Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
511/13.8TACVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: DOLO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 14.º, 152.º, DO CP; ARTS. 287.º, 358.º E 359.º, DO CPP
Sumário: I - A nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se de factos externos, objectivos, revelados pela conduta do agente.

II - Ao nível da acusação, como do RAI (requerimento de abertura da instrução), e ainda da pronúncia, a descrição factual do dolo tem de constar dessas peças processuais, sob pena de nunca se mostrar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretender submeter alguém a julgamento.

III - O bem protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde - entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental -, mas também abrange a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.

IV - Se no RAI, na vertente do tipo subjectivo de ilícito, está descrito, “a arguida ameaçou de morte o ofendido e injuriou-o”, é patente a falta de descrição do dolo, por referência ao crime (violência doméstica) pelo qual a assistente pretende ver o arguido pronunciado.

V - Nesse contexto narrativo, afastada está a possibilidade de, em fase processual posterior, o julgador suprir a alegação dos factos integradores do tipo subjectivo com recurso às normas dos artigos 358.º e 359.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

I RELATÓRIO

1. Nos autos supra identificados, A... , assistente constituído, veio requerer a abertura de instrução, após notificação do despacho de arquivamento de inquérito, proferido pelo Ministério Público.

A instrução foi admitida e efectuado o debate instrutório foi proferida decisão de NÃO PRONÚNCIA da arguida B..., pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152º, nº1, al. b) e nº2 do Código Penal, que lhe é imputado pelo assistente.

2. Inconformado, o assistente recorre deste despacho e conclui a sua motivação nos seguintes termos:

«(…)

A - Notificado do arquivamento dos autos por parte do Digníssimo Ministério Público, e não se conformando com o mesmo, veio o assistente a 19 de Dezembro de 2013 requerer a abertura da instrução.

B - Naquele requerimento de abertura de instrução, foram enunciadas as razões de Facto e de Direito quanto à acusação da arguida B... no sentido desta vir a ser acusada pela prática do crime de violência doméstica: a) a intenção da arguida era, e não podia ser outra, a de infligir maus tratos psíquicos ao assistente A..., desde logo porque repetidamente o ameaçava com expressões como: És um cabrão!; És um merdas!; Um dia destes mato-te!; És um filho da puta!; Vou matar-te, não andes descansado!; Vais morrer nas minhas mãos, seu cabrão!; b) importa destacar o facto de o assistente ter recorrido a serviços médicos na sequência das agressões da arguida, conforme pode ser comprovado nas declarações do hospital; c) a arguida por várias vezes agrediu fisicamente o assistente, nomeadamente quando, no fina! de 2012 lhe atirou uma arca frigorífica, e em Janeiro de 2013 desferiu contra ele vários murros e pontapés, tendo em ambas as situações o assistente recorrido a cuidados hospitalares; d) a atuação global da arguida é reveladora de especial censurabilidade uma vez que agrediu o assistente na presença da filha menor de ambos, na altura com apenas 7 anos.

C - Na decisão instrutória pode ler-se: “Analisando o RAI, verifica-se que dele consta relativamente ao elemento subjectivo da infracção a seguinte fórmula «a participada agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era susceptível de consubstanciar factos ilícitos e puníveis pela nossa lei penal e mesmo assim não se coibiu de praticar tais gravíssimos atos». Ora, como é sabido, são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente dentro dessas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. E assim num crime doloso - só este interessa tratar aqui - da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo), (sublinhado nosso) ”

D - Prendemos, com este recurso, impugnar a decisão do Tribunal a quo uma vez que o assistente não se conforma com a decisão instrutória supra citada.

E - Existe jurisprudência no sentido por nós defendido no presente recurso, nomeadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/07/2013, referente ao processo 126/12.8GAMAC.E1, onde pode ler-se, logo no sumário: “Expressões do género «o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecer do carácter proibido da sua conduta», destinadas à uniformização do jargão judiciário, não podem transformar-se em fórmulas sacramentais (sublinhado nosso)

F - No referido acórdão pode igualmente ler-se: “Como ensina Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penai”, I, 332, o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a saúde - “bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (...) afectem a dignidade pessoal do cônjuge’\ sendo certo que a ratio do preceito incriminador “vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade, etc.)’:. Trata-se, como é sabido, de um crime de natureza dolosa. E o dolo, como é sabido, exige a verificação cumulativa de dois elementos: - um, cognitivo, traduzido no conhecimento de que a conduta a praticar preenche um tipo legal de crime (ou, pelo menos, a admissão de tal resultado como consequência necessária ou possível da sua conduta); - outro, volitivo, traduzido na vontade de realizar o facto. A prática judiciária tem reconduzido os dois elementos referidos à expressão “o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conhecer do carácter proibido da sua conduta”, ou outra semelhante. E aquilo que mais não era (ou não devia ser) do que mera tentativa de uniformização do jargão judiciário e de facilitacão do labor dos profissionais forenses tem vindo, a pouco e pouco, a transformar-se em fórmula sacramental, perante cuja ausência tudo soçobra e nada faz sentido. Mas não tem que ser assim, (sublinhado nosso)

G - Deste modo, cremos estar explícito no requerimento de abertura de instrução, através de expressões como “dirigiu-se ao participante (...) e disferiu-lhe vários murros e pontapés”, “a participada disse: vou matar-te! (...)”, “violentamente e de forma muito agressiva, a participada pegou numa pesada arca frigorífica e atirou ao participante” ou “a participada avança bruscamente de carro”, que a arguida agiu de forma livre e esclarecida, com clara intenção deliberada de mal tratar o assistente.

