformizadora acima referida e de que se deve aderir à interpretação dada pelo TJUE ao conceito de «comunicação ao público», entendemos que não poderia o arguido ser pronunciado pelo crime de usurpação.

Efectivamente, se dúvidas não existem quanto ao preenchimento do tipo objectivo do crime de usurpação à luz desta interpretação, já não assim quanto ao tipo subjectivo de ilícito

Trata-se aqui de um crime doloso e, como acima já se referiu, por indiciar se mostra que o arguido tenha agido de forma deliberada , livre e consciente, sabendo que necessitava de autorização para difundir a musica do modo como o fez e que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Em conformidade, há que proferir despacho de não pronúncia.

IV- Decisão:

Por tudo o que exposto fica, e ao abrigo do disposto no art.º 308º n.º 1 do CP, decido não pronunciar o arguido Mário Almeida Abreu pelos factos e crime que constam dos requerimentos de abertura da instrução.

(…)

             

Apreciando e decidindo:

A questão central a que há que responder consiste em saber se a execução em espaço comercial aberto ao público, de música proveniente de uma aparelhagem sonora, sintonizada na estação Rádio (...) , à qual estavam acopladas várias colunas, sem prévio licenciamento, preenche a tipicidade do crime de usurpação, p. p. pelos arts. 195º e 197º do CDADC.

Nos termos do disposto no nº 1 do art. 195º “comete o crime de usurpação quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas neste Código”.

Este crime é punível, nos termos do nº 1 do art. 197º do mesmo diploma, “com pena de prisão até três anos e multa de 150 a 250 dias, de acordo com a gravidade da infracção, agravadas uma e outra para o dobro em caso de reincidência, se o facto constitutivo da infracção não tipificar crime punível com pena mais grave”. Quando praticado a título de negligência, este crime é punível com multa de 50 a 150 dias, nos termos do nº 2 do mesmo artigo. Por fim, o nº 3 estipula que em caso de reincidência não há suspensão da pena (norma de duvidosa constitucionalidade, por razões que não vêm agora ao caso).

Com interesse para a decisão há que atender ainda ao teor dos artigos 149º e 184º, na redacção vigente à data da prática dos factos, que se reportam a 24 de Maio de 2016.

Dispõe o art. 149º:

1 - Depende de autorização do autor a radiodifusão sonora ou visual da obra, tanto directa como por retransmissão, por qualquer modo obtida.

2 - Depende igualmente de autorização a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

3 - Entende-se por lugar público todo aquele a que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão.

O art. 184º, na redacção então vigente, dispunha assim:

1 - Carecem de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a reprodução, directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, e a distribuição ao público de cópias dos mesmos, bem como a respectiva importação ou exportação.

2 - Carecem também de autorização do produtor do fonograma ou do videograma a difusão por qualquer meio, a execução pública dos mesmos e a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, por forma a que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido.

3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador pagará ao produtor e aos artistas intérpretes ou executantes uma remuneração equitativa, que será dividida entre eles em partes iguais, salvo acordo em contrário.

4 - Os produtores de fonogramas ou de videogramas têm a faculdade de fiscalização análoga à conferida nos n.os 1 e 2 do artigo 143.º

Na vigência desta última norma, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão nº 15/2013 (Uniformização de Jurisprudência), pronunciou-se no sentido de que a aplicação, a um televisor, de aparelhos de ampliação do som, difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma, não integrando consequentemente essa prática o crime de usurpação, p. e p. pelos arts. 149º, 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Sustentam as recorrentes existir oposição entre esta decisão da jurisprudência nacional e as decisões que sobre o mesmo tema vêm sendo assumidas pelo TJUE.

O acórdão uniformizador considerou que a resposta à questão de saber se a mera recepção em local público envolve o dever de obter autorização por parte do autor da obra pressupõe que se opere a distinção entre recepção e comunicação: “A receção consiste na captação pelos equipamentos adequados dos sinais de sons e imagens difundidos pelo transmissor. A receção é o terminus do processo de transmissão e só ela o justifica: transmite-se (radiodifunde-se) para o recetor. Esta utilização das obras pelo recetor confere naturalmente aos autores o direito de a autorizarem (e o consequente direito à remuneração por essa utilização), nos termos do nº 1 do art. 149º. Mas, uma vez autorizada, a receção é livre, ou seja, o recetor pode organizá-la como bem entender. Ponto é que se mantenha no âmbito da receção”. Partindo deste pressuposto, o STJ firmou jurisprudência no sentido de o dever de pagamento de uma compensação ao autor se restringir aos casos em que haja uma reutilização da obra, o que apenas sucederá se forem empregues meios técnicos que recriem de qualquer forma a sua difusão. Verificando-se uma mera recepção, ainda que difundida por quaisquer equipamentos, mas desde que estes tenham apenas a função de aperfeiçoar ou melhorar o sinal captado, não terá aplicação o disposto no nº 2 do art. 149º do CDADC, sob pena de se verificar uma dupla cobrança de direitos sobre a mesma utilização da obra. E nessa medida, não haverá lugar a pagamento de compensação ao autor nos casos de “mera receção em cafés ou bares abertos à generalidade das pessoas, sem obrigação de pagamento de entrada, estabelecimentos que representam tradicionalmente lugares de convivência ou reunião, sobretudo nos meios pequenos, mas não só neles, nos quais a captação de programas televisivos pode funcionar ocasionalmente como chamariz especial, mas normalmente apenas serve a clientela habitual, para a qual não constitui nenhum atractivo” (cfr. o citado Ac. 15/2013).

