Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1195/07.8TBAGD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 05/19/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 46º, Nº 1, AL. C), DO CPC
Sumário: I – Extinta a obrigação cambiária, o cheque mantém a natureza de título executivo, valendo como quirógrafo, enquanto documento particular (art.46 nº1 alínea c) do CPC), desde que nele se mencione a causa da relação subjacente ou que ela seja alegada no requerimento executivo.

II - Não se provando a relação causal alegada pelo exequente no requerimento executivo, o tribunal não pode servir-se do alegado pela executada/opoente na petição da oposição à execução para conferir eficácia executiva ao documento erigido como título executivo, mas que não reúne os requisitos legais.

III - Não constando do título a relação causal e não se provando qualquer relação negocial entre a exequente e a executada, que aquela alegou existir, tanto basta para afastar a força executiva do cheque, enquanto documento particular.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

         1.1. - A exequente - A.... - instaurou (30/4/2007) na Comarca de Águeda acção executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processo comum, contra a executada - B....

Com fundamento no título executivo de fls.7, cheque no valor de  € 6.592,23, datado de 31/12/2006, assinado pela executada, e alegando ser “para pagamento de uma dívida comercial” à exequente, reclamou o pagamento da quantia de € 6.794,78.

1.2. – A executada deduziu oposição à execução, alegando, em síntese, que o cheque, porque não foi apresentado a pagamento nos oito dias, está prescrito, sendo inexequível, tratando-se de um cheque de garantia, concluiu pela extinção da acção executiva.

         Contestou a exequente por impugnação, reafirmando a exequibilidade do cheque.

        

1.3. - No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

         Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls.73 a 87) a julgar improcedente a oposição.

         1.4. – Inconformada, a executada/opoente recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

(…)

         Não houve resposta.


II - FUNDAMENTAÇÃO

         2.2. – Os factos provados:

(…)

         2.3. – O Direito:

2.3.1. - Nos termos do art.45 do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.

         Ao pagamento coercivo exercitado pela exequente, opôs-se a executada através de oposição à execução, funcionando como uma contra-acção do devedor contra o credor para impedir a execução ou destruir os efeitos do título executivo.

         Dado o disposto no art.816 CPC, se a execução se não baseia em sentença condenatória, além dos fundamentos de oposição especificados no art.814, na parte em que sejam aplicáveis (e não o são os fundamentos das alíneas b), d), f) e g) ), pode invocar-se quaisquer outros que seria lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração.

         A sentença recorrida, após haver concluído que o cheque não vale como título executivo, enquanto título cambiário (por ter sido apresentado a pagamento fora do prazo legal), considerou tratar-se de documento particular, com força executiva (art.46 nº1 c) CPC).

         Em contrapartida, objecta a executada dizendo que, enquanto quirógrafo, também não serve de título executivo, sendo este o objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões (arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ).

         2.3.2. – Coloca-se a questão de saber se, extinta a obrigação cambiária, o cheque dado à execução funciona como título executivo, enquanto documento particular (art.46 nº1 c) do CPC), e sobre a qual incidem duas correntes jurisprudenciais:

         a) - Uma, no sentido de que a letra, livrança ou cheque que não reúnam condições para valer como título de crédito, não podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigação, logo, não podem servir de título executivo.

         Argumenta-se, em síntese, que as livranças, letras e cheques já eram títulos executivos antes da reforma processual de 1995/96, pelo que nunca esteve na mente nem nos propósitos do legislador alterar a LULL e LUC, nem bulir no regime aí consagrado, ou sequer modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos, pelo que em tais casos não podem significar a declaração de constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias ( cf., por ex., do STJ de 29/2/00, C.J., ano VIII, tomo I, pág. 124, de 16/10/01, C.J., ano IX, tomo III, pág. 89, de 20/11/03, C.J. ano XI, tomo III, pág. 154 , de 18/10/07, www dgsi.pt, Ac RC de 6/2/01, C.J., ano XXVI, tomo I, pág. 28 ).

         b) – Outra, partindo da ampliação dos títulos executivos resultante a nova redacção do art.46 alínea c) do CPC, defende que extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, mantém a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular assinado pelo devedor, mas com duas variantes:

i) - Desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo (cf., por ex., Ac do STJ de 18/1/01, C.J. ano IX, tomo I, pág.71, de 29/1/02, C.J. ano X, tomo I, pág.64, de 30/10/03, de 16/12/04, Ac RC de 27/6/06, de 21/11/06, de 29/5/07, de 26/6/07, de 28/10/08, disponíveis em  www dgsi.pt/jstj);

ii) – Independentemente da invocação da relação subjacente, por o título implicar o reconhecimento unilateral de uma dívida. É que a emissão de um cheque, para além de traduzir uma ordem de pagamento, constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, convocando a aplicação do art.458 do CC.