H - Pelas razões enunciadas, o Tribunal a quo deveria, assim, ter concluído que está preenchido o tipo objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal.

I - Mais, o assistente não se conforma com a matéria de Direito da douta decisão instrutória, uma vez que, não colhe o facto de o Tribunal a quo fundamentar o despacho de não pronúncia apenas com argumento na insuficiência do alegado pelo assistente no requerimento de abertura de instrução, quando há provas e testemunhas suficientes para sustentar a prática deste crime.

J - No requerimento de abertura de instrução existem, como se procurou demonstrar, factos suficientes em ordem a integrar o elemento subjetivo do crime imputado à arguida.

L - O Tribunal a quo violou, assim, manifestamente as normas contempladas no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, QUE OS VENERANDOS DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, mui doutamente suprirão, confiadamente se espera que seja dado provimento

ao presente recurso, e assim:

a) Ser a arguida B... pronunciada como autora na prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, al. b) e n.° 2 do Código Penal, com as necessárias e advindas consequências legais.

Vossas excelências decidirão conforme for de Justiça!

VAI:

O presente recurso instruído com as seguintes peças processuais;

a)      Requerimento de abertura de instrução datado de 19 de Dezembro de 2013;

b)      Decisão instrutória datada de 16 de Junho de 2014

Pedem a Vª Exª deferimento

(…)».

3. O Ministério Público respondeu, manifestando-se pela sua improcedência, e concluindo que:

 “1. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deveria conter a narração, ainda que sintética, dos factos objectivos e subjectivos que fundamentam a aplicação ao arguido de toma pena, porquanto o referido requerimento consubstancia, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição da arguida a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal.

2. Assim, tal requerimento fixa o objecto do processo, traçando os limites da actividade investigatória do juiz de instrução criminal.

3. Deste modo, deveria o assistente, no seu RAI, ter alegado, não só os factos consubstanciadores do elemento objectivo, mas também os factos integradores do elemento subjectivo do crime de violência doméstica previsto e punido pelo art. 152.° do Código Penal que pretende imputar à arguida B....

4. Porém, considerando os factos descritos no RAI verifica-se que a conduta ali descrita é inócua, precisamente por falta de alegação do elemento subjectivo do tipo legal de violência doméstica.

5. Já que o assistente se limita a referir a esse elemento com a fórmula genérica: “A participada agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era susceptível de consubstanciar factos ilícitos e puníveis pela nossa lei penal, e mesmo assim não se coibiu de praticar tais gravíssimos actos.”.

6. Sem concretizar que a arguida agiu de forma deliberada, isto é, querendo o facto criminoso.

7. E sem descrever o elemento subjectivo específico relativo à violência doméstica.

8.           Acresce que, o elemento subjectivo não decorre da factualidade objectiva alegada, porquanto não é admissível uma ideia de dolus in reipsa.

9.           Assim, a ausência dos elementos indispensáveis para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, como decorre do art. 287.º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal ao remeter para o art 283.°, n.º 3, al. b) e c) do mesmo diploma, constitui uma nulidade.

10.         Tal nulidade nos termos do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b) do Cód. de Processo Penal com referência ao art. 287.º, n.º 2 do mesmo diploma tem como consequência a rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente e é de conhecimento oficioso.

11.         Com efeito, se as causas de rejeição desse requerimento são de conhecimento oficioso e tal nulidade é uma delas, então, esta nulidade é também de conhecimento oficioso e a arguida nunca poderia ser pronunciada.

12.         Devendo, assim, manter-se a decisão instrutória de não pronúncia da arguida.

Por todo o exposto, sem mais delongas por desnecessárias, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta decisão instrutória recorrida

Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual

JUSTIÇA!”

 

4. O Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto neste Tribunal pronunciou-se pelo indeferimento do recurso, concluindo o seu parecer como se transcreve:

«(…)

2.- O douto despacho recorrido, de fls. 244 a 253, decidiu não pronun­ciar a denunciada B... da prática do crime de violência domésti­ca, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. b), e 2 do Cód. Penal, apesar de ter sido admitido o R.A.I. (Requerimento de Abertura da Instrução), de fls. 161 a 174, ordenada e efectuada a instrução, através do despacho exarado a fls. 182 e 183.