À luz da argumentação expendida no Acórdão Uniformizador e face à redacção do art. 184º então vigente não vislumbramos argumentos que permitam contestar as conclusões alcançadas naquele acórdão, pelo que se adere uma vez mais à orientação então acolhida pelo STJ, independentemente de o TJUE se vir pronunciando em sentido idêntico ao propugnado pelos recorrentes.

Não se questiona, obviamente, o primado do direito europeu, princípio consagrado pelo TJUE, a impor a prevalência do direito europeu sobre os direitos nacionais em caso de conflito, vinculando os juízes nacionais, a quem compete interpretar o direito nacional em conformidade com o direito europeu (podendo socorrer-se, em caso de dúvida sobre a aplicação daquele princípio, da decisão prejudicial). Contudo, o carácter vinculativo das decisões do TJUE não é absoluto nem definitivo, na medida em que ainda que uma questão já tenha sido decidida num determinado sentido, não existe obstáculo a que os juízes nacionais a coloquem novamente, podendo a anterior decisão do TJUE ser modificada numa nova decisão. Por esta via está garantido o contínuo aperfeiçoamento da jurisprudência daquele tribunal, que pode, assim, modificar a sua orientação a todo o tempo.

O diploma cuja aplicação agora se equaciona – o CDADC – incorpora o resultado da transposição de directivas europeias. Estes actos legislativos europeus – as Directivas – comportam necessariamente alguma maleabilidade na sua transposição, tanto mais que o que o legislador nacional transpõe são orientações, não um texto europeu rigidamente fechado. Mas o que verdadeiramente importa realçar é que não constituindo as Directivas, em regra, regulamentos auto-executivos, delas não resultam directamente deveres ou obrigações para os particulares. As orientações delas constantes carecem de transposição para o direito nacional através de um acto legislativo interno, que não raras vezes fica aquém ou vai além da Directiva, originando dúvidas sobre o exacto alcance do diploma na sua compatibilização com o Direito Europeu; o que se revelou, aliás, particularmente notório no âmbito da matéria que agora cuidamos de apreciar, tanto assim que o legislador se viu obrigado a alterar o art. 184º do CDADC, cujo teor actual é o seguinte:

1 - Assiste ao produtor do fonograma ou do videograma o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes:

a) A reprodução, direta ou indireta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte, do fonograma ou do videograma;

b) A distribuição ao público de cópias dos fonogramas ou videogramas, a exibição cinematográfica de videogramas bem como a respetiva importação ou exportação;

c) A colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, dos fonogramas ou dos videogramas para que sejam acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido;

d) Qualquer utilização do fonograma ou videograma em obra diferente;

e) A comunicação ao público, de fonogramas e videogramas, incluindo a difusão por qualquer meio e a execução pública direta ou indireta, em local público, na aceção do n.º 3 do artigo 149.º

2 - (Revogado.)

3 - Quando um fonograma ou videograma editado comercialmente, ou uma reprodução dos mesmos, for utilizado por qualquer forma de comunicação pública, o utilizador tem de pagar, como contrapartida da autorização prevista na alínea e) do n.º 1, uma remuneração equitativa e única, a dividir entre o produtor e os artistas, intérpretes ou executantes em partes iguais, salvo acordo em contrário.

4 - Os produtores de fonogramas ou de videogramas têm a faculdade de fiscalização análoga à conferida nos n.os 1 e 2 do artigo 143.º 

O esclarecimento normativo introduzido na al. e) implicará seguramente uma actualização da jurisprudência uniformizada pelo Acórdão 15/2013, mas reforça simultaneamente a validade da interpretação feita pelo STJ à luz da anterior versão do CDADC. Esta constatação é de particular relevância no caso a que nos reportamos por estar em causa a aplicação dos arts. 195º e 197º do CDADC, normas de natureza penal, cominando a segunda delas pena criminal para a violação dos direitos tutelados na primeira. O art. 195º apenas contém a descrição do tipo penal de base, ou seja, um tipo penal aberto, cujo funcionamento fica dependente de integração por via de outros normativos, nomeadamente, por recurso às normas que concretizam a multiplicidade de utilizações possíveis da obra ou prestação descritas no CDADC, como claramente resulta da remissão constante da parte final do respectivo nº 1. Assim sucede, por exemplo, com o recurso ao conceito de comunicação pública.