         Daqui resulta estar o credor dispensado da alegação da relação subjacente, significando que perante a mera existência do documento particular (assinado pelo devedor e que importe o reconhecimento de dívida), ainda que não se invoque a respectiva causa, presume-se a mesma, cabendo ao devedor a prova do contrário (inversão do ónus da prova) - neste sentido, cf., por ex., P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, 4ª ed., pág.439, ANTÓNIO GERALDES, “Títulos Executivos”, Themis ano IV, nº7, pág.62, Ac STJ de 11/5/99, C.J. ano VII, tomo II, pág.88, Ac STJ de 25/9/07, Ac RP de 11/1/07, de 7/10/08, disponíveis em www dgsi.pt).

         Parece ser de admitir, pela maior consistência argumentativa, a tese de que, extinta a obrigação cambiária, o cheque vale como quirógrafo, enquanto documento particular, desde que nele se mencione a causa da relação subjacente ou que seja alegada no requerimento executivo, defendida por LEBRE DE FREITAS (A Acção Executiva, pág.54), sendo, aliás, a posição prevalecente no Supremo Tribunal de Justiça.

         Nesta perspectiva, excluída a exequibilidade da obrigação cartular, mesmo que se trate de uma declaração unilateral (art.458 nº1 do CC), o ónus de alegação da causa de pedir não se satisfaz com mera apresentação do título de crédito de que conste a obrigação de pagar, impondo-se a alegação da causa subjacente no requerimento executivo.

         A este propósito, foi alegado pela exequente que o cheque se destinou ao “pagamento de uma dívida comercial”, sendo esta a causa de pedir e não outra. Contudo, provou-se que a executada não manteve relações negociais com a exequente, significando inexistir qualquer dívida comercial para com a exequente.

         Por isso, não constando do título a relação causal e não se provando qualquer relação negocial entre a exequente e a executada, tanto basta para afastar a força executiva do cheque, enquanto documento particular.

         É certo demonstrar-se que o cheque foi entregue pela executada à seguradora da exequente para garantia do pagamento de uma dívida que a sociedade Agito-Fundição e Serralharia Lda tinha para com a exequente. Só que não foi essa a relação subjacente plasmada pela exequente no requerimento executivo, ou seja, não foi essa a causa de pedir invocada, correspondendo antes ao alegado pela executada/opoente na petição da oposição.

         Independentemente dos problemas que se colocam a propósito do chamado “cheque de garantia”, a verdade é que, no caso concreto, esse facto (alegado pela opoente) não pode ser utilizado como causa de pedir da acção executiva, mesmo a coberto do princípio da aquisição processual.

Como se sabe, este princípio vale não só para as provas, mas também para as afirmações das partes, conforme se extrai do art.515 do CPC, mas o princípio cede quando a lei impõe que a alegação seja feita por certo interessado, ou por força do princípio da preclusão.

         Por conseguinte, não podia o tribunal a quo servir-se do alegado pela executada/opoente na petição da oposição à execução para conferir eficácia executiva ao documento erigido como título executivo, mas que não reúne os requisitos do art.46 nº1 c) do CPC (cf., neste sentido, Ac RC de 25/1/05 (proc. nº3790/04), em www dgsi.pt).

         Procede a apelação, revogando-se a sentença recorrida.

         2.3.3. - Síntese conclusiva:

1. Extinta a obrigação cambiária, o cheque mantém a natureza de título executivo, valendo como quirógrafo, enquanto documento particular (art.46 nº1 alínea c) do CPC), desde que nele se mencione a causa da relação subjacente ou que ela seja alegada no requerimento executivo.

2. Não se provando a relação causal alegada pelo exequente no requerimento executivo, o tribunal não pode servir-se do alegado pela executada/opoente na petição da oposição à execução para conferir eficácia executiva ao documento erigido como título executivo, mas que não reúne os requisitos legais.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, julgando-se procedente a oposição e extinta a execução.

2)

         Condenar a apelada/exequente nas custas.