2 . a) - Na decisão recorrida, de não pronúncia, de fls. 244 a 253. a Mma Juiz a quo suscitou, a fls. 245 e ss., a questão prévia de nulidade do R.A.I. (Requerimento de Abertura da Instrução), de fls. 161 a 174, por “ falta de alegação de factos integradores do ele­mento subjectivo do tipo legal de crime imputado à arguida ”, nomeadamente, do elemento subjectivo do crime de violência doméstica;

2 . b) - Apesar de não ter rejeitado o R.A.I., no momento em que foi profe­rido o despacho exarado a fls. 182 a 183, como se impunha, em face da fundamentação ex­pendida na decisão instrutória, de fls. 244 a 253, veio agora a Mma Juiz a quo, nesta decisão recorrida, em questão prévia, declarar a nulidade do R.A.I., por este não constituir qualquer acusação alternativa, pois, para além de discordar do despacho de arquivamento do M°P°, de fls. 134 a 139, não descreve correctamente os factos consubstanciadores do crime de vio­lência doméstica, p. e p. pelo art. 152 °, n ºs 1, al. b), e 2 do Cód. Penal, pelo qual pretende seja pronunciada a denunciada B..., nomeadamente, o elemento subjectivo, como impõem os artigos 283 °, nº 3 e 287 °, n º 2 do Cód. Proc. Penal.

3.- O assistente-recorrente, A..., na sua motivação de recurso, de fls. 255 a 281, alegou, além do mais (em síntese), na parte relevante para o recurso (fls. 277 a 281),que o requerimento para abertura da instrução contém a factualidade essencial, bem como as normas incriminadoras, narrando os factos que, no seu entender, permitem imputar à arguida o ilícito penal aí indicado (crime de violência doméstica), o que faz de forma correcta, pelo que deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro, que declare correcto o R. A. I. e pronuncie a denunciada pela prática do crime de violência doméstica.

Ora, apesar de se considerar que devia ter sido rejeitado o R.A.I., com a fundamentação agora expressa no despacho recorrido, também é verdade que não há funda­mento legal para proferir despacho de pronúncia, sendo certo que é actualmente pacífico que, em situações como a ocorrida, não há lugar ao convite para aperfeiçoamento do requeri­mento de abertura de instrução (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n ° 7/2005, do S. T. J., publicado no D.R., I -A, em 04/11/2005), não devendo ser admitido o re­querimento de abertura de instrução, mas, tendo sido admitido, conforme decidiu a Mmª Juíza a quo (fls. 182 a 183), agora, por razões técnicas, deverá ser proferida decisão de não pronúncia.

4 - Com efeito, nos termos do nº 1 do artigo 286° do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial de deduzir acusação ou de arquivar o in­quérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento e o seu âmbito restringe-se à prá­tica dos actos necessários à realização destas finalidades (nº1 do art. 290º do Código de Pro­cesso Penal).

A abertura de instrução e a realização de diligências, nesta fase do pro­cesso, depende da questão prévia da correcta formulação do requerimento para abertura da mesma, que é o que está em causa nos presentes autos.

O inquérito tem por finalidade investigar a existência de um crime, bas­tando a mera notícia do mesmo para que possa ser feita a respectiva denúncia, devendo o Mi­nistério Público proceder ao registo de todas as denúncias, que lhe forem transmitidas (ar­tigos 244 °, 2470 e 2620 do Código de Processo Penal).

Por outro lado, deve deduzir acusação se, no decurso do inquérito, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (artigo 283º do Código de Processo Penal).

A instrução, por seu lado, visa comprovar judicialmente a decisão de de­duzir acusação ou de arquivar o inquérito e o requerimento para a abertura de instrução de­ve conter os factos, que o Requerente espera provar, através das diligências a realizar e dos meios de prova a produzir na instrução (artigos 286 ° e 287 ° do C. P. P.).

5. - A decisão instrutória só pode, validamente, pronunciar o arguido por factos descritos na acusação do Ministério Público ou do Assistente, ou no requerimento pa­ra a abertura de instrução, ou que não constituam uma alteração substancial deles, sendo nu­la em caso contrário (n ° 1 do artigo 309º0 do Cód. Proc. Penal).

Nos termos da al. f), do nº1, do artigo 1º do C. P. P., ocorre alteração substancial dos factos, se estes tiverem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Nesta conformidade, pois, a fase de instrução não é um segundo inqué­rito e, para que haja abertura de instrução, é indispensável que um crime esteja descrito numa acusação ou no requerimento de abertura de instrução, não bastando a mera notícia ou imputa­ção de crimes em abstracto, sendo essencial a data da prática dos factos, a identificação do(s) arguido(s), o elemento subjectivo da infracção e uma correcta articulação dos factos imputa­dos.