Nestas situações, os elementos objectivos resultantes da norma ou normas complementares integram-se na tipicidade do crime que, como sucede com qualquer tipo penal, tem que ser previamente conhecido pela comunidade jurídica. Assim o impõem os princípios da legalidade, da tipicidade e do nulum crimen sine lege, com dignidade constitucional e com protecção supranacional, seja na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. o respectivo art. 7º, nº 1), seja na Declaração Universal dos Direitos Humanos (cfr. o respectivo art. 11º, nº 2).

Ora, desta constatação resulta a óbvia necessidade de proceder a uma interpretação da norma penal em conformidade com o Direito Europeu que não esqueça as suas fontes mais importantes, designadamente, a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nem o direito supra europeu de referência, como é o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Tudo isto remete-nos para a necessidade de averiguar se o tipo legal de crime estava claramente definido à data da prática dos factos que tipificariam a infracção imputada ao arguido, de modo a poder ser por ele conhecido e interiorizado. O que está em causa em primeira linha não é saber se a utilização que o arguido fazia das obras configura o conceito de "comunicação pública", tal como previsto no artigo 3.º n.º1 da Directiva 2001/29, como sustentam as assistentes, pois que aquela directiva não é directamente aplicável aos cidadãos, enquanto sujeitos de direitos e de deveres. O que em primeira linha está em causa é a verificação do preenchimento do ilícito típico pela conduta do arguido, analisada esta à luz da configuração da norma incriminadora tal como foi vertida no ordenamento jurídico português, sem esquecer o seu elemento subjectivo, o que não traduz desrespeito pelo princípio do primado do direito europeu, na medida em que esta é a única solução que respeita o direito europeu fundamental.

Ora, independentemente das dúvidas interpretativas suscitadas pelo CDADC, na redacção relevante para o caso sub judice à data da prática dos factos, em causa está também a verificação do elemento subjectivo, que a 1ª instância afastou considerando não se terem apurado indícios de que o arguido tenha agido com conhecimento do carácter ilícito da sua conduta. Tudo está, pois, em saber se este desconhecimento é censurável ou se, pelo contrário, releva positivamente, o que nos remete para o domínio da segunda das questões que enumerámos como relevantes para a decisão dos recursos.

Já em 1983, em conferência proferida no Centro de Estudos Judiciários, referindo-se ao critério da não censurabilidade da falta de consciência do ilícito, o Prof. Figueiredo Dias afirmava que "Esta ocorrerá preferentemente em âmbitos onde a questão da ilicitude surja como discutível e controvertida. (...) Indispensável à desculpa será que a solução dada pelo agente à questão da ilicitude corresponda a um ponto de vista de valor que, não fosse a situação de conflito com outros ou mesmo com razões de estratégia e de oportunidade, poderia conferir juridicidade à conduta; como indispensável será ainda que a adequação a um tal ponto de vista de valor se manifeste no facto" [1].

A consciência da ilicitude reflecte-se no elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime) e antes de se oferecer como questão de direito, começa por ser uma questão de facto, sendo em função do provado que se determina o correspondente regime legal. Contudo, na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado.

Não estando em causa a reapreciação da prova, a conclusão alcançada pela 1ª instância nesta matéria apenas poderia ser refutada por esta Relação se se revelasse manifestamente desajustada. Não é o caso, visto que a repercussão pública do acórdão de fixação de jurisprudência a que vimos aludindo foi de molde a gerar a tranquilidade do comum dos cidadãos relativamente à licitude da sua conduta, nomeadamente, tomando como referência aqueles que exploram estabelecimentos comerciais abertos ao público de natureza similar ao gerido pelo arguido.

            Na verdade, havendo ampla divulgação da posição assumida pelo mais alto tribunal nacional relativamente à questão posta, entendendo que o conjunto fáctico a que se reporta não constitui crime, sem uma revisão dessa posição no domínio do mesmo quadro legal – o que então vigorava – é deveras complexo concluir por uma actuação dolosa reportada a uma clara consciência da ilicitude. Atendendo aos elementos que invoca, o tribunal recorrido concluiu bem ao afirmar que a prova indiciária recolhida não permite sustentar o conhecimento, por banda do arguido, da proibição da conduta e da subsequente decisão, ainda assim, pela acção criminosa.

Há que concluir, pois, que não foram reunidos em sede de instrução indícios suficientes que permitam a pronúncia do arguido pela prática de um crime de usurpação p. p. pelos art.s 195º e 197º do CDADC

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento aos recursos, das assistentes, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelas assistentes, fixando-se a taxa de justiça devida por cada uma delas em 3UC.

                                                                       *

Coimbra, 26 de Junho de 2019

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

 

Maria Pilar de Oliveira (adjunta)


[1] Cfr. "Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa", in Jornadas de Direito Criminal, Fase I, pág. 82