6 - Se nenhum crime for descrito numa acusação ou requerimento para abertura de instrução, faltar a identificação dos arguidos, a data da prática dos factos ou o elemento subjectivo, nenhuma comprovação é possível fazer da decisão de acusar ou de ar­quivar quanto a ele, sendo, portanto, a instrução legalmente inadmissível e o requerimento de abertura de instrução deve ser rejeitado (n.º 3 do artigo 287.º do C.P.P.).

Se a lei impõe a rejeição do requerimento, obviamente que impede a sua aceitação e posterior correcção, pelo que, a existir nulidade, de conhecimento oficioso, pode agora ser declarada e ser proferido despacho de não pronúncia.

7 - Em face do exposto, e acompanhando a resposta da Exma Magis­trada do Ministério Público, constante de fls. 288 a 299, somos de parecer que o recurso do assistente, A..., não merece provimento, devendo ser confirma­do o despacho recorrido.”

                                                             *

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP não foi apresentada resposta.

6. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
Constitui entendimento pacífico que são as conclusões das alegações dos recursos que delimitam o respectivo objecto e o seu âmbito, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso. É no quadro assim delimitado que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, obviamente com excepção das que tenham ficado prejudicadas pela solução de outras.
É também entendimento pacífico que “As questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se, os quais devem constituir as questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cf., entre outros, Acs. do STJ de 30-11-2005, Proc. n.º 2237/05, de 21-12-2005, Proc. n.º 4642/02, e de 27-04-2006, Proc. n.º 1287/06).” – Ac STJ de 16-09-2008.

A questão que importa decidir, face às conclusões apresentadas pelo recorrente na sua motivação, consubstancia-se apenas na apreciação do RAI do assistente no que respeita à descrição do elemento subjetivo do imputado crime de violência doméstica e nas consequências da omissão na descrição dos factos do elemento volitivo ou emocional do dolo – “o agente quis o facto criminoso”.

2. O despacho recorrido (transcrição)

DECISÃO INSTRUTÓRIA

I. RELATÓRIO

Inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 134 e seguintes, o assistente A... requereu a abertura de instrução, nos termos constantes do seu requerimento de fls. 145, sustentando, em muito breve síntese, que dos autos resultam indícios suficientes de que:

- Viveu em união de facto com B... durante cerca de 10 anos.

- No final do ano de 2012 quando se encontrava no interior da residência comum do casal, situada na (...), nesta cidade e comarca da Covilhã, a denunciada dirigiu-se-lhe dizendo em tom elevado e com foros de seriedade “vou-te matar e é agora; acabou; morres aqui e agora, seu merdas.” Acto contínuo a denunciada arremessou uma arca frigorífica em direção ao denunciante que o atingiu no membro inferior, o que lhe causou lesões.

-Já no dia 19 de Janeiro de 2013, quando se encontravam no interior da referida habitação a denunciada disse-lhe “és um cabrão; és um merdas; um dia destes mato-te; és um filho da puta; vou-te matar; não andes descansado; vais morrer nas minhas mãos, seu cabrão.” - Sempre que se encontra com a denunciada esta diz-lhe em tom elevado e com foros de seriedade “sabes o que te espera; sabes o que te vou fazer; conheces o teu destino”.

Face a tais factos, sustenta o assistente que a denunciada incorreu na prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152º, nº1, al.b) e nº2 do Código Penal.

No âmbito da presente instrução, requereu o assistente as seguintes diligências de prova:

- Reinquirição das testemunhas ouvidas em sede de inquérito;

- Inquirição de novas testemunhas, identificadas a fls. 157;

- Inquirição da filha menor do casal;

- Notificação do CHCB para remeter aos autos documentos relativos a entradas no hospital por tentativas de suicídio da denunciada e eventuais processos disciplinares da denunciada (médica naquela instituição).

*

Declarada aberta a instrução, foram realizadas as diligências requeridas pelo assistente que se entenderam ser relevantes para os fins da instrução, nos termos do despacho proferido a fls. 182.

*

Procedeu-se à realização do debate instrutório com observância do pertinente formalismo legal.

*

O tribunal é o competente e o processo o próprio, encontrando-se isento de exceções e nulidades.

*

Questão prévia – da nulidade do RAI por falta de alegação de fatos integradores do elemento subjetivo do tipo legal imputado à arguida: O artigo 286.º n.º1 do Código de Processo Penal dispõe que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Não se trata, por conseguinte, nem de uma fase de julgamento, para apreciação do mérito da ação penal ou para determinação da existência ou da ausência de responsabilidade criminal, nem de um novo inquérito, cujos objetivos se encontram definidos no artigo 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Na fase processual de instrução, a qual tem natureza facultativa, estamos antes em presença de uma “atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a efeito no inquérito tendente a um apuramento mais aprofundado dos factos, sua imputação subjetiva e enquadramento criminal” a qual se configura como “expediente destinado a questionar o despacho de arquivamento ou a acusação deduzida” (Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, Ed. Rei dos Livros, 2.ª Edição, 2004, p. 158).

A instrução destina-se, então, a obter, conforme refere Germano Marques da Silva, “a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídico-factuais da acusação, por uma parte, e o controlo judicial da decisão processual do Ministério Público de acusar ou arquivar o inquérito, nos termos do artigo 277.º, n.º 1 e 2, por outra “ (Cfr. “Curso de Processo Penal, III, 126, cit. por Simas Santos e Leal-Henriques, in ob. cit., p. 158).

Ora, estabelece o artigo 287.º n.º1 do Código de Processo Penal, na parte que ora importa que “a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) (...) b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.(…)”.

E o n.º2 do mesmo artigo prevê que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º. (…)”

Sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, ao respetivo requerimento, por força da parte final do citado art.287.º n.º2, é aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 2, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, o que significa que tem de conter, sob pena de nulidade:

- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

- a indicação das disposições legais aplicáveis.

Daí que a falta das exigências previstas na 2ª parte do artigo 287.º, torne nulo o requerimento para abertura da instrução (cfr., artigo 287.º, n.º 2 segunda parte, 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 118.º, n.º1, todos do Código de Processo Penal).

Estabelecendo o n.º2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal que ao requerimento do assistente é aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º3, als. b) e c) e sendo esta norma aplicável ao requerimento de abertura de instrução, este deve conter uma verdadeira acusação, já que tal requerimento fixa o objeto do processo, delimitando a atividade investigatória do juiz de instrução.

Esta exigência de que o requerimento do assistente para abertura da instrução conforme uma acusação decorre da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32.ºn.º5 da Constituição da República Portuguesa, impondo que o objeto do processo seja fixado com rigor em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional de n.º 358/2004, de 19 de Maio, Processo n.º 807/2003, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004).

Desta delimitação do objeto do processo resulta o estabelecido nos artigos 303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do Código de Processo Penal, que proíbe a pronúncia do arguido por  factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no n.º1 desse artigo 303.º.

O entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência, salientando-se, entre muitos:

- O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.11.1993, (in C.J. de 1993, Tomo V, p.61), no qual se defende que: “Não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes. Após o arquivamento pelo M.P., o requerimento de abertura de instrução do assistente equivalerá em tudo à acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação. Não descrevendo o assistente os factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se venha a fazer numa eventual pronúncia redunda necessariamente numa alteração substancial, estando ferida da nulidade cominada no artigo 309.º do Código de Processo Penal”.

- O acórdão da Relação de Guimarães de 14.02.2005, disponível em www.dgsi.pt., em cujo sumário se lê que “o requerimento do assistente para abertura da instrução deve configurar substancialmente uma acusação, concluindo-se, que a indefinição do campo factual torna a instrução a todos os títulos inexequível.”

- O acórdão da Relação de Évora de 3/12/2009, disponível em www.dgsi.pt., assim sumariado “1. Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento, tal requerimento deverá conter substancialmente uma acusação, com a narração dos factos e a indicação da prova a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e d), do CPP. 2. Se o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente consubstancia uma manifestação de discordância em relação ao despacho de arquivamento do Ministério Público, e se é essencial que na instrução se proceda ao controle da acusação que, no caso, seria do assistente, só se justificará tal comprovação judicial com a apresentação de uma narrativa dos factos concretos cuja prática é imputada ao arguido. 3. Não tendo o Ministério Público deduzido acusação e não indicando a assistente, no requerimento para abertura da instrução, os factos concretos que imputa ao(s) denunciado(s), verifica-se que a instrução carece de objeto, o qual deveria ter sido definido pelo aludido requerimento, que não cumpriu a função imposta pelos artigos 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP, não sendo, por isso, exequível”.

- O acórdão da Relação do Porto de 20/1/2010, disponível em www.dgsi.pt., em que se decidiu que “I - A estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e precisão. II - O requerimento de abertura de instrução (RAI) deduzido pelo assistente deve consubstanciar, materialmente, uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento, por factos geradores de responsabilidade criminal. III - A liberdade de investigação do JIC está limitada pelo objeto da acusação. IV - Se o RAI não contém a narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, padece de nulidade, de conhecimento oficioso, a impor a inadmissibilidade legal da instrução”.

No caso dos autos, o assistente, pretendia que a arguida fosse pronunciada pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152º, nº1, al. b) e nº2 do Código Penal, conforme consta do requerimento para abertura da instrução, pelo que lhe cabia a narração dos factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos desse tipo legal.

Analisado o RAI, verifica-se que dele consta relativamente ao elemento subjetivo da infração a seguinte fórmula “a participada agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era suscetível de consubstanciar fatos ilícitos e puníveis pela nossa lei penal e mesmo assim não se coibiu de praticar tais gravíssimos atos” (sublinhado nosso).

Ora, como é sabido, são precisamente os elementos subjetivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objetivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjetivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respetiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo direto, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.

E assim num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo) – sublinhado nosso.

Neste sentido se tem pronunciado aliás a jurisprudência, de que se destacam a título meramente exemplificativo os seguintes acórdãos:

- Acórdão da Relação de Coimbra de 30/9/2009, disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado: “(…) Num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo)”.

- Acórdão da Relação de Guimarães de 06.12.2010, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que: I) O dolo constitui matéria de facto e, por isso, têm de ser devidamente alegados os factos donde tal se possa concluir. II) Assim sendo, não é legítimo afirmar o dolo simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta pois, a não ser assim, o arguido estaria impedido de se defender cabalmente por ignorar a modalidade do dolo”.

Ora, no caso dos autos, entende-se que o requerimento do assistente não contém a descrição do necessário elemento subjetivo do crime de violência doméstica, já que o assistente não alega que a arguida tenha agido de forma deliberada, faltando por isso o elemento volitivo ou emocional do dolo, traduzido no fato de o agente ter querido o facto criminoso.

E tal falta não pode, segundo se crê, ser suprida.

Não pode desde logo ser corrigida oficiosamente pelo tribunal pois que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes ao elemento subjetivo, pois tal representaria uma alteração substancial dos factos, tal como descrita no artigo 1º f) do Código Processo Penal, para além de colocar em causa a estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido - cfr. neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 21.03.2012, disponível em www.dgsi.pt.

Por outro lado, tal matéria (o elemento volitivo ou emocional do dolo) não se pode também inferir da materialidade objetiva, pois tal traduzir-se-ia numa presunção de iure do dolo, o que é inadmissível. Na verdade, uma coisa é a alegação dos factos (no caso concreto relativos ao elementos subjetivo) e outra, diferente, é a respetiva prova. E o facto de o dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respetiva alegação, que neste caso não foi feita - cfr. neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 21.03.2012, disponível em www.dgsi.pt.

Finalmente, encontra-se também arredada a possibilidade de endereçar ao assistente convite ao aperfeiçoamento, face ao teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no D.R., 1.ª série, de 4/11/2005, que fixou a seguinte jurisprudência: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

E assim sendo, e ainda que se considerassem indiciados todos os factos invocados pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, por força da limitação a que se encontra sujeito o juiz de instrução no que respeita aos factos a incluir na decisão instrutória, tal revelar-se-ia insuficiente para sustentar uma decisão de pronúncia.

Assim, perante o que foi exposto, forçoso se mostra, pois, concluir que a presente instrução, face à insuficiência do alegado no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, está inevitavelmente destinada ao insucesso, não restando por isso se não proferir despacho de não pronúncia.

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III. DECISÃO

Pelo exposto, nos termos do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal decido NÃO PRONUNCIAR a arguida B..., pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152º, nº1, al.b) e nº2 do Código Penal, que lhe é imputado pelo assistente.

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Custas a cargo do assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC`s (Cfr. artigo 515.º, alínea a) do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Judiciais).

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Oportunamente, arquivem-se os autos.

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Covilhã, 16 de Junho de 2014

3. Recorde-se que a única questão submetida à nossa apreciação respeita à suficiência do RAI apresentado pelo assistente no que respeita aos factos integrantes do dolo.

Decidindo, dir-se-á.

De acordo com o artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns de outros, se espera provar.

  E caso a instrução seja requerida pelo assistente, é ainda aplicável ao RAI o disposto no artigo 283º, n.º 2, alíneas b) e c), com a consequente obrigação de conter, sob pena de nulidade:
- narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

 - a indicação das disposições legais aplicáveis.

 Percebe-se então claramente que a falta de cumprimento das exigências previstas na 2ª parte do artigo 287º, gera a nulidade do requerimento para abertura da instrução (artigos 287º, n.º 2 segunda parte, 283º, n.º 3, alíneas b) e c) e 118º, n.º1), e que a omissão das exigências previstas na 1ª parte do artigo 287º, constitui mera irregularidade (artigo 118º, n.ºs 1 e 2).

 Por outro lado, ainda, o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287º, n.º 3).

Conforme refere Mouraz Lopes, «sendo a instrução necessariamente requerida por alguém, que pretende ver judicialmente declarado (através de uma decisão judicial) quer o arquivamento quer a acusação de um inquérito conduzido pelo Ministério Público, assume particular relevo o requerimento inicial ao juiz de instrução onde expõe as suas razões.

Importará sublinhar que a instrução só pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação ou pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação – artigo 287º nº 1 alínea a) e b), CPP.

Ou seja a situação passível de ser objecto de apreciação jurisdicional, na instrução já foi anteriormente objecto de apreciação judicial através do inquérito, mas não jurisdicional, ou seja por um juiz» - cf. José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 74.

Do exposto resulta que, como refere Germano Marques da Silva, o requerimento do assistente para abertura da instrução, tem de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação.

Com efeito, no caso de arquivamento dos autos de inquérito por parte do MP, como foi o caso vertente, o RAI equivale à acusação, dado que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo do referido RAI.

Melhor se compreende a razão por que a narração dos factos, no requerimento para abertura da instrução, assume particular relevo, na medida em que o artº 309º nº 1 CPP estabelece que “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

Impõe-se assim no requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, a delimitação do “thema decidendum”, já que o juiz está limitado pelos factos aí alegados pelo assistente (artº 308º nº 1 CPP), sob pena de proferir uma decisão nula se não tiverem sido alegados os factos que vierem a recair no despacho de pronúncia.

Já em 2004 o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/2004, de 19 de Maio, processo 807/2003, publicado no Diário da República, 2.a série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, entendeu que «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n. º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre [ . . .] de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.»

 Também Mouraz Lopes, na obra citada, p. 75, salienta que «é notória a pretensão de vincular desde logo o juiz de instrução a um determinado “objecto do processo” sobre o qual terá de se pronunciar, quando proferir o seu despacho - recorde-se que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução, conforme estabelece o artigo 309º.

  Não se limitando os poderes de investigação do juiz de instrução na sua actuação, terá no entanto no caso concreto em apreciação jurisdicional uma vinculação à acusação do Ministério Público ou do assistente ou ao requerimento de abertura de instrução. O modelo acusatório em que assenta a estrutura processual do Código além de se manter incólume, sai mais do que isso, notoriamente reforçado, com a alteração agora imposta».

Neste sentido se vem pronunciando este Tribunal da Relação como é visível no Acórdão de 30.03.2011, processo 443/08, relator Eduardo Martins (cf. www.dgsi.pt).

Pois bem; quando o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contenha os requisitos de uma acusação, com indicação do agente, a narração dos factos que integrem o crime, bem como as normas jurídicas aplicáveis, não pode haver legalmente a pronúncia do arguido.

 Revertendo ao caso vertente, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente não obedece aos mencionados requisitos legais.

Com efeito, constata-se da sua leitura que o assistente nada refere relativamente ao elemento subjectivo do tipo de crime imputado - violência doméstica.

Com efeito, o assistente omite ter a arguida agido de forma deliberada. Porém, agir “de forma deliberada e consciente” é apenas uma “fórmula” que, desacompanhada da referência ao dolo do específico crime imputado, se “encaixa” em todos os tipos mas não preenche nenhum.

É claro que um crime doloso, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

Porém, tal não basta, pois não é assim que, imputado o crime de violência doméstica, o dolo deve ser descrito.

Quer-se significar que importa distinguir o dolo de ameaça, e de injúria, do dolo da violência doméstica.

O que pressupõe se mentalize que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo: visa essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrange também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. E, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.

Ora se a arguida ameaçou de morte o ofendido e se o injuriou, importa distinguir o dolo de ameaça e de injúria do dolo da violência doméstica. Não se divisa outra forma se não através da referência expressa do mesmo ao bem jurídico tutelado.

Por isso, entende este Tribunal que, face ao crime visado, o dolo não se encontra descrito no requerimento de abertura de instrução.

  É certo que na motivação do recurso o assistente tentou suprir as apontadas omissões, concluindo que dos factos objectivamente descritos se deduz o dolo enquanto facto subjectivo. Mas não é assim. Ao nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se dos factos externos, dos factos objectivos, mas ao nível da acusação, do RAI, bem como ao nível da pronúncia, tem que deles constar sob pena de nunca estar preenchido o tipo do crime pelo qual se leva ou pretende levar alguém a julgamento.

De facto, se uma acusação é manifestamente infundada quando não contém o dolo, pois os factos narrados não preenchem nunca o tipo, o mesmo deve suceder com o RAI.

O que não pode ser qualificado como mero fundamentalismo formalista, antes se tratando de imposição processual.

Omitindo-se completamente a descrição da facticidade integradora do elemento subjectivo relativamente ao crime imputado, que como é sabido é um crime que exige o dolo, jamais poderia a arguida ser pronunciada, muito embora tenha sido indicada toda a restante factualidade.

Assim, os factos integradores do elemento subjectivo tinham que constar de tal requerimento apresentado pelo assistente, pois como supra se assinalou é este que limita a instrução (artº 309º nº 1 CPP), pelo que a instrução era inadmissível, mas tendo sido admitida, jamais poderia dar corpo ao despacho de pronúncia.

E não havia lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005 de 12 de Maio de 2005, onde a propósito se escreveu:

“A faculdade de, pelo convite à correcção, o assistente apresentar novo requerimento colidiria com a peremptoriedade do prazo previsto no artigo 287., n.1,do CPP.

Essa dilação de prazo sequente àquele convite pelo juiz de instrução, que não se inscreve no âmbito de comprovação judicial, atribuído à função da instrução, no artigo 286., n.º 1, do CPP, atentaria, assim, contra direitos de defesa do arguido, porque a peremptoriedade do prazo funciona, claramente, em favor do arguido e dos seus direitos de defesa.

«A possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do arguido ou acusado», sentenciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n. 27/2001, de 30 de Janeiro, publicado no Diário da República, 2. A série, de 23 de Março de 2001.

O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18. n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.

Sem acusação formal o juiz está impedido, escreve o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 175, de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18. e 32. , n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.

Uma ilimitada investigação levada a cabo pelo juiz de instrução buliria com o princípio da acusação, pois seria ele a delimitar o objecto do processo contra os peremptórios termos do artigo 311., n.3, alínea b), do CPP, não sendo curial, sublinhe-se, o tribunal substituir-se aos profissionais do foro, mandatários judiciais do assistente, necessariamente por aqueles assistido, nos termos do artigos 70º., n.1, e 287.º , nº.1, alínea b), do CPP, suprindo-lhes carências no desempenho técnico-profissional que lhes incumbe.

O convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução, com a emissão de pronúncia ou não pronúncia, brigando com a celeridade de uma fase intercalar do processo, cogitada para ser breve, privilegiando-se o assistente, em detrimento do arguido, que não usufrui de igual direito, em ofensa chocante do princípio da igualdade de armas.

A renovação, pelo convite à apresentação de um novo requerimento, obstaria ao trânsito do despacho de não pronúncia e exporia o arguido à possibilidade de ver renovada a acusação, quando pela acusação o arguido adquire a garantia de ser julgado pelos factos dela constantes, por forma irrepetível e definitiva.

Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direccionar convite ao Ministério Público para completar o elenco factual acusatório, ante e com apoio nos peremptórios termos do citado artigo 311., n. 3, alínea b).”

O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo legal de crime de violência doméstica, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído no RAI, em toda a sua plenitude.

Ultrapassada a fase processual em que o RAI podia ter sido rejeitado por ser manifestamente infundado por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de julgamento restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos dos arts 358º e 359º do CPP.

Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
“O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.

Aliás, a propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal, Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.

Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação ( ou pela pronúncia)– princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do C. Processo Penal (art. 379º, nº 1, b), do mesmo código).

Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.

Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancialdos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (art. 358º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).

Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (art. 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório.

Ora, o artigo 1º alínea f) C P Penal, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

É óbvio que a descrição dos factos constantes do RAI apresentado pelo recorrente não integra sequer um crime, pois a omissão do elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretendia imputar manifestamente não permite a imputação de uma conduta ilícita típica à arguida.

Consequentemente, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.

É a lei processual penal vigente.

E não nos compete contornar os obstáculos legais sob pena de violação do princípio da acusação e da verdade material - subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela e que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço - mas processualmente válida.

Esta a razão da nossa discordância do Ac da Relação de Évora de 15.07.2008 (CJ A. XXXIII, T. III/p. 264) onde se defende que “A insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição”, pois “A rejeição apenas deve ser usada pelo julgador quando se verifique que a omissão detectada é integral e irremediavelmente insusceptível de vir a ser suprida, sendo por isso, de todo inviável a condenação do arguido.”

Até porque se argumenta naquele acórdão, a propósito, precisamente, da falta de indicação dos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime que aquele elemento subjectivo, “…poderá sempre ser integrado no decurso da audiência, através de requerimento do MP ou oficiosamente por via do disposto no art. 358º do CPP, dado que então se estará perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na medida em que não redundará em imputação de crime diverso – art. 1º nº 1 al. f) do CPP – como entre outros foi abordado no Ac TC nº 450/2007 de 18.09 ….”.

Também discordamos, pelas razões acima expostas, do Ac RL de 26.09.2001 (relator Adelino Salvado, dgsi.pt). onde se decidiu: “ A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (dolo genérico) é susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum. Assim, existindo tal deficiência na acusação, esta não pode ser considerada manifestamente infundada de modo a determinar a sua rejeição ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, alínea a) e 3 alíneas b) e d) do C.P.Penal.”

Renovando o fundamento central da tese que defendemos, por força das regras da hermenêutica jurídica, há-de partir necessariamente do conceito vertido no art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a pronúncia ou condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal.

Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se inviável a transmutação para crime diverso.

Concluímos que “Não se pode admitir a figura de dolo implícito” (Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, in CJ, II, 291) nem a Constituição da República consente presunções de culpa (cfr. artigo 32º/1, 2 e 5 da Constituição da República). O elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados à arguida no RAI do assistente.

É que, como se refere no referido Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, CJ, ano XXVIII, tomo 2, pág. 292, no nosso direito ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.

Entendemos assim que não é admissível a ideia de um “dolus in reipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais.

Deste modo, face à posição por nós defendida, ainda que todos os factos constantes do RAI(base da pretendida pronúncia) viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição da arguida.

Em conclusão, bem andou pois o tribunal a quo ao proferir decisão de não pronúncia.

III. DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.

Fixa-se a taxa de justiça em 3 Ucs.

Notifique.

Processado por computador e revisto pelos signatários (artigo  94º nº 2 CPP).

Coimbra, 28 de Janeiro de 2015

(Isabel Valongo - relatora)



(Jorge França - adjunta)